Perspectiva histórica da ditadura cívico-militar brasileira e a construção da Lei de Anistia n°. 6683/79

Resumo: A finalidade do presente estudo é abordar a lei da Anistia n° 6683/79 sob o panorama social do Brasil, partindo do primeiro governo antes do período militar e como as escolhas políticas do período levaram à ditadura cívico-militar brasileira. Nos governos militares, as mudanças empregadas por eles e como paulatinamente a Constituição Federal foi alterada para dar legalidade aos atos de Estado Ditatorial, culminando com o esgotamento político da forma militar e a construção da lei da Anistia, como processo inicial da Justiça de Transição no Brasil rumo um futuro democrático. A Anistia possível foi o primeiro passo para a redemocratização do Brasil após 15 anos de regime ditatorial, iniciando o período de efetivação da Justiça de Transição no país, que ainda não obteve o direito à verdade sobre seus mortos e desaparecidos do período.[1]

Palavras chave: justiça de transição, ditadura, democracia, anistia.

Sumário: 1. Introdução. 2. Anistia geral e irrestrita: uma análise histórica. 3. Os governos militares e os atos institucionais. 4. Anistia: geral e irrestrita. 5. Conclusão. Referências

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por objetivo abordar a construção político histórica da Lei de Anistia n°. 6683/79, desde os momentos que antecederam ao golpe cívico-militar de 1964, demonstrando que a democracia foi abandonada pelos atores políticos do período até a anistia decretada em 1979, como fruto de mobilizações populares e esgotamento de um projeto político exaurido após 15 anos de efetividade.

2. ANISTIA GERAL E IRRESTRITA: UMA ANÁLISE HISTÓRICA

Nos últimos anos, o tema sobre a ditadura cívico-militar esteve presente na pauta nacional. Seja por consequência da conjuntura política, por mobilização de campos da sociedade contrários ou favoráveis ao esquecimento. De qualquer forma, a impressão que fica é o gosto amargo de uma história inacabada, ainda em trânsito.

Olhando para nossos vizinhos latinos que também passaram por períodos ditatoriais, é nítido o mesmo sentimento: o período dito como democrático não se consolida neste processo de transição, talvez pelo simples fato de que foram instituídos sob o compromisso, mesmo que inicial, de silêncio, de “pedra sobre o assunto”. Ou talvez, até mesmo, pela concepção de democracia, mais como forma do que pela sua essência. Nas palavras de Tarso Genro (2010), ex-Ministro da Justiça:

“A sucessão de regimes repressivos e autoritários, ditatoriais e/ou totalitários que avassalaram a América Latina, entre meados dos anos 60 e 80, ainda não foi tratada de forma sistemática por nenhum regime democrático em processo de afirmação no continente. Isso se justifica, de uma parte porque a democracia expandiu-se mais como “forma” do que como “substância”. Na verdade, nenhum dos regimes de fato foi derrotado ou derrubado por movimentos revolucionários de caráter popular; logo, os valores que sustentaram as ditaduras ainda são aceitos como “razoáveis” para a época da guerra fria, e também em face às “barbáries também cometidas pelos resistentes de esquerda.”

Importante ressaltar que, nas palavras do ex-Ministro da Justiça, falando como um ex-membro do Governo do Estado Brasileiro, reconhece a incapacidade do Estado em atender à demanda dos familiares dos mortos e desaparecidos, pelo fato de haver um pacto não redigido, de acomodação e tolerância no poder das partes contrárias do período da ditadura.

Aprofundando-se na história, percebemos que no Brasil o golpe cívico-militar foi um momento de forte ruptura social, porém sem que seus atores políticos fossem surpreendidos com o acontecimento. A surpresa foi mais pelas consequências dos atos do que pela ruptura propriamente dita.

2.1. 1964: O ano que não terminou

Voltemos então à política do século XX, uma política de resiliência sob o rastro do sofrimento: Duas grandes guerras, o ápice da industrialização da destruição humana até então. Foram criadas técnicas, métodos que, através da estrutura burocrática estatal, os carrascos não se sentiam minimamente culpados. Os carrascos revestiam-se de incompreendidos, cumpridores de um dever maior. Anos mais tarde, esta pratica das duas grandes guerras infiltra-se nos governos, que desaparecem com opositores, subversivos, com inimigos. José Carlos Moreira da Silva Filho (2015), em seu livro, relembra que:

“Embora o número de mortos nas ditaduras latino-americanas não seja tão elevado quanto o dos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial ou até mesmo da hecatombe indígena, tais regimes de exceção, em suas práticas e contextualização política, se alojaram no rastro de continuidade instalado pelos totalitarismos e barbáries do século passado.”

O regime instaurado em 1964 no Brasil combinava a imposição pela força com períodos de negociação, preservando instituições democráticas, ora como o Legislativo e em alguns momentos no Judiciário, ocupando tais postos “chave” com parceiros ideológicos ou coniventes. As práticas de violência cotidianas, da repressão policial até então isoladas, ascenderam à atos de violência pontuais, praticadas pelo Estado.

Porém, não foi em 1964 que o regime repressivo iniciou e sim o ano em que a violência estatal assumiu poderes antes inacessíveis. Segundo Renato Lemos (2008):

“A implantação do novo regime político contrarrevolucionário implicou em surtos de violência concentrada, de par com práticas violentas cotidianas. A violência praticada pelos órgãos de polícia, sob a regência do Sistema Nacional de Informações (SNI), atingiu o campo e a cidade, onde os principais alvos eram as organizações de trabalhadores e estudantes, bem como instituições educacionais e culturais. Eram abertos inquéritos para apurar acusações de subversão comunista e corrupção, que resultavam em suspensão de direitos políticos, cassação de mandatos, prisão dos acusados e afastamento do emprego e prisão de acusados.”

Os militares que assumiram o poder nas décadas de 60 e 70 tinham ligações com a doutrina da segurança nacional e desenvolvimento, que era desenvolvida na Escola Superior de Guerra desde 1950, que formalizou uma doutrina de integração e participação do Brasil na Guerra Fria. Segundo Angelo Priori (2004):

“O grupo militar que tomou o poder em 1964 vinha de uma tradição militar mais antiga, que remonta à participação do Brasil na II Guerra. A participação do Brasil ao lado dos países aliados, acabou sedimentando uma estreita vinculação dos oficiais norte-americanos e militares brasileiros, como os Generais Humberto de Castelo Branco e Golbery Couto e Silva. Terminada a guerra, toda uma geração de militares brasileiros passaram a frequentar cursos militares norte-americanos. Quando esses oficiais retornavam dos EUA, já estavam profundamente influenciados por uma concepção de defesa nacional. Tanto que alguns anos mais tarde vão criar a Escola Superior de Guerra (ESG), vinculada ao Estado Maior das Forças Armadas. Essa escola foi estruturada conforme sua similar norte-americana National War College.”

O clima acirrado do período contava também com espaço entre os campos ditos como progressistas ou situacionistas da época. Jânio Quadros foi eleito Presidente da República em outubro de 1960, tendo como pilares de sua candidatura uma imagem popular e a promessa de combate à corrupção. Devido ao modelo eleitoral vigente na época, o vice-presidente eleito foi João Goulart, conhecido como Jango, mesmo sem pertencer ao grupo político do presidente eleito. Jânio Quadros contava com o apoio de parte da classe média, da elite antigetulista e grande parte dos trabalhadores.

Nesse período, o Brasil passava por grave crise econômica, com inflação acima dos 30% e um déficit orçamentário que comprometia um terço das receitas da União. Na política internacional, nesse período ocorreu no continente americano a Revolução Cubana, comandada por Fidel Castro , derrubando a ditadura de Fulgêncio Batista. Aliado a todos estes eventos, Jânio perdia cada vez mais respaldo político, aumentando o clima de incerteza. Suas decisões não eram respaldadas pelos líderes partidários e a sua sinalização de uma reforma agrária minava seu relacionamento com partes do poder legislativo e com a elite brasileira. Em agosto de 1961, Jânio Quadros renuncia à presidência, devido as fortes pressões sofridas para deixar o cargo. Jânio ao renunciar tentava conclamar à população o apoio que obteve nas urnas, o que não concretizou-se. Não foi uma atitude impensada como pode se levar a crer, e sim uma ação drástica para reaglutinar em torno de seu nome força suficiente para dar um golpe de Estado no próprio governo e reorganizar o panorama político, conforme LOPEZ (1991, p.112) cita:

“(…) foi uma atitude drástica e inesperada, cujos motivos são até hoje objeto de discussão, embora se possa supor que Jânio Quadros, respaldado pela popularidade que tinha e em cuja força acreditava, pretendesse contar com ela para voltar ao poder. Enfim, a renuncia vista desse lado, não teria sido um gesto de um homem desiludido, mas uma tentativa esperta de um político que manobrava para capitalizar o apoio da massa e ter força para dar um golpe es Estado em função de seus objetivos próprios.[2]

Essa sucessão de fatos, aliada a presença do vice-presidente João Goulart na China Comunista, criou a atmosfera propagada pela UDN (União Democrática Nacional) como o perigo do golpe comunista. Grupos conservadores recusavam-se a aceitar a sucessão presidencial prevista na constituição vigente, em que o vice-presidente assumiria no caso de incapacidade do presidente eleito. Interessante salientar que tais atitudes são justificadas na legítima defesa da democracia, frente a um provável regime ditatorial comunista.

O então Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, organiza os setores da sociedade que defendem o respeito à Constituição Federal, com a posse de João Goulart. Consegue apoio de parte das Forças Armadas, como o General Machado Lopes, chefe do 3° Exército, que dispôs-se a pegar em armas para garantir a via legalista. Manifestações em Porto Alegre foram organizadas por Brizola, que culminou em momentâneo período de diálogo e acordos, que levaram a uma comissão no Congresso que propôs a posse de João Goulart, mediante a redução de poderes do Executivo, criando no Brasil um período parlamentarista.

Assim, João Goulart toma posse em setembro de 1961, sob um regime parlamentarista que duraria até 1963, quando foi abolido o regime através de plebiscito, reestabelecendo plenos poderes ao Executivo Federal.

Em 1963 João Goulart, agora de posse dos poderes totais do um chefe do Executivo Federal, avançava no que ele próprio chamava de reformas de base[3], reformas políticas que consistiam numa aliança entre o Estado, a classe operária e a burguesia industrial brasileira, com atuação mais ampla do Estado na economia, através de nacionalização de empresas, regulamentação de remessa de lucros ao exterior e reforma agrária. Através de intervenções do Estado, as desigualdades sociais seriam diminuídas.

Tais intenções tornaram a sociedade ainda mais polarizada, entre aqueles que defendiam reformas nacionalistas sociais amplas e irrestritas no país, capitaneado pelos partidos de esquerda, e aqueles que temiam pelo caminho tomado pela política brasileira – leia-se conservadores.

João Goulart, em busca de criar condições para governar, tentou pelos meios ortodoxos das cartilhas de golpes da América Latina desfazer-se de seus opositores, como Lacerda no Rio de Janeiro e Miguel Arraes de Pernambuco. Não obtendo êxito, tentou declarar estado de sítio em outubro de 1963, porém fora abandonado pela esquerda nesta vã tentativa. A derradeira tentativa foi em março de 1964, com um comício em frente à Central do Brasil no Rio de Janeiro. Neste comício, assinou dois decretos: um que desapropriava terras ociosas nas margens de açudes e rodovias federais e noutra, acampava refinarias particulares de petróleo.

A tensão dentro dos quartéis, também divididos, só aumentava no período. Os militares da Marinha amotinados, depois da tentativa frustrada de prisão pelos Fuzileiros Navais que aderiram à manifestação dos amotinados, foram presos pela Polícia do Exército, para que momentos mais tarde fossem soltos e anistiados pelo Presidente da República, desrespeitando os pilares basilares das Forças Armadas, a hierarquia e a disciplina. Com tal atitude, João Goulart somou aos seus opositores as Forças Armadas. GASPARI (2002, p. 94)  em seu livro cita:

“Fosse qual fosse o governo, fosse qual fosse o presidente, depois de acontecimentos como a insubordinação da marujada e o discurso do Automóvel Clube, em algum lugar do Brasil haveria um levante. Por definição, esse levante não poderia ser reprimido utilizando-se tropas submetidas aos regulamentos convencionais. Um governo que tolerava a indisciplina não deveria acreditar que seria defendido de armas na mão por militares disciplinados, obedecendo a ordens da hierarquia. Repetiu- se nos quartéis o dilema que paralisou Goulart durante o dia 31: o situacionismo esperou ser defendido pela estrutura convencional que desafiara, quando só lhe restava o caminho de atacá-la, antes que ela o liquidasse.[4]

A sucessão de fatos comprovam o período de instabilidade que o país vivia naquele momento. Todos os acontecimentos apontavam para uma ruptura, com a polarização cada vez mais radical e irracional de campos cada vez mais antagônicos. O sentimento que se tinha na época, é que ambos os campos se mobilizavam para um golpe. Como cita ELIO GASPARI (2002, p.51):

“Havia dois golpes em marcha. O de Jango viria amparado no “dispositivo militar” e nas bases sindicais, que cairiam sobre o Congresso, obrigando-o a aprovar um pacote de reformas e a mudança das regras do jogo da sucessão presidencial. Na segunda semana de março, depois de uma rodada de reuniões no Rio de Janeiro, o governador Miguel Arraes, de Pernambuco, tomou o avião para o Recife avisando a um amigo que o levara ao aeroporto: “Volto certo de que um golpe virá. De lá ou de cá, ainda não sei.[5]

O período de instabilidade anteriormente citado era tamanho que era nítida a movimentação dos diversos campos políticos como uma preparação para momentos de incerteza e rupturas das vias democráticas. Pouco a pouco, a democracia era defendida apenas nos discursos, sendo dia a dia abandonada como via possível de restabilidade política para o país. O autor BORIS FAUSTO (1998, p. 458) adianta em seu livro que:

“… a tragédia dos últimos meses do governo Goulart pode ser apreendida pelo fato de que a resolução dos conflitos pela via democrática foi sendo descartada como impossível ou desprezível por todos os atores políticos. A direita ganhou os conservadores moderados para sua tese: só uma revolução purificaria a democracia, pondo fim à luta de classes, ao poder dos sindicatos e aos perigos do comunismo.[6]

A realização do Comício na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, causou comoção nos meios conservadores, que desde então começaram a conspirar abertamente contra o Governo de João Goulart. Associações Católicas ligadas à setores conservadores da Igreja organizaram em São Paulo a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em março de 1964, contando com cerca de 500 mil pessoas. A marcha serviu para seu propósito: dar respaldo social aos grupos favoráveis ao golpe.

     Todos os ingredientes para o discurso de que um golpe comunista estavam sendo tramados estavam sobre a mesa: o Presidente reunia-se com partidos de esquerda; não tinha respaldo no Congresso, nem de sua base aliada; reunia-se abertamente com setores das Forças Armadas, que não eram suas lideranças hierárquicas; participava de comícios populistas, com a propaganda da reforma agrária no campo e desapropriação de imóveis alugados na cidade em prol dos inquilinos; promessa de nacionalização de empresas; reforma bancária e taxação de impostos sobre remessas de valores ao exterior; promessa de votos aos analfabetos.

     Em 31 de março de 1964 o General Mourão Filho mobilizou suas tropas, em afronta ao Chefe do Executivo, sob a estratagema da defesa da democracia frente um iminente Golpe Comunista. O grande problema é que os partidos de esquerda também não confiavam no Presidente João Goulart e não se mobilizaram em momento algum em defesa do Presidente ou de um pretenso golpe, seja ele de qualquer natureza ideológica.

Isolado politicamente, João Goulart deixa o país, sem antes passar por Brasília e Rio Grande do Sul, acumulando histórias de fracassos de resistência e abandonos. Continua GASPARI (2002, pag. 114):

“João Goulart viveu os últimos momentos de seu aniquilamento político num estado de deprimente solidão. É conhecida a orfandade dos fracassos, mas alguns aspectos do comportamento dos generais de Jango acabaram por engrandecer sua pequena figura. Desde o momento em que Moraes Âncora lhe sugeriu que deixasse o Laranjeiras até a hora em que Floriano Machado lhe disse que fugisse do Brasil, os oficiais do “dispositivo” praticamente enxotaram o presidente, do Rio para Brasília, de Brasília para Porto Alegre e de Porto Alegre para o diabo que o carregasse, desde que fosse para longe de suas biografias.[7]

Termina assim a presidência do homem que não foi eleito para ser presidente, que não conseguiu durante todo o tempo no poder implementar as mudanças que ambicionava, não obteve o apoio que precisava ou a compreensão da conjuntura política que se espera de um Chefe do Poder Executivo.

3. OS GOVERNOS MILITARES E OS ATOS INSTITUCIONAIS

Em 09 de abril de 1964 foi instaurado o Ato Institucional n°1, que mantinha o Congresso Nacional e a Constituição Federal de 1946.Sobre os Atos Institucionais, cita BONAVIDES (1999, p. 145):

“O recurso aos Atos Institucionais não só aniquilou as bases jurídicas do poder constituinte como institucionalizou politicamente a sua usurpação, visto que os governantes podiam dele valer-se, a cada passo, qual instrumento de mudança casuística das instituições, sem audiência à vontade dos governados, com inteiro menosprezo do princípio da soberania popular e sua legitimidade.[8]

O regime instaurado no país contou com o Poder concentrado no Executivo, desmobilização político-partidária, utilizando do combate direto às forças contrárias ao regime. A intimidação para obtenção de informações e a destruição de liberdades democráticas eram as duas faces da moeda: enquanto a obtenção de informações de forma violenta não era declarada como prática estatal, o desrespeito às liberdades democráticas era declarado, reforçando o dualismo dos donos do poder no período.

No período, duas Constituições: De 1964 – Não promulgada, e sim a Constituição de 1946 com as alterações dos primeiros Atos Institucionais – e a de 1967, semioutorgada, que através do Ato institucional n° 4 tornou o Congresso Nacional em Assembleia Nacional Constituinte, com membros da oposição afastados, com os congressistas sob pressão, legalizando os governos militares. Como algumas características, elas concentravam os poderes, ditavam que a presidência era eleita de forma indireta e que esta poderia legislar por meio de decretos-lei. Anos de exceção, barbárie, supressão de direitos, prisões arbitrárias e tortura. O modelo de governo era o Estado de exceção, desaparecimentos e mortes eram corriqueiros. Cria-se uma ditadura cívico-militar, sustentada ideologicamente pelos conservadores, contra uma possível ditadura comunista. Os fins passam a justificam os meios.

Castelo Branco é eleito indiretamente, assumindo o poder em 15 de abril de 1964. Em seu período frente ao país, colocou em prática o Programa de Ação Econômica do Governo, que visava a modernização econômica do país, aproximando o Brasil da política econômica ditada pelo eixo capitalista na guerra fria. Seguindo as medidas liberais, aumentou a arrecadação de impostos, redução de salários e cargos públicos e favoreceu os empregadores em detrimento aos trabalhadores, que na época contavam com estabilidade após dez anos de serviço. Por fim, tais medidas reduziram o déficit publico e inflação. No campo dos Atos Institucionais,decretou os Atos Institucionais n° 2, 3 e 4.Entre outros, os decretos determinavam o fim do voto secreto no Congresso Nacional, eleições indiretas por maioria absoluta do Congresso para Presidente e Vice- Presidente,  implementou o bipartidarismo, eleição indireta para os governos estaduais e transformou o que restou do Congresso, após o afastamento de opositores mais ferrenhos, em Assembleia Constituinte, promulgando o projeto de Constituição Federal indicado pelo Presidente Castelo Branco em 1967.

A nova Constituição tinha com principal característica a o fortalecimento do Poder Executivo em detrimento ao Legislativo e ao Judiciário, a segurança nacional em conceitos abrangentes, que permitia a manipulação da Constituição fundamentado numa política de segurança nacional.

Em 1967 assume a Presidência da República do General Costa e Silva, militar da linha-dura que aproximava-se dos setores nacionalistas em detrimento ao facilitamento ao capital estrangeiro. O período foi marcado por fortes movimentos de oposição organizada, como a passeata dos 100 mil, greves dos trabalhadores e o movimento cultural de oposição, principalmente através de peças teatrais e da música. Iniciou-se também,  as atividades dos grupos de extrema esquerda, organizados em movimentos de esquerda que atuavam através de atividades terroristas em oposição ao governo.

Em 1967 era instaurado o Ato Institucional n°5, em resposta às organizações de oposição dos movimentos de esquerda. Como característica, além de aumentar ainda mais os poderes ao Presidente da República, como de intervir em Estados e Municípios, cassação de mandatos, suspensão de direitos políticos, demissão e aposentadoria compulsória à servidores públicos, censura aos meios de comunicação e suspensão da concessão de habeas corpus aos acusados de crimes contra a segurança nacional. Todos estes poderes sem prazo de vigência, o que ocorreu até 1979. Afastado da presidência por problemas de saúde, Costa e Silva foi substituído na presidência provisoriamente por uma junta militar, em detrimento à assunção do Vice- Presidente Pedro Aleixo, que era um civil. Através do Ato Institucional n°12 a junta militar ocupou a presidência da república revestida de uma legalidade forçada pelo poder das armas e do silêncio forçado contra os descontentes.

No ano de 1969, com os movimentos de esquerda tornando-se cada vez mais audaciosos,a junta militar instaurou como resposta o Ato Institucional n°13, que criou o banimento do território nacional. Em 25 de outubro de 1969 é eleito nas eleições indiretas o General Médici.

Médici, em seu governo, permitiu o aumento de capital estrangeiro investido no país, expansão do setor automobilístico, aumento do endividamento do país, redução da inflação e do déficit público. As ações de violência e brutalidade contra os inimigos do estado eram fundamentadas na defesa da frágil democracia, ante a ameaça comunista.

O General Ernesto Geisel, eleito indiretamente pelo Colégio Eleitoral, assume a presidência, no dia 15 de março de 1974. Seu mandato foi marcado pela forte influência da crise econômica mundial na economia brasileira, que atingiu os investimentos externos no país, em especial a classe média. Neste período, apareciam os primeiros sinais de que o desgaste do modelo econômico vigente somava-se ao desgaste do regime e ao crescente aumento da desaprovação por parte da classe média brasileira. Os conflitos internos, entre os militares e os setores conservadores da igreja católica já eram externalizados, demonstrando que conflitos internos até então abafados já não contavam com tal aquiescência dos setores não tão repressores.

O governo de Geisel promulga em 1978 o Ato Institucional n° 11, que revogava o Ato Institucional n° 5. Desta forma, o Poder Executivo abriu mão do poder de fechar o congresso, cassar mandatos, entre outros limites às liberdades. Já iniciando o processo de reabertura e diálogo político, Geisel articula sua sucessão para Figueiredo, que deveria continuar um gradual e seguro afastamento das Forças Militares da atuação direta na política nacional.

Figueiredo assume o governo em 15 de março de 1979, com todos os focos de guerrilha armada do país já derrotados, com o compromisso de continuar a lenta e segura transição política. Porém, este período foi de fortes conflitos entre os contrários à liberalização e os reformistas. Dentre os principais acontecimentos no período de governo de Figueiredo, cita-se a concessão da anistia aos crimes relacionados ou praticados por motivação política e o início da dissolução da fórmula bipartidária da até então política nacional, com a transformação dos partidos Arena e MDB e a criação de novos partidos.

4. ANISTIA: GERAL E IRRESTRITA

Figueiredo em agosto de 1979  sancionou a lei da anistia, que beneficiou diretamente cerca de 4,5 mil pessoas punidas pelo estado ditatorial no período de 1961 e 15 de agosto de 1979. Porém, a luta pela anistia vinha de muito antes de 1979.

Com a gradual movimentação do grupo de militares, liderados por Geisel e Golbery, para uma transição política gradual, os movimentos sociais, os militares, os conservadores e as alas mais radicais de ambos disputavam a forma como este importante documento de pacto social pela retomada da democracia.

A bandeira da Anistia ampla, geral e irrestrita era bradada pelos movimentos sociais, através de mobilizações de Comitês Brasileiros e Movimentos Femininos pela Anistia. Formado em 1975, o Movimento Feminino Pela Anistia, apoiado por sindicatos, igreja, Ordem dos Advogados do Brasil, Associação Brasileira de Imprensa, personalidades públicas, lançou a proposta da Anistia, ampla geral e irrestrita. Relata o ex- ministro do Supremo Tribunal Federal Eros Grau (2010, p.26):

“A inflexão do regime, a ruptura da aliança entre os militares e a burguesia, deu-se com a crise do petróleo de 1974, mas a formidável luta pela anistia – luta que, com o respaldo da opinião pública internacional, uniu os "culpados de sempre" a  todos os que eram capazes de sentir e pensar as liberdades e a democracia e revelou figuras notáveis como a do bravo senador Teotonio Vilela; luta encetada inicialmente por oito mulheres reunidas em torno de Terezinha Zerbini, do que resultou o CBD (Comitê Brasileiro pela Anistia); pelos autênticos do MDB, pela própria OAB, pela ABI (à frente Barbosa Lima Sobrinho), pelo IAB, pelos sindicatos e confederações de trabalhadores e até por alguns dos que apoiaram o movimento militar, como o general Peri Bevilácqua, ex-ministro do STM [e foram tantos os que assinaram manifestos em favor do movimento militar!] – a formidável luta pela anistia é expressiva da página mais vibrante de resistência e atividade democrática da nossa História.”

Vale ressaltar que a conjuntura internacional apontava que os movimentos militares e de direita vinham sofrendo revés nas suas atuações e isso incomodava e/ou alertava às ditaduras de outros países em situação semelhante de que este poderia ser seu futuro. O Brasil já não vivia o milagre econômico, a dívida externa aumentava, com um governo militar que já não contava com o apoio da igreja, da classe média, da direita ou de setores moderados da política nacional. O período de prosperidade econômica terminara devido a influência do panorama econômico internacional, e desta forma, o governo perdia o apoio da burguesia industrial. O aumento do custo de vida criava o contexto de insatisfações dos trabalhadores assalariados, que já não poderiam ser contidos pelo governo.

Na Grécia, o regime militar que usava metodologia semelhante à brasileira e alcançara resultados igualmente parecidos, com um período de milagre econômico ruíra nos primeiros sinais de esgotamento da fórmula. E o pior: no final, os generais foram todos presos. O sinal era claro, a saída deveria ser sob a fórmula de uma anistia, para evitar final semelhante aos generais brasileiros.

Manifestos de intelectuais, greves operárias e manifestações em todo o país demonstrava que o regime ditatorial já não conseguia/e ou não tinha vontade de manter a repressão de outrora. Os movimentos sociais voltavam a se organizar, parte pelo enfraquecimento do governo,  parte pelo reagrupamento dos movimentos sob bandeiras comuns aceitáveis pela opinião pública. Esta, como sendo uma bandeira unificada de todos os movimentos sociais, facilmente conquistou clamor popular, alcançando a atenção da mídia e tornando-se pauta do Congresso Nacional no final dos anos 70. Um fato político que tornou-se marco na luta pela Anistia foi a greve de fome dos presos políticos em julho de 1979 pela Anistia, Ampla Geral e Irrestrita, que obteve repercussão internacional, com duração de 32 dias e a participação de mais de 50 presos políticos em todo o país em greve de fome, rompendo o silêncio de setores da sociedade e alcançando apoio político, como do Senador Teotônio Villela, que anunciou para a mídia após visita ao presídio Frei Caneca: “não encontrei terroristas. Encontrei jovens idealistas que jogaram suas vidas na luta pela liberdade em nosso País”. O Senador Teotônio Villela é um típico exemplo dos acontecimentos daqueles tempos: de apoiador do regime, eleito senador pela Arena, transferiu-se para o partido de oposição ao regime, o MDB. Assumiu a defesa dos perseguidos políticos, assumindo a presidência da Comissão Mista que analisava a questão da Anistia. O principal nome da oposição na luta pelos direitos humanos e na luta pela anistia era um defensor até pouco tempo do regime, uma incoerência da história que se repetiria nas ambiguidades da Lei 6683/79.

A anistia possível veio em agosto de 1979, fruto de imensa mobilização popular, somada aos acordos nos bastidores do poder em Brasília. A comoção popular era grande, devido ao terror causado na sociedade, de que aos porões da ditadura qualquer um poderia ser levado, seus amigos, sua família, seus filhos, pela mera desconfiança de terrorismo. A lei da anistia deu início ao processo de redemocratização do Brasil, ainda sob a tutela militar no comando do país, tendo no seu teor as aspirações e preocupações dos diversos atores envolvidos na política nacional da época. Em trechos de depoimento de Dalmo de Abreu Dallari (2006)[9]:

“Nós sabíamos que seria inevitável aceitar limitações e admitir que criminosos participantes do governo ou protegidos por ele escapassem da punição que mereciam por justiça, mas considerávamos conveniente aceitar essa distorção, pelo benefício que resultaria aos perseguidos e às suas famílias e pela perspectiva de que teríamos ao nosso lado companheiros de indiscutível vocação democrática e amadurecidos pela experiência. (…) A ideia inicial de anistia era muito genérica e resultou no lema ‘anistia ampla, geral e irrestrita’, mas logo se percebeu que seria necessária uma confrontação de propostas, pois os que ainda mantinham o comando político logo admitiram que seria impossível ignorar a proposta dos
democratas, mas perceberam que uma superioridade de força lhes dava um poder de negociação e cuidaram de usar a ideia generosa de anistia para dizer que não seria justo beneficiar somente presos políticos e exilados, devendo-se dar garantia de impunidade àqueles que, segundo eles, movidos por objetivos patrióticos e para defender o Brasil do perigo comunista, tinham combatido a subversão, prendendo e torturando os inimigos do regime.”

 Coincidentemente, os países latinos que também sofreram com períodos ditatoriais, a resposta para a transição foi a mesma: criação de instrumentos legais que possibilitassem uma conciliação entre o passado ditatorial e o futuro democrático,  editando leis de anistia que assegurassem, em tese, a impunidade aos agentes do Estado envolvidos.

5. CONCLUSÃO

O presente artigo destinou-se a revisar bibliograficamente os principais fatos históricos relacionados com a instauração do Regime Militar, seu esgotamento e a Lei de Anistia como primeiro passo da Justiça de Transição Brasileira, no caminho para a redemocratização nacional.

Tendo a Lei de Anistia sido o primeiro passo na efetivação da redemocratização, o caso brasileiro demonstra a dificuldade na ruptura com o ano de 1964, com a recusa na apuração dos fatos e na responsabilização daqueles que sob a justificativa de que “os fins justificam os meios” cometeram crimes contra a a humanidade, dificultando  a reconciliação nacional. A política de resgate das memórias e mobilizações contra o esquecimento são hoje o único meio para a efetivação da Justiça de Transição no Brasil, pelo direito à verdade aos mortos, desaparecidos políticos e seus familiares.

 

Referências
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GASPARI, Elio. O SACERDOTE E O FEITICEIRO – A Ditadura Encurralada. Ed, Companhia das Letras. São Paulo, 2003.
LOPEZ, Luiz Roberto. HISTÓRIA DO BRASIL CONTEMPORÂNEO, 1991.
SILVA, Virgílio Afonso da. TRANSIÇÃO E DIREITO: CULPA, PUNIÇÃO, MEMÓRIA. A memória e as ciências humanas, São Paulo: Humanitas,2011.
VIEIRA, Evaldo. A REPÚBLICA BRASILEIRA: 1964 -1984, 1991.
 
Notas:
[1] Trabalho orientado pelo Prof. Msc. Jaime John

[2] LOPEZ, Luiz Roberto. História do Brasil Contemporâneo, 1991, p.112.

[3]  VIEIRA, Evaldo. A república brasileira: 1964 -1984, 1991, p.10.

[4] GASPARI, Élio. AS ILUSÕES ARMADAS – Vol 1- A ditadura envergonhada. p.95, Cap2.

[5] GASPARI, Élio. AS ILUSÕES ARMADAS – Vol 1- A ditadura envergonhada. p.51, Cap1.

[6] FAUSTO, Boris. História do Brasil, 1998, p.458.

[7] GASPARI, Élio. AS ILUSÕES ARMADAS – Vol 1- A ditadura envergonhada. p.114, Cap2.

[8] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 12. Ed. São Paulo; Malheiros, 2001, p.145.

[9] Depoimento prestado à Fundação Perseu Abramo, http://www2.fpa.org.br/conteúdo/dalmo-dallari


Informações Sobre o Autor

Rodrigo da Silva Soares

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande. Pós-graduado em Direito Público


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