Direitos fundamentais e decisão judicial: a proteção do conteúdo essencial em face do princípio da proporcionalidade

Resumo: O presente artigo visa analisar a questão da tutela ao núcleo essencial dos direitos fundamentais, permeado por importantes divergências teóricas. Nota-se que o núcleo essencial, ao passo que significa a imposição de limites às atividades restritivas do legislador e dos aplicadores da lei, remeteria a um elemento substancial mínimo do direito fundamental, mas às vezes é considerado mero reflexo do princípio da proporcionalidade, o que o desnatura enquanto instituto jurídico autônomo. Importante, assim, compreender a real natureza desse “conteúdo essencial”, possibilitando o adequado manejo de instrumentos de proteção aos direitos fundamentais.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Conteúdo Essencial. Proporcionalidade.

Abstract: This paper aims to analyze the issue of protection to the essential core of fundamental rights, permeated by important theoretical differences. The essential core, while implying limits on the restrictive activities of legislators and judges, would refer to a minimum substantive element of the fundamental right, but is sometimes considered merely a reflection of the principle of proportionality. It is important, therefore, to understand the real nature of this "essential content", making possible the adequate management of instruments for the protection of fundamental rights.

Keywords: Fundamental rights. Essential content. Proportionality.

Sumário: Introdução. 1. Direitos fundamentais e conteúdo essencial. 2. Teorias objetiva e subjetiva. 3. Teorias absoluta e relativa. 4. O princípio da proporcionalidade e a definição do conteúdo essencial. 5. A proteção do conteúdo essencial no âmbito da decisão judicial. Conclusão; Referências.

Introdução:

Concretizar direitos fundamentais, estabelecendo os contornos da imposição normativa direcionada à tutela dos mais elevados valores inerentes ao ser humano inserido em uma ordem jurídica constitucional, para possibilitar seu pleno exercício, está longe de ser uma tarefa simples. Não apenas as diversas limitações materiais do Estado e da sociedade impedem a fruição plena e imediata de uma gama de direitos básicos do homem – mormente os de natureza prestacional, a exemplo da saúde, educação, trabalho e previdência, que como regra demandam uma ação positiva dos entes públicos – mas também questões jurídicas relativas à correta delimitação do conteúdo material dessas posições jurídicas fundamentais interferem diretamente no acesso aos bens da vida tutelados.

Os direitos fundamentais, enquanto promessas das sociedades políticas modernas à prevalência da dignidade humana, são comumente plasmados nos textos constitucionais por meio de norma-princípio, pelo que exigem dos órgãos constituídos atuação reguladora e concretizadora do seu exercício (BONAVIDES, 2015, p. 636). Por vezes, é necessário que haja regulamentação de direito fundamental, momento em que o órgão legislativo encarregado tem a oportunidade de restringir condutas prima facie inseridas no seu conteúdo deontológico, em favor da harmonização com outros interesses e valores da sociedade. Da mesma forma, em situações litigiosas concretas, os órgãos do Poder Judiciário se deparam com a necessidade de examinar se determinada conduta alegada como devida, proibida ou permitida insere-se no âmbito de proteção de um direito fundamental, tendo que delimitar seu círculo de incidência, definindo seu real conteúdo em face de outros direitos fundamentais, em procedimento de ponderação.

Em todos esses casos, surge o problema de saber-se qual a margem de mobilidade concedida pelo ordenamento constitucional aos órgãos constituídos para essa tarefa de harmonização do direito fundamental. Um passo a mais de restrição pode privar indevidamente o ser humano de um direito constitucionalmente assegurado, enquanto uma limitação aquém da devida potencializa a interferência na esfera de direitos de outros membros da sociedade. Se a justa medida não é facilmente encontrável, pelas próprias limitações humanas, o sistema jurídico impõe limites às atuações restritivas, estabelecendo a intangibilidade de certos conteúdos normativos.

Um dos limites às restrições já incorporado à prática judiciária nacional e reconhecido doutrinariamente é a necessidade de proteção do núcleo essencial dos direitos fundamentais. Nesse sentido, haveria em cada direito um conteúdo que constituiria sua essência, não podendo ser restringido sob pena de desnaturar-se o próprio direito fundamental. Com efeito, apesar de a Constituição Federal de 1988 não conter cláusula expressa sobre o núcleo essencial, como ocorre na Alemanha (art. 19.2), Portugal (art. 18º/3) e Espanha (art. 53.1), tem-se entendido na doutrina e jurisprudência que ela decorre implicitamente do próprio sistema constitucional, pelo que tem sido constantemente utilizada na argumentação jurídica, muito embora seus contornos teóricos não tenham sido resolvidos de modo suficiente. Por vezes, o núcleo essencial é entendido como um elemento substancial mínimo de cada direito, enquanto em outros momentos é tomado como mero reflexo da aplicação da proporcionalidade. Necessário, portanto, examinar o instituto quanto a sua natureza e fundamentos, possibilitando seu manejo mais adequado na solução de problemas jurídicos.

Nesse sentido, o presente trabalho, em que se pretendeu analisar os fundamentos epistemológicos das teorias concernentes ao objeto de estudo, visa destacar possíveis respostas, sob o ponto de vista lógico-científico e passíveis de fundamentação na perspectiva de um Estado Democrático de Direito, às questões inerentes ao tema que demandou a investigação. Para esse desiderato, manteve-se atenção principal na pesquisa de bibliografia especializada e reconhecida sobre a matéria, estudando as posições teóricas dos autores que abordaram aspectos dos problemas enfrentados na teoria e na prática por quem trabalha o tema dos direitos fundamentais.

1. Direitos fundamentais e conteúdo essencial:

O problema da garantia de proteção ao conteúdo essencial dos direitos fundamentais encontra-se inserido na questão mais ampla de restrições legítimas a esses direitos no âmbito do sistema jurídico. Como a regra é a maior amplitude possível de eficácia e fruição dos direitos fundamentais, o próprio sistema jurídico constitucional estabelece limites à atividade restritiva, seja por obra do legislador, seja por parte dos aplicadores da lei. Nesse contexto, a doutrina especializada costuma referir-se a “limites dos limites” (Schranken-Schranken), isto é, às limitações impostas pela Constituição às possibilidades de legitimamente restringir ou acomodar direitos fundamentais para eventual favorecimento a outros valores ou bens também constitucionalmente garantidos. Como assevera J. J. Gomes Canotilho, trata-se de averiguar se a lei restritiva preencheria requisitos constitucionalmente fixados (1992, p. 622).

A importância das limitações ao poder de restrição do legislador aos direitos fundamentais é destacada por Emerson Garcia, como inerente ao próprio princípio democrático. Para o citado autor, a necessidade de harmonização do exercício das liberdades fundamentais com os outros bens e valores igualmente relevantes não pode ensejar restrição exagerada a ponto de sacrificar direitos constitucionalmente garantidos. Observem-se suas palavras (GARCIA, 2008, p. 345/346):

“O rompimento da linha divisória entre a limitação e a extinção somente será evitado em sendo assegurado um conteúdo mínimo aos direitos fundamentais objeto de restrição. Daí se falar em “limites dos limites” (Schrankenschranke), “conteúdo essencial” ou em “núcleo essencial dos direitos fundamentais”, expressões que refletem o conjunto de interdições impostas ao legislador na produção de obrigações ou de interdições no domínio dos direitos fundamentais. Reduzi-los a uma expressão jurídica inferior ao referido conteúdo mínimo, com a consequente desfiguração dos contornos essenciais de sua identidade, em nada destoará de sua própria extinção. A salvaguarda do núcleo essencial pode ser vista “como ultima ratio, derradeira válvula de segurança contra restrições destes mesmos direitos”. Além da preservação desse conteúdo mínimo, “barreira última na concretização do direito”, é imperativa a observação dos “limites dos limites” fixados pelo próprio texto constitucional e de um critério de proporcionalidade na imposição de limites aos direitos fundamentais, sendo injurídica qualquer retração em sua eficácia que ultrapasse o plano da estrita necessidade.”

Tratando das possibilidades de restrição ao direito à greve no sistema jurídico brasileiro, Francisco Gérson Marques de Lima entende que é possível o estabelecimento a priori de uma ideia sobre o núcleo essencial dos direitos fundamentais, ainda que possa haver flexibilização no caso concreto, em havendo conflito entre direitos da mesma hierarquia. Observa o autor que haveria “um núcleo intocável em cada direito fundamental, a caracterizá-lo em sua essência e a conformar sua própria definição e seu conceito”, sendo possível a adequação em casos concretos, mediante ponderação, razoabilidade e proporcionalidade, de forma rigorosamente fundamentada. Com relação ao direito de greve, Marques de Lima, seguindo as lições de Maria Luisa Balaguer Callejón, define o núcleo essencial como a “faculdade de paralisação coletiva do trabalho”, enquanto outros aspectos do mesmo direito poderiam ser razoavelmente restringidos pelo Legislativo e Judiciário (LIMA, 2014, p. 69).

Especificamente quanto à proteção do conteúdo essencial, nota Canotilho que a ideia fundamental de atendimento a esse requisito seria simplesmente que “existe um núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias que não pode, em caso algum, ser violado”, mesmo nos casos em que o legislador esteja autorizado pela Constituição à edição de norma restritiva (1992, p. 630). Para o autor português, os problemas principais relativos a esse ponto seriam, em primeiro lugar, saber qual o objeto da proteção, ou seja, se seriam tutelados direitos subjetivos ou objetivos; em segundo lugar, saber qual o valor da proteção, no sentido de ser o núcleo essencial valor absoluto ou dependente de confronto com outros direitos.

Ana Maria D´Ávila Lopes apresenta um apanhado das principais teorias estrangeiras a respeito da natureza do conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Conforme expõe a autora, para Schmitt, a cláusula de preservação do núcleo essencial seria uma “garantia institucional” dirigida à proteção de um “círculo interno” do direito fundamental que seria resistente a qualquer transformação, sendo que a “zona exterior” ou “círculo externo” gozaria da mesma proteção inerente às outras normas. Já para Rudolf Smend o conteúdo objetivo dos direitos fundamentais teria um “efeito integrador”, constituindo a parte essencial do ordenamento democrático que deve ser concebida como “relações vinculantes entre o indivíduo e o Estado”. Para os que defendem essa teoria, o conteúdo essencial seria entendido como as “características básicas que definem os direitos fundamentais como tais”, excluindo-se aquelas acidentais ou ocasionais (LOPES, 2001, p. 171/175). Düring, por sua vez, equipara o conteúdo essencial dos direitos fundamentais à própria dignidade da pessoa humana, gerando então o problema de definir-se os contornos da dignidade. Peter Häberle, considerando os direitos fundamentais como valores concretizados e positivados na Constituição, protegendo não somente bens individuais, mas também coletivos, afasta a consideração do conteúdo essencial como um limite em si mesmo, sendo determinado em uma relação com os demais bens jurídicos protegidos pelo sistema constitucional. Nessa linha, o próprio legislador delimitaria o conteúdo essencial e os limites imanentes dos direitos fundamentais (LOPES, 2001, p. 180/185).

Apesar de não haver dispositivo na Constituição Federal brasileira com uso da própria expressão “conteúdo essencial”, ao contrário do que ocorre na Alemanha (art. 19.2), Espanha (art. 53.1) e Portugal (art. 18º/3), a doutrina e a jurisprudência pátria fazem não poucas vezes referência a essa garantia, como inerente ao sistema constitucional, mormente quando se trata dos limites impostos ao legislador ordinário à regulação e restrição a direitos fundamentais. Para Ingo Wolfgang Sarlet, a transposição da solução encontrada no direito constitucional alemão para a realidade brasileira seria discutível em razão da ausência de dispositivo específico no Texto Maior. Todavia, considera Sarlet que a utilização das expressões “abolir” e “tendente a abolir” pelo constituinte (art. 60, § 4º, CF) pretendeu “preservar em qualquer hipótese o cerne de cada direito fundamental, independentemente de seu conteúdo em dignidade da pessoa humana”, pelo que utilizar a expressão “núcleo essencial”, concernente aos elementos constitutivos da própria substância essencial de cada direito seria útil e teria fundamentação implícita (SARLET, 2008, p. 432). Também entende Gustavo Just da Costa e Silva que a referência a “tendência à abolição” contida no § 4º do art. 60 da Constituição Federal revelaria a existência de um conteúdo essencial como algo prévio ao ato questionado (SILVA, 2000, p. 249). Emerson Garcia considera, por sua vez, que mesmo não tendo o texto constitucional contemplado uma cláusula de proteção expressa em face do legislador, os limites seriam intrínsecos à própria “carga axiológica inerente aos direitos fundamentais e a superioridade hierárquica da Constituição” pelo que uma lei que violasse o conteúdo essencial de tais direitos incorreria em vício de inconstitucionalidade (GARCIA, 2008, p. 346).

Por outro lado, há autores que consideram desnecessário ou indevido reportar-se ao suposto “conteúdo essencial” no controle dos limites às restrições, eis que não passaria de aspecto do princípio da proporcionalidade. Desse modo, as limitações que observassem a proporcionalidade não afetariam nenhum núcleo essencial. Para Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, por exemplo, as limitações impostas ao legislador deveriam satisfazer o critério da proporcionalidade, o qual tutelaria os conteúdos essenciais, não se devendo acrescentar um dever autônomo de preservação de nenhum núcleo, pois isso ensejaria aumento no risco de avaliações subjetivas (2009, p. 152). Jane Reis Gonçalves Pereira, após analisar vários problemas no discurso doutrinário sobre o tema, questiona se seria viável absorver o conceito de “conteúdo essencial” que não fora positivado expressamente na Constituição Federal de 1988 e, ainda, se seria possível atribuir a tal garantia alguma função argumentativa nas questões jurídicas (2006, p. 376).

De toda sorte, tanto a doutrina quanto a jurisprudência pátria têm utilizado e debatido o conceito de “conteúdo essencial” ou “núcleo essencial” quando se trata de analisar as possibilidades de restrição aos direitos fundamentais, tanto em nível concreto quanto em abstrato. O tema, portanto, por sua complexidade e importância teórica e pragmática, demanda a continuidade da pesquisa e do debate aberto para aperfeiçoamento da ciência jurídica, da atividade legislativa e da prática jurisdicional.

2. Teorias objetiva e subjetiva:

A primeira abordagem teórica sobre o tema do conteúdo essencial diz respeito ao nível de concretização do direito a que se refere a proteção, ou seja, se a sua previsão no sistema jurídico constitucional visaria a garantir a integridade de um núcleo intangível do direito fundamental apenas no plano abstrato do direito objetivo ou se destinaria também a assegurar o titular de um direito subjetivo contra interferências indevidas na amplitude de sua fruição.

No caso da chamada teoria objetiva, seus defensores consideram que a limitação do conteúdo essencial destinar-se-ia a resguardar a eficácia do direito fundamental de forma global, impedindo a redução da incidência da norma abstrata em favor de todos os integrantes da sociedade ou da maior parte deles. Por outro lado, algumas medidas de sacrifício individual de direitos fundamentais seriam aceitas como constitucionais, já que a proteção do conteúdo intangível limitaria tão somente as condutas tendentes a gerar restrições abstratas e de caráter geral (BIAGI, 2005, p. 85).

De outro lado, aqueles que adotam a teoria subjetiva entendem que a finalidade da cláusula de proteção ao conteúdo essencial visaria, em primeiro plano, barrar as investidas contra o próprio direito subjetivo do ser humano, enquanto posição jurídica de vantagem já concretizada em um caso particular, que pudesse privá-lo indevidamente de seu significado próprio e impedir a sua natural fruição. Considerando que os direitos do homem positivados no texto constitucional, mormente os de primeira geração, corresponderem a “faculdades ou atributos da pessoa” oponíveis ao Estado (BONAVIDES, 2015, p. 578), mantendo um espaço individual de liberdade protegido das ingerências governamentais, seriam assim “também lesivas ao conteúdo essencial as restrições individualizadas dos direitos fundamentais”(BIAGI, 2005, p. 86), quando avançassem além do limite meramente regulamentador e de compatibilização com as franquias de liberdades das demais pessoas necessárias à convivência social.

Destacando que, na doutrina, controverte-se quanto ao significado da proteção ao núcleo essencial, a qual poderia ser interpretada tanto como direcionada à tutela da intangibilidade de uma posição objetivamente dada pela Constituição no âmbito abstrato (teoria objetiva) quanto à proteção de um direito subjetivo concretamente determinado (teoria subjetiva), Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco observam que os adeptos da teoria objetiva vislumbram sua tese como a correta por considerarem que, em situações concretas, posições individuais poderiam ser “drástica e radicalmente afetadas”, mas o núcleo essencial poderia permanecer protegido enquanto instituto. Notam os referidos autores, entretanto, que em se afirmando o caráter pluridimensional dos direitos fundamentais, que podem ser abordados tanto por seu aspecto objetivo quanto subjetivo, dever-se-ia admitir não uma interpretação de exclusão (ou – ou; entwederoder) mas sim de ampliação (tanto – quanto; sowohlals auch) (MENDES; BRANCO, 2013, p. 214).

Discorrendo sobre o ponto, destaca Robert Alexy que o Tribunal Constitucional Federal alemão, em suas primeiras decisões quanto ao sentido do art. 19, § 2º, da Constituição da Alemanha, teria deixado em aberto a questão da adoção de uma teoria objetiva ou subjetiva, por considerar desnecessário dispor sobre isso. Todavia, em outras decisões que se seguiram, aquele tribunal passou a sempre associar a garantia do conteúdo essencial dos direitos fundamentais à proteção das posições individuais. Refere Alexy concordar com a postura da corte alemã, pois os direitos individuais seriam “primariamente posições individuais”, pelo que a proibição de interferência no conteúdo essencial de tais direitos deve dizer respeito também às situações daquelas posições jurídicas subjetivas individualizadas. Esboçando uma ideia conciliadora, nota o citado autor que a adoção de uma teoria objetiva, como a de Friedrich Klein, poderia mesmo coexistir, mas não substituir uma teoria subjetiva. Observa que a teoria objetiva, ao passo que tenderia a facilitar a solução de problemas teóricos relativos ao conteúdo essencial dos direitos fundamentais, não poderia ser acolhida de forma isolada apenas por esse motivo, desprezando-se a importância de proteção daquele núcleo intangível nas situações subjetivas (ALEXY, 2015, p. 296/297).

No mesmo sentido, Virgílio Afonso da Silva enfrenta o tema com o propósito de acomodar as duas posições, que considera compatíveis e não estanques. Nesse sentido, sequer se refere a duas “teorias”, o que daria a ideia disjuntiva de incompatibilidade, preferindo falar em “dois enfoques” ou em “duas dimensões” do mesmo problema (SILVA, 2014, p. 185). Entende o autor que, muito embora o enforque objetivo seja pertinente, ele não ofereceria muito mais que a mesma proteção já outorgada pelas cláusulas pétreas, pelo que deveria ser complementado pela dimensão subjetiva, impedindo a eliminação de direitos fundamentais em casos concretos. Importantes as suas considerações sobre o ponto (2014, p. 186):

“Se se pretende, com o recurso à garantia de um conteúdo essencial dos direitos fundamentais, proteger tais direitos contra uma restrição excessiva e se os direitos fundamentais, ao menos em sua função de defesa, têm como função proteger sobretudo condutas e posições jurídicas individuais, não faria sentido que a proteção se desse apenas no plano objetivo. Isso porque é perfeitamente possível – e provável – que uma restrição, ou até mesmo uma eliminação, da proteção de um direito fundamental em um caso concreto individual não afete sua dimensão objetiva, mas poderia significar uma violação ao conteúdo essencial daquele direito naquele caso concreto.”

Adverte Virgílio Afonso da Silva que contra esse enfoque subjetivo se poderia levantar objeção sob o argumento de que, em um caso concreto, seria possível que nada efetivamente restasse de um direito fundamental alegado. Como exemplos, refere-se à pena de morte, em caso de guerra declarada, que eliminaria a vida do condenado, a pena de prisão, que eliminaria a liberdade por completo, ainda que temporariamente, e a desapropriação, que eliminaria o direito à propriedade. Todavia, aduz que assumindo um modelo relativo de conteúdo essencial, mesmo quando em casos concretos nada permanecesse do direito fundamental, existiria ainda “o dever de proteger tal conteúdo a partir de uma perspectiva subjetiva e individual” (SILVA, 2014, p. 186/187).

Segundo J. J. Gomes Canotilho, enquanto para a teoria objetiva a garantia do conteúdo essencial visaria a proteger o direito fundamental em sua globalidade, a teoria subjetiva entende que em nenhum caso o direito subjetivo de um homem poderia ser sacrificado de forma a perder qualquer significado. Assevera o referido autor português, entretanto, que a solução para o problema não poderia ser a escolha entre opções alternativas radicais. Nota que, se por um lado, uma teoria subjetiva seria irrealista ao desconhecer que a restrição dos direitos fundamentais deve observar a função de tais direitos para toda a vida comunitária, por outro, a garantia do núcleo essencial também não se poderia furtar da proteção da dimensão subjetiva dos direitos fundamentais, de forma a impedir que posições subjetivas individuais sejam indevidamente aniquiladas (CANOTILHO, 1992, p. 631). Observa, todavia, que o direito positivo favoreceria a priori a teoria objetiva, mas não invalidaria a razoabilidade da solução conciliadora por ele indicada. Vejam-se suas palavras (CANOTILHO, 1992, p. 632):

“No plano constitucional positivo, as teorias objetivas parecem ter a seu favor a própria letra do art. 18.º/3. Com efeito, o enunciado linguístico – <<não podem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais>> – parece apontar para a necessidade de se considerarem os preceitos consagradores de direitos, liberdades e garantias como normas de natureza e conteúdo objetivo. Esta indicação literal não invalida, porém, a razoabilidade da solução matizada anteriormente defendida.”

Neste ponto, sem descuidar dos problemas existentes em relação às duas teorias aparentemente antagônicas, impõe-se concluir que a solução conciliadora proposta por Virgílio Afonso da Silva mostra-se a mais adequada. Com efeito, trata-se de superar os problemas das teorias objetiva e subjetiva, tomando-as sem radicalismo, para considerar que apenas focam em dois aspectos do mesmo problema, ou seja, em duas dimensões ou abordagens do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, que deve ser respeitado tanto ao se tomar por análise a eventual restrição no âmbito abstrato do direito objetivo quanto ao se observar a concretude do direito subjetivo reconhecido em um específico caso.

3. Teorias absoluta e relativa:

Outro aspecto do problema da cláusula de proteção do conteúdo essencial dos direitos fundamentais refere-se à divergência doutrinária sobre a compreensão da natureza mutável ou imutável daquilo que efetivamente se deve proteger. Seria o núcleo essencial um elemento fixo, inalterável, dotado de uma consistência perene, ou estaria sujeito a modificações de sua essência a depender das circunstâncias jurídicas e fáticas do momento de sua análise? Sobre a questão, divide-se a doutrina constitucional em duas vertentes básicas: os que adotam uma teoria absoluta e os que defendem uma teoria relativa.

Para a teoria absoluta, como informa Cláudia Perotto Biagi, no âmbito do conteúdo total do direito fundamental, haveria uma “esfera permanente” que constituiria o seu “núcleo essencial” intangível. Assim, nessa configuração, o mesmo direito seria constituído de duas partes diversas: “um núcleo e uma parte assessória” (BIAGI, 2005, p. 80). A cláusula de proteção ao conteúdo essencial visaria, portanto, a proteger a parte nuclear do direito fundamental, ou seja, “um núcleo duro, resistente, invariável, determinável em abstrato, de uma vez por todas” (BIAGI, 2005, p. 81), o qual não estaria sujeito a nenhuma ingerência potencialmente violadora de sua integridade, ficando a salvo de qualquer ato normativo, tanto judicial quanto legislativo, que tendesse a interferir em seus limites de existência e validade. Os atos que fossem reconhecidamente necessários, adequados e proporcionais em sentido estrito seriam capazes apenas de interferir na parte assessória do direito fundamental, mas nem mesmo a observância do princípio da proporcionalidade autorizaria o intérprete/aplicador a adentrar na esfera mínima desse núcleo essencial para realizar qualquer restrição.

Lado outro, para os que advogam a correção da teoria relativa, o conteúdo essencial do direito fundamental não se apresentaria como algo determinável a priori, no plano abstrato, independentemente dos demais direitos e interesses envolvidos nos fatos da causa a ser considerada, nem seria uma “parte autônoma” daquele direito, nem um “elemento estável” com uma “medida fixa e pré-estabelecida” (BIAGI, 2005, p. 78). Ao contrário, o conteúdo essencial do direito fundamental seria mutável e somente estabelecido em cada caso, sendo seus limites definidos à luz das demais circunstâncias de fato e de direito, por meio da ponderação entre fins a serem atingidos e meios disponíveis, nos termos do princípio da proporcionalidade. Considera Cláudia Perotto Biagi, apoiada na lição de Wilson Antônio Steinmetz, que sob essa ótica haveria uma ligação umbilical entre o conteúdo essencial e o princípio da proporcionalidade, motivo pelo qual aquele núcleo somente seria violado se o ato de restrição se mostrasse inadequado, desnecessário ou desproporcional.

A posição relativista é defendida por Robert Alexy, o qual considera que o conteúdo essencial corresponderia ao próprio resultado do sopesamento, de forma que as decisões que observassem a máxima da proporcionalidade, ainda que excluíssem em absoluto a fruição do direito fundamental naquele caso concreto, não violariam a garantia do núcleo essencial. Para o autor, o disposto no art. 19, § 2º, da Constituição alemã, “teria simplesmente um significado declaratório”, pois a garantia de proteção ao conteúdo essencial se reduziria à imperatividade da observância da proporcionalidade (ALEXY, 2015, p. 297/298).

Em defesa de sua tese, Alexy destaca que o Tribunal Constitucional Federal alemão, apesar de defender uma teoria absoluta, quando se refere em seus julgados a “limite absoluto cuja superação violaria o conteúdo essencial do direito fundamental”, em um “limite externo” e em uma “última área intocável”, tem adotado como premissas para a conclusão sobre a eventual violação do conteúdo essencial a existência ou não de “razões relevantes contrárias a uma proteção”, o que seria em verdade o fundamento da teoria relativa (2015, p. 298/299). Nota Robert Alexy que uma tese de teoria absoluta não poderia falar em prevalência de razões mais importantes, mas somente que inexistem tais razões capazes de suplantar aquele núcleo intocado, pelo que seria a fundamentação daquele tribunal contraditória. Referir-se a razões mais importantes para justificar a restrição seria apoiar-se na teoria relativa, enquanto a “proteção absoluta” dependeria das “relações entre os princípios”. Assim, para Alexy, a cláusula prevista no art. 19, § 2º, da Constituição alemã nada acrescentaria à vedação às restrições a direitos fundamentais que já não fossem objeto de proteção do princípio da proporcionalidade (2015, p. 300/301).

Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco observam que para a teoria absoluta (absolute Theorie) o conteúdo essencial representaria uma “unidade substancial autônoma” (substantieller Wesenskern) absolutamente imune a intervenção e restrição legislativa, independentemente de circunstâncias concretas, enquanto para a teoria relativa (relative Theorie) o núcleo essencial somente seria delineado através do processo de ponderação, caso a caso, observando-se o princípio da proporcionalidade (2013, p. 213). Notam os autores que as duas teorias apresentam fragilidades. Por um lado, a teoria absoluta poderia converter-se em uma fórmula vazia, em razão da dificuldade ou impossibilidade de demonstrar em abstrato os limites do núcleo essencial intangível. De outro lado, a teoria relativa, ao passo que confere flexibilidade exagerada aos direitos fundamentais poderia acabar descaracterizando-os como elementos centrais do sistema constitucional. Assim, os autores parecem apontar na direção da posição conciliadora de Konrad Hesse, o qual, apesar de reconhecer “no princípio da proporcionalidade uma proteção contra as limitações arbitrárias ou desarrazoadas” própria da teoria relativa, entende esse princípio deve ser interpretado não somente como a administração econômica entre meios e fins, mas também como destinado a harmonizar a finalidade buscada com o próprio direito restringido (MENDES; BRANCO, 2013, p. 213/214).

Ao tratar do perfil das teorias que apontam a existência de um conteúdo essencial absoluto dos direitos fundamentais, Virgílio Afonso da Silva destaca que, segundo esse entendimento, haveria “um núcleo, cujos limites externos formariam uma barreira intransponível, independentemente da situação e dos interesses que eventualmente possam haver em sua restrição” (2014, p. 187). Destaca que o grande problema dessa posição teórica é a definição do que pertence a esse referido conteúdo e o que dele deve ser excluído. Nesse ponto, observando a lição de Claudia Drews, apresenta a diferenciação entre duas vertentes da teoria absoluta, a depender da aceitação de mutabilidade no conteúdo essencial: absoluto-dinâmico e absoluto-estático (SILVA, 2014, p. 188).

Segundo a concepção absoluto-dinâmica, o conteúdo essencial do direito fundamental seria absoluto e dinâmico quando pudesse ser modificado ao longo do tempo, portanto mutável. Todavia, nos casos concretos não poderiam sofrer relativizações tão somente a depender de “urgências ou contingências”. Por outro lado, a concepção absoluto-estática considera o conteúdo essencial do direito fundamental como intangível e imutável, isto é, sem possibilidade de modificação em sentido material-temporal (SILVA, 2014, p. 189).

Destaca Virgílio Afonso da Silva as críticas tecidas por Claudia Drews à postura absoluto-estática, por entender que a Constituição deveria “demonstrar uma certa abertura e elasticidade”, em razão da necessidade de adaptação à realidade social, pelo que se deveria priorizar a posição absoluto-dinâmica. Não obstante, afirma Virgílio Afonso da Silva que a teoria absoluto-estática poderia ser mais flexível e aproximar-se mais da teoria relativa que a teoria absoluto-dinâmica, a depender da maior ou menor abrangência do conteúdo essencial, o que deixaria maior ou menor espaço para “conformação ordinária (do legislador ou dos particulares). Não obstante o esforço argumentativo e a apresentação de gráficos para tentar ilustrar suas ideias, o autor não deixa clara a importância prática deste ponto da questão, nem indica qual seria o parâmetro que se poderia utilizar para aferir a maior ou menor abrangência do conteúdo essencial (SILVA, 2014, p. 190/191).

Virgílio Afonso da Silva expressa seu entendimento de que a melhor teoria seria a que considera relativo o conteúdo essencial dos direitos fundamentais. Registra que toda teoria relativa rejeita a ideia de “um conteúdo essencial como um âmbito de contornos fixos e definíveis a priori para cada direito fundamental”. A definição desse conteúdo dependeria “das condições fáticas e das colisões entre diversos direitos e interesses no caso concreto”, conduzindo à possibilidade de variação do conteúdo essencial de um direito fundamental caso a caso (2014, p. 196). Considera o autor a existência de um vínculo entre a teoria relativa e o princípio da proporcionalidade, de forma que “restrições a direitos fundamentais que passam no teste da proporcionalidade não afetam o conteúdo essencial dos direitos restringidos” (2014, p. 197). Aduz que a definição de tal conteúdo levaria em conta, não somente a intensidade da restrição, mas também o grau de realização e de importância dos outros princípios relativos ao caso. Restrições mais intensas poderiam ser consideradas constitucionais, desde que suficientemente fundamentadas, enquanto restrições mínimas seriam tidas por violadoras do conteúdo essencial, se não adequadamente justificadas (2014, p. 198).

Canotilho, na sua análise do tema, conclui que não se deveriam adotar posições radicais nesse ponto. De um lado, a teoria relativa reconduz o conteúdo essencial ao princípio da proporcionalidade, ao passo que a teoria absoluta esquece que o âmbito de proteção de um direito pressupõe o equacionamento de outros bens (1999, p. 431). Também Häberle, de seu lado, adota uma posição conciliadora, mas considerando a previsão constitucional alemã do conteúdo essencial meramente declaratória (HÄBERLE, 1997, p. 126).

4. O princípio da proporcionalidade e a definição do conteúdo essencial:

Como acima exposto, para os autores que defendem uma teoria relativa do conteúdo essencial, a exemplo de Robert Alexy e Virgílio Afonso da Silva, esse núcleo essencial dos direitos fundamentais se confundiria com o próprio resultado da ponderação de normas-princípio em um caso concreto. Assim, sob essa ótica, haveria uma redundância finalística entre a cláusula protetora do núcleo essencial e o princípio da proporcionalidade.

Atualmente, como se sabe, a exemplo do que ocorre na Alemanha, a doutrina e a jurisprudência constitucional brasileiras têm acatado de forma quase unânime a existência e a necessidade de utilização do princípio da proporcionalidade para a solução dos casos de conflito de normas-princípio, mormente pela aceitação das teses desenvolvidas por Robert Alexy, em sua Teoria Discursiva do Direito, quando apresenta a ideia de ponderação de valores como a correta solução para aplicação prática dos princípios, em caso de colisão normativa. Nessa perspectiva, a atribuição de sentido à norma, em um caso prático conflitivo, exigiria o sopesamento normativo-valorativo, para identificar não somente a norma-princípio a prevalecer, mas também seu próprio significado na regulação da situação de fato objeto do julgamento. Note-se que o desenvolvimento da teoria da ponderação, como subprincípio da proporcionalidade, ocorre em Alexy com base filosófico-jurídica compatível com a sua teoria da argumentação jurídica, tendo aquele autor compreendido o direito como um “caso especial” do discurso prático geral, diferenciado somente pelo referencial legislativo, jurisdicional e dogmático na sua prática discursiva (ALEXY, 2014, p. 108).

Sobre a utilização do princípio em análise para solução de conflitos normativo-valorativos de natureza constitucional, vale destacar o entendimento de Glauco Barreira Magalhães Filho (2011, p. 180), no sentido de que seria ele o elemento formal de unidade da Constituição:

“O princípio da proporcionalidade é o princípio dos princípios, já que, somente através dele, os outros encontram sua condição de aplicabilidade e eficácia. O princípio da proporcionalidade é aquele que constitui a unidade e a coerência da constituição mediante a exigência de ponderação axiológica em cada caso concreto. O referido princípio, por ter uma natureza híbrida, reúne características de princípio e de regra. As características de princípio são o alto grau de generalidade e de abstratividade e a fundamentalidade. Uma das qualidades de regra é a previsão de uma hipótese que serve de operador normativo, no caso, a da colisão entre direitos fundamentais, a qual impõe ao juiz a obrigação de hierarquizar os princípios na situação fática. O suposto normativo, todavia, não é um fato, mas uma colisão de valores. Apesar de a situação prevista ocorrer em um fato, nós não podemos chamá-la de fática, pois, se assim o fizéssemos, confundiríamos dois elementos (fato e valor) do Direito, ofuscando-lhe a visão tridimensional e a percepção da dialética da implicação-polaridade, existente entre fato e valor, a partir da qual surge a norma como elemento integrativo.”

A hermenêutica constitucional é exercida em processo de maior complexidade, quanto à definição de sentido e do alcance da norma, eis que os elementos normativos veiculadores de direitos fundamentais, por sua maior abertura semântica e elevada abstração e generalidade, demanda quase sempre verdadeiro ato de “integração”, já que o suporte fático do caso concreto poderia sim condicionar não apenas a norma-princípio que deve prevalecer, mas também o seu próprio conteúdo deontológico. Tanto os conflitos normativos quanto as circunstâncias fáticas implicam no delineamento da solução dada a determinado caso. Note-se que, segundo Robert Alexy, o princípio da proporcionalidade seria subdividido em três outros princípios: proporcionalidade em sentido estrito ou ponderação/sopesamento; adequação e necessidade. Enquanto o primeiro subprincípio é utilizado em face das possibilidades jurídicas, os outros dois (adequação e necessidade) analisam-se em razão das possibilidades fáticas, tudo convergindo ao final para a solução do caso. Veja-se, nesse sentido, as palavras do citado autor (ALEXY, 2015, p. 117/118):

“Princípios são mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas e fáticas. A máxima da proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, exigência de sopesamento, decorre da relativização em face das possibilidades jurídicas. Quando uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para a realização dessa norma depende do princípio antagônico. Para se chegar a uma decisão é necessário um sopesamento nos termos da lei de colisão. Visto que a aplicação de princípios válidos – caso sejam aplicáveis – é obrigatória, e visto que para essa aplicação, nos casos de colisão, é necessário um sopesamento, o caráter principiológico das normas de direito fundamental implica a necessidade de um sopesamento quando elas colidem com princípios antagônicos. Isso significa, por sua vez, que a máxima da proporcionalidade em sentido estrito é deduzível do caráter principiológico das normas de direitos fundamentais.”

“A máxima da proporcionalidade em sentido estrito decorre do fato de princípios serem mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas. Já as máximas da necessidade e da adequação decorrem da natureza dos princípios como mandamentos de otimização em face das possibilidades fáticas.”

Seria, então, no âmbito da aplicação do princípio da proporcionalidade, que o intérprete/aplicador da norma estabeleceria não somente o princípio-valor que deveria prevalecer no caso concreto, mas também delimitaria o próprio conteúdo da norma, estabelecendo seu real sentido. Com base na distinção entre texto e norma, aceita largamente na doutrina, mas afastando-se da conclusão inicial de Hans Kelsen de que o intérprete realizaria apenas atividade descritiva e reprodutiva do Direito (2003, p. 82), pelo menos enquanto ciência jurídica, pode-se concluir com Hugo de Brito Machado Segundo o real papel “(re)construtor do intérprete”, ao atribuir sentido aos textos. Para Machado Segundo, a atribuição de sentido a textos normativos seria atividade criativa, realizada à luz do caso concreto, cujo controle se poderia dar através da submissão das interpretações eventualmente divergentes à crítica intersubjetiva, com uma postura falibilista (2014, p. 243/246), nos moldes aproximados do entendimento de Karl Popper.

A construção do sentido normativo pelo intérprete/aplicador da norma é explicada por Humberto Ávila, para quem, tanto o julgador quanto o cientista do Direito deveriam “construir significados” pois “não é plausível a ideia de que a aplicação do Direito envolve uma atividade de subsunção entre conceitos prontos antes mesmo do processo de aplicação” (2014, p. 52). À luz dos fatos da causa, e tendo em vista o material normativo disponível no sistema jurídico, o intérprete/aplicador reconstrói os significados e delimita o conteúdo da norma, traçando seus limites de incidência. Em um caso concreto, portanto, havendo conflito de normas de direito fundamental principiológicas, a aplicação do princípio da proporcionalidade ensejaria tanto a identificação do direito que deve prevalecer quanto o próprio conteúdo deontológico desse mesmo direito, ou seja, o processo interpretativo-aplicativo identifica e define os contornos do direito.

Por esse motivo, é compreensível a ideia defendida pelos que adotam a teoria relativa do conteúdo essencial em confundir esse núcleo de proteção com o resultado do processo de ponderação de valores, ainda que não se concorde com esse pensamento. Para eles, a aplicação da proporcionalidade tornaria desnecessário falar-se em conteúdo essencial, já que este somente seria definido à luz dos casos concretos e em função de suas peculiaridades fáticas e de conflito normativo, não sendo definível a priori. Assim, aquelas eventuais restrições que “passem no teste da proporcionalidade” não feririam o conteúdo essencial, sendo esse conhecido somente após o sopesamento. Neste ponto, podem-se fazer alguns questionamentos: Não estariam os defensores da teoria relativa confundindo indevidamente o “conteúdo” de um direito fundamental com a “forma” de se delimitar esse âmbito normativo em uma situação particular? Ou ainda, não estariam esses autores, pelo menos, equiparando a ideia de “conteúdo essencial” com o conceito de “conteúdo total” ou “conteúdo qualquer” encontrado na situação fática a partir da proporcionalidade, e assim desnaturando o qualificativo “essencial”, enquanto sentido do mínimo aceitável de existência deontológica?

5. A proteção do conteúdo essencial no âmbito da decisão judicial:

Tratando-se de “limites dos limites”, a ideia de conteúdo essencial deve prevalecer diante de qualquer função estatal potencialmente restritiva de liberdade. Assim, considera-se acertada a posição conciliadora das teorias objetiva e subjetiva, eis que, tanto em nível abstrato quanto em concreto, deve-se respeitar um mínimo de eficácia dos direitos fundamentais, afigurando-se a melhor solução tratar esses dois aspectos como dimensões do mesmo problema, como faz Virgílio Afonso da Silva (2014, p. 185). Por outro lado, a postura relativista não resolve o problema do conteúdo essencial, mas antes desnatura o instituto jurídico, ao tratar como “essencial” qualquer conteúdo deontológico fixado no âmbito da ponderação. Assim, a dificuldade de identificar-se materialmente o núcleo essencial de um direito é, de forma oblíqua, superada pelos relativistas com a equiparação desse núcleo à totalidade do direito identificada na aplicação do princípio da proporcionalidade. Confundindo-se a parte essencial com o todo, a própria qualificação da essência deixa de fazer qualquer sentido enquanto limitadora do potencial restritivo do Estado.

De outra parte, se a teoria relativa encontra alguma justificativa no plano concreto, em face da delimitação do direito fundamental subjetivo, quando do conflito entre princípios, por meio da ponderação, no plano abstrato do direito objetivo essa teoria encontra dificuldade de acomodação. De fato, se na realidade de uma causa em julgamento é possível alegar a supressão absoluta de determinado direito a priori existente, em face da prevalência naquela situação específica de outros valores de maior envergadura, no plano da regulamentação legislativa não se pode conceber a restrição total de qualquer direito fundamental, eis que um mínimo de existência e eficácia deve permanecer tutelando em potencial os interesses do ser humano. Nesse ponto, ainda que não se desconheça a influência da proporcionalidade na construção legislativa, as ponderações de valores no âmbito abstrato devem sempre respeitar um mínimo materialmente exigível de eficácia dos direitos fundamentais, abaixo do qual estar-se-ia violando a essência do próprio direito.

Como acima exposto, a questão em análise é por demais complexa e todas as tentativas de solução tem apresentado vantagens e desvantagens. A atividade do jurista quase sempre é permeada por mais incertezas e dificuldades em razão da natureza imaterial do seu objeto de estudo, que deve antes “compreender”, no âmbito da “totalidade de seus fins, em suas conexões de sentido” que “explicar”, conforme lição de Miguel Reale (2002). Equiparar “conteúdo essencial” com o produto da ponderação equivale a tentar resolver o problema desprezando o real sentido do termo “essencial” e contornar a finalidade do instituto, como limite a partir do qual não é dado ao Estado interferir em determinado direito. A dificuldade natural de identificar-se esse conteúdo essencial não pode servir de justificativa para alterar o seu sentido imanente, enquanto limite à conformação dos direitos fundamentais a outros interesses. Mesmo em se considerando que o intérprete atribui sentido à norma, não se pode concluir que inexista qualquer significado prévio ao processo interpretativo (ÁVILA, 2014, p. 52), nem muito menos que qualquer sentido é possível. O termo “essencial” leva naturalmente o intérprete a compreender o significado como algo de cunho substancial e necessário para caracterizar o objeto qualificado, sem o qual o mesmo perderia sua própria natureza.

Da análise da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, nota-se que o termo “conteúdo essencial” ou “núcleo essencial”, como preferem os ministros, tem sido utilizada como argumento de decisão em vários momentos. Em alguns julgamentos, tomou-se a expressão em sentido um pouco diverso do utilizado neste estudo, como, por exemplo, referindo-se a “núcleo essencial dos princípios da Administração Pública (CF, art. 37, caput)”1 para justificar a necessidade da observância do princípio da impessoalidade nas contratações do setor público, assim, como, falando-se em “núcleo essencial da Constituição”2 para referir-se às próprias cláusulas pétreas, que estariam imunes mesmo à ação do constituinte reformador. Em outros momentos, no curso de suas fundamentações, os ministros aproximam-se de um conceito substancial do conteúdo essencial, enquanto em outros, referem-se ao princípio da proporcionalidade, remetendo à teoria relativa.

No voto de vista proferido por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n. 363.889 – Distrito Federal, onde se discutia a possibilidade de afastar-se o óbice da coisa julgada para continuar um processo de investigação de paternidade, o Ministro Luiz Fux registrou que caberia ao intérprete, a princípio, “conciliar as normas constitucionais cujas fronteiras não se mostram nítidas à primeira vista, assegurando a mais ampla efetividade à totalidade normativa da Constituição, sem que qualquer de seus vetores seja relegado ao vazio, desprovido de eficácia normativa”. Somente em não sendo frutífera a “tentativa de definição dos limites próprios a cada norma fundamental” é que caberia “ao intérprete fazer o uso da técnica da ponderação de valores, instrumentalizada a partir do manuseio do postulado da proporcionalidade” mas resguardado, sempre, o núcleo essencial de cada direito fundamental”. Entendeu o Ministro que não poderia haver, mesmo na ponderação, “a ablação da eficácia, em abstrato, das normas constitucionais”.3 Como se pode notar pela fundamentação do voto de vista, para o Ministro, em um caso concreto, mesmo estabelecendo-se uma relação de precedência entre os direitos fundamentais, o núcleo essencial do direito superado permaneceria incólume no plano abstrato.

Já no julgamento do Recurso Extraordinário n. 511.961, em que o Supremo Tribunal Federal analisava a constitucionalidade da exigência de diploma de nível superior para o exercício da profissão de jornalista, o Ministro Relator, Gilmar Mendes, registrou na fundamentação de seu voto que “a reserva legal estabelecida pelo art. 5º, XIII, não confere ao legislador o poder de restringir o exercício da liberdade a ponto de atingir o seu próprio núcleo essencial”. Nota-se, todavia, a adoção no voto do Ministro da teoria relativa do conteúdo essencial, quando o mesmo aproxima esse conceito da observância do princípio da proporcionalidade: “é preciso analisar se a lei restritiva da liberdade de exercício profissional, ao definir as qualificações profissionais, tal como autorizado pelo texto constitucional, transborda os limites da proporcionalidade e atinge o próprio núcleo essencial dessa liberdade”.4 No mesmo sentido, quando da análise da exigência de aprovação em exame da OAB para o exercício da profissão de advogado, o Supremo Tribunal Federal aproximou o conceito de conteúdo essencial à observância da proporcionalidade, como se pode notar do voto do Ministro Marcos Aurélio: “posso adiantar o entendimento de que o exame de suficiência é compatível com o juízo de proporcionalidade e não alcançou o núcleo essencial da garantia constitucional da liberdade de ofício”.5 Em todos os casos, todavia, não se questionando eventual acerto ou desacerto da decisão em si, nota-se uma certa incompatibilidade teórica entre um conteúdo essencial, que se pretende inatingível e reconhecível a priori, e um conteúdo posterior do direito, somente definido por meio de ponderação.

Defendendo um conceito material ou substancial do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, Pablo Lucas Verdú destaca o esforço da doutrina e da jurisprudência, sem resultados “satisfatórios, para esclarecer a essência da essência (das Wesen des Wesens) de um direito ou liberdade fundamental”. Para o constitucionalista espanhol, o conteúdo essencial não se poderia captar de forma plena através de argumentação lógico-jurídica, sendo a sua essencialidade “ontológica e deontológica” (VERDÚ, 2004, p. 186/187). Separando o conteúdo essencial daqueles conceitos juridicamente indeterminados, reafirma o autor a maior concretude de sua natureza. Vejam-se suas palavras (2004, p. 182):

“Diferentemente, o conteúdo ou núcleo essencial de um direito fundamental parece indicar algo mais fixo, concreto e capital. Ainda mais, são uma verdadeira demarcação de limites (Schranken-Schranken), segundo a eficaz denominação de Bleckmann. Com efeito, circunscrevem o intervencionismo legislativo no que tange aos direitos fundamentais. Trata-se de um limite absoluto voltado para a observância do conteúdo material do direito básico, pois, do contrário, tal direito restaria esvaziado.”

Pablo Lucas Verdú ainda contesta a equiparação do conteúdo essencial com o princípio da proporcionalidade, ou seja, com a exigência de uma justa proporção entre a intensidade da restrição para a regulação do direito e a gravidade ou peso das circunstâncias que tornam aquela restrição reguladora necessária. Nota que, a esta tese, objetou-se que o princípio da proporcionalidade e a cláusula de proteção ao conteúdo essencial estariam em “planos lógicos distintos”. A tese contrária (Munz, Schoen), adverte Verdú, considera que “o princípio da imutabilidade do conteúdo essencial se refere ao objeto da atividade estatal; expressa um conceito de caráter absoluto e irredutível”, enquanto o princípio da proporcionalidade diria respeito a “modos da atividade do Estado” e teria “uma ideia de valor relativo” (2004, p. 188).

No mesmo sentido, Jorge Miranda, ao tratar do conteúdo essencial no Direito português, observa que o “trabalho mais árduo e melindroso” é estabelecer o que realmente seja esse conteúdo. Todavia, adverte que somente haveria proteção real contra eventual abuso com a adoção da teoria absoluta, entendendo por conteúdo essencial a finalidade ou o valor inerente ao direito. Observe-se parte de seu argumento (MIRANDA, 1993, p. 307/308):

“Afigura-se que para, realmente, funcionar como barreira que o legislador, seja qual for o interesse (permanente ou conjuntural) que prossiga, não deve romper, o conteúdo essencial tem que ser entendido como um limite absoluto correspondente à finalidade ou o valor que justifica o direito. As teses relativistas são de rejeitar, porque confundem proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2) e conteúdo essencial (art. 18, n.º 3).”

Apesar de não adotar posição própria sobre o tema, Daniel Sarmento adverte que os críticos da teoria relativa argumentam ser problemática a posição relativista que torna supérflua a proteção ao conteúdo essencial, pelo menos na Alemanha, Espanha e Portugal, onde há expressa previsão constitucional sobre a garantia (SARMENTO, 2006, p. 316). De sua parte, Canotilho, apesar de defender a impossibilidade de serem adotadas as alternativas teóricas relativa e absoluta de forma radical, considera equivocada a equiparação do conteúdo essencial ao princípio da proporcionalidade, ao passo que também não desconhece que o estabelecimento do âmbito de proteção de um determinado direito pressupõe a confrontação com outros bens e eventual relativização. Entretanto, defende que a Constituição portuguesa não equipararia as duas realidades. Observem-se suas palavras (CANOTILHO, 1992, p. 632/33):

“Relativamente ao problema do valor absoluto ou relativo do núcleo essencial, é inequívoco que a Constituição não confunde o princípio da proporcionalidade (consagrado no art. 18.º/2, in fine). Sendo certo que o âmbito de proteção de um direito deve obter-se, caso a caso, tendo em conta outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos, a proibição da diminuição da extensão do núcleo essencial só terá sentido se constituir um reduto último intransponível por qualquer medida legal restritiva. (Cfr. Acs. TC 8/84, DR II, 3/5/86; 76/85, DR II, 8/6/85; 31/87, DR II, 1/4/87).”

Afastando-se de uma teoria principiológica dos direitos fundamentais no modelo Alexyano, por entender que essa ideia leva a um “enfraquecimento axiológico do sistema” relativo aos direitos fundamentais, vistos apenas como imperativos de otimização e não como valores intocáveis, José Carlos Vieira de Andrade adota a construção dogmática de <<limites imanentes>> aos próprios direitos fundamentais. Para o referido autor português, o art. 18.º, n.º 3, da Constituição de seu país estabeleceria “uma proibição absoluta, um limite fixo, um mínimo de valor inatacável” (ANDRADE, 2004, p. 286/305).

No âmbito das possibilidades de limitação do direito fundamental pelo Poder Legislativo, este deve observar de forma absoluta a garantia do conteúdo essencial, de modo que a regulação imposta não retire a essência do próprio direito, ou seja, não impeça a fruição daquela dimensão da dignidade humana que restou tutelada pela norma constitucional. Assim, a harmonização do modo de exercício do direito fundamental com os outros interesses inerentes à vida coletiva não pode ultrapassar o mínimo de real existência do direito a ponto de desfigurá-lo. Correta, portanto, ainda que criticada por Verdú, a tentativa de definir o conteúdo essencial pelo Tribunal Constitucional Espanhol como “a parte do conteúdo de um direito sem a qual este perde sua peculiaridade”, ou seja, “o que faz com que seja reconhecível como direito pertencente a um determinado tipo é também aquela parte do conteúdo que é ineludivelmente necessária para que o direito permita a seu titular a satisfação de seus interesses para cuja consequência ele se outorga” (VERDÚ, 2004, p. 203).

De outra parte, no campo da análise jurisdicional, o núcleo essencial também deve ser tido como medida limite para a caracterização do direito fundamental, o que não se pode confundir com o próprio procedimento de ponderação inerente ao princípio da proporcionalidade, por estarem em planos lógicos diversos. Pelo contrário, o critério de proteção do conteúdo essencial deve ser um parâmetro externo ao procedimento, como um ideal regulativo a ser atingido. Na análise de um caso concreto, através da ponderação de valores, o Poder Judiciário pode afastar a conclusão prima facie de que determinada conduta seria devida ou permitida com base na alegação de o postulante ser titular de um direito fundamental, sem que se conclua necessariamente pela violação do núcleo essencial em face da citada decisão. Ou seja, a derrotabilidade (defeasibility) (PRAKKEN; SARTOR) de conclusões prima facie apenas afasta, naquele caso, o reconhecimento do próprio direito subjetivo alegado, em favor da preservação de outro direito que deve prevalecer em uma relação de precedência. Em outras palavras, o não reconhecimento de um direito alegado em um caso concreto não viola obrigatoriamente o seu núcleo essencial, pois, naquela lide específica, tal direito subjetivo não haveria a ser tutelado mediante a conduta pretendida. De outro lado, em sendo reconhecido o direito subjetivo, a conformação de seu conteúdo deve ser suficiente a permitir a fruição do bem da vida que se propõe a tutelar, sob pena de violação a sua essência.

O grande desafio que se mostra na tentativa de conciliação das teorias absoluta e relativa é a disparidade dos pressupostos teóricos que as determinam. Com efeito, parece difícil fazer convergir as conclusões de uma teoria procedimental, a exemplo da de Robert Alexy, onde a correção normativa é determinada pela observância de um certo procedimento (ponderação) com a visão de um conteúdo deontológico previamente definido e materialmente identificável antes desse processo. No entanto, mesmo para os que adotam a teoria principiológica alexyana é possível imaginar o princípio da proporcionalidade e a cláusula de proteção ao conteúdo essencial como realidades diversas, desde que esta última seja concebida como um “ideal regulativo”, ou seja, um limite prévia e idealmente considerado de interferência em um direito fundamental. Em outros termos, o procedimento de ponderação deveria respeitar o conteúdo essencial previamente existente e não estabelecer residualmente esse conteúdo, o que corresponderia a sua própria desnaturação.

Note-se que, em Ávila, a proteção ao conteúdo essencial estaria vinculada ao postulado da proibição de excesso, e não ao postulado da proporcionalidade, podendo ser analisada separadamente, como a vedação de restrições que retirem o “mínimo de eficácia” a direito fundamental (2014, p. 188). Nesse sentido, pode-se concluir que, na conformação das modalidades deônticas ao caso concreto, as condutas definidas pelo intérprete/aplicador como obrigatórias, permitidas ou proibidas não podem ensejar a descaracterização do direito fundamental, a ponto de não permitir a seu titular a razoável satisfação de seus interesses e fruição do bem da vida a ele outorgado pela Constituição.

Conclusão:

Diante do quadro em análise, constata-se que a delimitação teórica do conteúdo essencial dos direitos fundamentais demanda permanente estudo com o fim de aprimorar-se a utilização do instituto que, apesar de não ser expressamente previsto no texto da Constituição Federal de 1988, tem sido reconhecido constantemente tanto em nível doutrinário como jurisprudencial por inerente ao sistema jurídico pátrio. Com efeito, tanto a doutrina constitucional brasileira quanto o próprio Supremo Tribunal Federal destacam a existência de um conteúdo mínimo de direito fundamental a ser protegido contra a restrições indevidas por ação do Legislativo, em nível abstrato, ou a ser tutelado corretamente na solução de casos concretos. A dificuldade, como visto, repousa no acertamento teórico dessa garantia, para que possa ser manejada com maior segurança e coerência no âmbito da desmandas judiciais.

Nota-se que o acatamento majoritário da teoria dos princípios de Robert Alexy na prática judiciária nacional conduz naturalmente à aproximação e mesmo confusão do instituto do conteúdo essencial dos direitos fundamentais com o postulado (princípio) da proporcionalidade, como se observa pela análise dos argumentos em defesa da teoria relativa. Para os fins dessa tese, o conteúdo essencial dos direitos fundamentais somente seria definido após o procedimento de ponderação, ou seja, seria um conteúdo essencial encontrável de forma residual e a posteriori. Por esse motivo é que os defensores desse posicionamento chegam mesmo a entender desnecessária a alusão a essa garantia, pois nenhuma restrição proporcional poderia atingir o núcleo essencial dos direitos fundamentais. Lado outro, consideram que a mínima intervenção em um conteúdo de um direito fundamental, se ocorrida fora dos postulados da proporcionalidade, violaria seu conteúdo essencial.

Todavia, a coerência com o sentido próprio do qualificativo “essencial”, indicando algo substancial e perene, conduz à refutação da teoria relativa como suficiente a explicar a natureza da cláusula protetiva, apontando para a teoria absoluta, ainda que na modalidade dinâmica, como a única capaz de descrever o significado normativo do conteúdo essencial. A referência ao conteúdo essencial como garantia absoluta pelo Tribunal Constitucional alemão, a definição desse conteúdo pelo Tribunal Constitucional espanhol e as referências ao núcleo essencial pelo Supremo Tribunal Federal, denotando algo inatingível e imaculável, reforçam a perspectiva de que a doutrina relativista não se mostra suficiente a justificar de forma coerente o instituto, ainda que eventualmente se faça referência ao princípio da proporcionalidade quando do trato da matéria.

Nota-se que, em nível abstrato, a teoria absoluta não apresenta maiores problemas, já que impõe ao legislativo a observância de um mínimo de eficácia aos direitos fundamentais, impedindo as restrições mais severas por ocasião da edição de normas regulamentadoras. Por outro lado, no plano concreto, a teoria relativa tende a ser mais facilmente explicável, quando se imagina a possibilidade de não restar reconhecida nenhuma parcela de direito subjetivo a ser tutelado, o que leva à confusão do conteúdo essencial com o próprio resultado da proporcionalidade. O argumento dos relativistas é justamente no sentido de que, em um dado caso concreto, a ponderação de valores/interesses pode conduzir naturalmente à superação integral de alguma posição jurídica de vantagem postulada em juízo, levando à eliminação total de um suposto direito fundamental, pelo que nenhum conteúdo essencial existiria a ser tutelado. Por isso, para esses autores, seria através do postulado da proporcionalidade que se definiria o conteúdo essencial.

Entretanto, a solução apresentada pela teoria relativa é ilusória, eis que apenas desnatura o instituto. A possibilidade de resposta mais adequada para a questão se afigura com a adoção da teoria absoluta, entendendo-se como conteúdo essencial um parâmetro externo ao procedimento de ponderação, um ideal regulativo a ser atingido na conformação da modalidade deôntica do direito fundamental, para que seja suficiente à fruição do bem da vida tutelado. Assim, em um caso concreto, para a eficácia da decisão jurídica em tutelar uma liberdade fundamental, além do procedimento de ponderação para definir-se a precedência do direito a ser tutelado, deve-se, como base na ideia de conteúdo essencial, definir-se o contorno deontológico desse mesmo direito, de modo a que a proibição, permissão, ou obrigação decorrente da norma fundamental torne possível a proteção do bem da vida pretendido.

Nada impede, entretanto, que após esclarecidos os fatos da causa, não haja direito subjetivo fundamental a tutelar em favor de uma das partes. Como acima registrado, a eventual derrotabilidade (defeasibility) de uma postulação não necessariamente implica a violação de direito fundamental, mas tão somente que determinada conduta visada por uma das partes como permitida, proibida ou obrigatória não fora reconhecida como integrante de seu patrimônio jurídico, desmerecendo proteção naquele caso. O não reconhecimento de um direito em um caso concreto pelo Poder Judiciário não implica obrigatoriamente na violação do conteúdo essencial de um direito fundamental que permanece, em potencial e abstratamente em vigor, como referiu o Ministro Luiz Fux no voto acima referido. Por outro lado, no caso de reconhecimento judicial de um direito subjetivo fundamental, deve o seu conteúdo ser delimitado de forma a possibilitar o seu pleno exercício, como destacado pelo Tribunal Constitucional espanhol, por necessário à proteção do conteúdo essencial.

Como visto, o tema é complexo e demanda a continuidade das pesquisas. Não se pretendeu neste estudo, por óbvio, esgotar o trato da matéria, mas apenas lançar luzes sobre os problemas ainda não suficientemente resolvidos pela doutrina e que se apresentam nas situações da prática jurídica. Se a teoria relativa não soluciona adequadamente o problema, falta à teoria absoluta buscar seu próprio substrato teórico a ponto de desvincular-se das fundamentações relativistas. Somente a compreensão do instituto como algo estável e perene, definido a priori, como entendem os absolutistas, permite a coerência no trato do tema.

 

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SILVA, Gustavo Just da Costa e. Os limites da reforma constitucional. – Rio de Janeiro: Renovar, 2000.
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos fundamentais: conteúdo essencial, restrições e eficácia. 2ª ed. 3ª tir. – São Paulo: Malheiros, 2014.
VERDÚ, Pablo Lucas. O Sentimento Constitucional: aproximação ao estudo do sentir constitucional como de integração política. Tradução de Agassiz Almeida Filho. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
 
Notas:
1 ADI 1923, Relator(a): Min. AYRES BRITTO, Relator(a) p/ Acórdão: Min. LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 16/04/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-254 DIVULG 16-12-2015 PUBLIC 17-12-2015.

2MS 32033, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Relator(a) p/ Acórdão: Min. TEORI ZAVASCKI, Tribunal Pleno, julgado em 20/06/2013, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-033 DIVULG 17-02-2014 PUBLIC 18-02-2014.

3RE 363889, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 02/06/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-238 DIVULG 15-12-2011 PUBLIC 16-12-2011 RTJ VOL-00223-01 PP-00420

4 RE 511961, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 17/06/2009, DJe-213 DIVULG 12-11-2009 PUBLIC 13-11-2009 EMENT VOL-02382-04 PP-00692 RTJ VOL-00213-01 PP-00605.

5RE 603583, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 26/10/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-102 DIVULG 24-05-2012 PUBLIC 25-05-2012 RTJ VOL-00222-01 PP-00550


Informações Sobre o Autor

Mário Soares de Alencar

Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará UFC Professor do Curso de Direito da Universidade Estadual do Piauí UESPI e Juiz de Direito no Estado do Piauí


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