Introdução
A Emenda nº 20, de 16.12.98, a qual acrescentou o parágrafo terceiro ao art. 114, da Constituição da República, atribuiu a competência aos juízes e Tribunais do Trabalho para executar, de ofício, as contribuições previdenciárias “decorrentes” das sentenças por eles emitidas.
A par de considerações metajurídicas a respeito dos fundamentos históricos ou do objetivo político-econômico do legislador, a concretização da nova norma exige algumas reflexões sobre a sua compatibilidade com a ordem jurídica brasileira, bem assim com a hierarquia axiológica estabelecida na própria Constituição.
A seguir, sem nenhuma pretensão de esgotar o assunto, teceremos breves considerações a respeito da aplicabilidade da norma contida no parágrafo 3º, do art. 114, no que se refere ao princípio do juiz natural (art. 5º, incs. XXXVII e LIII, da CF).
A “emenda constitucional inconstitucional”
Como é sabido, o ordenamento jurídico constitui uma unidade, à qual corresponde um sistema axiológico ou teleológico, no sentido de realizar valores e escopos.1
A Constituição, por sua vez, traduz o liame, o vínculo dessa ordenação normativa, outorgando-lhe unidade e conteúdo sistemático.
É certo, também, que o princípio de unidade da ordem jurídica aplica-se à própria Constituição, uma vez que esta “não é um conjunto de normas justapostas, mas um sistema normativo fundado em determinadas idéias que configuram um núcleo irredutível, condicionante da inteligência de qualquer de suas partes. O princípio da unidade é uma especificação da interpretação sistemática, e impõe ao intérprete o dever de harmonizar as tensões e contradições entre normas.”2
Portanto, a interpretação, sob o prisma da unitariedade, deve ser no sentido de “reconhecer as contradições – reais ou imaginárias – que existam entre normas constitucionais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas.”3
Em outras palavras, visto que a Constituição é um todo coerente, não se deve negar completamente eficácia a uma de suas normas, em caso de contradição ou oposição entre os princípios que elas veiculam, mas, sim, obter resultados que busquem conciliá-las ou harmonizá-las.
Tais considerações decorrem da premissa segundo a qual não existe hierarquia entre as normas constitucionais, vale dizer, sendo a hierarquia, em sentido jurídico, a fundamentação de validade de uma norma em outra de grau superior (norma fundante)4, não é possível estabelecer graduação de prevalência entre duas normas, quando ambas provêem do mesmo grau.5
Contudo, não pode passar desapercebido do intérprete que a Constituição, em mais de um passo, indica que determinadas normas instituem valores e princípios preponderantes, os quais devem orientar não apenas o legislador ordinário, como, também, as emendas da própria Carta.
Assim, “para a boa interpretação constitucional é preciso verificar, no interior do sistema, quais as normas que foram prestigiadas pelo legislador constituinte ao ponto de convertê-las em princípios regentes desse sistema de valoração. Impende examinar como o constituinte posicionou determinados preceitos constitucionais. Alcançada, exegeticamente, essa valoração é que teremos princípios. Estes, como assinala Celso Antônio Bandeira de Mello, são mais do que normas, servindo como vetores para soluções interpretativas.”6
Tratam-se, pois, de princípios fundamentais do ordenamento jurídico, reunidos nas denominadas “cláusulas pétreas”, a saber, a forma federativa, o voto direto, secreto, universal e periódico, bem como os direitos e as garantias individuais (art. 60, § 4º, da CF).
Bem por isso, é inegável a existência na ordem constitucional de uma hierarquia axiológica, a qual importa no “resultado da ordenação dos valores constitucionais, a ser utilizada sempre que se constatarem tensões que envolvam duas regras entre si, uma regra e um princípio ou dois princípios.”7
Por conseguinte, colidindo a norma instituída pela emenda, direta ou indiretamente, como veremos adiante, com algum dos princípios estabelecidos na Constituição, notadamente aqueles que constituem as “cláusulas pétreas”, verificar-se-á a sua inconstitucionalidade material.8
Recentemente, o Supremo Tribunal Federal decidiu que “uma emenda constitucional, emanada, portanto, de constituinte derivada, incidindo em violação à Constituição originária, pode ser declarada inconstitucional.”9
Neste passo, cabe observar que a inconstitucionalidade pode ocorrer não apenas quando a emenda ofende diretamente à norma constitucional originária (v.g. “Fica revogado o artigo tal”), mas, também, quando importa em modificação indireta que, por exemplo, restrinja direitos ou garantias individuais. Ou seja, basta que a nova norma seja “tendente”, mesmo que de modo indireto, a coarctar o exercício dos direitos e garantias individuais, da forma federativa ou do direito de voto, para caracterizar a inconstitucionalidade (“emendas tendentes“ : art.60, § 4º, da CF).10
O princípio do juiz natural e a garantia de imparcialidade
O princípio do juiz natural, entre nós estabelecido no art. 5º, incs. XXXVII e LIII, da Constituição, tem como conteúdo não apenas a prévia individualização do órgão investido de poder jurisdicional que decidirá a causa (vedação aos tribunais de exceção), mas, também, a garantia de justiça material, isto é, a independência e a imparcialidade dos juízes.11
Sendo assim, a garantia do juiz natural está imediatamente relacionada com a imparcialidade do órgão julgador.12
Aliás, o art.10, da Declaração dos Direitos do Homem da Assembléia Geral das Nações Unidas (1948), é específico : “Toda pessoa tem direito, em condições de plena igualdade, de ser ouvida publicamente e com justiça por um tribunal independente e imparcial, para a determinação de seus direitos e obrigações ou para exame de qualquer acusação contra ela em matéria penal.”
Por outro lado, dentre o conjunto de instrumentos utilizados para assegurar a imparcialidade dos juízes13, também se insere a proibição ao exercício da tutela jurisdicional sem que exista provocação da parte ou interessado (demanda), segundo o princípio já contido nas velhas parêmias “ne procedat judex ex officio” ou “nemo judex sine autore”.
Ou seja, não se concebe no Estado de Direito que o juiz revista, concomitantemente, a qualidade de parte adversa do demandado (sujeito parcial) e julgador (sujeito imparcial), até porque não há jurisdição sem demanda.
Busca-se, assim, obstar que o juiz julgue antes de decidir.14
A inconstitucionalidade da expressão “de ofício” contida no parágrafo 3º, do art.114
Colocadas essas premissas, é mister inferir que a locução “de ofício” contida no parágrafo 3º, do art. 114, da Carta de 1988, revela-se manifestamente inconstitucional e contrária às normas que garantem às partes a decisão por um juiz imparcial (art.5º, incs. XXXVII e LIII).
De efeito, cometer aos juízes e Tribunais do Trabalho a iniciativa da demanda de execução para pagamento das contribuições previdenciárias, transformando-os em sujeitos parciais da relação processual, importa em afronta ao princípio do juiz natural, que foi elevado a “cláusula pétrea” na Carta de 1988 , e, por conseguinte, não é passível de emenda (art. 60, § 4º).
Impende lembrar, também, que em nosso ordenamento jurídico a atuação oficiosa dos magistrados é admitida apenas nos casos em que há atividade judicial, mas não jurisdicional15, isto é, quando agem na administração pública de interesses privados (“jurisdição voluntária”).
Entrementes, a execução forçada, como é pacífico na atualidade, insere-se na atividade jurisdicional do Estado, não constituindo, portanto, mera atividade administrativa.16
Deste modo, “sendo tipicamente jurisdicional a atividade desenvolvida pelo juiz no processo de execução, é natural que ela se reja pelos princípios gerais disciplinadores do exercício da jurisdição, entre os quais o da inércia do Poder Judiciário.”17
Demais disto, mesmo na execução trabalhista a atuação “de ofício” do juiz resulta de processo regularmente instaurado por demanda do autor (art.840, da CLT), o qual objetiva, em última análise, além da emissão da sentença de mérito, um provimento satisfativo, naquilo que para alguns constitui a categoria das “ações executivas lato sensu”.
Sob este prisma, a iniciativa da execução trabalhista pelo juiz, conforme previsto no art. 878, da CLT, relaciona-se, mais propriamente, com o princípio do impulso oficial, e não com a legitimidade para promovê-la, sem que exista demanda.
A título de conclusão lembramos as palavras de Mauro Cappelletti : “Constitucionalismo moderno, Carta de Direitos Nacional e transnacional, e proteção judicial – interna e internacional – de tais direitos fundamentais contra abusos de autoridades públicas, podem bem ser apenas outro aspecto da Utopia de nossa época. Se ele nos encaminhará, como sempre esperamos, para um mundo melhor, um mundo no qual indivíduos, grupos e pessoas possam viver em paz e em compreensão mútua, sem guerra e exploração, só o futuro poderá dizê-lo.”18
Notas.
1. Claus Wilhelm Canaris, “Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na Ciência do Direito”, pág. 66 e segs., trad. A. Menezes Cordeiro, Fundação Calouste Gulbenkian, 1996.
2. Luís Roberto Barroso, “Interpretação e Aplicação da Constituição”, pág. 182, Ed. Saraiva, 1996.
3. Idem, pág. 185.
4. José Afonso da Silva, “Aplicabilidade das Normas Constitucionais”, pág. 213, Ed. RT, 3ª ed., 1998.
5. Luís Roberto Barroso, op. cit., pág. 187.
6. Michel Temer, “Elementos de Direito Constitucional”, pág. 22, Ed. Malheiros, 14ª ed., 1998.
7. Luís Roberto Barroso, op. loc. Cit.
8. José Afonso da Silva, op. cit., pág. 216.
9. ADI – 939/DF, Tribunal Pleno, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 15.12.93, DOU 18.03.94, pág. 5165
10. José Afonso da Silva, “Curso de Direito Constitucional Positivo”, pág. 59, Ed. RT, 7ª ed., 1991.
11. Nelson Nery Junior, “Princípios do Processo Civil na Constituição Federal”, pág. 64, Ed. RT, 2ª ed., 1995.
12. José Frederico Marques, “Instituições de Direito Processual Civil”, vol. I, pág. 181, Ed. Forense, 1ª ed., 1958.
13. Art. 95, da CF : vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, vedação ao exercício de atividade político-partidária e de receber custas ou participação em processo etc.
14. Fernando da Costa Tourinho Filho, “Processo Penal”, vol.1º, pág. 422, Ed. Saraiva, 10ª ed., 1987.
15. Arruda Alvim, “Tratado de Direito Processual Civil”, vol. 1, pág. 281, Ed. RT, 2ª ed., 1990.
16. Cândido Rangel Dinamarco, “Execução Civil”, pág. 190, Ed. Malheiros, 5ª ed., 1997.
17. Idem, pág. 345.
18. “O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado”, pág. 21, trad. Aroldo Plínio Gonçalves, Safe Editor, 1984.
Juiz do Trabalho do TRT/PE
Professor Substituto de Direito Processual Civil na Faculdade de Direito do Recife/PE
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