A hierarquia da lei complementar

Propõe-se, no presente estudo, a abordagem de tema que capta intensamente a atenção dos doutrinadores pátrios: a existência de hierarquia entre lei complementar e legislação extravagante. Os estudos desenvolvidos sobre o tema conduzem a conclusões divergentes. Respeitáveis estudiosos do Direito utilizam-se de louváveis supedâneos técnicos no patrocínio de seus conflitantes entendimentos.

Diante de tal fato, a questão reveste-se de maior complexidade; na medida que existem argumentos relevantes a corroborar, tanto com o posicionamento a favor da observância de hierarquia entre as aludidas espécies legislativas, quanto com o pensamento em contrário. Não se limitará, todavia, nesta análise, ao elenco das diversas teses, desenvolvidas na doutrina nacional. Posição esta que, evidentemente, implicará na recepção de determinada linha de raciocínio.

O processo de inserção de lei complementar no ordenamento jurídico brasileiro distingue-se, daquele referente à legislação ordinária, somente, no que cerne ao quorum exigido para a aprovação do projeto correlato, nas duas casas legislativas, que compõem o Congresso Nacional. Para a anuência de norma extravagante impõe-se a maioria simples, a qual se perfaz com número de votos correspondente a qualquer fração superior à metade dos presentes à sessão. A aceitação de proposta de lei complementar, contudo, subordina-se à aquiescência da maioria absoluta dos membros, a qual se obtém com a manifestação positiva de mais da metade dos componentes de cada plenário.

Ao preceituar que determinada matéria dever ser tratada em lei complementar, o Constituinte, em constatando previamente a relevância da questão, impõe maior grau de dificuldade para a aprovação. Com tal medida, tem-se o escopo de se intensificar o comprometimento, o envolvimento e a participação dos congressistas, no processo de discussão e aprovação dos documentos legislativos, dos quais emanem intensas ressonâncias na ordem social, política ou econômica.

Demonstra-se oportuna, no presente estágio da análise, a elaboração de considerações acerca de outra celeuma, que enseja conflitos doutrinários. Em vários trechos do texto constitucional, utiliza-se o termo “lei”, desprovido de qualquer qualificação. Tal fato para juristas, como Paulo de Barros Carvalho1, implicaria na possibilidade de que, nos casos em que a “grandeza do tema” assim exigisse, o legislador poderia tratar a questão, através de lei complementar.  A estipulação das questões que suscitam a formulação de lei complementar, contudo, resulta de uma avaliação axiológica, por parte do legislador constituinte, conforme já foi frisado. Coube a este a tarefa de prever, no texto do diploma legal máximo, os temas que, em face da importância dos mesmos para o ordenamento jurídico, seriam postulados, por meio de lei complementar. Não se confere ao legislador ordinário, nem ao intérprete da norma, o poder de ampliar a enumeração exaustiva dos casos que ensejam lei complementar, por meio de nova análise valorativa da matéria a ser regulamentada. Caso se entenda que determinado tema deve ser tratado em lei complementar e isso não se encontra previsto na Carta Magna, existe o recurso à emenda constitucional. Hipótese esta, cuja execução não se julga adequada, diante do já extenso número de emendas e da patente desproporcionalidade, na situação em estudo, entre os esforços necessários para a alteração do texto constitucional e o resultado prático decorrente.

Há de se observar, ainda, que no exercício da atividade legislativa, o agente competente, ao traçar os ditames legais norteadores de determinada matéria, usualmente, incide sobre questões que não são próprias da temática principal. Em se verificando hipóteses em que matérias diversas das previstas na Constituição são abordadas no conteúdo da lei complementar, os preceitos correlatos devem ser considerados como norma ordinária. Em decorrência disso, estes dispositivos revogam os preceitos da lei anterior, naquilo que esta disponha de forma diversa daquela. Além disso, os ditames da lei complementar podem, no caso em tela, ser revogados por norma ordinária superveniente.

Pode-se extrair do acima exposto que a caracterização de lei complementar vincula-se às imperativas adequações de forma e de conteúdo. Na falta de um desses pressupostos não há de se considerar determinado instrumento legal como lei complementar.

Com base em tais assertivas, pode-se conduzir à conclusão do saudoso doutrinador Geraldo Ataliba, o qual assevera, em sua obra “Lei Complementar na Constituição”, que “a lei complementar fora de seu campo específico –que é aquele expressamente estabelecido pelo constituinte– nada mais é que lei ordinária.”2.

Ao citar o ensinamento acima exposto, em artigo de sua autoria, intitulado “Posição Hierárquica da Lei Complementar”, o mestre Hugo de Brito Machado manifestou sua absoluta rejeição aos mesmos. Segundo este ilustre doutrinador, este pensamento “presta-se para desprestigiar a lei complementar, reduzindo-lhe o âmbito de sua supremacia relativamente à lei ordinária, e compromete a segurança jurídica, na medida em que torna questionável, em muitos casos a superioridade hierárquica da nova espécie normativa.”3.

Ousa-se discordar das palavras deste eminente jurista. A princípio, há de se contestar a pretensa superioridade da lei complementar, em face da legislação extravagante. Adita-se que eminentes estudiosos do Direito, como Ives Gandra da Silva Martins e Raul Machado Horta, coadunam-se à corrente, defendida por Hugo de Brito Machado. Contrariando os ensinamentos destes renomados operadores do Direito, na presente exposição, entende-se que para se estabelecer gradação hierárquica entre modalidades de instrumento legal, faz-se imprescindível a inserção, na universalidade de preceitos da norma proeminente, das diretrizes que conferem validade à espécie normativa subjugada.

Com o escopo de conferir contornos sólidos, acerca dos requisitos necessários para a caracterização de desnível hierárquico, compilar-se-á a palavra do jurista Celso Ribeiro Bastos, sobre a questão. Tal estudioso do Direito ressalta que “na hierarquia o ente hierarquizado extraí a sua existência do ser hierarquizante, (…) a espécie inferior só encontra validade nos limites traçados pelo superior.”4. Encontra-se o patrocínio de tese uníssona à ora explanada, na respeitável obra doutrinária de Michael Temer; o qual afirma que “hierarquia, para o Direito, é a circunstância de uma norma encontrar sua nascente, sua fonte geradora, seu ser, seu engate lógico, seu fundamento de validade, numa norma superior.”5. Com supedâneo em tais ensinamentos, verifica-se a inexistência de hierarquia entre lei ordinária e complementar. Obtém-se tal conclusão ao se considerar que tratam-se, ambas, de espécie normativas, cujos contornos essenciais são ditados na Constituição; sendo que, não se insere no conteúdo de nenhuma das mesmas o fundamento de validade da outra.

Ressalta-se, que são expressamente indicados na Constituição, os temas a serem postulados, por meio de lei complementar. Tal conjunto de matérias não pode ser objeto de lei extravagante, sob pena de se recair em inconstitucionalidade. No caso de invasão do campo destinado à legislação ordinária, por meio da edição de lei complementar, conforme já exposto, esta é tratada como norma extravagante. Em se assimilando tais assertivas, os campos de atuação de tais modalidades normativas demonstram-se perfeitamente distintos. Constatação esta que torna inviável suposto conflito entre tais espécies normativas e exaure o interesse pragmático nos estudos sobre a gradação hierárquica entre lei ordinária e complementar.

Torna-se imperioso enfatizar, por fim, que a linha de raciocínio defendida no presente estudo não representa, em absoluto, ameaça à segurança jurídica. Ao contrário, ao se defender o respeito ao campo destinado na Carta Magna, tutela-se o imperioso respeito ao campo de atuação reservado à lei complementar no texto constitucional, base de sustentação de todo o ordenamento jurídico pátrio.

Notas

1. CARVALHO, Paulo de Barros: Curso de Direito Tributário. 7ª edição, São Paulo: Saraiva, 1995, p.136.

2. ATALIBA,Geraldo: Lei Complementar na Constituição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1971; p. 36.

3.MACHADO, Hugo de Brito. “Posição Hierárquica da Lei Complementar”. Revista Panorama da Justiça. Ano 4, nº 23. São Paulo, 2000, p. 20.

4. BASTOS, Celso Ribeiro: A inexistência de Hierarquia entre Lei Complementar e as Leis Ordinárias. Cadernos de Direito Tributário e Finanças Públicas. São Paulo: RT, vol. 26/19-20.

5. TEMER, Michel: Elementos de Direito Constitucional. 16ª edição, São Paulo: Malheiros Editores, 2000; p. 146

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Marco Antonio Cardoso de Souza

 

Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Piauí

 


 

Equipe Âmbito Jurídico

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