A polêmica superioridade do princípio da dignidade da pessoa humana nos conflitos de direitos de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro

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Resumo: A temática a ser abordada buscará a priori concentrar-se no estudo etimológico e histórico da expressão “dignidade humana”, para só então delimitar a extensão e a atuação do princípio da dignidade da pessoa humana no século XXI. Em seguida, propor-se-á uma discussão sobre a dignidade como princípio constitucional no ordenamento jurídico brasileiro.  Por fim, serão lançadas algumas considerações acerca da polêmica atribuição de superioridade ao princípio da dignidade da pessoa humana face às outras normas constitucionais, quando então os posicionamentos apresentados serão embasados por opiniões doutrinárias e entendimento jurisprudencial.


Palavras – chave: Dignidade; Normas Constitucionais; Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.


Abstract: The theme to be approached will try, in beginning and in the short way, propose an etymological and historical study about of the expression “human dignity”, for   just after that to delimit the extension acting of the acting of the Principle of the Dignity of the Human Person in the XXI century. Subsequently, bring up in discussion about the dignity as constitutional principle in the Brazilian legal system. Finally it will be discussed some considerations about the controversial attribution of superiority to the principle of the dignity of the human person in the face of other constitutional rules, when then the presented positionings will be based by doctrinal opinions and decisions of the Brazilian Courts.


Keywords: Dignity; Constitutional Rules; Principle of the Dignity of the Human Person.


Sumário: Introdução; 1 Uma discussão etimológica e histórica acerca da dignidade humana; 1.1 A dignidade da pessoa humana com princípio constitucional; 2 A polêmica superioridade do princípio da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico brasileiro. Conclusão. Referências.


INTRODUÇÃO.


O texto em voga tem por escopo apresentar uma análise da discussão acerca da superioridade do princípio da dignidade da pessoa humana em uma dicotomia de direitos, de acordo com o ordenamento jurídico pátrio. Partir-se-á do pressuposto que a dignidade que é conferida ao ser humano, tornou-se no século XXI a pedra angular, o vértice do ordenamento jurídico tanto no âmbito interno dos Estados quanto na comunidade supranacional.


Ao tecer algumas considerações sobre a estrutura do sistema constitucional, o conflito entre os princípios e outras normas, intenta-se desmistificar e questionar a completude constitucional realçando a importância da aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana como forma de viabilizar a concretização dos direitos fundamentais conferidos pelo legislador ao cidadão, que garantem a este o minimum necessário para uma sobrevivência digna.


Apesar do objeto precípuo deste trabalho ser uma abordagem sobre a primazia do princípio da dignidade humana diante de outros princípios, têm-se como evidente a sua incompletude devido à complexa dimensão jurídico – constitucional do tema e a amplitude da definição que confere significado ao termo “dignidade”.  Por fim, e com base em opiniões doutrinárias e decisões judiciais apresentadas, almeja-se trazer uma contribuição significativa na elucidação de toda a polêmica que cerca a temática da superioridade ou não do princípio da dignidade da pessoa humana em conflagrações de direito no ordenamento jurídico brasileiro, além de responder aos questionamentos: em um conflito no qual o que necessita ser ponderado seja uma norma constitucional qualquer e o princípio da dignidade da pessoa humana, como proceder? O texto constitucional atribui de fato uma superioridade a este princípio em um conflito? Ou tal princípio é revestido por uma excelência interpretativa que visa garantir a harmonização constitucional e a concretização dos direitos fundamentais?


1 UMA DISCUSSÃO ETIMOLÓGICA E HISTÓRICA ACERCA DA DIGNIDADE HUMANA.


Vestígios da preocupação com o respeito à dignidade da pessoa humana derivados da racionalidade natural, foram encontrados nos Códigos de Hamurabi, da Babilônia, da Assíria e no de Manu. Embora de maneira incompleta e infundada, tais Códigos foram “as primeiras expressões de defesa da dignidade e dos direitos do ser humano” (ALVES, 2001, p. 13).


Destaca-se também no cursor histórico como um marco na afirmação da dignidade humana, a contribuição do espanhol Francisco de Vitória, que no século XVI, durante o período da expansão colonial espanhola sustentou que os índios constantemente escravizados e aniquilados, eram em princípio livres e iguais, independente de serem católicos ou protestantes, devendo “ser respeitados “como sujeitos de direitos, proprietários e na condição de signatários dos contratos firmados com a coroa espanhola” (SARLET, 2004, p. 32).


A concepção difundida por Aristóteles, na era moderna, consistia em considerar o homem um “animal político” e relacionar a dignidade (dignitas) da pessoa humana, em regra, com a posição social ocupada pelo indivíduo e com o seu grau de reconhecimento pelos outros membros da comunidade. Esta ideia, fortemente excludente, automaticamente colocava os pobres em uma posição desprivilegiada por classificá-los como “indignos”. Com o advento do cristianismo “qualquer ser humano passou a ser pessoa (homens, mulheres, crianças, nascituros, escravos, estrangeiros, inimigos)”, dada a ideia de compartilhamento do amor fraterno e da igualdade entre os indivíduos (SARLET, 2004, p. 47).


O humanismo desenvolvido pelo cristianismo foi marcado pela edição de inúmeros documentos pontifícios, destacando-se a Encíclica Rerum Novarum de Leão XIII, no ano de 1891, no qual o Pontífice advertia que a ninguém seria lícito violar impunemente a dignidade do homem, já que até Deus a reverenciava. Não podendo assim nem mesmo o indivíduo por sua livre e espontânea vontade renunciar a dignidade e torna-se escravo do espírito, já que esta “não se trata de direitos cujo exercício seja livre, mas de deveres para com Deus que são absolutamente invioláveis” (ALVES, 2001, p. 30).


A filosofia também contribuiu para o aperfeiçoamento do conceito “pessoa” quando atribuiu ao homem uma nova configuração, a de um ser capaz de transformar a realidade própria. Neste contexto, as ideias de Giovanni Picco Della Mirandola, propunham que o que havia no homem “de único, específico e estupendo”, não era “simplesmente a sua racionalidade, […], nem a imortalidade como pregava o cristianismo, e, sim a prerrogativa de autocriar-se livremente” (PICCO, 1999, p. 32-33). Para filósofos o homem era tido como um verdadeiro manifesto de liberdade.


Porém, mesmo com tais contribuições, a formulação mais consistente da natureza do homem foi apresentada por Immanuel Kant, que afirmou que o homem era um fim em si mesmo, não uma função ou um mero objeto do Estado, da sociedade ou da nação. O homem não existia em função do Estado, e sim, o Estado e o Direito deveriam estar organizados em função do homem (BARCELLOS, 2002, p. 107).


Sinalava também Kant que a autonomia de vontade entendida como a “faculdade de determinar a si mesmo e agir em conformidade com a representação de certas leis, é um atributo apenas encontrado nos seres racionais”, seria o fundamento da dignidade da natureza humana (SARLET, 2004, p. 33).


No entanto, no século XIX, Hegel, um idealista filosófo alemão, afastando-se da ideia inicial de Kant, passa a sustentar que a ideia de dignidade estaria centrada na eticidade, que seria uma “instância que sintetiza o concreto e o universal, assim como o individual e o comunitário”, de tal sorte que o ser humano não nasceria digno, mas tornar-se-ia se digno apenas quando assumisse sua condição de cidadão (SARLET, 2004, p. 37).


Registra-se que a era Hitler também não passou despercebida na ascensão da dignidade, embora tenha se destacado por destruir e reduzir a importância do ser humano, a pertinência a uma determinada raça. O legado do nazismo extirpou qualquer vestígio de humanização quando enviou “18 milhões de pessoas aos campos de concentração, com a morte de 11 milhões, sendo 6 milhões de judeus, além de comunistas, homossexuais, ciganos” (LEITE, 2003, p. 182).


A partir dos horrores da Segunda Guerra Mundial, de modo especial após a consagração do princípio pela Declaração Universal da ONU em 1948, nas Constituições nacionais tornou-se imprescindível o reconhecimento da dignidade da pessoa humana, cite-se: Alemanha (art. 1º, inciso I), Espanha (preâmbulo e o art. 10.1), Grécia (art. 2º, inciso I), Irlanda (preâmbulo), Portugal (art. 1º), Itália (art. 3º), Bélgica (art. 23), Cuba (art. 8º), Venezuela (preâmbulo), Peru (art. 4º), Bolívia (art. 6º, inciso II) e Chile (art. 1º); no Mercosul apenas o Brasil (art. 1º) e o Paraguai (no preâmbulo). Entretanto ainda há muitos Estados integrantes da comunidade internacional que não inseriram a dignidade da pessoa humana como princípio em seus textos constitucionais (SARLET, 2005, p. 111-112).


É válido ressaltar no contexto internacional, que a União Européia, por meio da Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia promulgada em Nice, em dezembro de 2000, consignou em seu artigo primeiro que “a dignidade do ser humano é inviolável” (SARLET, 2005, p. 64). Além do mais, consolidou-se no século XXI, na comunidade internacional que a condição humana seria o único e exclusivo requisito para a titularidade de direitos no sistema internacional de proteção, já que “o valor da dignidade humana se projeta, assim, por todo o sistema internacional de proteção” (LEITE, 2003, p. 188).


Quando se trata da origem etimológica da palavra “dignidade” tem-se que esta vem do latim “dignitas”, que significa “respeitabilidade, prestígio, consideração, estima, nobreza, excelência” (ALVES, 2001, p. 109). Já a palavra “pessoa” vem do latim “per-sonare”, uma expressão utilizada para referir-se à máscara teatral que era utilizada para amplificar a voz dos atores, durante as apresentações (ALVES, 2001, p. 111).


No entanto, ao tratar da expressão “dignidade da pessoa humana”, Ingo Sarlet destaca que, apesar da doutrina e da jurisprudência estabelecerem contornos básicos para a definição de dignidade e a concretização do seu conteúdo, por se tratar o princípio da dignidade da pessoa humana de uma categoria axiológica aberta, seria inadequado conceituá-lo de maneira fixista, dado que “não há como negar que uma definição clara do que seja efetivamente esta dignidade não parece ser possível, uma vez que se cuida de conceitos de contornos vagos e imprecisos” (SARLET, 2004, p. 115).


Comenta ainda o jurista supracitado, que a dificuldade para se alcançar um conceito satisfatório para “dignidade da pessoa humana” hoje, pode ser amenizada diante de atributos gerais que a considerem como uma qualidade “integrante e irrenunciável da própria condição humana”, que pode (e deve), “ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida ou retirada”, embora não negue que possa ser violada, dado que “já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente” (SARLET, 2004, p. 42).


Porém, anota SARLET que há quem defenda o oposto, com base em que a dignidade não deve ser considerada exclusivamente como sendo uma qualidade inata e pura da pessoa humana, por ser fruto do trabalho de “diversas gerações e da humanidade em seu todo, razão pela qual as dimensões natural e cultural da dignidade da pessoa se complementam e interagem mutuamente” (SARLET, 2004, p. 46).


Apesar de toda divergência doutrinária a respeito do conceito de “dignidade da pessoa humana”, propõe ainda o referido doutrinador conceituá-la como “a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade”, o que implicaria, num complexo de direitos e deveres fundamentais que resguardariam a “pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável” (SARLET, 2004, p. 59-60).


Nota-se que para uma análise satisfatória da amplitude da expressão “dignidade humana”, é necessário nortear-se pela dimensão dúplice desse vocábulo que pode ser resumida como uma forma de expressão da autonomia da pessoa humana, da sua necessidade de proteção e da assistência por parte do Estado e da comunidade para manutenção e garantia dessa autonomia. Pode-se dizer ainda, com base o discurso de Dworkin que “mesmo aquele que já perdeu a consciência da própria dignidade merece tê-la (sua dignidade) considerada e respeitada” (SARLET, 2004, p. 50).


Enfim, diante de todos os fatos apontados, têm-se que, desde o pensamento filosófico reflexivo à consagração moral e jurídica da “dignidade da pessoa humana” como valor distintivo de todos os outros seres vivos, por serem desprovidos de razão, firmou-se a essencialidade de tal atributo que proveniente dos direitos naturais intrínsecos ao ser humano, perpetuaria a espécie criada por Deus a sua imagem e semelhança. Todavia, a noção de dignidade como própria da pessoa humana, apenas por ser dotada de “razão”, vem sendo contestada por outras correntes que atribuem também aos animais dignidade, apenas por tratarem-se de seres vivos, embora não o sejam racionais.


Calorosos debates ainda marcam a definição precisa da expressão do tema em estudo, embora em pleno século XXI. Tal controvérsia, suscita tormentosas indagações no mundo sócio-jurídico, que tem como fulcro elucidar: o que é ter uma vida digna? Hoje estar aposentado com um salário mínimo no Brasil, é digno? Ou a disponibilização de vários hospitais e postos de saúde com médicos qualificados, é sinônimo de ter um atendimento que corresponda às exigências mínimas de dignidade? Como pode ser observado o subjetivismo ainda impera na busca pelo melhor significado da expressão “dignidade humana”, porém uma coisa tem-se por certa, qualquer atentado ou violação a dignidade da pessoa humana esta será facilmente identificada e reprimida.


1.1 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL.


A Constituição como um “documento com intenso significado simbólico e ideológico – refletindo tanto o que nós somos enquanto sociedade, como o que nós queremos ser”, confere unidade de sentido e de valor ao ordenamento jurídico através do caráter compromissário de suas normas constitucionais (LEITE, 2003, p. 190).


Como sistema aberto, a Constituição é formada por um conjunto de regras e princípios. As regras são “normas que, verificados determinados pressupostos, exigem, proíbem ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer excepção (direito definido)” (CANOTILHO, 1998, p. 1.123).


Já os princípios, são o “mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão” (MELLO, 2004, p. 841).


O valor da pessoa humana corporificou-se no ordenamento jurídico através do princípio da dignidade, garantindo-lhe (ao menos em tese) condições mínimas de existência só pelo fato de ser homem. Tal princípio, foi consagrado pela primeira vez na Constituição de Weimar. No ordenamento jurídico brasileiro o princípio da dignidade da pessoa humana é um princípio constitucional explícito, além do que, de acordo com Edilsom Pereira de Farias, é  “semântico e estruturalmente aberto, de abertura valorativa” o que possibilita o seu emprego pelos agentes jurídicos, “no momento da interpretação e aplicação das normas jurídicas” (FARIAS, 1996, p. 50).


Embora influenciado pela Constituição de Weimar, o constitucionalismo brasileiro aderiu gradativamente ao discurso político do respeito à dignidade da pessoa humana, consagrando-se definitivamente na Constituição de 1934 de forma expressa no art. 115 que estabelecia que “a ordem econômica deveria ser organizada de modo a possibilitar a todos existência digna” (ALVES, 2001, p. 126).


É inegável também, a contribuição recebida pela Constituição de 1988 das Cartas de Portugal (1976) e da Espanha (1978), para a constitucionalização plena do princípio da dignidade da pessoa humana. Notória é a semelhança do texto da Carta Magna brasileira (art. 1º) com a Carta de Portugal que prevê que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária” (ALVES, 2001, p. 126).


O avanço conceitual do termo “dignidade da pessoa humana” nas últimas seis décadas e o consequente desenvolvimento de suas duas variáveis teleológicas, ocorreram, de acordo com Sidney Guerra, por ser tratar o mesmo de um dos mais “graduados princípios de direitos fundamentais e […] o seu alçamento ao patamar de princípio constitucional estruturante da organização de muitos estados (inclusive o Brasil)” (GUERRA, 2007, p. 103).


Enfim, o que pode ser percebido em uma análise derradeira é que onde não houver “respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder”, ou até mesmo onde a liberdade e a autonomia, “a igualdade (em direitos e dignidade) e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e minimamente assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana e esta (a pessoa)”, que por sua vez, poderá, “não passar de mero objeto de arbítrio e injustiças” (SARLET, 2004, p. 59).


2 A POLÊMICA SUPERIORIDADE DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO


Partindo da premissa exposta no inciso III do art. 1º da Constituição Federal que “a República Federativa do Brasil tem como fundamentos a dignidade da pessoa humana”; do caput do art. 170 da CF que prescreve que “a ordem econômica tem por fim assegurar a todos existência digna”; do parágrafo 7º do art. 226 da CF “fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar”; e do art. 227 da CF que impõe “à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar à criança e ao adolescente o direito à dignidade”, eis que surge na doutrina uma discussão acerca da superioridade do princípio da dignidade da pessoa humana em relação aos demais princípios. Para Barcellos (defensora da ideia de que o conteúdo jurídico da dignidade está intimamente relacionado com os direitos fundamentais ou humanos) por ser a dignidade da pessoa humana um direito natural e inato, ou um elemento construído pela cultura ou pela luta progressiva dos povos, deve ser tido hoje como “um axioma justifilosófico e, além disso […], um comando jurídico dotado de superioridade hierárquica” (BARCELLOS, 2002 ,p. 26).


Registra também, Cleber Francisco Alves que diante da atual conjuntura proposta pela Constituição de 1988, que inova em relação às Cartas que a precederam por privilegiar a Declaração dos Direitos e Garantias Fundamentais em detrimento das normas que estruturam e organizam o Estado e os poderes, tem-se que a atual Carta tem como escopo principal “a preservação da dignidade humana, que se expressa de forma decisiva no quadro dos direitos fundamentais”, comprovando sua “proeminência na colocação topográfica dos  dispositivos constitucionais” (ALVES, 2001, p. 139).


Nesse sentido tem se posicionado também o Superior Tribunal de Justiça, quando em Ação de Indenização por prisão e tortura por delito de opinião durante o regime militar de exceção, decidiu que a proteção da dignidade da pessoa humana como direito inato, universal, absoluto, inalienável e imprescritível, “como corroborado pelas cláusulas pétreas constitucionais, perdura enquanto subsistente a própria República Federativa, pois se cuida de seu fundamento, de um de seus pilares” (BRASIL, 2007a).


Com um discurso enfático, comenta Sarlet que por se tratar a dignidade da pessoa humana de um princípio normativo e um valor fundamental, atrairia “o conteúdo de todos os direitos fundamentais”, assim, “sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á lhe negando a própria dignidade” (SARLET, 2004, p. 87). 


Portanto, ao considerar que o Estado existe em função da pessoa humana e não o contrário, pois o ser humano constitui uma finalidade precípua e não um meio de atividade estatal, diante disto, confere o supracitado jurista a dignidade da pessoa humana “a qualificação de norma jurídica fundamental de uma determinada ordem jurídico-constitucional” e considerando a universalização alcançada por tal princípio no plano internacional, “de todas as Constituições dos Estados que se integram nessa ordem” (SARLET, 2004, p. 65).


O princípio da dignidade da pessoa humana é consagrado por esta corrente doutrinária como um “superprincípio” cuja função é orientar o Direito Internacional e o Interno (LEITE, 2003, p. 193). Seguindo essa diretriz, Paulo Bonavides afirma eloquentemente que “nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana”, sendo que sua densidade jurídica constitucional deve ser máxima. Conclui destacando que se houver reconhecidamente, um princípio supremo “no trono da hierarquia das normas, esse princípio não deve ser outro senão aquele em que todos os ângulos éticos da personalidade se acham consubstanciados” (BONAVIDES, 2003, p. 233).


Acrescenta José Carlos Vieira de Andrade que o princípio da dignidade da pessoa humana estaria na base de todos os direitos constitucionalmente consagrados, “quer dos direitos e liberdades tradicionais, quer dos direitos de participação política, quer dos direitos dos trabalhadores e direitos a prestações sociais” (ANDRADE, 1987, p. 102).


Caso haja conflitos com outras normas constitucionais, na opinião de Barcellos “o princípio da dignidade da pessoa humana deverá ser o vetor interpretativo geral, pelo qual o intérprete deverá orientar-se em seu ofício” (BARCELLOS, 2002, p. 146). Como o efeito almejado por tal princípio consiste no “garantir vida digna a todo e qualquer indivíduo” e seu conteúdo básico é composto pelo mínimo existencial, que é um “conjunto de prestações materiais mínimas sem as quais se poderá afirmar que o indivíduo se encontra em situação de indignidade”, conclui, a referendada jurista, seu discurso, afirmando que, ao ser violado o núcleo do princípio, este assumirá o caráter de uma regra e não mais de um princípio (BARCELLOS, 2002, p. 146).


É categórica a referida jurista ao afirmar que as normas que promovem ou protegem a dignidade humana, embora devam conviver harmonicamente com todo o ordenamento, têm, sobre as que indiretamente estão associadas com o assunto, total preferência de acordo com a própria Constituição. Destaca ainda que “não há autor, de direito público ou privado, que não destaque a dignidade da pessoa humana como elemento central do sistema jurídico, bem como sua superior fundamentalidade, se comparada a outros bens constitucionais” (BARCELLOS, 2002, p. 244-252).


Até mesmo a utilização da técnica da ponderação em um conflito que envolva o princípio da dignidade da pessoa humana é tida por desnecessária para aqueles que difundem a superioridade do princípio da dignidade humana já que este “constituiria um princípio de feições absolutas, razão pela qual sempre e em todos os casos haverá de prevalecer em relação aos demais princípios” (SARLET, 2004, p. 73).


Para outra corrente, em qualquer conflito que envolva o princípio da dignidade da pessoa humana, deve se considerar que reconhecer como absoluto qualquer princípio “contradiz a própria noção de princípios”, já que resta comprovado que na prática tal princípio “pode ser realizado em diversos graus, isto sem falar na necessidade de se resolver eventuais tensões entre a dignidade de diversas pessoas” (SARLET, 2004, p. 73).


O Supremo Tribunal Federal tem se posicionado no sentido de equilibrar a aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana com outros valores constitucionais. Como exemplo, quando solucionou dentre outras questões, a controvérsia do fornecimento de medicamento com o bloqueio de valores em contas públicas, “a fim de garantir o custeio de tratamento médico indispensável, como meio de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana e do direito à vida e à saúde” (BRASIL, 2007b).


Nota-se que a discussão em pleno século XXI acerca da superioridade do princípio da dignidade da pessoa humana é uma espécie de resgate do pensamento jusnaturalista, difundindo por Gunther Dürig e até mesmo por Alexy, que consideravam a dignidade humana como inatingível, “um valor preexistente ao direito que se encontra acima deste” (ALVES, 2001, p. 121).


O que se deve questionar, é se a dignidade de um ser humano vale mais que a do outro. Quando satisfeita uma pretensão na qual o que se considera é o interesse, a vida e a saúde individual, deve se levar em conta quantos outros estarão sendo afetados por tal medida tendo sua dignidade, saúde e a vida postas à prova. Destaca-se com louvores, o liame que o egrégio Tribunal estabeleceu entre a dignidade da pessoa humana e outros direitos fundamentais, fortalecendo a tese de que o princípio da dignidade humana não deverá ser considerado como fundamento isolado nas decisões mas como vetor interpretativo e elemento de integração a outros direitos que com ele estejam relacionados servindo de elemento e medida a estes.


Dessa forma tem-se que, apesar de encontrar-se a pessoa humana no vértice dos valores normativos e jurídicos, tal princípio não deverá ser visto como um valor que se sobrepõe aos demais em todas as circunstâncias, ou como definem alguns a um princípio com “especial prioridade” (LEITE, 2003, p. 195). Se assim o fosse estar-se-ia condenando o próprio ordenamento jurídico, que não pode classificar hierarquicamente princípios já que cada caso concreto enseja uma nova situação e o nascimento de um novo direito, que poderá ou não ser regido por aquele ou este princípio.


Já alertava Sidney Guerra que apesar da singularidade de cada princípio e da unidade de sentido teleológico conferida ao ordenamento jurídico positivo, estes, “não se posicionam hierarquicamente em pilar superior (supra) ou fora (extra) da concepção de direito adotada pelo Estado e, em conjunto somatório com as regras formam os núcleos das normas jurídicas” (GUERRA, 2007, p. 8).


Destaca ainda Sarlet, a função instrumental integradora e hermenêutica do princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que este serve de “parâmetro para a aplicação e integração não apenas dos direitos fundamentais e do restante das normas constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico, imprimindo-lhe, além disso, sua coerência interna” (SARLET, 2004, p. 123).


No entanto, acrescenta Alves que o princípio da dignidade da pessoa humana, não pode ser considerado apenas como uma fonte de solução jurídica enquanto elemento de interpretação e integração das normas, e sim como fonte autônoma de solução jurídica em casos, em que mesmo com a ausência de regras específicas “se depare com uma situação concreta submetida à decisão judicial que deva ser regulada de modo a salvaguardar a proeminência dos valores existenciais da pessoa humana” (ALVES, 2001, p. 135).


Apesar de não compartilhar do mesmo posicionamento da corrente doutrinária que difunde a superioridade do princípio da dignidade da pessoa humana, na opinião de Ingo Sarlet, este seria o “reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira contra quaisquer ingerências externas”, o que, no entanto, não impossibilitaria o estabelecimento de restrições aos direitos e garantias fundamentais, porém que não ultrapassem o “limite intangível imposto pela dignidade da pessoa humana. […] A existência de ofensas mais ou menos graves à dignidade, dependendo de sua intensidade, podem, ou não ser toleradas em prol de outros valores constitucionais” (SARLET, 2004, p. 124-125).


Embora o texto do artigo 1º, inciso III, da Constituição de 1988, contenha muito mais que uma norma já que, de acordo com Sarlet, o melhor seria tê-lo como um “princípio (e valor) fundamental” e também um ”fundamento de posições jurídico-subjetivas”, ou até como uma espécie de norma definidora de direitos, garantias e deveres fundamentais na qual se deve ressalvar que embora os direitos fundamentais encontrem seu fundamento, na dignidade da pessoa humana, não há como “reconhecer que existe um direito fundamental à dignidade, ainda que vez por outra se encontre alguma referência neste sentido” (SARLET, 2004, p. 69).


Farias também alerta que o princípio da dignidade da pessoa humana não seria absoluto e incondicional sobre outros princípios, pois também está sujeito à “lei de colisão e, sob determinadas circunstâncias, poderá não prevalecer sobre princípios colidentes. São as condições do caso concreto que irão indicar a precedência ou não do princípio da dignidade da pessoa humana” (FARIAS, 1996, p. 52).


No mesmo sentido, assevera Alexy que por ser algumas vezes a aplicação de tal princípio priorizado em relação aos demais, não significaria que “aquele seja um princípio absoluto, senão que é difícil encontrar razões jurídico-constitucionais que poderiam alterar a relação de precedência em favor do princípio da dignidade da pessoa humana” (FARIAS, 1996, p. 53).


O que se concretiza diante do exposto é que, a dignidade da pessoa humana “impõe-se como núcleo básico e informador de todo ordenamento jurídico, como critério e parâmetro de valoração a orientar a interpretação e compreensão do sistema constitucional” (LEITE, 2003, p. 192).


Portanto, o princípio da dignidade da pessoa humana não pode ser tido por absoluto em qualquer conflito ou colisão de direitos já que para a concretização e a garantia deste são necessárias condições fáticas e jurídicas propicias a sua realização gradual e a harmonização total das radicais tendências individualistas e coletivistas (FARIAS, 1996, p. 53).


Contudo não se pode negar o relevante papel do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana na arquitetura constitucional, dando unidade e coesão ao extenso rol dos direitos e garantias fundamentais.


CONCLUSÃO.


A essência do próprio homem ainda hoje é fonte de inúmeras indagações e controvérsias, assim como a preocupação com o respeito à dignidade da pessoa humana a nível interno e supranacional que tomaram grandes proporções devido ao aumento das violações aos direitos humanos, pelos próprios indivíduos e até mesmo pelos Estados que atribuem suas ações “justiceiras” ao combate dos males do século e a defesa dos direitos. Desde a antiguidade clássica já se evidenciava que para a concretização da dignidade humana por meio da promoção do minimum existencial, o sistema constitucional deveria fazer muito mais do que apenas garantir direitos fundamentais em seu texto. Em consonância com as palavras de Canotilho, podemos dizer que a única forma de se concretizar a constituição seria através de um “processo de densificação de regras e princípios constitucionais” (FARIAS, 1996, p.53), o que equivale a dizer que a concretização das normas constitucionais deve ultrapassar o mundo do “dever ser” para alcançar o status de norma concreta preenchida, complementada e precisa quanto ao espaço normativo do preceito constitucional.


Já dizia Kant, nos primórdios da civilização, que “no reino dos fins tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode pôr-se em vez dela qualquer outra como equivalente”, porém no caso desta coisa está acima de todo preço, conclui o nobre filósofo “e portanto não permite equivalente, então tem ela dignidade” (SARLET, 2004, p. 33).


Embora reste cristalina a necessidade de tornar acessível ao homem tudo o que seja essencial para que este possa levar uma vida em condições humanas e digna, não se deve chegar ao extremo de escalonar rigidamente princípios e normas em nosso ordenamento, mesmo que estes priorizem a concretização do bem estar e da própria dignidade humana que é o fundamento do Estado Democrático Brasileiro.


Diante de todos os argumentos doutrinários apontados, evidencia-se que quando presente em um conflito, o princípio da dignidade da pessoa humana deverá servir de norteador e informador ao intérprete e ao aplicador do direito, de forma que ao ponderar-se todos os interesses envolvidos no conflito, atente-se para a solução mais benéfica, que será a que não venha denegrir, impedir ou violar o acesso de qualquer cidadão aos seus direitos fundamentais e tudo o que a estes mais se agregarem para a promoção de uma existência com um mínimo de dignidade e humanidade.


 


Referências

ALVES, Cleber Francisco. O princípio constitucional da dignidade da pessoa humana: o enfoque da doutrina social da Igreja. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987.

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Informações Sobre o Autor

Danielle Braun Calavotte Cozer

Advogada. Professora de Direito Constitucional e Direito Tributário do UNESC-ES. Mestre em Direito, Políticas Públicas e Processo, pela FDC – Faculdade de Direito de Campos- RJ. Especialista em Direito Civil pelo UNESC. Graduada em Direito pelo UNESC


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