A vedação ao retrocesso em direitos sociais infraconstitucionais e o direito às férias dos agentes políticos

Resumo: O presente artigo tem por escopo fazer uma análise crítica a respeito da (im)possibilidade de subtração do direito à férias dos agentes políticos, notadamente em razão da vedação ao retrocesso que blinda os direitos sociais já emancipados pelo ordenamento jurídico pátrio.

Palavras-chave: vedação ao retrocesso; férias; agentes políticos; magistrados; direitos sociais.

Abstract: The purpose of this article is to critically analyze the (im)possibility of subtracting the right to vacation from political agents, especially due to the prohibition against retrocession that shields the social rights already emancipated by the national legal system.

Keywords: prohibition against retrocession; vacation; apolitical agents; judges; social rights.

Sumário: Introdução. 1. Evolução histórica das dimensões dos direitos humanos. 2. Férias como Direito Social. 3. Direitos sociais como cláusulas pétreas. 4. Vedação ao retrocesso. 5. Imutabilidade e inconstitucionalidade de leis que venham a abolir ou reduzir direitos sociais. 6. Dos Direitos sociais ameaçados. 7. Das férias e da remuneração dos Magistrados e dos membros do Ministério Público. Conclusão. Referências.

Introdução.

Em tempos modernos, especialmente onde a crise financeira abala de forma estrutural a sociedade civil e o próprio Estado, é necessário que os operadores do Direito lancem um olhar crítico sobre a atividade legislativa de emergência, cujo produto é a edição de leis sem a devida maturação necessária, muitas vezes suprimindo ou extirpando direitos fundamentais que a tão duras penas foram implementados ao decorrer dos anos.

Como exemplo dessa atividade legislativa de emergência impulsionada pela crise financeira pode-se citar – sem intenção de aprofundar no tema, mas apenas para contextualizar a problemática – a edição da Emenda Constitucional nº 95/2016 que limita por 20 anos o aumento dos gastos públicos à taxa de inflação do ano anterior e desvincula a aplicação de verbas na saúde e educação à arrecadação do ente federado. Da mesma maneira, temos em trâmite parlamentar a Proposta de Emenda Constitucional nº 287 que estabelece uma reforma na Previdência Social, impactando com severidade nos direitos da classe trabalhadora.

Percebe-se, portanto, que os direitos sociais estão sendo alvos de reformas legislativas que tendem a diminui-los ou até mesmo suprimi-los, desconsiderando por completo a vedação ao retrocesso social, característica imanente à sua natureza de direito fundamental. Diante deste contexto, o presente artigo busca lançar um olhar crítico sobre eventuais propostas legislativas tendentes a reduzir as férias – como direito social que é – dos agentes políticos.

1) Evolução histórica das dimensões dos direitos humanos

Inicialmente é necessária uma abordagem sucinta acerca da evolução histórica dos direitos humanos e sua qualificação doutrinária em gerações/dimensões. O primeiro ponto que merece atenção é acerca da nomenclatura adotada pela doutrina, uma vez que há certa divergência entre autores que preferem a denominação “gerações”, em contraposição aos que acreditam ser mais correto o uso do termo “dimensões”.

A doutrina mais moderna[1] – a qual nos filiamos – tece algumas críticas em relação ao emprego da nomenclatura “gerações”, sendo as principais: 1) transmite a falsa ideia de hierarquia entre os direitos humanos e fundamentais; 2) passa a equivocada impressão de que a “geração” posterior substitui a “geração” anterior; 3) aparenta uma noção de compartimentalização desses direitos, de forma a inviabilizar sua intercomunicação.

Dessa feita, podemos afirmar que os direitos humanos e fundamentais estão dispostos em basicamente três dimensões, que podem ser ligadas ao lema da Revolução Francesa (liberdade, igualdade e fraternidade).

A primeira dimensão se refere aos direitos civis e políticos do homem, estão ligados à sua liberdade individual, marca mais forte dos ideais iluministas que objetivavam impor limites ao superpoder do Estado. A título de exemplo podemos citar alguns dos direitos previstos no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, tais como direito a vida, direito a liberdade, direito de associação, entre outros.

A segunda dimensão garante os direitos sociais, culturais e econômicos, guardam correspondência com a igualdade entre os indivíduos, exigindo do Estado uma prestação positiva no sentindo de implementar essa igualdade material. Entre esses direitos podemos listar o direito a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a férias, dentre outros tantos. Na órbita internacional, são regulados pelo Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, além de outros.

A terceira dimensão de direitos humanos refere-se aos direitos de fraternidade, isto é, os direitos difusos e coletivos, como por exemplo o direito ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade.

Sem embargo de posicionamento doutrinário que sustente a existência de uma quarta dimensão – defendida por Noberto Bobbio – e de uma quinta dimensão – capitaneada por Paulo Bonavides – a nós interessa apenas a tradicional tripartição, em especial a segunda dimensão dos direitos humanos e fundamentais.

2) Férias como Direito Social

É sabido que com a queda do Antigo Regime, através das lutas libertárias do final do Século XVIII, em especial com o sucesso da Revolução Francesa, houve uma mudança significativa do modo de produção econômica a nível global. Se por um lado o iluminismo propiciou uma larga ascensão econômica, com a menor intervenção estatal na propriedade, de outro lado o capitalismo burguês criou novos problemas sociais, sendo o principal deles a até então não concluída – e distante de se concluir – guerra travada entre o capital e o assalariado.

Em virtude da exploração dos trabalhadores por parte do novo modelo de produção capitalista, foi constatada que a simples ingerência estatal na vida privada não era suficiente à garantia da igualdade material. Assim, houve a necessidade de se implementar diversos direitos e garantias sociais, cuja característica principal impõe uma prestação positiva do Estado, a fim de coibir os abusos gerados pela exploração do capital mercantil na sociedade assalariada.

Dentre os diversos direitos sociais, o direito a férias é uma das grandes conquistas dos direitos de segunda dimensão. Previsto no artigo 7º do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o direito a férias periódicas e remuneradas foi protegido pela Constituição Federal de 1988 em seu artigo 7º, inciso XVII, constituindo verdadeiro direito fundamental social do trabalhador.

3) Direitos sociais como cláusulas pétreas

Na era do chamado neoconstitucionalismo, ou simplesmente constitucionalismo moderno como prefere Uadi Lammêgo[2], vivenciamos uma mudança de paradigma com relação a eficácia das normas constitucionais. Abandona-se a ideia de graus distintos de normatividade entre as normas de eficácia plena, contida ou limita, adotando um posicionamento mais firme, garantidor das normas programáticas.

Neste cenário, nos filiamos ao pensamento doutrinário que defende o posicionamento de que o atual estágio do constitucionalismo moderno nos permite alçar os direitos e garantias fundamentais ao patamar de cláusulas pétreas, independentemente de onde estejam topograficamente localizados na Constituição Federal. É certo que o artigo 60, §4º estabelece as chamadas cláusulas pétreas explícitas, isto é, direitos e garantias intocáveis pelo poder constituinte derivado reformador. Entretanto, há que se ponderar sobre a existência de diversos outros direitos e garantias que se revestem da proteção das cláusulas pétreas, ainda que fora do rol do art. 60, §4º.

O próprio Supremo Tribunal Federal já admitiu essa proteção em algumas oportunidades, como por exemplo no julgamento da ADI 3685/DF, onde restou firmado o entendimento de que o princípio da anterioridade eleitoral, situado no artigo 16 da CF/88, reveste-se de status de cláusula pétrea. Vejamos trecho do Voto do Ministro Celso de Mello na mencionada ADI:

“Nesse contexto, a garantia da anterioridade eleitoral – que não ostenta caráter periférico, secundário ou acidental – ganha relevo e assume aspecto de fundamentalidade subsumindo-se ao âmbito de proteção das cláusulas pétreas, cujo domínio – a partir de exigências inafastáveis fundadas no princípio da segurança jurídica e apoiadas no postulado que respeita a confiança do cidadão no Estado – impede que qualquer ato estatal, como uma Emenda à Constituição, descaracterize e comprometa a própria razão de ser do postulado inscrito no art. 16 da Constituição da República”.

Especificamente no âmbito dos direitos sociais dos trabalhadores, Alexandre de Moraes[3] noticia que o Supremo Tribunal Federal já teve a oportunidade de se manifestar em duas situações, uma envolvendo direitos sociais dos servidores públicos – onde ainda não há julgamento definitivo – e outra envolvendo direitos sociais do regime geral da previdência social. Vejamos:

“Ressalte-se, porém, que em relação a outra hipótese, a supressão da incidência de um direito social (art. 7º, XXIII), aos servidores públicos gerará polêmica, pois, apesar de não haver manifestação conclusiva do Supremo Tribunal Federal, na fundamentação de seus votos, em sede de ação direta de inconstitucionalidade (Adin nº 93907/DF), o Ministro Carlos Velloso referiu-se aos direitos e garantias sociais como cláusulas pétreas, enquanto o Ministro Marco Aurélio afirmou a relação de continência dos direitos sociais dentre os direitos individuais previstos no art. 60, § 4o, da Constituição Federal, e, consequentemente, imutáveis.

Não foi outro o entendimento unânime do Supremo Tribunal Federal, ao analisar o limite máximo para os valores dos benefícios do regime geral de previdência social previsto pela EC nº 20/98, afirmando que o mesmo “não se aplica à licença maternidade a que se refere o art. 7º, XVIII, da CF, respondendo a Previdência Social pela integridade do pagamento da referida licença”, pois, “tendo em vista que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais (CF, art. 60, § 42, IV)”, o Tribunal afastou “a exegese segundo a qual a norma impugnada imputaria o custeio da licença-maternidade ao empregador, concernente à diferença dos salários acima de R$ 1.200,00, porquanto esta propiciaria a discriminação por motivo de sexo, ofendendo ao art. 7-, XXX, que é um desdobramento do princípio da igualdade entre homens e mulheres (CF, art. 5e, I).”

Com efeito, me parece evidente que à exegese do constitucionalismo moderno é possível concluir pela existência de direitos e garantias fundamentais situadas topograficamente fora do rol do artigo 5º, como notadamente já se manifestou o STF nas situações aqui destacadas. Ademais, pensar de modo diverso facultaria ao poder constituinte derivado reformador extirpar o sobreprincípio da dignidade da pessoa humana, previsto como fundamento do Estado Democrático de Direito, uma vez que insculpido no artigo 1º da Constituição Federal e, portanto, fora do âmbito de proteção do artigo 60, §4º da CF/88.

4) Vedação ao retrocesso

No âmbito de proteção dos direitos humanos e fundamentais, encontramos diversos mecanismos que buscam, além de efetivar tais direitos, conquistar novos e garantir a preservação daqueles já conquistados. A doutrina faz uma extensa lista de características dos direitos humanos, entre as quais nos importa destacar o da historicidade, da essencialidade e da vedação ao retrocesso.

No que tange à historicidade dos direitos humanos e fundamentais, podemos dizer que os vários direitos e garantias que hoje temos em nosso ordenamento não foram postos de uma só vez, mas são frutos de conquistas históricas, implementados no ordenamento de forma gradativa e progressiva ao longo dos séculos, muitas vezes às custas de muito sangue e muita luta.

A essencialidade, por sua vez, pode ser considerada como a característica que destaca os direitos humanos e fundamentais como detentores de valores supremos, calcados na dignidade da pessoa humana, cujo conteúdo na maioria das vezes denota o núcleo duro dos direitos fundamentais: o mínimo existencial.

Por fim e talvez a mais importante característica dos direitos humanos e fundamentais, temos a vedação ao retrocesso. Afinal, de que adiantaria a conquista tão guerreada para implementação desses direitos se nos fossem tolidos logo após? De que adiantaria a tão custosa abolição da escravidão se o legislador a restaurasse? Parece-me evidente que os direitos humanos e fundamentais gozam de uma proteção mais eficaz contra o autoritarismo de alguns governantes.

Em que pese parte da doutrina atribuir a tais direitos a qualidade de imutáveis, penso que na verdade não o são. Ao legislador é perfeitamente possível criar leis implementando novos direitos ou mesmo regulando com maior eficácia os já existentes. O que não se pode admitir é que essa produção normativa venha a extirpá-los do ordenamento jurídico, limitá-los ou reduzi-los. Assim, constata-se que os direitos fundamentais gozam da proteção da vedação ao retrocesso, o que não os torna intocáveis, mas impede peremptoriamente que sejam aniquilados ou vilipendiados.

A vedação ao retrocesso também é conhecida como “efeito cliquet” ou “efeito catraca”. Essa nomenclatura é importante pois nos faz ter em mente que diante de um direito fundamental já implementado não se pode retirá-lo da tutela jurídica que lhe fora conferido, sem que outro de igual ou maior âmbito de proteção seja imediatamente concebido.

5) Imutabilidade e inconstitucionalidade de leis que venham a abolir ou reduzir direitos sociais

Não se exige muito esforço argumentativo para se constatar a aplicabilidade que a vedação ao retrocesso também se aplica aos direitos sociais. Essa conclusão podemos extrair do artigo 2º do Pacto dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ratificado pelo Brasil em 1992 ao prescrever que “cada Estado Parte do presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até o máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas.”.

Nas palavras de Flávia Piovesan[4] “[…] a aplicação progressiva dos direitos econômicos, sociais e culturais resulta a cláusula de proibição do retrocesso social, como também de proibição da inação ou omissão estatal, na medida em que é vedado aos Estados o retrocesso ou a inércia continuada no campo da implementação de direitos sociais.”.

O retrocesso social pode se manifestar de diversas formas, seja por uma ação ou omissão por parte dos poderes legislativo e executivo, bem como por meio de decisões judiciais que afrontem ou enfraqueçam os direitos fundamentais garantidos pelo ordenamento pátrio ou pelo direito internacional.

Uma das formas mais comuns em que se evidencia o retrocesso social é através da atividade legiferante. Infelizmente não é incomum que leis sejam criadas em total descompasso com os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, muitas vezes até mesmo por meio de Emendas Constitucionais, como por exemplo no caso já citado no tópico 3 sobre o princípio da anterioridade eleitoral.

Nesta toada, é tarefa dos três poderes constitucionais o papel de garantidor dos direitos humanos e fundamentais. Ao Poder Legislativo cabe criar leis que garantam a proteção e implementação desses direitos. Ao Poder Executivo incumbe a formulação e execução de política públicas voltadas à satisfação social desses direitos. Por fim, ao Poder Judiciário é atribuído o dever de proteção contra qualquer tipo de violação ou ameaça que atentem contra os direitos humanos e fundamentais, inclusive as legislativas.

Decerto, notadamente em razão de se exigir uma prestação positiva do Estado, os direitos sociais necessitam de serem regulamentados através da atividade legislativa. Por mais prolixa que possa se considerar nossa Carta Constitucional – se comparada à Constituição dos Estados Unidos, por exemplo – não há como exigir que dela decorram todas as regulamentações referentes aos direitos nela previstos.

Como já dito no tópico 3, não há mais espaço para discussões sobre a ausência de efetividade das normas de eficácia limitada. A Constituição Federal é dotada de normatividade em todos os seus termos, sendo certo que diante de um direito social previsto na Carta Magna e não implementado pelo Poder Legislativo ou Executivo, cabe ao Judiciário, uma vez provocado, intervir na proteção desse direito, seja para coibir um ato atentatório ou para determinar sua implementação.

De outro lado, uma vez tendo sido tais direitos regulamentados pelo legislador ordinário, em atendimento ao comando constitucional, não há possibilidade que posterior atividade legislativa venha a extirpá-los, sob pena de violação ao princípio da vedação ao retrocesso, principal característica de proteção dos direitos humanos e fundamentais.

Neste sentido, considerando que os direitos sociais são cláusulas pétreas que somente podem ser modificados para ampliação de seu âmbito de proteção, entendemos que as leis infraconstitucionais que os regulam certamente também se agasalham da mesma proteção de vedação ao retrocesso. Afinal, não faria sentido proteger o direito a vida se não houvesse a criminalização do homicídio através de lei infraconstitucional, uma vez que a Constituição Federal não cria crimes nem comina penas. Outrossim, padeceria de plena inconstitucionalidade qualquer lei que viesse descriminalizar o homicídio.

Em outras palavras, não só os direitos fundamentais são invioláveis, mas também as leis criadas para sua proteção, seja em uma dimensão negativa – proibindo a criação de leis que afrontem os direitos humanos e fundamentais – ou em uma dimensão positiva – declarando a inconstitucionalidade de leis que afrontem tais direitos.

Podemos confirmar essa constatação quando vemos o Supremo Tribunal Federal declarar a ilicitude da prisão civil do depositário infiel, afirmando que apesar de a adesão ao Pacto de San José da Costa Rica não ter implicado na revogação do artigo 5º, inciso LXVII da Constituição Federal, nenhuma lei infraconstitucional posterior poderá disciplinar a prisão civil do depositário infiel, bem como qualquer lei anterior que até então permita tal modalidade de prisão civil não possuirá qualquer aplicabilidade, por força do efeito paralisante dos tratados internacionais.

O que objetivamos demonstrar aqui é simples e direto: não há de se admitir que atividade legiferante posterior – inclusive constitucional – venha a reduzir ou excluir direitos sociais já conferidos anteriormente, através de inovações normativas, notadamente porque as leis infraconstitucionais que garantem tais direitos se agasalham da mesma proteção de vedação ao retrocesso.

Dessa forma, se por um lado é absolutamente inquestionável a vedação imposta ao legislador – seja por meio de Emenda à Constituição ou por lei infraconstitucional – de excluir o direito a férias, eis que constitucionalmente garantido (art. 7º, inciso XVII, da CF/88), de outro lado é igualmente vedado que o legislador venha a reduzir o período de duração das férias previsto em leis infraconstitucionais. Com efeito, qualquer projeto de lei nestes termos padece de inconstitucionalidade desde seu nascedouro, o que inclusive permite a propositura de mandado de segurança por qualquer parlamentar com representação no Congresso Nacional.

6) Dos Direitos sociais ameaçados

Não é o objetivo principal deste estudo se discutir a justiça poética de determinados direitos sociais, apesar de o fazê-lo no próximo tópico quanto aos direitos da magistratura, mas sim, independente da opinião individual, mostrar que os direitos sociais garantidos em normas infraconstitucionais não podem ser extirpados ou vilipendiados por leis posteriores, inclusive por emendas constitucionais, pois a permissão jurídica da redução de qualquer destes direitos abre um precedente direto para a violação de todos os demais.

Atualmente se discute no âmbito legislativo uma série de Propostas de Leis e de Emendas Constitucionais, entre elas a que possibilita reduzir o período de férias de 60 (sessenta) dias, garantidos aos magistrados, membros do Ministério Público, e a várias outras carreiras, como algumas Defensorias Públicas Estaduais e Procuradorias Estaduais e Municipais.

Não só isso, discute-se a possibilidade de reduzir o teto do funcionalismo público, além de permitir que trabalhadores tenham a redução de seu salário para evitar demissões.

Não tenho dúvida nenhuma que a respeitabilidade a todos os direitos sociais, seja dos trabalhadores privados ou dos funcionários públicos, depende da luta pela solução destes projetos de lei a fim de impedir que sejam incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro. Explico.

Reduzir as férias de 60 (sessenta) dias para 30 (trinta) dias de várias carreiras, apesar de contar com apoio de parcela da população, seria um atentado a este direito social, e abriria a possibilidade de em momento próximo reduzir tanto as férias dos trabalhadores privados quanto dos demais servidores públicos de 30 (trinta) para 20 (vinte), 15 ( quinze), 10 (dez) ou 05 (cinco) dias, pois se não há limite constitucional a redução de um direito social, o mesmo não se encontrará nos demais, o que deixa evidente que a luta não é de uma categoria, mas sim de todos os brasileiros pelo respeito a este direito social, fundamental e imutável. O Mesmo raciocínio pode ser aplicado quanto a carga horária diferenciadas das carreiras militares.

Importante notar que a Constituição Federal não estabelece quanto tempo de férias é necessário para que o trabalhador possa, anualmente, descansar antes de voltar a sua labuta diária, ficando a cargo do legislador infraconstitucional definir esse lapso.

Com relação aos trabalhadores cujo regime é celetista, a Consolidação das Leis do Trabalho fixou como regra o período de 30 (trinta) dias, conforme dispõe seu art. 130. Assim, qualquer lei que venha a reduzir esse prazo padece de inconstitucionalidade, em razão da vedação ao retrocesso.

Com relação à magistratura, a Lei Complementar 35/79 (Lei da Magistratura Nacional) estabelece que os magistrados terão direito a férias anuais, por sessenta dias, o que é repetido quanto ao Ministério Público, em sua Lei Orgânica, e em outras carreiras públicas, como Defensorias e Advocacia Públicas. Idêntico raciocínio aplicado no exemplo dos trabalhadores celetistas é também aqui utilizado. Ora, se o legislador infraconstitucional previu como necessário o período de 60 (sessenta) dias para que certos servidores pudessem se revigorar antes do retorno aos trabalhos, qualquer atividade legislativa posterior que pretenda reduzir esse lapso é flagrantemente inconstitucional.

E não há que se invocar aqui qualquer violação ao princípio da igualdade, eis que somente se analisado do ponto de vista formal poderia ser ventilada tal violação. Do ponto de vista material, isto é, da igualdade real, não há qualquer afronta a tal princípio. Isto porque, há razões específicas para que certas carreiras tenham um período maior de férias ao servidor público do que o trabalhador celetista, conforme será adiante demonstrado.

Igual pensamento surge quando observamos Projetos de Lei ou Emenda Constitucional tendentes à redução de salários ou subsídio. Não se pode permitir que o trabalhador privado tenha uma redução salarial, tal direito lhe é imutável e decorre do direito social fundamental da proteção ao salário. Pode-se, no máximo, pensar em compensar a redução do salário com a redução de sua carga horária proporcional, se houver consenso ou acordo coletivo, de forma que possibilite ao trabalhador buscar outra atividade laborativa.

Da mesma forma não é possível juridicamente buscar a redução da remuneração ou do subsídio de qualquer agente político ou servidor público, uma vez que tais direitos são sociais e fundamentais, aplicando-se aqui o mesmo raciocínio da iniciativa privada, reforçado ainda com a previsão constitucional da irredutibilidade de vencimentos. Pode-se, tão somente neste caso, pensar em alteração remuneratória apenas para os futuros ingressos no serviço público, desde que sejam compensadas em vantagens que não discriminem a sua atuação daqueles que já estavam na ativa, como por exemplo reduzir a remuneração proporcionalmente a redução da carga horária daqueles que ainda ingressarão na carreira, ou permitindo-os o exercício de atividades da iniciativa privada até então proibidas aqueles que também já estavam na carreira.

Portanto, é inequívoco que a ameaça a um único direito social de uma única categoria, seja pública ou privada, reflete como ameaça a todos os brasileiros, além de ser flagrantemente inconstitucional, mesmo que por emenda a constituição.

7) Das férias e da remuneração dos Magistrados e dos membros do Ministério Público.

Nesse ponto em especial, apesar de esgotado o objeto do presente estudo no tópico anterior, entendemos importante tecer algumas informações sobre o porquê deste direito, que não é exclusivo destas categorias.

Primeiro, deve-se ter conhecimento que o Magistrado e o Promotor de Justiça são agentes políticos, membros de Poder, e portando, juridicamente não são equiparados aos servidores públicos estrito senso, mas sim aos representantes do Poder Executivo (Prefeito, Governador e Presidente) e do Poder Legislativo (Vereadores, Deputados e Senadores).

De início, percebe-se que os membros do Poder Legislativo (Vereadores, Deputados e Senadores) ficam 60 (sessenta dias) por ano em recesso, sem nenhuma atividade, e portanto, por questão de isonomia constitucional entre os agentes públicos já haveria justificativa para os sessenta dias de férias dos demais Poderes.

Vale lembrar que os representantes do Poder Executivo (Prefeito, Governador e Presidente) e do Poder Legislativo (Vereadores, Deputados e Senadores) não o exercem tais cargos como profissão, pois na verdade possuem outras profissões e fontes de renda, enquanto que os Magistrados e membros do Ministério Público são vedados pela própria Constituição Federal de ter qualquer outra profissão, ressalvado o magistério.

Na mesma comparação, os chefes do Executivo e do Legislativo ficam em seus cargos apenas 04 (quatro) anos – oito para Senadores –, enquanto que os Magistrados e membros do Ministério Público por toda a vida laborativa, uma vez que não foram eleitos, mas sim, após anos de investimento e estudos conseguiram ser aprovados, por mérito próprio, em uma das carreiras mais disputadas do Poder Público.

Ainda, enquanto no Legislativo e Executivo não há uma obrigatoriedade legal de trabalho diário, a exemplo de sessões que acontecem uma vez por semana em alguns casos do Legislativo, os membros da Magistratura e do Ministério Público exercem suas funções diuturnamente, sendo cobrados pelos seus respectivos Conselhos (CNJ e CNMP) e Corregedorias pela produtividade de suas unidades.

Vale ressaltar a responsabilidade e os riscos do exercício da Magistratura e do cargo de Promotor ou Procurador de Justiça, uma vez que ao contrário de outras funções públicas ou privadas não recebem adicional de periculosidade ou insalubridade, não tem direito a aposentadoria especial, não recebem por hora extra, nem tem escala especial de trabalho.

Ainda, tomando como base os anos em que um desses articulistas atuou perante o Ministério Público da Bahia como Promotor e agora na Magistratura Capixaba como Juiz de Direito, pudemos constatar de forma inequívoca que as funções exercidas – assim como seus colegas de trabalho – sempre foram realizadas em tempo muito maior do que as regulares 08 (oito) horas diárias recomendadas aos trabalhadores da iniciativa privada.

Também, quanto a questão remuneratória, é importante se ter em mente que a concepção de Estado exige que os melhores juristas do Brasil estejam no exercício de funções públicas relevantes como Magistrados, membros do Ministério Público, Procuradores e Defensores Públicos, e para tanto, deve-se outorgar-lhes garantias e prerrogativas a fim de atraí-los para tais carreiras. No entanto, o que se tem observado são inúmeras reprovações nos concursos públicos, e pior, inúmeros membros dessas carreiras estão as deixando para ingressar na iniciativa privada, o que é reflexo direto da diminuição do interesse das pessoas melhores preparadas pela carreira, já que tem encontrado melhor qualidade de vida e remuneração em carreiras privadas, o que se reflete em prejuízo à população na qualidade e quantidade de investigações, ações ajuizadas e julgadas.

Ademais, a realidade da maioria dos membros do Poder Judiciário e do Ministério Público no Brasil, em especial nas cidades menores, lhes impõem uma vida totalmente diferente dos demais cidadãos, o que por si só justifica os sessenta dias de férias. Explico.

Um dos direitos sociais garantidos a todo trabalhador é o lazer e o descanso. Em testemunho próprio, posso afirmar como ex-Promotor de Justiça e Juiz de Direito que sempre exerceu suas atividades no interior, que a vida social fica totalmente prejudicada e tolhida.

Aquele que investiga ou julga os cidadãos e autoridades de uma cidade pequena (que é a grande maioria das cidades do Brasil), naquela cidade é proibido de ter vida social. Não pode aceitar um convite para uma festa ou confraternizações de modo geral, pois alguém ali já foi ou será submetido a seu julgamento, alguém ali tem um parente que exerce função política na cidade, alguém ali pode expor situações que tornarão o juiz suspeito ou impedido de julgar. A simples presença do promotor ou do juiz nestes eventos é o suficiente para tornar suspeita sua imagem junto a população, afetando toda a credibilidade dos poderes.

Ainda, após investigações e julgamentos que colocam criminosos como homicidas, traficantes e corruptos na cadeia, onde na maioria das vezes o membro do Ministério Público pede a condenação e o Juiz sentencia de frente para o réu, tais membros não podem se dar ao luxo de frequentar um bar com os amigos, de levar os filhos na praça para passear, de permitir que seus filhos ou os mesmos façam caminhadas ou corridas, enfim, é tolhida totalmente a liberdade, as chances de amizade, a tranquilidade e o lazer do Magistrado, do Promotor, do Procurador e do Defensor Público, bem como de TODA a sua família.

Outrossim, não há dúvidas de que, no mínimo, se deve permitir os 60 (sessenta) dias de férias a estas carreiras para que possam dispor de um tempo e lazer com amigos e família, o que não possuem como os demais cidadãos. Inclusive é público e notório dentro destas carreiras – apesar de quase nenhuma divulgação da mídia – que uma das profissões que mais tem vitimado com moléstias psicológicas são as de Magistrado e Membro do Ministério Público.

Por fim, esse infeliz retrato é reflexo inclusive da impossibilidade de muitos usufruírem as férias que teriam direito, não porque não querem ou não precisam, mas sim porque lhes é impossível em razão da falta de estrutura, do número deficitário de colegas e servidores, da importância da função, entre outros motivos, já que por lei, seja sábado, domingo ou feriado, todos que precisam tem o direito de receber a seu tempo a resposta da Justiça, estejam numa capital como São Paulo ou em Comarca isolada do Amazonas, e os números a serem prestados aos órgãos de controle (CNJ e CNMP) não computam férias. Dessa forma, esta triste realidade as vezes torna os que distribuem Justiça – Juízes e Promotores – as maiores vítimas da injustiça.

Conclusão.

Analisando de forma atenta a evolução histórica dos direitos sociais, entre os quais situa-se o direito a férias, podemos perceber que a doutrina majoritária, em compasso com o entendimento do Supremo Tribunal Federal, é no sentido de considerar os direitos sociais como cláusulas pétreas, sob as quais naturalmente recai a imutabilidade e a vedação ao retrocesso. Disso resulta também o entendimento de que tal proteção torna flagrantemente inconstitucional não apenas propostas de leis, mas também quaisquer Emendas à Constituição tendentes a abolir ou reduzir direitos sociais normatizados por legislação infraconstitucional, como no caso de férias de agentes políticos.

Neste sentido, o risco de se permitir por qualquer motivo a redução do período de férias daqueles que possuem 60 (sessenta) dias, como magistrados, membros do Ministério Público, algumas Defensorias Públicas e Procuradorias, é a criação de precedente para a redução ou mitigação de outros direitos sociais de todas as categorias, públicas ou privadas, seja para reduzir os 30 (trinta) dias de férias ou o salário e demais direitos.

Por fim, as férias de sessenta dias que gozam os agentes políticos não merecem ser vistas como um privilégio injusto ou violação da igualdade formal, ao contrário, considerando a impossibilidade prática de alguns ocupantes destes cargos terem a tranquilidade para gozar o lazer regular e diário em razão dos argumentos já expostos, devem ser entendidas como uma forma de se obter a igualdade substancial, tratando os desiguais de forma desigual, na medida de suas desigualdades.


Notas:

[1] A exemplo de André de Carvalho Ramos (Ramos, André de Carvalho Teoria geral dos direitos humanos na ordem internacional / André de Carvalho Ramos — 6. ed. — São Paulo: Saraiva, 2016.
[2]     Curso de Direito Constitucional (2015, p. 80).
[3]     Direito Constitucional (2014, p. 369)
[4] Piovesan, Flávia Direitos humanos e o direito constitucional internacional / Flávia Piovesan. – 14. ed., rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2013. (p. 155).

Informações Sobre os Autores

Thiago Albani Oliveira

Juiz de Direito ES. Atuou como Promotor de Justiça BA mestre em Direitos Fundamentais pela FDV-ES Professor de Direito Internacional e Direito Processual Civil

Caio Cesar Nunes Cruz

Assessor de Juiz especialista em Direito Processual Civil pela Damásio de Jesus. Atuou como Assessor de Controle Externo perante o Tribunal de Contas do Estado do Espírito Santo


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