O senso de justiça é sempre a tônica da argumentação quando se trata de comentar algo que se relaciona à conduta humana, embora desprovido de concreta fundamentação jurídica. O comentário de um leigo a respeito da prisão do devedor de alimentos e a contingência de coloca-lo no convívio carcerário que, sabe-se, não recupera o condenado e serve simplesmente para segrega-lo do meio social, leva à reflexão sobre o instituto da prisão civil cada vez mais invocado em face da maior freqüência de descumprimento do dever de amparo que o alimentante deve prestar aos seus dependentes e de restituição do bem entregue ao depositário judicial.

A priori é necessário destacar que a prisão civil é instituto que, embora afim, difere da prisão penal, porquanto a primeira aplica-se a quem descumpriu obrigação de dinheiro ou de guarda de bens, enquanto que a segunda destina-se a quem desenvolveu conduta criminosa. A sociedade, na sua forma mais primitiva, permitia que o indivíduo respondesse pelas obrigações pecuniárias com a sua vida, depois com a privação da liberdade, depois com todo o seu patrimônio e, atualmente, apenas com os bens necessários ao pagamento da dívida. No entanto, embora a evolução de conceitos, o Direito moderno manteve a tradição de permitir a privação de liberdade como meio de intimidar o devedor a cumprir aquelas obrigações.

A Constituição Federal de 1988, reconhecida nos seus valores de cidadania, admite a prisão civil do devedor de alimentos e do depositário infiel prevendo-as como as únicas exceções admissíveis ao nosso ordenamento jurídico infraconstitucional. O Brasil, entretanto, posteriormente firmou o Pacto de São José da Costa Rica que não admite a prisão civil por dívida de dinheiro, excetuada aquela decorrente de obrigação alimentar, razão pela qual ficou menos controvertida a questão do depositário infiel.

A manutenção da prisão civil ao devedor de alimentos tem por finalidade proteger o direito de subsistência do dependente, aqui considerado aquele que provou ter necessidade de receber alimentos daquele que tem possibilidade de presta-los. A necessidade, assim, está relacionada, no mínimo, à alimentação, à habitação e ao vestuário, ditos alimentos naturais. A possibilidade, elemento mais complexo, está relacionada às posses materiais do alimentante e à potencialidade pessoal de obter os recursos, já que a ele corresponde o dever de fazer tudo o que estiver ao seu alcance, de forma lícita, para cumprir a obrigação de dar sustento aos seus dependentes. No caso de alimentos para os filhos, considere-se, este dever imediato é do pai e da mãe.

Podemos afirmar, diante do exposto, que a prisão civil não é uma pena ao criminoso, nem meio de pagamento dos alimentos, mas um instrumento de coerção que o Estado utiliza para constranger o devedor a empreender todo empenho possível para não deixar seus dependentes ao desamparo. Há, então, um caráter humanitário, reconhecido internacionalmente, na finalidade da extremada providência.

A prisão civil, entretanto, é uma providência que pode ser atenuada ou afastada. Primeiro, ela não pode exceder de três meses; segundo, cessa se for pago o débito e, terceiro, não será decretada se o juiz aceitar as justificativas do devedor quanto à impossibilidade de pagar os alimentos vencidos. Não há juiz que determine a prisão do devedor quando este comprova sua impossibilidade de presta-los. A questão, entretanto, sujeita-se ao subjetivo convencimento do magistrado, situação que sempre ensejará revisão por grau superior, seja através do agravo de instrumento, que pode ser recebido suspendendo a ordem de prisão, ou por habeas corpus .

A prisão civil, portanto, não se destina a quem esteja impossibilitado de prestar os alimentos, mas àquele que podendo faze-lo, não o faz, ou não tendo os recursos deixa de adotar as providências necessárias para obtê-los. Algumas vezes não há dinheiro para os alimentos dos dependentes, mas há para a própria subsistência e para a manutenção de vícios; em outras, há patrimônio, mas o devedor não quer sacrifica-lo para honrar o compromisso; em outras tantas, não paga porque não aceita a decisão judicial que lhe condenou a prestar alimentos e, em muitas outras, simplesmente não paga para fustigar o alimentado.

Por outro lado, se o devedor tem bens que podem responder pela dívida e pressupondo-se que a atividade executiva fosse célere o credor dos alimentos não precisaria pedir a prisão do devedor. Ocorre, entretanto, que muitas vezes o pedido também se dá por mera fustigação ou vingança como é o caso do ex-cônjuge ou companheiro, que em nome próprio ou dos filhos, pede a prisão do devedor sabendo de sua dificuldade para alcançar os alimentos e, mais ainda, tendo meios para remediar a situação enquanto aquele não se equilibra econômica e emocionalmente. Neste caso, há que se considerar que, mesmo para o filho que não esteja recebendo alimentos, não deve haver dano maior, presente ou futuro, do que saber que seu pai tornou-se um presidiário. A menos que tal filho esteja sendo alimentado pelo ódio ou desafeto de outrem que detenha a sua guarda.

A legislação não prevê a substituição da prisão civil por outros mecanismos próprios à condenação penal, como as penas alternativas, situação que os torna pouco aceitáveis pelos tribunais, mas é necessário que se promova a institucionalização de iguais providências como instrumento de coerção ao cumprimento do dever de prestar alimentos. Enquanto a legislação civil não explicita, impõe-se a defesa e aplicação da tese já reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a Lei de Execuções Penais, interpretada com prudência, ou por analogia, pode ser aplicada à prisão civil do devedor para que o mesmo seja levado “à prisão albergue ou à prisão domiciliar”. Isto porque, se o delinqüente dispõe de tais benefícios, com bom senso, além de lógica jurídica, os mesmos podem ser aplicados ao devedor civil. O Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, sempre adiantado na visão concreta do direito, tem precedentes neste sentido. Este é o melhor caminho a ser seguido, em direção à justiça.

 

 


 

Informações Sobre o Autor

 

João Moreno Pomar

 

Advogado – OAB/RS nº 7.497; Professor de Direito Processual Civil da Fundação Universidade Federal de Rio Grande; Doutor em Direito Processual pela Universidad de Buenos Aires.

 


 

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