Em 2003, ainda aceitamos tacitamente o coronelismo!!

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De tanto ver triunfar as
nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça,
de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a
desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.
(Senado
Federal, RJ. Obras Completas, Rui Barbosa. v. 41, t.
3, 1914, p. 86).

Para Freud, o homem é um animal, em sua essência,
cujo sentimento de superioridade levou-o a criar uma ordem civilizada para
diferenciar-se do animal não-humano. Mas, não conseguindo transcender sua
animalidade, como membro integrante duma amoral ordem predatória, sujeita-se aos instintos básicos animais. A vitalidade do
animal-homem irrompe indiferente a valores do bem e do mal. Por isso,
liberdades culturais produzem nefastos desequilíbrios. Por isso, incentivamos a
violência! E convivemos, de forma harmônica, com a impunidade!

A primeira pesquisa de vitimização
feita em quatro capitais brasileiras – São Paulo, Rio,
Vitória e Recife apurou:

– as dimensões da insegurança brasileira: 67% das
pessoas ouvidas sabem que serão vítimas de roubo ou furto; 57% disseram que
evitam locais por razões de insegurança;

– que ocorrem três vezes mais crimes do que o
registrado pelas Polícias Civil e Militar: apenas 27,1% das vítimas, nos
últimos cinco anos, de algum delito, notificaram a polícia;

– que 51% da população foi
vítima de delito nos últimos cinco anos e 67% crê piamente que será roubada ou
furtada;

– os três fatores que levam ao silêncio da vítima:
a escolaridade, o tipo de crime (exemplo: 14% das agressões sexuais são
informadas à polícia) e a confiança na polícia. Infelizmente, a polícia é
uma instituição em descrédito!

O povo foi deixado à mercê da arrogância e
truculência policial, em total afronta ao Estado Democrático e de Direito e em
detrimento da liberdade do indivíduo. Mas precisa proteger-se contra atos
opressivos ou destituídos do necessário coeficiente de legalidade e de
razoabilidade.

Pois bem, vou contar um fato que presenciei no dia
23 de outubro de 2003!

Um jovem foi vítima de várias ilegalidades e
injustiças:

1. Diante da atual desordem e insegurança pública
reinante, furtaram-lhe os documentos, inclusive a
carteira de habilitação.

2. Não pôde cumprir os requisitos administrativos
para obtenção da segunda via desta porque os trabalhadores banco estadual
competente – BESC – estão exercendo o direito de greve.

3. Precisa locomover-se para trabalhar e estudar.
Afinal, a vida continua! Fazendo uso de seu veículo ciclomotor,
sem a documentação exigida pelo Estado que não lhe deu proteção, sofre um
acidente de trânsito. Mais uma vez, o Estado não atuou na guarda e fiscalização
do trânsito urbano. Meia dúzia de policiais militares, em
duas viaturas oficiais, chegam ao local, após o acidente. E se limitam a
conduzir os envolvidos no sinistro à Delegacia de Polícia Civil.

4. As partes, após razoável tempo de espera,
prestam seus depoimentos de forma civilizada, embora estejam visivelmente
nervosas. O responsável civil pela coleta das declarações cumpre, de forma
exemplar, seu dever legal.

5. Enquanto acompanhava estes procedimentos, ouvi
um susurro: “o coronel chegou!”. E ingressa
na sala um coronel fardado, integrante da Polícia Militar. Dirige-se– como se fosse o dono da casa – ao escrivão e, em
flagrante abuso de autoridade, e em manifesta proteção pessoal à
administrada/motorista do veículo responsável pelo acidente, diz: “deve
constar no Boletim de Ocorrência que o rapaz estava dirigindo sem a carteira de
habilitação”.

O clima por ele gerado foi estarrecedor! Parecia
querer informar que o rapaz acidentado era um bandido, um inimigo da democracia
(embora, neste pseudo-estado democrático, seja irrelevante a rotulação dada ao
nosso regime).

Entendi que o coronel era pai de uma das
acompanhantes da administrada/depoente. E estava ali pra prestar-lhe apoio
pessoal (com características claras de apoio institucional, já que devidamente
uniformizado, com estrelas reluzentes, amealhadas ao longo do exercício de sua
atividade, à mostra).

Perguntei-lhe qual era seu interesse no caso: ele
silenciou. Pedi ao pai do rapaz ferido que anotasse o nome e posto do militar,
identificação visível em seu fardamento. O coronel chamou-nos de “babacas”, por tomarmos essa atitude. E sua filha
proferiu palavrões que prefiro não reproduzir.

Naquela hora, tive a sensação de ter ingressado nos
livros de Franz Kafka, cujas obras criticam a opressão burocrática das
instituições, a pseudo-justiça e a fragilidade do
homem do povo no enfrentamento dos problemas cotidianos.

Ou de ter retornado ao período de trevas da
ditadura, em que preponderava a liberação dos instintos do subterrâneo e era
permitido o juízo ou tribunal de exceção.

Em 2003, ainda aceitamos tacitamente o coronelismo!!

O ato, acima mencionado, do coronel feriu, em
especial, os preceitos do artigo 37 da nossa Constitução
Federal, e alguns dos princípios ali elencados: legalidade, impessoalidade,
moralidade. E a Constituição Estadual de Santa Catarina2, entre
outros.

Fernando Henrique Cardoso deixou a presidência
alegando o banimento do coronelismo da vida política
brasileira, apesar de incentivar o fortalecimento da autonomia policial e de
combater abertamente o Ministério Público.

Victor Nunes Leal escreveu que “Durante a
primeira República, a organização policial foi um dos mais sólidos
sustentáculos do ‘coronelismo’ e, ainda hoje, em
menores proporções, continua a desempenhar essa missão” (pág. 226) 1.

Cabe ao Estado dar o exemplo à sociedade da
aplicação da Justiça, dos valores morais e éticos que devem ser perseguidos
pela Administração Pública. Se este mesmo Estado descumpre as normas insertas
nas suas Constituições, cabe à Justiça manter o equilíbrio, coibindo abusos e
ilegalidades.

Fala-se em democracia no Brasil. Mas aqui vige a
tradição do Estado forte e absoluto, desrespeitador dos direitos e garantias
individuais e coletivas. A falta de vergonha e de moral é um câncer que deve
ser extirpado da Administração porque fomenta a impunidade. Os administradores
continuam usurpando a democracia, em benefício de interesses escusos,
maculando-a sob a débil e enfadonha desculpa do perigo vermelho.

O brasileiro sabe, embora
nossos governantes insistam no firme propósito de mantê-lo ignorante, que
existe uma Constituição, a garantir seus direitos. E espera da polícia e dos
tribunais a preservação do Estado de Direito. Mas, ainda fecha os olhos e a
boca para a injustiça. Os atos dos policiais não são discutidos, salvo se as
próprias corporações quiserem. A absolvição dos 123 PMs de Eldorado dos Carajás
é um exemplo clássico.

Há mais de cem anos atrás, Rui Barbosa já pregava
que todas as crises do Brasil são sintomas da crise moral.

 

Notas: 

1 ‘Coronelismo,
enxada e voto – O município e o regime representativo no Brasil’, 3ª edição,
Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997.

2A Emenda
Constitucional 33, de 13 de junho de 2003 deu a seguinte redação ao
artigo 107 e seus incisos, da Constituição do Estado de Santa Catarina: “Art. 107. À Polícia Militar, órgão permanente, força
auxiliar, reserva do Exército, organizada com base na hierarquia e na
disciplina, subordinada ao Governador do Estado, cabe, nos limites de sua
competência, além de outras atribuições estabelecidas em Lei: I – exercer a
polícia ostensiva relacionada com: a) a preservação da ordem e da segurança
pública; (…) e) a guarda e a fiscalização do trânsito urbano; (…) III –
atuar preventivamente como força de dissuasão e repressivamente como de
restauração da ordem pública.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Ana Candida Echevenguá

 

advogada atuante no PR, SC e RS, especializada em Direito do Consumidor e Direito Ambiental

 


 

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