A garantia constitucional da liturgia religiosa – a criminação e a norma penal em branco

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Resumo: o artigo trata da garantia
constitucional inscrita no artigo 5º, VI, da Constituição Federal e a aplicação
de norma penal contida no artigo 33, da lei 11.343, de 23 de agosto de 2006,
considerando-se o uso da bebida denominada chá Ayahuasca, na prática de liturgias
religiosas.

Palavras chave: ayahuasca, Vegetal,
Banesteriopsis caapi, Psycotria viridis, DMT -dimetiltriptamina;

Inspirou
este estudo publicação [1] sobre
caso concreto de colisão do princípio constitucional da liberdade religiosa com
a aplicação da lei norte-americana (The
Controlled Substances Act
), que regula a importação, manufatura,
distribuição e posse de substâncias psicotrópicas especificadas nas relações
constantes da norma legal, inclusive mediante a identificação de tipos penais.

O writ of certiorari, ajuizado pelo
governo norte-americano perante a Suprema Corte daquele país, tratava do uso
indevido de substância alucinógena por seita religiosa na prática de liturgia
durante a comunhão, através da ingestão de chá sacramental contendo substância
psicotrópica, cujos elementos eram constitutivos de planta da região amazônica,
a psychotria viridis, com efeitos
potencializados por outro vegetal, a banisteriopsis
caapi.
Assim, é esse chá chamado AYAHUASCA.[2]

2.
Tratando de questão semelhante, o Congresso do Brasil aprovou pelo decreto
legislativo nº 90, de 5/12/1972, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas,
realizada em Viena, na Conferência das Nações Unidas, em 21 de fevereiro de
1971[3], sendo o
instrumento de ratificação depositado em 14/121973, após o que foi editado pelo
Presidente da República o decreto nº 79388, de 14/03/1977, promulgando o
documento internacional para que fosse executado como ele se contém, de pronto,
[4]
observadas reservas aos parágrafos 1 e 2 do artigo 19 e ao artigo 31.

Essa
Convenção aprovou, entre outros itens, relação de substâncias psicotrópicas que
estão sob absoluto controle internacional, e, em lista exaustiva,[5]
expressamente distinguiu a substância DMT
– DIMETILTRIPTAMINA,
constando ainda desse rol, no fecho, verbis: “Os derivados e sais das substâncias
inscritas nesta tabela, sempre que a sua existência seja possível, assim como todos os preparados com estas substâncias estejam associadas a outros
compostos qualquer que seja a ação destes, também estão sob o mesmo controle.”
E,
no artigo 7º, do Instrumento, ficou expressamente estabelecido que, no
respeitante às substâncias inscritas nessa lista, verbis: as Partes deverão: a)
proibir
qualquer utilização destas substâncias
(grifos nosso) exceto para fins científicos ou médicos
muito limitados, e por pessoas devidamente autorizadas que trabalham em
estabelecimentos médicos ou científicos que dependam diretamente dos Governos
ou sejam expressamente autorizados por estes.”

3. Sobre as convenções internacionais, como
sabemos, as normas nelas previstas,
devidamente aprovadas pelo Poder Legislativo e promulgadas pelo Presidente da
República, inclusive quando tratam sobre direitos fundamentais, ingressam no
ordenamento jurídico como atos normativos
infraconstitucionais
, com aplicação imediata na legislação interna. Nesse
sentido, informa Alexandre de Moraes que essa visão do tema foi prestigiada em
decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do RE n.
80.004-SE, quando consagrou, entre nós, a tese – até hoje prevalecente na
jurisprudência da Corte – de que existe, entre os tratados internacionais e
leis internas brasileiras, mera relação de paridade normativa e que eventual
precedência só ocorrerá, sempre, em face da aplicação do critério da
especialidade.[6]

4. Mas,
como bem anotou Valério de Oliveira Mazzuoli,[7] na Carta
de 1988, infelizmente, à exceção da regra insculpida no seu artigo 5º, § 2º,
sobre os tratados internacionais de proteção aos direitos humanos, não existe
sequer uma cláusula de reconhecimento ou aceitação do direito internacional
pelo nosso direito interno, como existe na Lei Fundamental alemã (Grundgesetz),
que expressamente dispõe, em seu artigo 25, que as normas gerais do Direito
Internacional Público constituem parte da legislação federal e sobrepõem-se às
leis nacionais. O que existe na Constituição brasileira é um rol de princípios
pelos quais o Brasil se rege em suas relações internacionais, consagrados pelo
artigo 4º, bem como disposições referentes à aplicação dos tratados pelos
tribunais nacionais (arts. 202, III, b, 105, III, a, 109, III e V). Mas, regra
expressa de reconhecimento ou aceitação do direito internacional pelo direito
interno, repita-se, à exceção dos tratados internacionais de proteção dos
direitos humanos, que têm índole e nível constitucional, inexiste na Carta
Brasileira.

5. Na
Carta, necessário sublinhar, no capítulo das garantias fundamentais, que diz da
inviolabilidade de crença, está
também assegurada na forma da lei, a
proteção dos locais de culto e suas liturgias (art. 5º VI). Vale isso dizer,
sem maior dificuldade de interpretação, que essa proteção, dada pelo legislador
ordinário, terá limites para não destoar do sistema constitucional, e muito
menos poderá infirmar sanção decorrente da prática de ato ilegal na liturgia
religiosa, eis que a lei penal não afronta a inviolabilidade da liberdade de consciência,
de crença ou do livre exercício do culto religioso, quando trata da repressão
ao uso de substâncias de uso proscrito e tráfico de drogas proibidas.  

6. No
nosso ordenamento jurídico, pois, vigora recente lei n. 11.343, de 23 de agosto
de 2006,[8]
instituidora do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas-SISNAD, que
proíbe em todo o território nacional as drogas cujas substâncias ou os produtos
capazes de causar dependência, especificados em lei ou relacionados em listas
atualizadas por órgão da União (art. 1º § único), bem como o plantio, a cultura,
a colheita e a exploração de vegetais e substratos dos quais possam ser
extraídas e produzidas drogas, ressalvada a hipótese de autorização legal ou
regulamentar, e o que estabelece a Convenção de Viena, das Nações Unidas, sobre
Substâncias Psicotrópicas, de 1971, a respeito de plantas de uso estritamente ritualístico-religioso[9]
(sic). Os tipos penais dessa lei especial, referidos no art.33, caput, são
descritos em 18 verbos, que exprimem as formas de conduta punível e que são os
núcleos do tipo, alguns permanentes, como guardar,
ter em depósito, trazer
consigo e
expor à venda
, e as demais instantâneas.

Dispõe
essa norma que, para o fim criminal, consideram-se como drogas as substâncias
ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas
periodicamente
por órgão da União. 
Como notam Vicente Grecco Filho e João Daniel Rossi,[10]referido
dispositivo está em consonância com o disposto no art. 66. Assim,
expressamente, a lei, por opção consciente, tornou os delitos de tráfico e
correlatos norma penal em branco, como havia feito a lei 6.368/76, acabando com
a polêmica que existia até então.

Mas, entendem esses autores, essa opção não
foi a melhor, isso porque desatende o interesse social pois, v.g., se droga
nova, não relacionada pela Secretaria de Vigilância Sanitária, for difundida no
Brasil, a despeito das piores e mais funestas conseqüências que possa gerar
para a saúde pública, causando dependência física ou psíquica, não sofrerá
repressão penal em razão da sistemática mantida pelo parágrafo único do artigo
1º da lei.

7. A
ayahuasca, portanto, é uma bebida ou chá produto da decocção de duas plantas:
a) cipó da família malpighiaceae e do gênero e espécie Banisteriopsis caapi. b) folha de arbusto da família rubiaceae e do
gênero e espécie Psycotria viridis. Os
constituintes químicos do cipó Banisteriopsis
caapi
são derivados beta-carbolínicos (harmina, tetrahidroharmina e
harmalina) e a Psycotria viridis contém
N,N-dimetiltriptamina (DMT), N-metil-triptamina e
metil-tetrahidro-betacarbolina. A mistura dessas plantas potencializa a ação
das substancias ativas, pois o DMT é oxidado pela MAO, a qual está inibida pela
harmina, acarretando um aumento nos níveis de serotonina. A substância DMT – N,N dimetiltriptamina ou (3
[2-(dimetilamino)etil]ndol
é um potente alucinógeno integrante da Lista I –
Substâncias Proibidas, da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971 e
da Lista F2 – Substâncias de Uso – Psicotrópico – Psicotrópicas, da Portaria
SVS nº 344/98.  Deve-se observar, porém,
que as plantas em questão não constam em tratados internacionais e nem na Lista
E – Lista de Plantas que podem originar Substâncias Entorpecentes e/ou
Psicotrópicas, da Portaria SVS/MS nº 344/98.  [11]  Note-se, ainda, que o IBAMA, por meio da
Portaria nº 14/2001, regulamentou a extração, preservação e transporte do cipó Banisteriopsis caapi e da folha Psycotria viridis.[12]

8. Assim,
forçoso é reconhecer que a bebida Ayahuasca,
também denominada Santo Daime,
resultou no alcalóide NN Dimetiltriptamina, conhecido por DMT, pela cocção das
supra referidas plantas, e que consta de Lista do órgão federal como potente
alucinógeno, sendo, portanto, substância de Uso Proscrito (Lista F-2, da
Portaria nº 344/98), o que autoriza a persecução estatal sem colisão com o
princípio constitucional do livre culto e de suas liturgias no território
nacional.

 

Bibliografia:

MORAES,
Alexandre – Constituição do Brasil Interpretada, edição 2004, Ed. Atlas

GRECCO
FILHO, Vicente – Lei das Drogas Anotada, edição 2007, Saraiva

ROSSI,
Daniel – idem supra

ALMEIDA
JUNIOR – Lições de Medicina Legal, 13ª edição (1976),Ed.Nacional

FÁVERO,
Flamínio – Medicina Legal, 1973, Editora Martins

GOMES,
Geraldo Gomes – Os alucinógenos e a Jurisprudência, Ed.Juriscrédi Ltda. SP

FERREIRA,
Pinto – Comentários à Constituição Brasileira, 1989, Saraiva, SP

REZEK,
Francisco – Direito Internacional Público, 2008, Saraiva.

Notas:

[1]  Artigo de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Texto
originalmente publicado em Revista Jurídica Brasília, vol.8 n.79-junho/julho
2006.

[2]
Ayahuasca é conhecida em diferentes culturas pelos seguintes nomes: Yale,
caapi, natema, pindé, kahi, dápa, bejuco de oro, vine of spirits, vine of the
soul; a transliteração para a língua portuguesa resultou em HOASCA. Também é
conhecida amplamente no Brasil como “Chá de Santo Daime” ou “vegetal”. Este nome tanto se aplica à
bebida preparada por meio de mistura Banisteriopsis
caapi
e da Psichotria viridis,
quanto à primeira das plantas. Apesar das variações acerca das plantas usadas,
farmalogicamente, boa parte delas são similares.

[3]  Disponível em www /media/legislacao/convencao­_1971.pdf

[4]
O governo brasileiro, pelo Ministério das Relações Exteriores, divulga outros 18
atos bilaterais em vigor no País, devidamente promulgados, através do sítio
http://www.senad.gov.br/

[5]  Lista nº 1 da Tabela I.

[6]  Constituição do Brasil Interpretada, 4ª ed.,
2004, p.1104/1105.

[7] 
http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=2460,literis

[8]  O artigo 75, dessa lei, revogou expressamente
as leis 6.368/76 e 10.409/2002, e seu Regulamento foi editado através do
decreto 5.912, de 27 de setembro de 2006.

[9]  Artigo 2º da lei 11.343/06. A última parte do
dispositivo refere-se ao art. 32, n.4, da Convenção, verbis: “Qualquer Estado em cujo território cresçam no estado
selvagem plantas contendo substâncias inscritas na lista I e utilizadas
tradicionalmente por certos grupos restritos bem determinados na ocasião de
cerimônias mágicas ou religiosas pode, na altura da assinatura da ratificação
ou da adesão, fazer reservas sobre estas plantas no que se refere às
disposições do art. 7, excepto nas relativas ao comércio internacional.” (Nota 1: Cabe esclarecer que o Brasil,
no instrumento de ratificação depositado em 14/02/1973, não fez reserva ao
artigo 32 ou ao seu inciso 4, conforme está no decreto n.79.388, de 14/03/1977,
que  promulgou a Convenção. Nota 2: A reserva é um qualificativo do
consentimento. Define-a a Convenção de Viena como a declaração unilateral do
Estado que consente, visando a “excluir ou modificar o efeito jurídico de
certas disposições” do tratado em relação a esse Estado (Art. 2º, § 1, d.).

[10]  “Lei de Drogas Anotada”, p.13, Ed. Saraiva
2007.

[11]  Cf. Nota Técnica nº 03/2002, da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA.

[12]  Não se conseguiu obter o texto da Portaria no
sítio do IBAMA, para o estudo de sua fundamentação e legalidade.


Informações Sobre o Autor

Sergio Miranda Amaral

Advogado (OAB 34438/SP) Procurador do Município (aposentado)


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