O novo sistema de solução de controvérsias do Mercosul


I – Introdução

Em 18 de fevereiro de 2002, os presidentes dos Estados Partes do Mercosul, reunidos no palácio presidencial argentino em Olivos, firmaram o novo Protocolo de Solução de Controvérsias no Mercosul, que derroga expressamente o sistema anterior, previsto no Protocolo de Brasília.

O Protocolo de Olivos não traz alterações fundamentais na sistemática anteriormente adotada. Algumas características básicas foram mantidas: (a) a resolução das controvérsias continuará a se operar por negociação e arbitragem, inexistindo uma instância judicial supranacional; (b) os particulares continuarão dependendo dos governos nacionais para apresentarem suas demandas; (c) o sistema continua sendo provisório, e deverá ser novamente modificado quando ocorrer o processo de convergência da tarifa externa comum.

A manutenção dessas características frustra parcela considerável do meio acadêmico, que clama há muito por uma instância supranacional como condição à evolução do Mercosul. Esta posição é constantemente refutada pelos representantes governamentais, que reiteram argumentos pragmáticos a dificultar a instalação de um tribunal permanente.

O presente artigo aborda o atual estado do sistema de solução de controvérsias no Mercosul, a partir dessas duas visões contrastantes sobre a estrutura e as perspectivas para o bloco regional. Ao final, este artigo pretende demonstrar que o Protocolo de Olivos, como solução de compromisso que foi, pode permitir certo avanço ao processo de integração regional, mesmo que ainda distante do ideal de criação de um direito comunitário incipiente no Mercosul.

Para tanto: (a) a seção seguinte aborda a evolução recente do Mercosul; (b) em seguida, elabora-se uma revisão da polêmica entre “institucionalistas” e “pragmáticos”; (c) apresenta-se o sistema de solução de controvérsias do Mercosul, em sua forma atual; (d) identificam-se as principais inovações trazidas pelo Protocolo de Olivos e (e) as dúvidas procedimentais ainda remanescentes no sistema. Uma parte conclusiva apresenta uma análise genérica do sistema.

II – O estado atual do Mercosul

Mencionar as tentativas de integração da América Latina provavelmente levará o pesquisador ao período imediatamente posterior à independência nas colônias espanholas. Mais concretamente, as origens do Mercosul poderiam ser identificadas na aproximação entre Argentina e Brasil, após a consolidação democrática nesses países, e após o estancamento da ALALC e ALADI[1].

Ainda assim, o Tratado de Assunção (TA), documento constitutivo do Mercosul, parece hoje um documento programático, mais que uma descrição da realidade que se pretende construir num curto espaço de tempo. Com efeito, parece inusitado ler que, em 1991, os Estados Partes pretendiam, no exíguo espaço de quatro anos, “constituir um Mercado Comum”, que implicaria “livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, “uma tarifa externa comum e uma política comercial comum”, “a coordenação de políticas macroeconômicas e setoriais”, “o compromisso de harmonizar suas legislações”[2].

Estes objetivos ambiciosos se mostraram irrealizáveis, por motivos facilmente encontrados na história recente dos Estados Partes: instabilidade política e crises macroeconômicas cíclicas, falta de coordenação com instituições subnacionais, demanda de análise para ratificação e incorporação das normas do Mercosul, prioridades políticas internas, tempo reduzido para coordenação de esforços entre os representantes governamentais, alheamento da sociedade civil, etc.

Em 1994, a impossibilidade de constituição de um mercado comum levou ao Protocolo de Ouro Preto (POP), e ao reconhecimento da necessidade da implementação de uma união aduaneira, antes da consolidação de um mercado comum. Desde então, os atos normativos do Mercosul têm sido dedicados a eliminar o caráter imperfeito ainda existente na união aduaneira.

Por outro lado, o impulso inicial do Mercosul, materializado no aumento crescente do comércio intra-bloco entre 1991-1998, arrefeceu nos últimos anos. Um evento para explicar este arrefecimento foi a desvalorização cambial brasileira após 1998, que gerou déficits constantes na balança comercial Argentina e precipitou o fim da paridade cambial que ancorava os planos econômicos desse país, com a conseqüente crise financeira que se propagou pela região.

Os fatos seguintes pouco contribuíram para qualquer evolução do Mercosul. No plano político interno, a crítica Argentina à “Brasil-dependência” justificou medidas de proteção à indústria nacional, que geraram conflitos entre os parceiros, sendo inclusive alguns desses conflitos levados ao sistema de solução de controvérsias. No plano externo, o processo negociador da ALCA e os acordos com a União Européia não foram suficientes para harmonizar os posicionamentos externos dos Estados Partes do Mercosul.

Esta interrupção na evolução do Mercosul provocou, em 2000, a “agenda de relançamento do Mercosul”, com algumas medidas jurídicas visando a assegurar maior estabilidade ao bloco, ao mesmo tempo em que os presidentes reiteraram o compromisso político com a integração regional.

Neste cenário, uma das decisões se referia à reforma do sistema de solução de controvérsias[3], permitindo-lhe o “adensamento de juridicidade” e a solução de problemas procedimentais surgidos na prática dos casos julgados sob a égide do Protocolo de Brasília. Esta reforma aprofundou o debate, bastante vivo no meio acadêmico, sobre uma estrutura – estável e ao mesmo tempo eficiente – para a solução de controvérsias no Mercosul. Este debate será apresentado a seguir.

III – “Institucionalistas” e “pragmáticos”

Desde o início, o Mercosul enfrentou-se com o debate sobre uma estrutura desejável para o sistema de solução de controvérsias. A aspiração inicial era de um sistema permanente, que deveria ser adotado quando no final do período de transição para o mercado comum[4].

Durante o período de transição, seria aplicável o Protocolo de Brasília (PB)[5], que somente existiria até que entrasse em vigor o sistema permanente de solução de controvérsias[6].

Pode-se dizer que, após 1991, o caráter transitório do PB foi ganhando ares de crescente perpetuidade. Em primeiro lugar, porque a inexistência de litígios submetidos ao Protocolo de Brasília reforçava a posição dos que viam, num eventual sistema permanente, um dispêndio desnecessário de recursos de países em desenvolvimento. Em segundo lugar, pela oposição brasileira à instalação de um sistema permanente. Em terceiro lugar, pelas soluções exitosas alcançadas mediante negociações entre as partes, sobre as primeiras controvérsias surgidas, o que levava os representantes governamentais a louvar o caráter flexível do sistema. Nesta visão, a flexibilidade do sistema seria fundamental em momentos de crise, já que permitia alternativas menos formais para as negociações.

As motivações elencadas merecem alguns comentários, e devem ser inseridas no contexto histórico de 1991-1998. A oposição brasileira pode ser compreendida pela postura de alguns de seus negociadores, que julgavam inadmissível a igualdade formal implantada por um sistema permanente, quando contrastada com as diferenças econômicas materiais entre os Estados Partes do Mercosul. Por outro lado, atores relevantes da política interna brasileira, como membros do Supremo Tribunal Federal, questionaram eventual inconstitucionalidade de um tribunal permanente do Mercosul. Ao mesmo tempo, as indefinições quanto à consolidação da união aduaneira faziam o governo brasileiro temer compromissos definitivos, que gerassem empecilhos às demais negociações multilaterais nas quais o país também tinha interesse.

A suposta vantagem do caráter flexível do sistema, e sua capacidade de resolver controvérsias com menores seqüelas, também pode ser questionada. Por vezes, compromissos acordados fugiram à previsão jurídica, e serviram apenas como solução provisória para contendas intermináveis. Exemplos neste sentido podem ser encontrados nos setores automotivo e açucareiro, que constituem exceção nas regras liberalizantes do Mercosul, e são objeto de permanente negociação entre Argentina e Brasil. Por outro lado, a crítica acadêmica sempre foi de que a ausência de uma estrutura permanente é que gerava a ausência de litígios, e não o contrário.

Observe-se que esta última crítica nunca pôde obter comprovação empírica. A literatura sobre a matéria restringe-se, via de regra, a ressaltar a relevância que o Tribunal de Justiça teve para a consolidação das Comunidades Européias. Recorda-se, sempre, o papel estabilizador dado por um tribunal permanente: criar harmonização interpretativa, assegurar o efeito direto das normas no plano interno, garantir vinculação mais efetiva dos Estados ao processo de integração, etc.

Este posicionamento arregimenta a quase totalidade dos acadêmicos que se dedicam ao assunto. No lado oposto, os representantes governamentais aferram-se a argumentos pragmáticos, ainda presentes: custo de manutenção de um tribunal permanente, necessidade de alteração da estrutura jurídica constitucional dos Estados Partes, número ainda reduzido de casos, impossibilidade material de ouvir reclamações de particulares, além do desconhecimento da estrutura pelos judiciários nacionais.  a ser modificada

Neste embate teórico, dois fatores, muitas vezes esquecidos, deveriam ser levados em maior consideração. Em primeiro lugar, qualquer comparação com o Tribunal de Justiça europeu deve ser minimizada, em razão das diferenças substanciais na história e nos objetivos da integração regional. Afinal, quando as particularidades do Mercosul são consideradas (o diferente peso econômico entre os Estados, o caráter recente do processo, o compromisso político ainda a ser consolidado, a instabilidade econômico-política), descobre-se uma realidade muito distinta do processo enfrentado pelas Comunidades Européias, mesmo em seus primeiros anos. Neste sentido, os anseios de um tribunal judiciário, presentes em obras jurídicas, teriam de sopesar também os fatores econômicos, sociais e políticos que individualizam o Mercosul.

Em termos políticos, a adoção de um tribunal supranacional esbarra também no centralismo presidencial que macula a política externa dos quatro países do Mercosul. Conforme anotou um observador estrangeiro, a democracia por delegação dos países do Cone Sul leva a uma concentração de poder nas mãos do Executivo[7]. Esta realidade fundamenta críticas ao “déficit democrático do Mercosul”, mas também permite agilidade no processo decisório, dando encaminhamento a temas que geralmente repousam longamente nos parlamentos nacionais.

Desta forma, uma análise sócio-política apresentaria um quadro desalentador para a criação, no futuro próximo, de um tribunal supranacional no Mercosul.

Outra, entretanto, é a análise jurídica, uma vez que, se consolidado o processo de integração regional, a solução arbitral apresentará limitações para resolver conflitos mais complexos, e que estejam relacionados com os interesses dos particulares ou com a aplicação uniforme das regras jurídicas criadas pelo Mercosul.

No primeiro caso, um tribunal que permita o acesso dos particulares afetados por medidas protecionistas de outro Estado Parte garante maior continuidade à liberalização do comércio regional. Na estrutura atual do Mercosul, estas reclamações seguem a via clássica da proteção diplomática, e dependem da atuação discricionária do Estado do qual o particular é nacional. A experiência de outros processos de integração demonstra que os particulares podem ter participação ativa na liberalização do comércio regional, por meio de reclamações na defesa de seus interesses. Um exemplo interessante neste sentido é o do NAFTA, cujo Capítulo 19 permite a reclamação direta dos particulares, o que assegurou a redução das medidas de defesa comercial no âmbito daquele bloco[8].

A segunda vantagem jurídica de um tribunal supranacional se refere à aplicação harmônica das normas de integração regional. No caso europeu, isto é possível pela jurisprudência do Tribunal de Justiça, e pelo recurso de prejudicialidade, que permite que a interpretação alcance os litígios em curso perante juízes nacionais. Na ausência de um tribunal permanente, a prática de tribunais ad hoc permite o risco de interpretações divergentes da norma regional. Da mesma forma, as normas que tenham aplicação no plano interno podem ser interpretadas diferentemente pelas autoridades administrativas e judiciárias dos Estados Partes.

Para resumir esta seção, podem-se identificar argumentos válidos tanto entre os “institucionalistas” quanto entre os “pragmáticos” do Mercosul. A materialização desses argumentos, todavia, depende da correlação entre uma realidade sócio-política e um anseio jurídico. Conforme se argumentará em seguida, o Protocolo de Olivos foi, na ausência desta correlação, a solução de compromisso que se pôde alcançar no atual momento do Mercosul.

Tanto é assim que o Protocolo de Olivos repetiu a previsão de sua transitoriedade. Em consequência, asseverou a previsão originária do Tratado de Assunção de que um Sistema Permanente será um dia adotado, mas condicionou esta nova revisão à convergência da tarifa externa comum[9].

IV – Características do sistema de solução de controvérsias

Uma vez esclarecido o momento histórico em que se encontra o Mercosul e seu sistema de solução de controvérsias, deve-se apresentar suas características gerais, consolidadas a partir do Protocolo de Olivos.

No Mercosul, serão submetidas a este sistema todas as controvérsias, entre os Estados Partes, relacionadas com “a interpretação, a aplicação ou o não-cumprimento” das normas do Mercosul[10].

Para tanto, o sistema prevê as seguintes fases: (a) negociações diretas entre os Estados Partes; (b) intervenção do Grupo Mercado Comum, não obrigatória e dependente da solicitação de um Estado Parte; (c) arbitragem ad hoc, por três árbitros; (d) recurso, não obrigatório, perante um Tribunal Permanente de Revisão; (e) recurso de esclarecimento, visando a elucidar eventual ponto obscuro do laudo; (f) cumprimento do laudo pelo Estado obrigado; (g) revisão do cumprimento, a pedido do Estado beneficiado; (h) adoção de medidas compensatórias pelo Estado beneficiado, em caso de não-cumprimento do laudo; (i) recurso, pelo Estado obrigado, das medidas compensatórias aplicadas.

Observa-se que a inspiração para este procedimento foi claramente o Entendimento sobre Solução de Controvérsias da Organização Mundial do Comércio (ESC/OMC). Da mesma forma, o Protocolo de Olivos também estabeleceu prazos estritos para cada uma dessas fases, em sua maioria inferior a um mês, conforme se infere do quadro abaixo. Esses prazos são peremptórios, e devem ser contados a partir do dia seguinte ao ato a que referem, a não ser que haja outra determinação do tribunal respectivo[11].

Negociações Diretas (15 dias)

Intervenção GMC (30 dias)

Arbitragem ad hoc

– designação de árbitros nacionais (15 dias) ou designação pela SAM (2 dias)

– designação do árbitro presidente (15 dias)

– aceitação pelo árbitro presidente (3 dias)

– Laudo arbitral (60 + 30 dias)

– recurso de esclarecimento, 15 dias)

Medidas provisórias

Recurso de revisão

– recurso pelos Estados envolvidos (15 dias)

– designação do presidente (1 dia)

– contestação do recurso (15 dias)

– pronunciamento do TPR (30 + 15 dias)

– recurso de esclarecimento (15 dias)

Cumprimento do laudo

– comunicação da forma de cumprimento pelo Estado obrigado (15 dias)

– prazo de cumprimento (30 dias)

– recurso da forma de cumprimento (30 dias)

– decisão do tribunal respectivo (30 dias)

Medidas compensatórias

– informação ao Estado afetado (antecedência mínima de 15 dias anteriormente à aplicação da medida)

– recurso das medidas compensatórias (15 dias)

– decisão do tribunal respectivo (30 dias)

– cumprimento da decisão de adequação das medidas compensatórias (10 dias)

Além do procedimento, outro item a se observar é o da composição do tribunal. No caso do tribunal ad hoc, será composto por três membros, sendo dois nacionais dos Estados envolvidos na controvérsia, escolhidos numa lista de 48 nomes (12 indicados por cada Estado Parte)[12]. A lista de árbitros deverá ser preenchida também por nomes indicados para atuarem como terceiros árbitros, que poderão ser nacionais de Estados que não sejam partes do Mercosul. Atualmente, a lista de árbitros está composta fundamentalmente por juristas e professores de Direito Internacional. Quanto à lista de terceiros árbitros, abrange inclusive juristas europeus e norte-americanos[13].

Quanto ao Tribunal Permanente de Revisão, será composto por cinco árbitros, incluindo um nacional de cada Estado Parte, e que terão mandato de dois anos[14]. Da mesma forma que no ESC/OMC, os árbitros atuarão em grupos de três para revisar os laudos dos tribunais ad hoc, os quais poderão confirmar, modificar ou revogar a decisão. Entretanto, o recurso estará limitado às questões de direito e examinadas pelo tribunal ad hoc[15].

V – As inovações do Protocolo de Olivos

A criação do TPR foi a grande inovação trazida pelo Protocolo de Olivos, quando comparado com o procedimento adotado pelo Protocolo de Brasília. Esta inovação pretende claramente obter maior coerência entre as decisões adotadas pelos tribunais ad hoc que já adotaram interpretações divergentes nos casos que até agora lhes foram submetidos. Da mesma forma, embora se afirme que a decisão do TPR terá efeito de coisa julgada “com relação às partes”[16], sem adotar qualquer tipo de posição vinculante para as decisões futuras, é previsível que a jurisprudência do TPR será algo a ser considerado pelos tribunais ad hoc posteriores, a exemplo do que ocorre em relação às decisões do Órgão de Apelação da OMC.

Ainda quanto ao TPR, permite-se que os Estados envolvidos na controvérsia lhe submetam diretamente a controvérsia, eliminando a etapa prévia do tribunal ad hoc[17]. É difícil prever se esta norma se materializará em muitos casos. Sua ocorrência dependerá, obviamente, de não haver interesse de uma das partes em prolongar a decisão que pressupõe desfavorável.

Além da criação do TPR, o Protocolo de Olivos trouxe também alguns esclarecimentos quanto a questões procedimentais. Neste sentido, exige-se agora que o objeto da controvérsia seja determinado pela reclamação e resposta apresentadas perante o tribunal ad hoc; mais ainda, exige-se que os argumentos tenham sido consideradas nas etapas prévias[18].

Este texto também se inspira em norma do ESC/OMC, e que se tornou uma regra processual bastante debatida. E isto porque o objeto da controvérsia não pode ser ampliado posteriormente, restringindo-se a competência do tribunal ad hoc ao que for claramente delimitado nas alegações das partes. Mais ainda (se o TPR adotar a mesma interpretação do Órgão (ÓRGÃO) de Apelação da OMC), o objeto deve ter sido considerado desde a fase de negociações diretas. Esta interpretação, se por um lado oferece mais segurança aos Estados envolvidos, por outro realça a relevância das questões processuais e da documentação que for apresentada desde o início da controvérsia.

Outro item esclarecido pelo Protocolo de Olivos é o da competência do tribunal ad hoc, uma vez constituído, para ditar medidas que visem a impedir danos graves e irreparáveis[19]. Estas medidas provisórias serão posteriormente mantidas ou extintas pelo TPR, em sua primeira reunião[20].

Em termos de princípios processuais, aplicáveis ao procedimento, o Protocolo de Olivos reasseverou os princípios típicos da arbitragem. Desta forma, encontra-se no Protocolo uma “cláusula compromissória geral”, eliminando a necessidade de compromisso futuro para que se reconheça a jurisdição dos tribunais ad hoc e do TPR[21]. Da mesma forma, determina-se a confidencialidade do procedimento e dos documentos, com exceção dos laudos arbitrais[22]. À confidencialidade se agrega a autonomia dos árbitros, que deliberarão também de forma sigilosa, sem fundamentar dissidência[23], agindo com imparcialidade e independência, mas garantindo às partes a oportunidade de ser ouvida e apresentar seus argumentos, no que se pode identificar o princípio do devido processo legal.

Outro princípio expressamente anotado no Protocolo de Olivos é o da proporcionalidade da medida compensatória. Assim, em caso de descumprimento ou cumprimento parcial do laudo, o Estado obrigado poderá sofrer medidas retaliatórias temporárias, que visam a forçá-lo ao cumprimento do laudo. Exige-se, entretanto, que tais medidas sejam proporcionais às consequências do não-cumprimento do laudo, e preferencialmente no mesmo setor industrial afetado[24].

Uma regra nova, inserida pelo Protocolo de Olivos, é o que estabelece a possibilidade de escolher entre o sistema de solução de controvérsias do Mercosul e outro sistema eventualmente competente para decidir a controvérsia. A regra é que o Estado demandante possa escolher o foro, mas – uma vez iniciado o procedimento – não se poderá recorrer a outro foro[25].

A regra ganha relevância, quando se observa que os Estados Partes do Mercosul participam individualmente de outros tratados multilaterais em matéria comercial com sistemas próprios de solução de controvérsias, como é o caso da OMC e provavelmente será o caso da ALCA. Por isso, esta regra de prevenção do foro servirá principalmente para evitar decisões internacionais divergentes sobre a mesma matéria. Ao mesmo tempo, elimina-se a possibilidade de que a mesma controvérsia seja examinada por órgãos de solução de controvérsias distintos. Este risco não é irreal: em dois importantes litígios no Mercosul[26], houve recurso também aos órgãos da OMC.

Por outro lado, como a opção pelo foro será do Estado demandante (a não ser que haja acordo), pode-se prever que o foro internacional mais utilizado será aquele que apresentar, em cada caso específico, a base jurídica mais sólida para sustentar a reclamação. Em tese, o Mercosul deveria apresentar regras mais avançadas quanto à integração regional e ao processo de liberalização comercial. Entretanto, em algumas matérias, como é o caso de medidas antidumping, o vazio jurídico do Mercosul poderá conduzir os litigantes ao Órgão de Solução de Controvérsias da OMC, cuja interpretação mais literal das obrigações assumidas nos acordos multilaterais poderá fornecer um maior fundamento a uma reclamação nacional.

Duas outras novidades do Protocolo de Olivos podem ainda ser registradas. O Protocolo permite a criação, pelo Conselho Mercado Comum, de outros mecanismos para solucionar controvérsias sobre aspectos técnicos regulados em instrumentos de políticas comerciais comuns[27]. O Protocolo deixa à discricionariedade do Conselho Mercado Comum (CMC) as regras de funcionamento desses mecanismos, que, se vierem a existir, provavelmente assumirão a forma de comissões de especialistas, que apresentam relatórios não vinculativos sobre aspectos técnicos e específicos do processo de integração.

Outra novidade se refere à possibilidade de que o TPR emita opiniões consultivas sobre o direito da integração. Esta competência, existente também em outros tribunais internacionais, ainda será regulamentada por futura decisão do CMC.

VI – Dúvidas remanescentes

Apesar da visível preocupação em esclarecer o procedimento a ser adotado, e de incorporar regras sobre os problemas surgidos até agora, o Protocolo de Olivos ainda se omitiu com relação a alguns temas, cuja relevância crescerá com o aprofundamento da integração regional.

Assim, em momento algum o Protocolo se refere ao eventual efeito das decisões dos tribunais do Mercosul na ordem jurídica interna dos Estados. Daí, pode-se concluir que este efeito inexiste, o que pode criar problemas no que se refere: (a) aos interesses dos particulares, eventualmente beneficiados por uma decisão liberalizante do tribunal ad hoc ou do TPR; (b) à interpretação uniforme das normas do Mercosul pelos juízes nacionais, que eventualmente venham a aplicá-las em litígios internos.

Pode-se refutar a relevância desses problemas, argumentando-se que os litígios do Mercosul se referem a atos estatais, com poucas repercussões na ordem interna, e que o TPR dificilmente examinará uma norma com efeitos para os particulares, como, v.g., o Acordo sobre Arbitragem Comercial do Mercosul. Esta refutação é parcialmente verdadeira. Em primeiro lugar, porque a competência consultiva do TPR poderá permitir que opine inclusive sobre a interpretação de normas do Mercosul que geram efeitos para os particulares. Em segundo lugar, porque mesmo os atos estatais poderão engendrar demandas de particulares afetados perante os judiciários nacionais – em forma de amparos ou de reparação de danos, por exemplo. E um questionamento inevitável, perante o juiz nacional, será quanto ao valor jurídico da decisão (do TPR ou do tribunal ad hoc) que tenha julgado a mesma matéria.

Outra dúvida remanescente se refere ao direito aplicável para a solução da controvérsia. O Protocolo de Olivos, repetindo artigo do Protocolo de Brasília, determina que o TPR e os tribunais ad hoc decidirão de acordo com os tratados, protocolos, decisões do CMC, resoluções do GMC, diretrizes da CCM, “bem como nos princípios e disposições de Direito Internacional aplicáveis à matéria”[28].

O questionamento aqui se refere a esta última expressão. Uma interpretação liberal levaria à conclusão de que o tribunal poderia aplicar qualquer tratado internacional que vincule os Estados Partes do Mercosul, e que estejam envolvidos no litígio. Mas, e se houver eventual conflito entre as normas do Mercosul e as normas do outro tratado que se reputar também aplicável? Esta possibilidade se torna concreta, quando se recordam as obrigações assumidas pelos Estados do Mercosul no âmbito da OMC, da ALADI e possivelmente da ALCA.

Uma resposta seria recorrer às metanormas estipuladas pela Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (desconsiderando o fato de que nem todos os Estados do Mercosul ratificaram a Convenção de Viena). Neste caso, deve-se admitir a possibilidade de que normas do Mercosul não sejam aplicadas, em algumas situações específicas.

Outro problema nesta matéria é quanto à própria interpretação de normas alheias ao Mercosul, invocadas pelos tribunais ad hoc. De fato, já houve casos em que os tribunais arbitrais concluíram pela aplicação de normas da OMC, mas interpretaram essas normas de forma distinta à adotada pelo Órgão de Solução de Controvérsias da OMC.

Por fim, uma dúvida remanescente se refere à desistência ou acordo entre os Estados Partes envolvidos na controvérsia. Pelo Protocolo de Olivos, a desistência ou acordo levará à extinção da controvérsia[29]. O Protocolo, entretanto, não esclarece qual será o efeito jurídico deste acordo sobre os Estados envolvidos, nem obsta a que se demande futuramente sobre o mesmo tema. Menos ainda, o Protocolo não estabelece uma sistemática de avaliação, pelos órgãos do Mercosul, sobre a compatibilidade entre o acordo alcançado e as normas de integração. Esta omissão pode permitir maior flexibilidade para os Estados litigantes, mas desfavorece o comprometimento com as normas regionais.

Por fim, o Protocolo de Olivos não criou novidades quanto ao acesso de particulares, que continuarão a depender da Seção Nacional do Mercosul, no Estado onde tenham a sede de seus negócios, para apresentar reclamações[30]. Segundo o Protocolo de Olivos, a Seção Nacional “deverá entabular consultas” com o Estado reclamado, se forem apresentados elementos que permitam determinar a veracidade da violação e a existência ou ameaça de um prejuízo. Observe-se que o Protocolo de Brasília afirmava que a Seção Nacional “poderá entabular contatos diretos”[31]. Significa isto que, pelo Protocolo de Olivos, assegura-se aos particulares o direito de ter sua reclamação examinada?

Uma tal interpretação atenderia reclamos da comunidade empresarial, que por vezes assiste a seus interesses serem arquivados, em razão de imperativos políticos. Mas esta interpretação, ainda que viável, provavelmente contrastará com a praxe diplomática dos Estados do Mercosul.

VII – Conclusão

Esta breve análise do Protocolo de Olivos demonstra que o novo sistema de solução de controvérsias do Mercosul não preenche todas as expectativas, no que se refere à estabilidade do sistema, mas constitui avanço, sob o prisma da clareza das regras procedimentais.

A maior inovação foi sem dúvidas a introdução do TPR. Esta inovação foi claramente inspirada pela sistemática adotada pelo ESC/OMC, cujo Órgão de Apelação serve como instância uniformizadora das regras multilaterais. Como na OMC, pode-se prever que no Mercosul também haverá constantes recursos das decisões dos árbitros de primeira instância. Contudo, a maior delonga para solucionar o litígio será compensada pela maior segurança na harmonização interpretativa das regras do Mercosul.

Outras inovações do Protocolo de Olivos destinam-se fundamentalmente a esclarecer questões processuais levantadas nos últimos litígios. Assim, permite-se expressamente que o Estado demandante escolha o foro internacional para decidir o litígio, se puder se submetido a mais de um. Isto evitará duplicidade de decisões, como ocorreu nas controvérsias sobre têxteis e frangos, envolvendo Brasil e Argentina. Da mesma forma, o Protocolo de Olivos assevera a obrigação, para o Estado perdedor da disputa, em cumprir o laudo arbitral, mesmo que venha a sofrer medidas compensatórias como forma de sanção.

Em linhas gerais, pode-se dizer que o Protocolo é um resultado razoável para uma solução de compromisso. Se, por um lado, frustra a expectativa daqueles que advogam um sistema permanente para o Mercosul, por outro estipula regras processuais mais claras, e que ganham relevância no momento em que a estabilidade do bloco torna-se fundamental para elaborar uma estratégia de negociação frente à ALCA.

Notas:
[1] Para um histórico do Mercosul, veja-se ALMEIDA, Paulo Roberto de. Mercosul: fundamentos e perspectivas. São Paulo: LTr, 1998.
[2] TA, art. 1o.
[3] CMC/Dec 25/2000,
[4] TA, Anexo III, par. 3.
[5] Decisão CMC 1/91.
[6] PB, art. 34.
[7] LOPEZ, David (1997). Dispute resolution under MERCOSUR from 1991 to 1996. NAFTA Law and Business Review of the Americas, v. III, n. 2, Spring 1997, p. 3-32.
[8] Neste sentido, já se demonstrou como a grande maioria das reclamações no Capítulo 19 do NAFTA (88,7%) provieram de reclamações de particulares. Cf. BARRAL, Welber (1998). Solução de controvérsias no NAFTA. In: MERCADANTE, Araminta, MAGALHÃES, José Carlos de. Solução e prevenção de litígios internacionais. São Paulo: Necin/Capes. p. 241-264.
[9] PO, art. 53.
[10] PO, art. 1. São normas do Mercosul as decisões do Conselho Mercado Comum, as resoluções do Grupo Mercado Comum e as diretrizes da Comissão de Comércio do Mercosul.
[11] PO, art. 11.
[12] PO, art. 11.
[13] A atual lista de árbitros do Mercosul está disponível em www.mercosur.org.uy.
[14] PO, art. 18. O quinto árbitro, nacional de um Estado Parte, terá mandato de três anos, e será escolhido por acordo ou por sorteio da SAM.
[15] PO, art. 17.
[16] PO, art. 23.2.
[17] PO, art. 23.
[18] PO, art. 14.
[19] PO, art. 15.
[20] Infelizmente, a tradução para o português adotou o termo “medida provisória”, que tem outro sentido no direito constitucional brasileiro. No Protocolo de Brasília adotava-se, mais corretamente, a expressão “medidas provisionais” (PB, art. 18).
[21] PO, art. 33.
[22] PO, art. 46.
[23] PO, art. 25.
[24] Po, arts. 31 e 32.
[25] PO, art. 1. No NAFTA, há uma regra bastante similar: “Article 2005.1: […] disputes regarding any matter arising under both this Agreement and the General Agreement on Tariffs and Trade, any agreement negotiated thereunder, or any successor agreement (GATT), may be settled in either forum at the discretion of the complaining Party”.
[26] Reclamação do Brasil contra barreiras argentinas aos têxteis e reclamação do Brasil sobre medidas antidumping ao frango.
[27] PO, art. 2.
[28] PO, art. 34.
[29] PO, art. 45.
[30] PO, art. 40.
[31] PB, art. 27.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Welber Barral

 

Professor de Direito Internacional Econômico (UFSC), Membro da lista de árbitros do Mercosul

 


 

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