A humanidade encarcerada: o caso do sistema prisional capixaba

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Resumo: O presente texto é resultado de uma releitura de material de pesquisa realizada quando da elaboração de nossa monografia de conclusão do curso de Direito. Desde então todas as pesquisas realizadas pelo autor recortam para o sistema prisional e a violência, bem como, abordam a visibilidade e a invisibilidade das questões sociais. No texto constam considerações sobre a legislação brasileira sobre a execução penal e um relato sobre o Sistema Prisional do Estado do Espírito Santo, baseado em relatório coordenado pela Ordem dos Advogados do Brasil e publicado em 2011, que relata detalhadamente a crise que viveu o Estado e que culminou em uma reestruturação física e organizacional dos presídios, mas que com o passar do tempo demonstrou-se insuficiente para solucionar os problemas apresentados, que agora tornam a se agravar.

Palavras-chave: Sistema Prisional, Execução Penal, Visibilidade e Invisibilidade.

Sumário: 1. Introdução. 2. Aspectos históricos da execução penal no Brasil. 3. Sistema prisional e a violência. 4. A situação dos cárceres no Brasil. 5. O sistema prisional capixaba. 6. Considerações finais. Referências.

1. INTRODUÇÃO

A Constituição de 1988 inaugura no Brasil um estado garantista. Com ele ingressam em nosso ordenamento jurídico, diversas leis inovadoras que visam reforçar as mesmas garantias e só permanecem vigorando pelo fenômeno da recepção, aquelas que se coadunam com o texto constitucional, e com sua base axiológica. O presente escrito aborda uma das mais controversas funções do Estado, o direito/dever de punir os infratores.

Chamam atenção o relato da situação de humanidade do sistema prisional e as iniciativas que o Estado intenta, com o objetivo de minorar as mazelas existentes que por sinal vão muito além das estruturas físicas deficitárias, mas que de tal forma servem a ilegalidade, que caminham para um terrível colapso. Nossas pesquisas sempre esbarram na atuação das entidades populares. A Pastoral Carcerária, ligada as pastorais sociais da Igreja Católica, está sempre presente em nossos relatos.

Pode-se entender Execução Penal como uma fase do processo penal, nela faz-se valer o imperativo condenatório contido na sentença penal, efetivamente, é por ela que se impõe e organiza o cumprimento da pena, seja ela, restritiva de liberdade, restritiva de direito ou mesmo pecuniária. É um processo com natureza jurisdicional, a sua finalidade está em dar efetividade à pretensão punitiva estatal. É iniciado de oficio pelo juiz, assim que ocorre o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, embora também possa haver uma execução provisória da pena[1].

As atividades jurisdicional e administrativa do Estado entrelaçam-se na execução penal porque o Judiciário é quem se encarrega de proferir os comandos inerentes a execução da pena, mas, o efetivo cumprimento se dá em estabelecimentos administrados, custeados e sob os auspícios do Poder Executivo. Existiria um Direito de Execução Penal[2], como ciência autônoma, com fundamentos e princípios próprios, embora vinculada ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal.

2. ASPECTOS HISTÓRICOS DA EXECUÇÃO PENAL NO BRASIL

A tentativa de constituir um código que estabelecesse as normas relativas ao direito penitenciário no Brasil remonta a longa data. A matéria era disposta dentro do Código Criminal do Império, até que em 1933 o jurista Cândido Mendes de Almeida presidiu uma comissão que visava elaborar o primeiro código de execuções criminais da República. O projeto considerado inovador, já tinha como princípio a individualização e distinção do tratamento penal, como no caso dos toxicômanos e dos psicopatas. Previa também a figura das Colônias Penais Agrícolas, da suspensão condicional da execução da pena e do livramento condicional. No entanto o projeto não chegou nem mesmo a ser discutido em virtude da instalação do regime do Estado Novo, em 1937, que suprimiu as atividades parlamentares.

Ainda carente de uma legislação que viesse a dispor sobre a matéria penitenciária, em 1951 o então deputado Carvalho Neto produziu um projeto que estabelecia normas gerais de direito penitenciário, mas o mesmo, também não chegou a converter-se em lei. Da necessidade de se reformular e se atualizar a lei de execução criminal, em 1957 foi sancionada a Lei nº 3.274, que dispunha sobre normas gerais de regime penitenciário. Mas já nasceu insuficiente, e em face disso, em 1957 foi elaborado pelo Professor Oscar Stevenson, a pedido do ministro da justiça o projeto de um novo código penitenciário. Nesse projeto, a execução penal era tratada distintamente do Código Penal e a competência para a execução penal era dividida sob a forma de vários órgãos.

Já em 1962 veio o primeiro anteprojeto de um Código de Execuções Penais, do jurista Roberto Lyra, que inovava pelo fato de dispor de forma distinta sobre as questões relativas às “detentas” e também pela preocupação com a humanidade e a legalidade na execução da pena privativa de liberdade. Os dois projetos acima não chegaram nem mesmo à fase de revisão, e, com um nome idêntico e com a mesma finalidade, em 1970 foi apresentado mais um projeto pelo professor Benjamim Moraes Filho, inspirava-se numa Resolução das Nações Unidas, datada de 30 de Agosto de 1953, que dispunha sobre as Regras Mínimas para o Tratamento de Reclusos.

Cotrim Neto, também elaborou um projeto, o qual apresentava como inovações às questões da previdência social e do regime de seguro contra os acidentes de trabalho sofridos pelo detento. O projeto baseava-se na ideia de que a recuperação do preso deveria basear-se na assistência, educação, trabalho e na disciplina. Sem lograr êxito, os projetos apresentados pelos juristas não se convertiam em lei, e a República continuava carecendo de uma legislação que tratasse de forma especifica a questão da execução penal. Por outro lado, o direito executivo penal cada vez mais se consolidava como sendo uma ciência autônoma, distinta do direito penal e do direito processual penal, e também jurídica, não apenas de caráter meramente administrativo. A própria CF de 88 elevou o direito penitenciário à categoria de ciência autônoma, dispondo no seu artigo 24 a competência da União para legislar sobre suas normas.

Finalmente então em 1983 é aprovado o projeto de lei do Ministro da Justiça Ibrahim Abi Hackel, o qual se converteu na Lei nº 7.210 de 11 de Julho de 1984, a atual e vigente Lei de Execução Penal (LEP), tida como sendo de vanguarda, e seu espírito filosófico se baseia na efetivação da execução penal como sendo forma de preservação dos bens jurídicos e de reincorporação do homem que praticou um delito à comunidade. A execução penal é definitivamente erigida à categoria de ciência jurídica e o princípio da legalidade domina o projeto como forma de impedir que o excesso ou o desvio da execução penal venha a comprometer a dignidade ou a humanidade na aplicação da pena.

De fato, a LEP é moderna e avançada, e está de acordo com a filosofia ressocializadora da pena privativa de liberdade. Porém, depois de tanta luta e tantos desacertos para que o país pudesse ter uma legislação que tratasse de forma específica e satisfatória sobre o assunto, o problema enfrentado hoje é a falta de efetividade no cumprimento e na aplicação da Lei de Execução Penal. Nela estão estabelecidas as normas fundamentais que regerão os direitos e obrigações do sentenciado no curso da execução da pena, estando estabelecidas normas para o trato do preso provisório e daqueles que cumprem medida de segurança.

Tem como finalidade precípua a de atuar como um instrumento de preparação para o retorno ao convívio social do recluso. Em seu artigo 1º, a lei deixa claro que sua orientação baseia-se em dois fundamentos: o estrito cumprimento dos mandamentos existentes na sentença e a instrumentalização de condições que propiciem a reintegração social do condenado. O espírito da lei é o de conferir uma série de direitos sociais ao condenado, visando assim possibilitar não apenas o seu isolamento e a retribuição ao mal por ele causado, mas também a preservação de uma parcela mínima de sua dignidade e a manutenção de indispensáveis relações sociais com o mundo extramuros.

Situação complexa a que estão adstritos os gestores das unidades prisionais que além de serem obrigados a cumprir as determinações da LEP, precisam administrar outros conflitos como por exemplos as rixas entre facções rivais. É muito comum com a superlotação, que seja necessário colocar aquele que pela primeira vez cumpre pena, na mesma cela do criminoso contumaz, para preservar a vida deste ou daquele que não pode ficar em outra cela por se tratarem de inimigos que possivelmente o matariam. Esse é um fator que acaba indo de encontro à ideia de recuperação do preso que tem um potencial maior de ser regenerado, em razão de que o convívio em um ambiente promíscuo e cheio de influências negativas causadas por esses criminosos fará com que ele adquira uma “subcultura carcerária”, que se constitui num dos maiores obstáculos a ressocialização do recluso (HERKENHOFF, 2003).

Como uma das afrontas mais graves à Lei de Execução Penal, elencam-se os excessos ou desvios que ocorrem na execução da pena privativa de liberdade. O artigo 3º da lei dispõe que “ao condenado e ao internado serão assegurados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei”. Dessa forma, infere-se que a execução da pena deve reger-se pelo princípio da legalidade estrita, sendo que a prática de qualquer ato fora dos limites fixados pela sentença ou por normas legais ou regulamentares constitui-se em excesso ou desvio de execução.

Assim, verifica-se que todas as mazelas sofridas pelo preso durante a execução da pena privativa de sua liberdade, além de não fazer com que essa atinja suas finalidades, são expressamente ilegais, pelo fato de incidirem em desvio ou excesso de execução, conforme disposição da própria Lei de Execução Penal, causando assim um descompasso entre o disposto na sentença penal condenatória e ao que efetivamente o recluso é submetido durante o encarceramento, ferindo, desse modo, o princípio da legalidade, o qual deveria nortear todo o procedimento executivo penal.

Sendo assim, o estabelecimento de práticas vedadas pela ordem constitucional na execução das penas, deve ser analisada sob o prisma de uma ofensa ao Estado Democrático e a sua natureza constitucionalista. No Estado Democrático de Direito o governo também está adstrito à legislação, sendo que para este o principio da legalidade não permite demasiadas inovações, sendo permitido a Administração Pública, fazer apenas e tão somente aquilo que a legislação autoriza ou determina expressamente.

3. SISTEMA PRISIONAL E A VIOLÊNCIA

Tem-se por necessária uma correlação – embora obvia – de Sistema Prisional e da Violência. Com refúgios nos pensamentos “Beccarianos” de que a pena se origina no desejo do homem de viver em segurança e que se dá a partir da seção, pelo ser humano, de uma parte de sua própria liberdade, para oferecer a toda a sociedade a possibilidade de uma convivência harmoniosa. O estabelecimento de uma pena visa, em síntese, constranger o homem a cumprir a lei, que por sua vez, consiste nestes fundamentos ideais sobre os quais se baseia uma sociedade harmônica:

“É melhor prevenir os crimes do que ter de puni-los; e todo legislador sábio deve procurar antes impedir o mal do que repará-lo, pois uma boa legislação não é senão a arte de proporcionar aos homens o maior bem-estar possível e preservá-los de todos os sofrimentos que se lhes possam causar, segundo o cálculo dos bens e dos males desta vida.

Mas, os meios que até hoje se empregam são em geral insuficientes ou contrários ao fim que se propõem. Não é possível submeter a atividade tumultuosa de uma massa de cidadãos a uma ordem geométrica, que não apresente nem irregularidade nem confusão. Embora as leis da natureza sejam sempre simples e sempre constantes, não impedem que os planetas se desviem às vezes dos movimentos habituais. Como poderiam, pois, as leis humanas, em meio ao choque das paixões e dos sentimentos opostos da dor e do prazer, impedir que não haja alguma perturbação e algum desarranjo na sociedade? É essa, porém, a quimera dos homens limitados, quando têm algum poder” (BECCARIA 1999, p.67).

Para que a pena seja efetiva precisa ser entendida como meio de ensinar ao apenado que o desrespeito à lei é algo ruim e que a sociedade espera dele uma reparação, o caráter educador e reparador da sanção penal. Mesmo a sanção penal tendo o caráter de ultima opção da ultima opção, pois se o direito penal é a “ultima raccio”, a sanção penal pode ser entendida como possibilidade extrema, ela deve sim ter o escopo de transformar o individuo e não de apenas afasta-lo do convívio social.

Uma leitura do que Focault relata em Vigiar e Punir, nos fará dizer que não é função do estado infringir castigos físicos referentes às penas aplicadas; o cerceamento da liberdade do individuo já é uma demasiada responsabilidade para a atividade do gestor. Para que a pena aplicada se efetive, é indispensável que o estabelecimento prisional ofereça mecanismos educacionais e que seja um ambiente que não frustre os princípios de humanidade que pressupõe a punibilidade, assim, se, apenas o ser humano é sujeito à punibilidade, a imposição da sanção penal não pode ser pressuposto para afastar a humanidade dos presos.

4. A SITUAÇÃO DOS CÁRCERES NO BRASIL

Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o Brasil possui a quarta maior população carcerária do mundo. Quase meio milhão de pessoas presas em todo o país. Houve a adoção de uma política de encarceramento pelos poderes constituídos o que faz com que essa população cresça em números exponenciais, infelizmente as autoridades não conseguem dar conta de promover as melhorias estruturais de que o sistema precisa no mesmo ritmo que o numero de presos aumenta.

Em sentido oposto, ao movimento de encarceramento, o Estado através da atividade legislativa trouxe ao ordenamento a lei 12.403/11, que tem em seu escopo a natureza de diminuir a utilização da prisão preventiva e constitui-se em um instrumento importante de diminuição do volume de pessoas presas. De um modo geral as instituições prisionais brasileiras se encontram em condições precárias e desumanas. São denuncias de maus tratos, torturas ausência de assistência médica e do acesso à justiça, alguns elementos do panorama de violações a que os presos no Brasil estão submetidos. Existe uma violação sistemática dos direitos fundamentais de milhares de pessoas[3].

No Brasil, desde 1824 que na Constituição Imperial apareceu uma declaração solene contra a tortura e outros tratamentos desumanos, "Desde já ficam abolidos os acoites, a tortura, a marca de ferro quente, e todas as demais penas cruéis" (Constituição Imperial de 1824, art. 179, § 19). São diversos os casos que servem de exemplo, quanto às violações dos direitos humanos no sistema prisional brasileiro, No Pará, foi uma prática comum a prisão de mulheres em celas com vários homens, já que não existe um considerável numero de vagas para as mulheres nas prisões do estado.

Tal situação se tornou conhecida com o absurdo caso de uma menina de 15 anos que foi mantida presa por 26 dias numa cela com mais 20 homens na cidade de Abaetetuba. A menina sofreu abusos sexuais e foi obrigada a manter relações com os presos em troca de comida. Três delegados e mais o superintendente da Polícia Civil estavam envolvidos e depois da denúncia, foram afastados. O superintendente tentou justificar a prisão dizendo que não sabia que a menina era menor, como se o fato dela não ser menor justificasse a prisão de uma mulher com mais 20 homens. Três juízes, três promotores e duas defensoras públicas de Abaetetuba afirmam que não tinham conhecimento do ocorrido, pois no pedido de remoção da jovem não teria sido comunicado o fato, da mesma, estar com homens na cela.

É aí que aparece a historia dos cárceres capixabas, que segundo alguns militantes de direitos humanos com quem tivemos a oportunidade de conviver é “emblemática da situação nacional”, o que já foi muito pior hoje apresenta melhorias, que se devem, sobretudo, a atuação corajosa de alguns agentes públicos e de pessoas ligadas às entidades populares como veremos, a atuação da administração pública tem sido adstrita aos melhoramentos da situação física do sistema.

5. O SISTEMA PRISIONAL CAPIXABA

Os problemas que apresenta e apresentavam o sistema podem não decorrer apenas das falhas das políticas públicas na área da segurança, mas também da atuação do crime organizado e da corrupção presente nas instituições públicas. Por décadas, a sociedade civil denunciou a falência do sistema prisional do Estado, mas, segundo militantes dos movimentos de direitos humanos, existiu Espírito Santo a exemplo do que ocorre em diversos outros lugares do país um pacto de silêncio entre as autoridades públicas estatais que favoreceu a não responsabilização dos envolvidos nos crimes, a deterioração das condições dos presídios e a impunidade dos executores de defensores de direitos humanos.

No ano de 2006, o sistema sofreu um colapso e estouraram diversas rebeliões em unidades de todo o estado. O caos e a violência nos presídios ganharam visibilidade nacional, e mesmo assim, o governo foi incapaz de apresentar um plano com soluções para os problemas estruturais do sistema e de combater as práticas violadoras de direitos que estavam institucionalizadas no Estado, tais práticas partindo de então findaram por se intensificar.

À época uma portaria[4] estadual impediu a sociedade civil de monitorar e fiscalizar os presídios. O Conselho Estadual de Direitos Humanos do Espírito Santo precisou ajuizar uma ação judicial para revogar tal portaria, conseguindo, por fim, derruba-la por meio de decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O governo do estado do Espírito Santo, na tentativa de diminuir os problemas passou a utilizar delegacias de polícias, contêineres, micro-ônibus e outras instalações precárias para abrigar a população carcerária crescente. A justificativa era de que esses recursos resolveriam o problema da superlotação.

Em 2010 a rede Record de televisão chegou a apresentar um documentário sobre a situação carcerária do estado, com o titulo “Presídios, longe da dignidade”, a reportagem que foi ao ar no programa “Repórter Record” no dia oito de março daquele ano, 08/03, faz um registro assustador de como funcionava o sistema penitenciário do Espírito Santo. Maus tratos, celas superlotadas, doenças. Uma realidade que não é exceção no resto do país assevera a rede de televisão que buscou fazer uma abordagem sobre as condições dos presídios sob o prisma dos direitos humanos. O documentário mostrou que a situação das penitenciarias capixabas era cruel e atentatória à dignidade da pessoa humana.

Naquela época as carceragens das delegacias eram amontoados de presos, que não cumpriam a função de recuperar ou mesmo de oferecer as mínimas condições na busca de ressocialização. Conforme a fala de um presidiário do presídio de Vila Velha, Espírito Santo, quando indagado pela jornalista do referido programa de TV “Repórter Record” sobre as condições que vivia.

“Do jeito que eles tratam ‘nóis’ aqui, humilhando ‘nóis’, como eles querem que a gente saia bom daqui? ‘Nóis’ sai daqui é pior, porque aqui ‘nóis’ somos tratado igual cachorro, aí alguns querem descontar na sociedade.”

Deve ser dado especial destaque nesta nossa retrospectiva ao caso da delegacia de Vila Velha, que foi à época transformada em presídio, com capacidade para 36 presos, chegou a contar com 350 homens e apenas um banheiro funcionando. A cela estava tão lotada que acabava sendo impossível que os presos se mexessem. Muitas vezes, as necessidades fisiológicas dos que estavam longe do banheiro eram feitas nas embalagens que vinha com o almoço.

Naquela ocasião para que os detentos pudessem dormir era necessário revezamento, pois eles não conseguiam ficar todos deitados ao mesmo tempo. Uma solução encontrada por eles foi fazer na parte superior um amontoado de redes para dormir. Não existiam janelas, o sol nunca era visto; a única ventilação era um ventilador fixado na parede do corredor, que, diga-se de passagem, costumava estar imundo.

Outros dados daquela fase podem ser relatados, os presos não recebiam o atendimento de saúde adequado doenças como furúnculos, algumas DST’s, sobretudo a sífilis eram muito comuns. Outro fato importante é que era difícil verificar alguma separação entre presos provisórios e condenados e que os policiais civis que deveriam estar investigando os crimes comumente ficavam vigiando as superlotadas delegacias. Na antiga delegacia de Guarapari, localizada no local conhecido como “Morro da Atalaia”, assim como nas outras, os policiais não possuíam controle nenhum sobre os detentos, dentro das celas imperava a vontade dos presos. Era comum ver os presos transitando livremente no interior da carceragem.

É impossível narrar estes fatos sem relembrar com firmeza as lendárias celas metálicas, já citadas. No município de Serra, existia o complexo de Novo Horizonte, onde este que é outro exemplo de enorme desrespeito a pessoa humana aconteceu. Para tentar resolver o problema da superlotação o governo do Espírito Santo, construiu em caráter provisório prisões containers. O problema é que aquilo que deveria ter caráter provisório durou muito tempo, assim, aconteceu o previsível, eles também se encheram. Então o presídio provisório superlotado transformou-se em um dos maiores problemas de justiça da história do estado “presos enlatados” sofriam devido às condições precárias. Nos contêineres, presos eram confinados num ambiente em que a temperatura chegava a 50 graus.

As unidades de internação de adolescentes em conflito com a lei tinham problemas semelhantes àquelas dos adultos. Em uma das unidades prisionais do estado, a CASCUVI (Casa de Custódia de Viana), o Conselho Estadual de Direitos Humanos do Espírito Santo (CEDH-ES) registrou 10 esquartejamentos de presos durante o período em que as organizações da sociedade civil foram impedidas de visitar os presídios. As informações do referido Conselho, dão conta de que há fotos e notícias de dez esquartejamentos e laudos comprobatórios de quatro desses casos. Diante dessa situação, a atuação das organizações locais e nacionais foi decisiva para desenvolver ações que pudessem enfrentar as práticas violadoras do Estado e transformar essa realidade. A questão foi novamente levada a autoridades públicas brasileiras.

A sociedade civil também denunciou a situação aos sistemas de proteção de direitos humanos regionais (Sistema Interamericano de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos) e internacional (Conselho de Direitos Humanos e Relatores Especiais da Organização das Nações Unidas). Por fim, o tema teve grande repercussão nas mídias nacional e internacional. As atrocidades ganharam visibilidade, o que resultou na sensibilização da opinião pública. O governo foi obrigado a reconhecer alguns problemas até então negados e apresentar respostas.

Entre 2009 e 2011, houve resultados positivos e concretos que decorreram disso, como a desativação das celas metálicas, a interdição de delegacias de polícia e a redução da superlotação. Pode-se destacar aqui então um projeto audacioso e muito contestado pelos críticos do então governo, que levou a cabo a construção milionária de diversas unidades prisionais, dentre elas: o Centro de Detenção Provisória (CDP) de Guarapari – que de certa forma, é o objeto de nossos estudos.

Na época da realização da presente pesquisa o ES possuia uma população de 3.512.672 habitantes; a 10ª maior população carcerária do Brasil; ocupava a 8ª posição em taxa de encarceramento (355,06 por 100.000 habitantes) e um déficit de 1.815 vagas no sistema carcerário. Em dezembro de 2011 o estado contava com 13.207 presos, em meados de 2012 contava com 14.477 e a própria Secretaria de Justiça apontava que em dezembro deveria contar com a marca de 15.400 detentos.

Deste universo de 14. 477 pessoas presas, 6.097 eram presos provisórios, 5.972 estavam em regime fechado, 2.360 estavam em regime semiaberto e apenas 48 cumpriam medida de segurança. Após empreender um esforço para responder aos apelos levantados pelas denuncias de irregularidades no sistema o estado passou a contar com 16 penitenciarias, 12 centros de detenção provisória, 1 hospital de custodia e tratamento psiquiátrico, 1 centro de triagem, 2 centros prisionais femininos e 1 centro de ressocialização, além de 1 penitenciária agrícola.

Mesmo com os investimentos e adoção de novas posturas, primeiramente aquilo que era tratado como uma questão de segurança pública – inclusive por ser gerido pela pasta de governo com o mesmo nome – passa a ser dirigido pela secretária de Justiça, por isso até marcamos esta transição como uma mudança da segurança pública para a justiça social, o sistema ainda apresenta muitas falhas o maior destaque está no déficit de vagas que faz com que as unidades fiquem superlotadas, na data da realização da pesquisa faltavam 1.892 vagas no sistema prisional capixaba e a tendência de agravamento se confirmou.

6. Considerações Finais

Se fosse efetivada integralmente, a Lei de Execução Penal certamente propiciaria a reeducação e ressocialização de uma parcela significativa da população carcerária atual. No entanto, o que ocorre é que, assim como a maioria das leis existentes em nosso país, a LEP permanece satisfatória apenas no plano teórico e formal, não tendo sido cumprida por nossas autoridades públicas. É claro que é pressuposto da ressocialização do condenado a sua individualização, a fim de que possa ser dado a ele o tratamento penal adequado. Já encontramos aqui então o primeiro grande obstáculo do processo ressocializador do preso, pois devido à superlotação de nossas unidades prisionais torna-se praticamente impossível ministrar um tratamento individual a cada preso.

A própria superlotação dos presídios é uma consequência do descumprimento da LEP, que dispõe em seu artigo 84 que “o estabelecimento penal deverá ter lotação compatível com sua estrutura e sua finalidade”. A lei ainda previu a existência de um órgão específico responsável pela delimitação dos limites máximos de capacidade de cada estabelecimento – o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária no intuito de que fosse estabelecido com precisão um número adequado de vagas de acordo com as peculiaridades de cada estabelecimento.

Também devido à superlotação torna-se muito difícil se efetivar o disposto na lei no que se refere ao trabalho do preso, que é inclusive previsto como sendo um direito seu. O Estado, através de seus estabelecimentos prisionais não tem condições de propiciar e de supervisionar a atividade laborativa dos presos, sendo ainda que, na maioria das vezes, quando essas atividades são oferecidas, elas têm pouca aceitação ou não são adequadas às exigências do mercado de trabalho, o que acaba não requalificando o preso como mão de obra apta a retornar e a concorrer a uma vaga neste campo tão competitivo atualmente.

Outro flagrante de inobservância quanto ao cumprimento do disposto na LEP é o fato de que alguns estabelecimentos prisionais colocam nas mesmas celas os presos provisórios, primários ou que cometeram delitos de menor gravidade e repercussão social, junto aos presos reincidentes e criminosos contumazes, de alta periculosidade. O Sistema Prisional Capixaba avançou com as reformas na estrutura e a construção de novas unidades, no entanto, ainda existe muito a se fazer para minorar as muitas mazelas existentes, tudo passa por várias frentes, da melhor valorização do servidor ao estabelecimento de medidas que visem dar maior efetividade a execução penal.

 

Referências
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Notas
[1] Recentemente nosso Supremo Tribunal Federal firmou posição no sentido de ser possível o início do cumprimento da pena, após a condenação por um colegiado. Tal medida que supostamente visa diminuir a impunidade pode também perpetuar ilegalidades e contribuir para o aumento de prisões prematuras baseadas em decisões temerárias de nossas “cortes de justiça” que nem sempre são tão justas. Ver ADC 43 e 44 STF.

[2] Segundo a Exposição de Motivos da Lei 7.210/84.

[3] A referida situação levou o Supremo Tribunal Federal, por meio da decisão proferida na ADPF 347/DF, a declarar o ESTADO DE COISA INCONSTITUCIONAL.

[4] Segundo um relatório realizado pelas instituições de direitos humanos devidamente citado nas referencias deste trabalho.


Informações Sobre o Autor

Lucas Francisco Neto

Advogado especialista em Execução Penal e Direitos Humanos graduando em filosofia mestrando em História Social das Relações Políticas na Universidade Federal do Espírito Santo. Foi membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil seção Espírito Santo do Conselho Municipal de Políticas Sobre Drogas e do Conselho da Comunidade da Comarca de Guarapari também no Estado do Espírito Santo


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