Como o aplicador do direito pensa: uma perspectiva sobre a atuação do advogado público

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Resumo: Um enfoque sobre hermenêutica jurídico especialmente centrado na influência dos vieses sobre a atuação do advogado público.

Palavras chave: Hermenêutica jurídica. Aplicação do Direito. Advocacia pública.

Introdução

Refletindo acerca do introito do presente trabalho não se pode deixar de lado o debate acerca das questões que envolvem o simples ato de pensar. É o começo de todo trabalho humano; pensar envolve, dentre ouras ações, planejar, detalhar, prever e mensurar riscos. Toda ação, profissional ou não, concretiza-se através do pensar, que externa a própria razão. Não é possível deixar de imaginar como essas constatações afetam a vida do ser humano. Que ações são realmente pensadas ou refletem mera repetição de outras já testadas, sem qualquer atividade crítica? Raciocinar dá trabalho. Envolve, inúmeras vezes, atividade criativa na qual o agente sente-se desconfortável. Vê-se obrigado a mensurar questões, hipóteses e argumentos verdadeiramente fora de sua álea de ações automatizadas, que irão demandar esforço fora do contexto comum.

2 A advocacia pública e a aplicação do Direito

Em fato, a natureza humana é predominantemente e em algum aspecto estúpida, aqui entendida a estupidez em seu sentido técnico-comportamental, que deixa o indivíduo ao largo do processo criativo, demente e inconsciente de sua incapacidade de criticar e contribuir para o avanço do conhecimento, praticando, muita vez, ações impensadas que representam decréscimo para o status social e técnico. Pitkin[1] referiu que:

“Pode-se fàcilmente provar que a estupidez é o supremo Mal Social. Três fatores se combinam para estabelece-la como tal. Primeiro, e antes de qualquer coisa, os indivíduos estúpidos são legião. Em segundo lugar, a maior parte do poder, no comércio nas finanças, na diplomacia e na política, está nas mãos de indivíduos mais ou menos estúpidos. Finalmente, altas habilidades frequentemente estão ligadas a séria estupidez, de tal modo que as habilidades brilham ante o mundo, enquanto os traços de estupidez se escondem em sombras profundas, só discernidas pelos íntimos ou pelo olhar escrutador dos ‘reporters’”.

 A obra do filósofo e psicólogo estadunidense, traduzida para quinze idiomas, faz chamar a atenção para um fato simples da vida cotidiana: o ser humano pensa quando é absolutamente necessário e mesmo aqueles dotados de habilidades fora do comum guardam em seu interior algum nível de estupidez que os coloca na vala comum do não pensar e os faz deixar de interagir com o senso crítico, voltando o foco para ações automáticas e pouco ou nada planejadas.

 Todavia, o pensar é pressuposto à atividade do aplicador da lei, especialmente quando a subsunção da hipótese legal ao caso concreto implica em esforço hermenêutico além do que se considera trivial. Questões diversas são postas de forma a impingir um elucubrar complexo e repleto de possibilidades distintas que levam a caminhos diversos e consequências sequer supostas pelos criadores do texto legal aplicável.

No ápice da indeterminação legislativa encontram-se os princípios, aqui entendidos como vetores de aplicação da lei, destinados a possibilitar a integração do ordenamento jurídico e a supressão de lacunas, mas hospedeiros de toda sorte de intenções, nem sempre acordes com o sentido comum de justiça. Sua utilidade como meio de alcançar inúmeros objetivos que não somente o bem estar social vem sendo muitas vezes destacada[2]:

“Criou-se certo hábito, sobretudo entre órgãos de controle da Administração Pública, de chamar de ‘princípio’ à própria licitação, isso para legitimar uma interpretação redutora de todas as regras que autorizam a contratação sem licitação. Nesse argumento, ‘princípio’ tem claro sentido de ‘norma principal’. É um exemplo poderoso do jogo de interesses que pode estar por trás da identificação de princípios. Órgãos de controle tiram seu poder e influência do valor que se às exigências que se caiba controlar; é compreensível que, para crescerem institucionalmente, eles procurem ampliar sempre mais esse valor. Pregar o caráter principiológico da licitação é retórica útil a um projeto e poder. Mas é muito difícil sustentar racionalmente a ideia de que licitar é melhor, mais importante ou mais adequado que não licitar; são apenas dois modos diversos de contratar, necessários ou úteis em situações diferentes – donde a impertinência de orientar a interpretação por um critério de preferência em favor de um deles”.

Verifica-se, portanto, que o aplicador depara-se com dois problemas no momento de interpretar e dar significado concreto à norma: a) desenvolver a atividade cognitiva; e b) lidar com a indeterminação dos conceitos. Esses dois parâmetros, de difícil enfretamento, podem ser analisados à vista dos desvios cognitivos que influenciam o hermeneuta em sua atividade.

Freitas[3] destaca que:

“Os desvios cognitivos estão presentes em toda atividade cerebral, sem que a interpretação jurídica represente exceção, por maior que se queira destinar para os comandos externos que determinam a imparcialidade. É o que acontece com a heurística do afeto, consoante a qual as aversões e preferências, ao sabor e saltos infundados, culminam em julgamentos distorcidos. Daí a relevância de arrolar os principais vieses (biases) que comprometem a isenção e o balanceamento da interpretação jurídica, selecionados entre os mais frequentes”.

 Os vieses interferem no julgamento do aplicador, exercendo grande poder sobre o processo de tomada de decisões. São de diversas naturezas e influenciam de forma diferenciada, entre eles destacam-se[4]: a) o viés da confirmação; b) o viés da falsa coerência; c) o viés da aversão à perda; d) o viés dos status quo; e) o viés do enquadramento; f) o viés do otimismo excessivo; e g) o viés do presente.

 O estudo desses vieses demandaria um trabalho inteiro ocupado no afã de explicar suas influências no processo de tomada de decisão. Todavia, vale-se do presente escrito para compreender sua interferência na ótica estrita do advogado público, com especial destaque o viés do otimismo excessivo, que parece exercer especial poder sobre aqueles que devem dizer o direito no âmago interno da Administração Pública e fixam o entendimento sobre o alcance de diversas normas, tendo inclusive a competência de dispor sobre o real alcance das decisões judiciais a serem executadas.

Por qual motivo os membros da advocacia pública estariam enviesados pelo otimismo excessivo de forma que isso venha a interferir sobre suas decisões? A questão é de simples reposta: há um consenso de que os procedimentos internos adotados pela administração estão revestidos de presunção e correto tratamento legal e técnico, o que, muitas vezes, dá ao parecerista a sensação de perfeita adequação do processos às normas vigentes.

 Pode, à primeira vista, parecer um argumento ingênuo, até mesmo pueril, haja vista que é obrigação do advogado público verificar se o desiderato colimado do processo que se apresenta está de acordo comas prescrições legais[5]. Todavia, dois dispositivos normativos[6], com especial enfoque para a Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União (AGU), embasam essa teoria e chamam a atenção para os equívocos que podem e são cometido em nome de uma suposta “esperança” e que tudo está certo.

Conclusão

Veja-se que a restritividade à manifestação não está expressa na norma, mas decorre de interpretação do dispositivo pela própria instituição, de forma coletiva e orquestrada, que retira de si a responsabilidade pela análise de questões de “ordem técnica, financeira ou orçamentária”. Seria uma “fraude inocente”? Gailbraith[7] refere de forma muito útil:

“Ignorando a realidade, a empresa moderna condena a palavra ‘burocracia’. É coisa do governo. A administração empresarial, termo que se costuma tomar como referência, tem um tom ativista. Os membros da estrutura empresarial podem ser desnecessários, ineptos, egoístas, mas não sã burocratas. Em organizações governamentais decisões coletivas, ações demoradas e mens competentes são normais; é a burocracia. Mas não na indústria privada. Mais uma manifestação de fraude inocente”.

A referência ao economista estadunidense há que ser entendida a contrário senso, posto que o texto trata da fraude conceitual de que o setor público é burocrata e ineficiente enquanto que o privado pode padecer de outras mazelas, mas dessas não.

 A fraude aqui cometida e que dá guarida ao viés do otimismo excessivo é que o advogado público não necessita adentrar em temas de ordem técnica, financeira e orçamentária. Ora, na Administração Pública tudo envolve, em maior ou menor medida, um desses assuntos, já que não há discussão exclusivamente jurídica, do contrário estar-se-ia discutindo lei em tese.

 A disseminação dessa “fraude inocente” tem por finalidade enviesar o parecerista no sentido de que está “tudo certo”, que o único assunto que ele deve se preocupar é o jurídico. E mais, se se adentra no mérito técnico está-se chamando para si a responsabilidade por eventuais “enganos” ocorridos no curso da análise do processo.

 Para desfazer o engodo no qual é induzido o advogado público deverá estar atento para a sua real função de “fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e dos demais atos normativos a ser uniformemente seguida em suas áreas de atuação”, incluindo aspectos não estritamente jurídicos, mas que sempre estarão imbricados com o direito.

Referências
FREITAS, Juarez. A hermenêutica jurídica e a ciência do cérebro: como lidar com automatismos mentais. In: Revista da AJURIS, vol. 40, no 130, junho de 2013. pp. 223-244.
GALBRAITH, John Kenneth. A economia das fraudes inocentes. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. 84 p.
PITKIN, Walter B. Breve introdução à história da estupidez humana. 4ª. Ed. São Paulo: Prometeu, 1959. 403 p.
SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012. 192 p.
 
Notas:
[1] PITKIN, Walter B. Breve introdução à história da estupidez humana. 1959. p. 19.

[2] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2012. p. 64.

[3] FREITAS, Juarez. A hermenêutica jurídica e a ciência do cérebro: como lidar com automatismos mentais. p. 233.

[4] Idem. pp. 233-6.

[5] No âmbito da Advocacia-Geral da União é comum a inserção nos pareceres do seguintes dizeres: “o exame desta Consultoria Jurídica é feito nos termos do art. 11 da Lei Complementar n° 73/1993 e do Anexo I, art. 10, do Decreto nº 7.798/2012, subtraindo-se do âmbito da competência institucional deste órgão setorial da Advocacia-Geral da União – AGU, delimitada em lei, análises que importem em considerações de ordem técnica, financeira ou orçamentária”.

[6] (Lei Complementar no 73/93) Art. 11 – Às Consultorias Jurídicas, órgãos administrativamente subordinados aos Ministros de Estado, ao Secretário-Geral e aos demais titulares de Secretarias da Presidência da República e ao Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, compete, especialmente: I – assessorar as autoridades indicadas no caput deste artigo; II – exercer a coordenação dos órgãos jurídicos dos respectivos órgãos autônomos e entidades vinculadas; III – fixar a interpretação da Constituição, das leis, dos tratados e dos demais atos normativos a ser uniformemente seguida em suas áreas de atuação e coordenação quando não houver orientação normativa do Advogado-Geral da União; IV – elaborar estudos e preparar informações, por solicitação de autoridade indicada no caput deste artigo; V – assistir a autoridade assessorada no controle interno da legalidade administrativa dos atos a serem por ela praticados ou já efetivados, e daqueles oriundos de órgão ou entidade sob sua coordenação jurídica; VI – examinar, prévia e conclusivamente, no âmbito do Ministério, Secretaria e Estado-Maior das Forças Armadas: a) os textos de edital de licitação, como os dos respectivos contratos ou instrumentos congêneres, a serem publicados e celebrados; b) os atos pelos quais se vá reconhecer a inexigibilidade, ou decidir a dispensa, de licitação.

[7] GALBRAITH, John Kenneth. A economia das fraudes inocentes. pp. 40-1.


Informações Sobre o Autor

Fabriccio Quixadá Steindorfer Proença

Doutorado em Direito em curso na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (início 2013), possui mestrado em Direito (Direito e Desenvolvimento) pela Universidade Federal do Ceará (2001) e graduação em Direito pela Universidade Federal do Ceará (1995). É Advogado da União, lotado na Consultoria Jurídica do Ministério de Minas e Energia. Tem ênfase em Direito Comercial e Administrativo, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito Falimentar, Direito Marítimo, Direito Societário, Direito Internacional Privado, Direito de Energia Elétrica, Direito de Petróleo e Gás e Direito Minerário. Lecionou na Universidade Federal do Ceará – UFC, na Universidade de Fortaleza – Unifor, no Centro Universitário de Brasília – UniCEUB, dentre outros. Atuou na construção dos marcos regulatórios do pré-sal e da mineração. Autor da obra A Licitação na Sociedade Economia Mista, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2003


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