Responsabilidade civil do médico e do psiquiatra em particular

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Sumário: § 1. Introdução. § 2. A responsabilidade civil do médico é, em regra, subjetiva. § 3. Exceções ao princípio da responsabilidade subjetiva na atividade médica. § 4.  Responsabilidade de hospitais, clínicas e estabelecimentos de saúde em geral.  Responsabilidade dos planos de saúde.  Responsabilidade de chefes de equipe.  § 5.  A prova do erro médico.  O ônus da prova. § 6.  A liquidação dos danos.  § 7.  Prescrição da pretensão indenizatória. § 8. A responsabilidade civil do psiquiatra.  Responsabilidade por atos do paciente? § 9. Conclusão.


§ 1. Introdução.


O direito da responsabilidade civil, em todos os ordenamentos jurídicos, visa a regular e dar resposta ao problema social da distribuição dos infortúnios.  Em outras palavras, é preciso definir se, diante de uma desventura, de uma calamidade, ou de um acidente, o dano há de ser suportado por aquele que o experimenta, ou se cabe a mais alguém assumi-lo, integral ou parcialmente.  Trata-se de investigar, em suma, em face de um dano, quem haverá de por ele responsabilizar-se, e em que medida.


De um modo geral, podem-se divisar dois critérios principais de atribuição ou imputação da responsabilidade civil por danos: o critério da culpa e o critério do risco.  De acordo com o primeiro critério, que informa a responsabilidade dita subjetiva, responsável será aquele que, agindo culposamente, causar dano a outrem.  Em conformidade com o segundo critério, próprio da responsabilidade objetiva, será responsável pelo dano aquele cuja atividade, por sua natureza, implicar um risco não tolerado à esfera jurídica alheia.  Ambos os critérios são acolhidos pela lei, com campos de incidência que se pretendem excludentes mas que, por vezes, não se apresentam nitidamente separados.


A atividade médica, como qualquer atividade humana, não está alheia à problemática acima anunciada.  Diante de um infortúnio decorrente do exercício da medicina, é preciso indagar a quem, e em que condições, há de ser imputada a respectiva responsabilidade.  A mesma indagação estende-se ao âmbito da psiquiatria, que, como especialidade médica, tende a orientar-se pelos mesmos princípios e regras que governam a medicina, observadas as particularidades de fato que soem freqüentar o dia-a-dia do psiquiatra.


Será nosso propósito, nesta exposição, repassar, tão sucintamente quanto possível, as principais questões que pode suscitar o exercício da medicina, no que diz respeito à responsabilidade civil do médico, as quais têm plena aplicação na atividade do psiquiatra, como médico que é, procurando afinal destacar aspectos de especial interesse para o exercício da psiquiatria.


§ 2. A responsabilidade civil do médico é, em regra, subjetiva.


A regra geral de imputação da responsabilidade civil sob a égide do Código Civil de 1916 sempre foi a da responsabilidade subjetiva, ou por culpa.  Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano, dispunha o art. 159 do Código revogado.  Particularmente acerca da responsabilidade dos profissionais da saúde, havia ainda a norma específica do art. 1.545 do Código, que rezava: “os médicos, cirurgiões, farmacêuticos, parteiras e dentistas são obrigados a satisfazer o dano, sempre que da imprudência, negligência ou imperícia, em atos profissionais, resultar morte, inabilitação de servir, ou ferimento.”


Tal disciplina não variou de modo perceptível com o advento do Código Civil de 2002.  A sede da matéria no novo Código são os artigos 186 e 927, que fazem as vezes do antigo art. 159.  In verbis:


Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.


Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.


Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.”


Particularmente o parágrafo único do art. 927 do Código Civil faz alusão à responsabilidade objetiva por risco, que, entretanto, na voz uníssona da doutrina e da jurisprudência, salvo exceções adiante mencionadas, não se aplica à relação médico-paciente.


O art. 1.545 do antigo Código Civil, mera especialização da regra geral da responsabilidade por culpa, encontra certa correspondência no art. 951 do Código atual, que prevê o dever de indenizar por parte daquele que “no exercício de atividade profissional, por negligência, imprudência ou imperícia, causar a morte do paciente, agravar-lhe o mal, causar-lhe lesão, ou inabilitá-lo para o trabalho”, reforçando uma vez mais o critério da culpa na responsabilidade civil do médico.  O mesmo artigo remete ainda a critérios de liquidação do dano pré-estabelecidos nos três artigos anteriores (arts. 948, 949 e 950), o que todavia será objeto de exame mais adiante, no § 6, abaixo.


Por outro lado, a Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990, popularmente conhecida como Código de Defesa do Consumidor (CDC), e que passou a reger as relações de consumo de produtos e serviços, vem sendo com freqüência aplicada às relações médico-paciente, gerando conseqüências relevantes na disciplina jurídica da matéria, sobretudo no campo probatório, como adiante referiremos.  No que diz respeito ao critério de aferição da responsabilidade do médico, todavia, aplicação do CDC não destoa do quanto até aqui expusemos, sendo claro o art. 14 § 4º do Código quando dispõe que “a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante verificação de culpa”. 


O conjunto das disposições legais acima citadas permite concluir que dos médicos é exigida a observância do dever de prudência, diligência e perícia no exercício de sua atividade, de tal sorte que ele não se responsabiliza, em regra, pelo resultado adverso que possa advir ao paciente como decorrência de acidentes ou processos mórbidos cujo controle se situe além do estado da arte e das disponibilidades técnicas e materiais do médico.


Isso porque o médico tem, segundo a linguagem corrente da doutrina, e salvo exceções adiante especificadas, o que se denomina “obrigação de meio”, em contraposição à “obrigação de resultado”.  Dito de outro modo, ele se obriga a empregar os meios adequados, segundo o estado da técnica e da arte médicas, para curar o paciente, mas não se obriga a garantir o resultado da cura.  Por isso, a sua responsabilidade nasce, não do fracasso na obtenção do resultado da cura em si, mas tão-somente do emprego de meios inadequados para atingir aquele resultado, quando ele não é atingido.


§ 3. Exceções ao princípio da responsabilidade subjetiva na atividade médica.


A exceção clássica ao princípio da responsabilidade subjetiva na atividade médica é a das cirurgias estéticas embelezadoras.  Nesta, o médico é procurado, não para curar uma doença, mas para satisfazer a um desejo do paciente de ver o seu corpo modificado, a fim de atender a finalidades múltiplas, tais como exigências profissionais, de seu círculo de relações, ou mesmo meros caprichos individuais.  Trata-se, aqui, de operar um paciente são, em busca de finalidades que não são terapêuticas, mas simplesmente estéticas.


Nesses casos, vem decidindo a jurisprudência dos nossos Tribunais que o médico não assume mera responsabilidade de meio, como nos demais casos de intervenção médica, mas sim de resultado, no sentido de que ele se obriga a assegurar a efetiva obtenção do efeito estético prometido.  Se a cirurgia, por melhores que tenham sido as técnicas empregadas, por mais bem preparado que seja o cirurgião, sem, em suma, que tenha havido qualquer falha em sua condução, não atingiu o fim a que se propunha, o médico responde, pois se presume que o paciente o procurou para efetivamente conseguir aquele resultado embelezador, e não para simplesmente empregar as melhores técnicas neste sentido.  A responsabilidade já não é subjetiva, mas sim objetiva, no sentido acima exposto de que não requer, para a sua configuração, a indagação sobre se houve ou não culpa, mas apenas a existência do nexo causal e do dano.


Dessas hipóteses diferem as de cirurgias estéticas reparadoras, destinadas à reconstituição de tecidos lesionados ou à correção de deformidades graves, suscetíveis de gerar, em seus portadores, sintomas de ordem psicofísica que recomendem a intervenção médica.  Neste últimos casos, havendo indicação terapêutica para o tratamento estético, volta a imperar a regra geral da responsabilidade por culpa, no sentido de que o médico não responderá a não ser que tenha agido com negligência, imprudência ou imperícia.


§ 4.  Responsabilidade de hospitais, clínicas e estabelecimentos de saúde em geral.  Responsabilidade dos planos de saúde.  Responsabilidade de chefes de equipe.


Trata-se aqui de investigarmos a responsabilidade do estabelecimento médico, ou do plano de saúde, ou do chefe de equipe médica, por erros médicos causados, não por tais entidades diretamente, mas por prepostos, credenciados ou chefiados seus no exercício das medicina ou atividades dela auxiliares.


Os hospitais, clínicas e estabelecimentos de saúde em geral respondem solidariamente pelos danos causados por erro médico de seus empregados e prepostos aos pacientes que a eles acorram.  Vale dizer, quando alguém se dirige a um estabelecimento de saúde, sabe que, além do médico que o atenderá, responderá por eventual erro médico o próprio estabelecimento, solidariamente com aquele.


Essa regra tem sido afastada pela jurisprudência quando o médico ou a equipe médica não sejam vinculados ao estabelecimento médico, mas tenham apenas se valido de sua estrutura para atender a seus pacientes particulares.  Nestes casos, respondem apenas o médico ou sua equipe, com exclusão da responsabilidade do estabelecimento, desde que, evidentemente, para o erro médico não haja concorrido uma deficiência do próprio estabelecimento, em matéria, por exemplo, de infra-estrutura e condições de acolhimento do paciente. 


Os planos de saúde vêm sendo responsabilizados, nos Tribunais, pelos erros médicos praticados por sua rede conveniada de médicos e hospitais, baixo o raciocínio de que ela deve assegurar a qualidade dos serviços por estes prestados.  Não assim quando se recorre a médico não credenciado ou referenciado pelo plano, sendo este responsável apenas pelo reembolso, parcial ou total, das despesas.


A responsabilidade do chefe da equipe médica por erros médicos cometidos por integrantes da equipe não pode ser afirmada ou negada a priori.  A tendência dos Tribunais de responsabilizarem o chefe de equipe, antes muito acentuada, vem se atenuando, em face da alta especialização de algumas atividades desenvolvidas por integrantes individuais da equipe.  Ainda nessa hipótese, é preciso indagar se o chefe da equipe não atuou com o que se denomina culpa in eligendo (escolha de um profissional inapto), ou in vigilando (falha na supervisão da atividade de seu chefiado), hipóteses em que ele responderá solidariamente com o causador direto do dano.


§ 5.  A prova do erro médico.  O ônus da prova.


Supondo que nasça um litígio em juízo, em que o paciente que sofreu uma lesão, ou seus sucessores, aleguem a existência de erro por parte do médico, pedindo a reparação civil dos danos sofridos, a quem cabe o ônus da prova?  Ao paciente, que sofreu o dano, caberá provar que o médico agiu com negligência, imprudência ou imperícia?  Ou tocará ao médico provar que não incidiu em nenhuma dessas hipóteses, tendo agido com absoluta correção?


Tradicionalmente, o ônus da prova incumbe a quem alega, cabendo portanto ao paciente a prova do erro médico.  Todavia, com o advento do Código de Defesa do Consumidor, que, como vimos, incide sobre as relações médico-paciente, esse quadro mudou, mercê de regra específica do Código, que assegura, como direito básico do consumidor (no caso, o paciente), a “facilitação da defesa dos seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiência” (art. 6º VIII do CDC).


Assim, a regra hoje, na prática, é que o médico deve provar que não agiu com negligência, imprudência ou imperícia, uma vez que tenha sido acusado, num processo civil (evidentemente esse princípio não se estende à esfera criminal), de haver cometido erro médico.  Por isso é extremamente importante que os médicos, de qualquer especialidade, procurem municiar-se de elementos que demonstrem a correção do seu proceder, documentando as entrevistas com o paciente, para fins de anamnese ou outras finalidades; zelando diligentemente pela veracidade e boa ordem dos prontuários médicos; registrando em vídeo cirurgias mais complexas ou de maior risco; reportando aos colegas complicações que possa haver nos tratamentos, decorrentes de fatos que escapem à esfera de poder do médico (os colegas e auxiliares, em processos de reparação, podem freqüentemente prestar, como testemunhas, depoimentos de grande valia) etc.  Um conjunto de elementos de prova consistente, que permita ao perito médico aferir a correção do procedimento do colega, será freqüentemente a chave para a defesa eficaz do médico em juízo.


§ 6.  A liquidação dos danos.


Classicamente, os danos dividem-se em danos patrimoniais, e extrapatrimoniais ou morais.  Aqueles são os que têm impacto sobre o patrimônio da vítima, seja lhe subtraindo um ativo existente (danos emergentes), seja impedindo a aquisição de riquezas prováveis segundo um critério de razoabilidade (lucros cessantes).  Os danos extrapatrimoniais ou morais são os que não têm conseqüência patrimonial direta, afetando a vítima em sua esfera pessoal, causando-lhe dor, vexame ou humilhação que ultrapassem o mero aborrecimento. 


O Código Civil em vigor previu certas hipóteses de danos patrimoniais que podem decorrer, dentre outras, de atividades médicas, estabelecendo critérios para a respectiva liquidação.  Trata-se dos arts. 948 a 950, aplicáveis à atividade médica por força do art. 951, consoante acima mencionado.  In verbis:


Art. 948. No caso de homicídio, a indenização consiste, sem excluir outras reparações:


I – no pagamento das despesas com o tratamento da vítima, seu funeral e o luto da família;


II – na prestação de alimentos às pessoas a quem o morto os devia, levando-se em conta a duração provável da vida da vítima.


Art. 949. No caso de lesão ou outra ofensa à saúde, o ofensor indenizará o ofendido das despesas do tratamento e dos lucros cessantes até ao fim da convalescença, além de algum outro prejuízo que o ofendido prove haver sofrido.


Art. 950. Se da ofensa resultar defeito pelo qual o ofendido não possa exercer o seu ofício ou profissão, ou se lhe diminua a capacidade de trabalho, a indenização, além das despesas do tratamento e lucros cessantes até ao fim da convalescença, incluirá pensão correspondente à importância do trabalho para que se inabilitou, ou da depreciação que ele sofreu.”


Naturalmente dependerá das circunstâncias de fato de cada caso a apuração das despesas com o tratamento da vítima, dos lucros cessantes, da importância do trabalho para que a ela se inabilitou etc.  Essa apuração é feita no bojo da ação judicial, normalmente após a fixação da responsabilidade do médico, mediante, em regra, trabalho pericial.


Os danos previstos nos arts. 948 a 950 do Código, ora citados, não esgotam toda a gama de prejuízos decorrentes de procedimentos médicos, deixando de fora, notadamente, os danos morais, dos quais não tratam aqueles artigos.  Nem por isso deixa de ser devida a reparação de tais danos, dada a ampla abrangência do art. 186 do Código Civil (citado acima, no § 2), que prevê expressamente (quando nem precisaria fazê-lo) a reparabilidade do dano ainda que exclusivamente moral.


A liquidação dos danos morais é tarefa espinhosa e que, malgrado os incessantes esforços dos juristas nacionais e estrangeiros, continua suscitando acesas controvérsias, sem que se tenha encontrado um critério seguro para a sua aferição.  Normalmente, são levados em conta, para a fixação do montante da indenização, fatores como: a gravidade da lesão ao patrimônio moral ou extrapatrimonial (incluímos aí o dano estético); as condições econômicas do ofensor, no caso o médico ou estabelecimento de saúde; o grau de negligência, imprudência ou imperícia da ação ou omissão médica, a fim de que a indenização sirva como fator pedagógico, de  molde a coibir novos procedimentos culposos por parte do causador do dano. 


Na prática, nossos Tribunais têm-se inclinado, hoje (portanto no início do ano de 2006), pela fixação, em caso de morte, de indenizações em patamares próximos a duzentos salários mínimos, ou R$ 60.000,00.  Esse valor constitui uma boa base de referência para a fixação de indenizações por danos morais (portanto, é bom lembrar, sem considerar os prejuízos patrimoniais) em casos de graves danos à saúde, de que não resulte a morte, mas que possam gerar seqüelas permanentes no paciente.  É preciso advertir, contudo, que tais valores não se encontram na lei, de modo que circunstâncias especiais de cada caso podem conduzir (e amiúde o fazem) a condenações bastantes mais expressivas ou modestas.


Um componente muitas vezes relevante na apuração do montante final das indenizações a serem pagas por médicos condenados civilmente são as parcelas acessórias que incidem sobre a indenização arbitrada, mais especificamente a correção monetária e os juros de mora.  Particularmente os juros de mora contam-se desde a citação do médico em juízo, de sorte que, estendendo-se por largo lapso temporal o processo, e tendo em vista que hoje a lei os fixa em 1% ao mês, podem vir a representar um valor momentoso.


§ 7.  Prescrição da pretensão indenizatória.


O prazo prescricional da ação de reparação civil por erro médico era, até o advento do Código de Defesa do Consumidor, de vinte anos, em razão do disposto no art. 177 do revogado Código Civil de 1916.  Após o início da vigência do CDC, em 1991, surgiu a controvérsia sobre se se aplicaria o prazo prescricional de cinco anos, previsto no art. 27 Daquele Código para as pretensões à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço.  A jurisprudência  inclinou-se pela afirmativa.


Com a promulgação do novo Código Civil, o prazo prescricional das pretensões de reparação civil em geral reduziu-se, drasticamente, para três anos (art. 206 §3º, V do Código Civil), o que no entanto, a nosso ver, não modificará a disciplina da matéria, continuando-se a aplicar o prazo de cinco anos previsto no CDC.  Evidentemente, uma afirmação mais segura a respeito somente poderá ocorrer após haver-se sedimentado a jurisprudência posterior ao novo Código Civil, o que, dado que este entrou em vigor há apenas três anos, poderá levar algum tempo a ocorrer.


Fixado assim o nosso entendimento de que, à luz da jurisprudência que vem aplicando o CDC à relação médico-paciente, o esperado será a manutenção do prazo prescricional de cinco anos para as pretensões de reparação civil decorrentes de erro médico, dois pontos são ainda relevantes, sobre este assunto. 


O primeiro é o de que a prescrição somente começa a correr quando nasce a pretensão, ou, em outras palavras, quando se manifesta o dano.  Assim, se um determinado erro médico gerou um dano potencial, no entanto ainda não manifesto, somente quando este se tornar patente é que começará a correr o prazo prescricional, e não quando se encerrou a atividade médica que, em tempo pretérito, gerou as condições para a revelação tardia do dano.


O segundo é o de que, quando o erro médico for de molde a gerar uma ação criminal, será preciso aguardar a sentença definitiva desta ação para que se inicie o prazo prescricional da ação civil, por aplicação do disposto no art. 200 do Código Civil, cuja interpretação, seja dito, possivelmente suscitará acesas controvérsias.


§ 8. A responsabilidade civil do psiquiatra.  Responsabilidade por atos do paciente?


Cabem algumas palavras finais sobre a responsabilidade do psiquiatra.


Sendo a psiquiatria uma especialidade médica, todas as observações e conclusões acima desenvolvidas acerca da responsabilidade civil do médico a ela se aplicam integralmente, salvo, evidentemente, o regime especial a que se submetem os médicos que se dedicam a tratamentos estéticos, especialidade alheia à psiquiatria.  Para que haja responsabilidade civil do psiquiatra será necessário, portanto, que ele tenha concorrido culposamente com a produção do dano, vale dizer, tenha sido negligente, imprudente, ou imperito em sua atividade.


Parece relevante, no caso da responsabilidade do psiquiatra, distinguir entre duas possíveis espécies de danos: a) aqueles que afetam o paciente em decorrência direta de ações ou omissões do médico; b) aqueles que decorrem de ação do paciente, lesionando a ele próprio ou a terceiros.


No primeiro grupo, incluem-se, por exemplo, efeitos diretos ou colaterais de medicamentos ou determinadas técnicas terapêuticas, quando tais efeitos pudessem e devessem ser evitados.  Assim, por exemplo, se o psiquiatra não toma o cuidado de verificar se o paciente era sensível a determinada substância e este vem a morrer ou sofrer lesão séria, em princípio evitáveis, certamente haverá responsabilidade.  Ou se, por erro de diagnóstico prescreve medicamentos inadequados para o caso, causando lesões perfeitamente inúteis e evitáveis.  São hipóteses subsumíveis ao quanto acima se expôs acerca da responsabilidade do médico em geral, não suscitando em princípio interesse especial.


Já o segundo grupo encerra casos mais delicados.  Suponhamos que um paciente, acometido por determinada doença mental, procure um psiquiatra em pleno surto, e este, por erro de diagnóstico ou de tratamento, deixa de o controlar, resultando em seguida o suicídio do paciente, ou sua auto-flagelação.  Responderá o psiquiatra? E se, em hipóteses semelhantes de erro, o paciente, violento, agride terceiros?  O especial interesse de tais casos está em que a ação lesiva não partiu diretamente do médico, mas do paciente, fora de si.


Pensamos que em tais hipóteses o médico responderá desde que se demonstre que, segundo o estado atual da ciência médica, a sua ação ou omissão como médico foi determinante para a ação lesiva do paciente.  Mas já agora, em regra, não caberá ao médico o ônus de provar que agiu com correção, mas sim à vítima, seja ela o próprio paciente, seu sucessor ou terceiro, demonstrar o erro do psiquiatra e o nexo de causalidade entre este erro e a ação do doente, da qual resultou o dano.  Em outras palavras, não existe nem pode existir uma presunção genérica de responsabilidade dos psiquiatras pelas ações de seus pacientes.


Outra questão muito delicada e que suscita bastante interesse é a da possível responsabilidade civil do psiquiatra quando, tendo conhecimento do potencial lesivo de seus pacientes, deixa de comunicar o fato à autoridade competente, assim concorrendo, por omissão, para a consumação de crimes ou agressões à esfera jurídica de terceiros.  Imaginemos que um psiquiatra receba em seu consultório um torturador contumaz, ou um pedófilo.  Deve comunicar o fato às autoridades públicas?  Quais as conseqüências, para si, da comunicação ou da ausência de comunicação?


Tudo dependerá, a nosso ver, de saber se existe ou não um dever jurídico de comunicação de tais fatos.  Quando este dever existir, a não comunicação poderá sim gerar a responsabilidade civil do médico por ato do paciente contra terceiros, equiparando-se a hipótese à ausência de intervenção eficaz do psiquiatra, acima exposta.  Se não houver este dever e não for o caso de uma intervenção terapêutica imediata, não haverá responsabilidade.  O problema se desloca, portanto, ao exame de quando há o dever de comunicação.


O Código de Ética Médica institui o sigilo profissional do médico em seu art. 102, cujo caput diz ser vedado ao médico “revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, salvo por justa causa, dever legal ou autorização expressa do paciente”.  Ainda o art. 154 do Código Penal prevê o crime de violação de sigilo profissional, cominando pena de detenção de 3 meses a 1 ano, ou multa, na hipótese de “revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que te ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem”.  Portanto a regra será o sigilo profissional, salvo as exceções prescritas em lei ou no próprio Código de Ética.  Mas a pergunta persiste: supondo que não haja lei impondo a comunicação, mas simplesmente justa causa para tal, essa comunicação é uma faculdade ou dever do médico?


Volvendo à casuística, as hipóteses do pedófilo e do torturador não parecem suscitar maiores controvérsias.  O art. 13 da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, que instituiu o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), estipula que “os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.” E o art. 245 do mesmo ECA capitula como infração administrativa “deixar o médico (…) de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente.”  Embora em geral se entenda que esta última norma se dirige ao médico que cuida da criança ou do adolescente, a lei não distingue, parecendo-nos que, tendo conhecimento o psiquiatra de que seu paciente põe em risco a higidez psicofísica de crianças e adolescentes, ele terá o dever de participar sua convicção às autoridades incumbidas da proteção à infância e à juventude, sob pena de, não o fazendo, arriscar-se a responder por agressões de seus pacientes.


O caso da tortura encontra solução imediata no art. 49 do Código de Ética Médica, que veda ao médico “participar da prática de tortura ou de outras formas de procedimento degradantes, desumanas ou cruéis, ser conivente com tais práticas ou não as denunciar quando delas tiver conhecimento.”  Deve assim o psiquiatra, a nosso ver, por imposição do Código de Ética Médica, denunciar o paciente torturador às autoridades públicas, de molde a evitar a repetição de atos de tortura.


Mas e os casos, que certamente podem não ser escassos, em que o potencial de agressividade do paciente não seja de molde a atrair o dever legalmente expresso de comunicação às autoridades?  Suponhamos que haja justa causa para a comunicação, visto configurar-se, de outro modo, situação de perigo grave e injusto para o próprio médico ou terceiros?  Nestas hipóteses a revelação do segredo profissional estará autorizada.  Mas chegará a ser imposta?


Analisando a questão estritamente sob o enfoque da responsabilidade civil do psiquiatra que deixa de informar, pensamos que o melhor a fazer será endereçar consulta ao Conselho Regional de Medicina, relatando os fatos que sustentam o receio de dano (ainda nesta fase com resguardo da identidade do paciente) e solicitando urgente decisão a respeito do dever de manter o sigilo ou de informar.  Isso porque, considerando os elevados bens jurídicos de terceiros que podem estar em jogo, quais sejam a saúde e a vida humanas, por que aliás o médico, dada a sua peculiar condição, deve guardar absoluto respeito (art. 6º do Código de Ética Médica), parece-nos não haver muita margem para discricionariedade no agir do psiquiatra, devendo ele guardar o sigilo quando este se impõe, mas devendo (e não simplesmente podendo) igualmente revelar os fatos graves e excepcionais que configurem justa causa para a transferência de sigilo às autoridades competentes.  A nosso ver, portanto, a consulta ao Conselho Regional de Medicina será, salvo situações de excepcional urgência, de prudência sempre recomendada (inclusive nas hipóteses de tortura e abusos contra menores, nem sempre de enquadramento incontroverso), visto como, neste tipo de questão, o psiquiatra pode estar entre a cruz e a espada, vindo a responder civilmente, ou perante terceiros, caso deixe de revelar fatos graves quando essa revelação de impunha, ou perante o paciente (e neste caso até criminalmente), quando venha a revelá-los fora das hipóteses autorizadas.


§ 9. Conclusão.


O presente estudo, como se pode perceber já por suas dimensões, não teve qualquer pretensão de esgotar o denso, riquíssimo e muitas vezes controvertido tema da responsabilidade civil dos médicos.


Procuramos aqui repassar, em linhas gerais, algumas questões que nos pareceram relevantes e de interesse para o dia-a-dia dos psiquiatras, em sua maioria comuns às demais especialidades médicas, mas que, em razão da peculiar atividade do psiquiatra, apresentam algumas especificidades que procuramos realçar no último parágrafo.


Parece-nos de suma importância agora sublinhar que, para ser vitorioso numa demanda judicial, não basta estar com a razão.  É preciso demonstrá-la ao juiz.  Em face da regra de inversão do ônus da prova contra o médico, de nada adiantará ao psiquiatra ter agido com correção, prudência e irretocável capacidade profissional, se, uma vez demandado por um infausto dano sofrido por seu paciente, supostamente em razão do tratamento, não apresentar provas de que procedeu adequadamente.  Daí a importância vital de manter um ordenado e eficiente sistema de registro das atividades médicas, que lhe permita, no momento do litígio, fazer prova da irrepreensibilidade do seu proceder.


Esperando poder ter contribuído para algum esclarecimento do tema, devemos advertir finalmente que as opiniões jurídicas aqui exaradas, fundadas no estado atual da doutrina e da jurisprudência, não dispensam em absoluto a assistência jurídica casuística, visto como apenas em face de casos concretos poderão o jurista ou o advogado, em caráter consultivo e sem compromisso com o desfecho de eventuais demandas judiciais (afinal, habent sua sidera lites), dizer qual a regra de direito aplicável.



Informações Sobre o Autor

Suelen Queiroz


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