O ocaso da soberania estatal como prenúncio da morte dos direitos fundamentais

Resumo: O presente artigo pretende fazer uma crítica ao processo de globalização guiado, tão somente, por interesses econômicos. Processo esse, que obriga os Estados a abrirem mão de sua soberania, por imperativos de sobrevivência. Busca abordar a importância do Estado para a concretização dos direitos do homem, integrados à ordem estatal, pelas Constituições, de modo que, ao se sublimar a soberania dos Estados, aniquila-se, por conseqüência, a própria figura do Estado; esse, fonte do Direito, portador da jurisdição constitucional.


SUMARIO: 1. Introdução; 2. Das teorias explicativas da origem do estado; 3. Da gênese do conceito de soberania estatal; 4 – a relativização da soberania e a desconstrução do estado; 5. Da sublimação do estado e a crise de efetivação dos direitos fundamentais – liquidando as constituições dirigentes; 6. Conclusão; Referências.


1. INTRODUÇÃO


O Estado representa, na acepção de mundo contemporânea vivenciada pela humanidade, a organização fundamental em que o homem se situa.


O construto estrutural desse ente possibilita a inserção social da raça humana.


Assim, o Estado apresenta-se como aparato fundamental que possibilita vida do homem e mecanismo de justificação e promoção dos direitos humanos.


Portanto, impensável o modelo de sociedade atual, sem a presença do Estado.


Inobstante, na ordem internacional, insufladas pela nova ótica econômica desencadeada pela globalização, surgem organizações, de caráter supranacional, que se sobrepõem e muitas vezes nulificam o Estado.


No mundo globalizado, seja pelo poderio político ou econômico, essas organizações se imiscuem nos assuntos do Estado e relativizam seus fins, moldando-os aos interesses de mercado, os quais passam ao largo de demandas sociais, culturais ou políticas das nações.


Essa conformação do capitalismo globalizado descaracteriza o Estado, a partir da sublimação de sua soberania.


Essa, elemento constituinte do Estado; sem a qual, esse perde seu bastião e se entrega à vontade de terceiros; outros, que não os legítimos detentores do Poder Político.


A dramaticidade dessa nova conformação global reside na constatação de que a Soberania Estatal está ligada à estruturação dos direitos fundamentais, portanto, a sua desestabilização coloca em xeque a existência dos direitos do homem, os quais poderão se perder no vácuo existente entre a dilaceração dos Estados Constitucionais e ausência de uma ordem jurídica mundial efetiva.


Assim, é fundamental investigar-se em qual medida a relativização do Poder Soberano descaracteriza, irrevogavelmente, a feição estatal, desfigurando-o definitivamente, em cotejo com o fenômeno globalizante, em seus imperativos econômicos absolutos.


E nesse aspecto, é defensável sustentar que a manipulação do Poder Soberano, por si só, constitui-se em ação inadmissível, visto o papel fulcral que desempenha na conformação do Estado. Notadamente, em momento atual, em que a instrumentalização do Direito, pela insipiente organização supranacional, representa risco de retrocesso no patamar civilizatório até então alcançado.


2. DAS TEORIAS EXPLICATIVAS DA ORIGEM DO ESTADO


Ao se propor uma investigação sobre um fenômeno ligado ao Estado. Uma questão prévia, por certo, irá sempre se apresentar, qual seja, determinar o que se possa entender por Estado.


Desse modo, a partir do elemento associativo do gênero humano, o mesmo se agrupa em várias organizações sociais. Essas, originárias da convivência intersubjetiva nas áreas cultural, econômica, religiosa, esportiva e política.


A partir dessa gradação associativa, seja considerada historicamente ou paralelamente aos aspectos intra e extra familiar, tem-se o surgimento da figura do Estado.


O Estado, portanto, é, sem sombra de dúvida, a mais importante de todas as sociedades políticas.


Por sua vez, tal importância é evidenciada por Darcy Azambuja[1], o qual pondera que:


“Com exceção da família, a que, pelo nascimento, o homem forçosamente pertence, mas de cuja tutela se liberta com a sua maioridade, em todas as outras sociedades ele ingressa voluntariamente e delas se retira quando quer, sem que ninguém possa obrigá-lo a permanecer. Da tutela do Estado o homem não se emancipa jamais. O Estado o envolve na teia de laços inflexíveis, que começam antes de seu nascimento, com a proteção dos direitos do nascituro, e se prolongam até depois da morte, na execução de suas últimas vontades. No mundo moderno, o Estado é a mais formidável das organizações.”


Desse modo, a conformação do Estado que temos vivenciado em nossa era, projeto evolutivo do chamado Estado Moderno; trata-se de um tipo de sociedade política que teve origem nos séculos XVI e XVII.


Sua gênese ocorre com a centralização do poder. Está adstrita ao liberalismo político e econômico, a partir dos séculos XVIII e XIX, notadamente no modelo estatal inglês, momento em que a ordem jurídica se volta para a proteção dos referidos direitos naturais do indivíduo.


Com o início do desenvolvimento industrial, ante a descentralização política, houve a necessidade da centralização do poder, ou seja, a unificação da fonte normativa, a qual da origem ao direito posto, que se posto acima da ordem feudal, a partir do ideário político da burguesia.


Nesse sentido, evocando a noção de soberania e de nação, Jorge Miranda[2] explica que:


A soberania implica ainda imediatividade ou ligação directa entre o Estado e o indivíduo, ao contrário do que sucedia no sistema feudal. Doravante, tanto o nobre como o plebeu são igualmente súbditos do Rei, porque igual e imediatamente sujeitos ao seu poder.


Para isso o poder – por definição não apenas concentrado no Rei mas também centralizado – dota-se dos necessários órgãos e serviços. São os tribunais do Rei e o correspondente processo que aparecem; é uma administração burocrática em sentido moderno (profissionalizada e hierarquizada) que progressivamente se substitui à administração feudal (entregue a titulares por direito próprio); e são novas funções que ela se vai propor.”


Portanto, o Estado Moderno surge da necessidade da centralização da vida política e deliberação normativa.


Há que se frisar, de outra parte, que a polis grega e a civitas romana, apesar de normalmente serem consideradas como Estados, na acepção por nós pretendida, o mesmo somente surgira no continente europeu, em fins do século XVI e início do século XVII.


Entretanto, nada impede de chamar de Estados, em sentido amplo, aqueles grupos humanos organizados e independentes (polis, principados, reinos, impérios etc.) que precederam à formação do Estado moderno. Entretanto, os mesmos deverão ser considerados como formas Pré-Estatais.


Nesse sentido, tecendo considerações sobre o sentido amplo e estrito de Estado, Manuel Gonçalves Ferreira Filho[3] explica que:


O termo, embora usual, pode ser tomado seja uma acepção restritiva, seja numa outra, ampla.


Nesta, designa ele toda e qualquer organização política que, indo além do rudimentar ou “primitivo”, apresente um mínimo de institucionalização, portanto, de estabilidade nas suas regras fundamentais. Assim, pode-se falar em Estado “antigo”, discorrendo sobre Roma ou Atenas, em Estado “moderno”, para designar o tipo atual (embora já velho de cerca de meio milênio ao menos), ou em Estado do futuro, sem prejulgar a forma política que prevalecerá no amanhã.”


Entretanto, o próprio Manuel Gonçalves Ferreira Filho[4] continua sua explicação para deixar claro o significado pretendido para o conceito de Estado-nação. E nesse sentido, assevera que:


Entretanto, ninguém ignora que o termo foi cunhado para designar um tipo de organização política, que inexistiu no passado clássico, pois surgiu nos últimos tempos da Idade Média e ainda existe no mundo contemporâneo, embora possa desaparecer no correr desse século, senão do milênio.


Esse Estado, em sentido estrito, é ora apresentado como Estado-nação, ora como Estado soberano. A primeira expressão exprime a sua gênese, como forma política de comunidades nacionais; a segunda, o seu traço mais importante; o que o marca como diferente de outros tipos de organização política.”


Assim, resolvida a questão semântica, importa afirmar que muitas são as teorias referentes às origens de sociedades políticas, ou do Estado lato sensu.


Desse modo, a primeira teoria que pode ser destacada, trata-se da Teoria da Origem Patriarcal do Estado, também chamada de Teoria da Origem familiar.


Tal teoria sustenta que o poder político é derivado do núcleo familiar. Portanto, a sociedade política então se constituiria como uma ampliação da esfera familial de poder. Entretanto, Darcy Azambuja pondera que apesar da sociedade derivar da família, não se pode considerar que o Estado, de forma geral, assim o foi.[5]


Outra teoria que poderia ser enfeixada refere-se à Teoria da Origem Violenta do Estado. Por tal teoria, também chamada de Teoria da Força, a origem do Estado está ligada à dominação de um grupo social sobre os demais.


Tal teoria inspirou-se na teoria evolucionista de Charles Darwin, e, mais propriamente, numa visão de seleção natural que observaria o Estado como o resultado da luta de forças sociais para a tomada e controle do poder político.


Como explica Darcy Azambuja, teorias que concebem a origem violenta do Estado propugnam pela existência de um darwinismo político baseado numa forma de maquiavelismo que inclui no conceito de força não só a violência, mas também a astúcia[6].


De outra parte, a Teoria da Formação Natural do Estado explica, por seu turno, que o Estado é um fenômeno natural, resultante da própria natureza gregária do ser humano.


Tal concepção é desenvolvida por Darcy Azambuja[7], a partir dos seguintes parâmetros:


“Quando as sociedades primitivas, compostas já de inúmeras famílias, possuindo autoridade própria que as dirigia, se fixaram num território determinado, passaram a constituir um Estado. Este nasce, portanto, com o estabelecimento de relações permanentes e orgânicas entre os três elementos: a população, a autoridade ou o poder político e o território.”


Finalmente, a Teoria da Origem Contratual do Estado, baseia-se em uma concepção sócio-contratualista do poder político.


Tal teoria assevera um modelo racionalista baseado na idéia de consentimento entre os governados para a formação deste poder.


Sobre a importância que tal teoria representou na evolução social, a partir da concepção de um novo paradigma estatal, fundamentado em uma igualdade formal, Paulo Bonavides[8] comenta que:


“A Filosofia política, expendida em livros do quilate do Contrato Social de Rousseau ou do Espírito das Leis de Montesquieu, teve na época sentido altamente subversivo, porquanto, inspirando a ação revolucionária, traçou a linha- mestra das mutações profundas da sociedade.”


Nesse sentido, a par das várias teorias que justificam o surgimento do Estado, o mesmo se constitui em liames extremamente fortes, visto que a idéia de nação representa um conceito seminal que se sobrepõe a vários outros valores sociais.


Assim, Manoel Gonçalves Ferreira Filho[9], ao evidenciar tal temática, explica que:


“Esta experiência assinala, além disso, que os vínculos nacionais sobrepujam a quase todos os outros, como a de classe social. Só não parece prevalecer sobre o liame religioso, que, aliás, tem íntima ligação com as características tradicionais de uma nação. É, certamente, um dos elementos que mais contribuem para a sua unidade.”


Tanto é assim que mesmo obscurecida por pressões políticas, a sombra do Estado volta a se conformar no primeiro raio de sol.


Nesse sentido, valendo-se ainda dos ensinamentos de Manoel Gonçalves Ferreira Filho[10], temos que:


“E essa sobrevivência de nações prova-a o fato de que ressurgem, na primeira oportunidade, com grande viço, mesmo depois de longo período em que pareciam acomodadas. E isto ocorreu tanto quando houve forte e violenta repressão contra elas como quando uma política de persuasão e igualdade foi executada.”


Portanto, o fenômeno Estatal está vinculado à experiência humana de forma indelével.


Assim, a partir da experiência histórica da raça humana, sua evolução civilizatória vicejou em agrupamentos sociais, as quais, em seus vários matizes, evoluíram, desaguando, invariavelmente, no Estado, por imperativo absoluto de sobrevivência do homem.


3. DA GÊNESE DO CONCEITO DE SOBERANIA ESTATAL


Inicialmente, há que se ponderar que a idéia de soberania Estatal liga-se à reflexão de uma realidade coercitiva.


Assim, a idéia de Estado liga-se a idéia de poder. E idéia de poder está na base de todas as definições de ciência política.


Nesse sentido, ainda, Dalmo de Abreu Dallari[11] explica que:


“De fato, porém, apesar do progresso verificado, a soberania continua a ser concebida de duas maneiras distintas; como sinônimo de independência, e assim tem sido invocada pelos dirigentes dos Estados que desejam afirmar, sobretudo ao seu povo, não serem mais submissos a qualquer potência estrangeira; ou como expressão de poder jurídico mais alto, significando que, dentro dos limites da jurisdição do Estado, este é que tem o poder de decisão em última instância, sobre a eficácia de qualquer norma jurídica.”


O conceito de Soberania aparece definitivamente concebido por Jean Bodin. Trata-se de um conceito elaborado num determinado momento histórico, quando se produzia a afirmação da monarquia absoluta como regime de governo capaz de assegurar a paz social, tanto frente às guerras religiosas como diante de potenciais invasores ou poderes externos, como por exemplo, o Papado de Roma.


Tal fenômeno, visto mais de perto, é explicado por Darcy Azambuja[12], o qual se expressa nos seguintes termos:


“Inicialmente, portanto, a soberania era um grau, uma qualidade do poder real, e não esse poder em si mesmo. Em breve, porém, continua Carré de Malberg em sua obra citada, essa noção ia obscurecer-se. Os legistas da época começaram a denominar soberania o conjunto, a totalidade dos poderes do monarca ou do Estado, e assim ela passou a ser característica mesma do poder, da autoridade política, o que a distinguia de todos os outros poderes e autoridades. Uma outra confusão, ainda mais deplorável, veio juntar-se a esta. Como o poder supremo fora conquistado pelos reis e era exercido por eles, a soberania fundiu-se com a qualidade do rei. O rei, e não o Estado, é que era o soberano. A soberania deixou de ser o poder do Estado, o que já constituía uma confusão, para ser um poder existente dentro ou mesmo acima do Estado, encarnado na pessoa do rei. O rei era o detentor único, o verdadeiro titular da soberania.”


Nessa seara, ainda, Manuel Gonçalves Ferreira Filho[13] pontua que: “Deve-se assinalar que o Estado, no sentido estrito da palavra, surge na História no exato momento em que certos monarcas, como os franceses, se afirmam detentores do mais alto poder, recusando sujeição quer ao Papado, quer ao Império”.


Por tal razão, a Soberania foi concebida como uma prerrogativa, ou mesmo um poder, supremo, tanto frente a instâncias interiores como exteriores.


Esse caráter supremo, predicado que num primeiro momento foi do “soberano”, foi mantido como prerrogativa estatal e teve acolhida nos textos constitucionais desde 1789 até nossos dias, ordinariamente, a partir do preceito, mediante o qual a Soberania pertence à Nação. Por tal motivo, alguns doutrinadores associaram-na à idéia de Poder Constituinte.[14]


Portanto, a soberania é a expressão mais acentuada do poder político. Por tal razão, aliás, a gênese do Estado se liga, de maneira indelével ao conceito de soberania.


Nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho[15] explica que: “Nação e soberania são dois pontos de referência na análise de questões referentes ao Estado. A partir do primeiro pode-se discutir o futuro do Estado; concerne ao segundo a construção do Estado do futuro”.


Apesar de figura como um dos elementos estruturais do Estado, sem a soberania, o Estado não poderia vicejar como organização social.


E nessa seara, ainda, não é sem razão, que Manuel Gonçalves Ferreira Filho[16] pondera que:


Depreende-se dos conceitos expostos que o Estado apenas é verdadeiramente Estado quando o poder que dirige é soberano.


É incontestável que hoje quando se fala em Estado vem à mente a idéia de uma ordem estatal não submetida a outra ordem da mesma espécie. E essa ausência de subordinação é em última análise a soberania. Traço hoje reputado imprescindível ao Estado.


Evidentemente isso não quer dizer que, sob o aspecto moral, não estejam as regras positivas subordinadas a outras normas nem que a organização estatal não possa subordinar-se a normas resultante do longo uso nas relações internacionais.”


Assim, pode-se induzir sua conexão indelével ao fenômeno Estatal. Para tanto, valendo-se dos ensinamentos de Manuel Gonçalves Ferreira Filho[17], constata-se, quanto ao nascimento do Estado Nacional, em sua acepção Monárquica:


“Deve-se assinalar que o Estado, no sentido estrito da palavra, surge na História no exato momento em que certos monarcas, como os franceses, se afirmam detentores do mais alto poder, recusando sujeição quer ao Papado, quer ao Império.”


Portanto, o Estado não pode existir sem soberania. Ao menos em sua conformação plena.


Por tal razão, Sahid Maluf[18] explica que:


A exata compreensão do conceito de soberania é pressuposto necessário para o entendimento do fenômeno estatal, visto que não há Estado perfeito sem soberania. Daí haver Sampaio Dória dado ao Estado a definição simplista de organização da soberania. (…)


Soberania relativa ou condicionada por um poder normativo dominante não é soberania. Deve ser posta em termos de autonomia, no contexto geral do Direito.


Denomina-se o poder de soberania, entre romanos, suprema potestas. Era o poder supremo do Estado na ordem política e administrativa. Posteriormente, passaram a denominá-lo poder de imperium, ou amplitude internacional.”


Nesse sentido, ainda, Paulo Bonavides[19] pontua que:


“Mas nunca deslembrar que foi a soberania, por sem dúvida, o grande princípio que inaugurou o Estado Moderno, impossível de constituir-se se lhe falecesse a sólida doutrina de um poder inabalável e inexpugnável, teorizado e concretizado na qualidade superlativa de autoridade central, unitária, monopolizadora de coerção.”


Nesse sentido, evoluindo na conformação desse instituto, Maurice Duverger[20] apresentando uma ponderação que enlaça a soberania como a expressão do poder político, explica que:


“A soberania do Estado é o fato de o Estado estar situado no topo da hierarquia dos grupos sociais, de não haver nenhum grupo acima dele. Definir o Estado pela soberania é afirmar que a sociedade internacional é formada de Estados absolutos independentes uns dos outros, limitados apenas por sua vontade própria (o que chamamos de autolimitação).”


E prossegue, concluindo, Maurice Duverger[21], que:


“Nessa concepção, o direito internacional só pode ser baseado sobre o acordo entre Estados e sua boa vontade no respeito a esse acordo. Sob um outro ponte de vista, a teoria do Estado soberano afirma que só o Estão se beneficia dessa qualidade: os outros grupos, ao contrário, estão sempre sem ele. Do “soberano” decorrem a autoridade, o poder; as outras comunidades além do Estado, são, pois, organizadas por ele; dele recebem sua existência jurídica e sua prerrogativas, e estão submetidas à sua autoridade.”


Conecta-se, a soberania, dessa forma, a um paradigma que espelha a aceitação, tanto interna quanto externa, do poder Estatal.


Portanto, a soberania é um fenômeno que se apresenta com nuances várias. Dificilmente restringe-se a uma concepção simplista e estática, mesmo sob os enfoques mais comezinhos.


Assim, buscando lançar mais luz sob esse obscuro conceito, cita-se a doutrina de Luigi Ferrajoli[22], o qual apresenta a seguinte concepção: “Soberania é o conceito, ao mesmo tempo jurídico e político, em torno do qual se adensam todos os problemas e aporias da teoria juspositivista do direito e do Estado”.


Nessa toada ainda, refletindo a idéia acima exposta, André Ramos Tavares[23] assevera que:


Sobre soberania, um dos elementos objetivos do Estado, como muito bem ponderou SANTI ROMANO, trata-se de um dos mais obscuros e controvertidos conceitos. (…)


Nessa mesma ordem de considerações, GIORGIO DEL VECCHIO assinala, com relação ao Estado, que “(…) a soberania está implícita em sua própria natureza”.


MACHADO PAUPÉRIO também expõe essa noção, referindo-se a um significado vulgar de soberania como o poder incontrastável do Estado, acima do qual nenhum outro existe.


Assim, dois são os elementos fundamentais na noção tradicional de soberania: a independência na ordem internacional e a supremacia na ordem interna.”


De outra parte, evoluindo nessa acepção, a partir da adoção de uma linha de raciocínio mais abrangente, chega-se, invariavelmente, à conclusão de que a soberania justifica e acolhe o direito do Estado de elaborar as suas próprias leis.


E dessa derivação, evidencia-se a ligação umbilical entre o Estado e o Direito.


Nesse sentido, Said Maluf[24] explica que:


“A soberania é uma idéia abstrata. Não existe concretamente. O que existe é apenas a crença na soberania. Estado, Nação, Direito e Governo são uma só realidade. Não há direito natural nem qualquer outra fonte de normatividade jurídica que não seja o próprio Estado e este conceitua-se como organização da força a serviço do Direito. Ao conceito metafísico de soberania nacional, opõe Duguit o conceito simplista de regra de direito como norma de direção social. Assim, a soberania resume-se em mera noção de serviço público.”


A soberania, portanto, liga-se ao Estado a partir de uma concepção que se amolda ao poder de decisão em última instância e a capacidade de impor a sua vontade estatal própria, nessa seara.


Por tal razão, Sahid Maluf[25] conceitua, como já reflexamente mencionado: “Soberania é uma autoridade superior que não pode ser limitada por nenhum outro poder.”


A soberania está, desse modo, relacionada, ao monopólio da coação legal, que constitui a autêntica essência ideológica do Estado.


Assim, Manuel Gonçalves Ferreira Filho[26] enuncia que:


Depreende-se dos conceitos expostos que o Estado apenas é verdadeiramente Estado quando o poder que dirige é soberano.


É incontestável que hoje quando se fala em Estado vem à mente a idéia de uma ordem estatal não submetida a outra ordem da mesma espécie. E essa ausência de subordinação é em última análise a soberania. Traço hoje reputado imprescindível ao Estado.


Evidentemente isso não quer dizer que, sob o aspecto moral, não estejam as regras positivas subordinadas a outras normas nem que a organização estatal não possa subordinar-se a normas resultante do longo uso nas relações internacionais.”


E em visão mais peculiar, ao mencionar a definição de Jurisdição, Moacir Amaral dos Santos[27], esclarece que:


“É função do Estado desde o momento em que, proibida a autotela dos interesses individuais em conflito, por comprometedora da paz jurídica, se reconheceu que nenhum outro poder se encontra em melhores condições de dirimir os litígios do que o Estado, não só pela força de que dispõe, como por nele presumir-se interesse em assegurar a ordem jurídica estabelecida.”


Portanto, a Soberania possui duas faces. Uma face externa e outra interna. A face interna. A primeira reflete a vontade soberana do Estado, quer dizer, a vontade que predomina sobre a dos indivíduos e grupos sociais existentes em seu território. É o “direito de mandar”, voltado para o poder do Estado sobre as demais estruturas internas da sociedade. A face externa, a seu turno, refere-se à vontade independente do Estado, ou seja, a vontade que não permite que o Estado se subordine, total ou parcialmente, à vontade de outros Estados.


Na prática, entretanto, tem-se percebido que o Estado não possui vontade inquestionável e ilimitada para se relacionar com outros países, e tampouco tem o poder de decidir o que quiser com relação à sua população.


Cotejadas essas ponderações, em suma, soberania poder ser conceituada como o poder que teria uma comunidade nacional alçada em Estado, de dizer aos demais Estados que seria senhora do seu destino político, não admitindo qualquer ingerência exterior nos assuntos de seu exclusivo interesse.


4 – A RELATIVIZAÇÃO DA SOBERANIA E A DESCONSTRUÇÃO DO ESTADO


Como referido, a soberania era o elemento que caracterizava, de forma definitiva, o Estado Moderno.


É nesse sentido, justamente, que Paulo Marcio Cruz[28] tece suas explicações, nos seguintes termos:


“Assim, a proclamação da Soberania como independência ante qualquer poder externo tornou-se uma manifestação característica e essencial do Estado Moderno desde seu início. A consolidação do princípio democrático supôs a reafirmação da soberania com relação ao exterior, passando a ser proibida qualquer interferência nas decisões internas da comunidade, adotadas livremente por esta. Em muitos casos, como nos movimentos pela independência colonial, estavam unidas aspirações pelo estabelecimento do sistema democrático e a consecução da independência nacional”.


Entretanto, o mundo, em sua feição atual, exige que o Estado se conforme à sua realidade.


E nesse sentido, dentre os elementos estruturais do Estado, a Soberania é o elemento que mais se modificou.


Assim, com a nova ordem mundial, o Estado passa a sofrer, tanto internamente, quanto externamente, a remodelação de sua feição estrutural; tendo, necessariamente, de adequar-se a essa nova conformação.


Tal fenômeno é apontado por Simone Goyard Fabre[29], a qual pondera que:


“O direito político do Estado moderno viu-se confrontado, no plano interno bem como no internacional, com a remodelação, até mesmo com uma rejeição de seus conceitos diretrizes. Muito particularmente, as idéias do contrato social e de soberania, essenciais à concepção do direito político do Estado moderno, ocasionaram um reexame profundo.”


Assim, atualmente, o Estado, a par da sua derivação conceitual variada, ocupa posição limítrofe quanto a sua existência conformativa. E, já se ouvem vozes de defendam a idéia de seu desaparecimento, frente ao surgimento de blocos econômicos derivados de um processo globalizante crônico em contraposição ao exercício de uma soberania cada vez mais cambiante.


Tal consideração é apontada por Raquel Frantantonio Perini[30], nos seguintes termos:


“Uma coisa é certa: boa parte dos autores atuais já fala abertamente sobre a necessidade de se reformular o conceito de soberania, para adaptá-lo à realidade atual, ou, no mínimo, reinterpretá-lo. O que fazer: buscar um novo conceito de soberania ou apenas “moldar” o conceito atual de forma a enxergar nele as características necessárias à soberania nos dias de hoje?”


A importância histórica dessa concepção está em haver objetivado uma conciliação entre Poder e Direito, entre ser e dever-ser. Essa síntese, sempre problemática, mas possível, buscou identificar um Poder supremo e absoluto, mas submetido à Lei, com o Poder da Sociedade política. Assim, possibilitou a racionalização jurídica do Poder, no sentido de transformação da capacidade de coerção em Poder legítimo. Ou seja, na transformação do Poder de Fato em Poder de Direito, configurando um dos pilares teóricos do Estado Constitucional Moderno.


Nesse sentido, Paulo Bonavides[31] pondera que:


O conceito de soberania agrega-se. Porém, ao Direito em nossa concepção. Assim, unificado, aufere ele uma cidadania que nem sempre é possível reconhecer ou admitir, quando se adota o entendimento de que a essência da soberania repousa por inteiro na vontade do Estado enquanto expressão única e material de força e poder.


Por essa via reflexiva, a soberania cessa de ser tão-somente a coerção inculcada em sua feição rude e material, para se transverter em força do Direito, que estende o braço da autoridade sobre a cabeça do cidadão, faz legítimo o órgão de vontade a que o elemento social dá obediência e torna eficazes as tábuas da Constituição.”


Entretanto, com o final da Segunda Guerra Mundial, os Estados passaram a fazer parte de uma sociedade internacional, regida por normas próprias.


Assim, o Estado Constitucional Moderno Soberano passou a se vincular as obrigações externas, advindas, por exemplo, de tratados bilaterais, de convenções multilaterais ou práticas costumeiras.


E nessa seara, pela atuação derivada de diversos fatores que surgiram com a globalização capitalista, somada à realidade de um mundo multipolar, no qual se produz uma crescente transnacionalização dos processos de decisão política, emergiu uma nova conceituação de Soberania, essencialmente limítrofe à manifestação de vontade estatal.


Nesse sentido, André Ramos Tavares[32], a traçar um paradigma entrelaçando a possibilidade de existência do Estado na nova ordem mundial, presente e futura, assevera que:


“E como ensina REINHOLD ZIPPELIUS, a soberania só cessa quando o Estado perde o poder de decisão. E isso não está longe de ocorrer, no momento presente. Apenas que há de se desvendar o caminho que esse poder irá trilhar até se alojar e criar uma outra instância decisória, um outro centro de comando, que tanto poder ser decorrente de uma comunidade de estados como de um estado global, já agora num futuro mais longínquo.”


Dessa forma, atualmente, torna-se extremamente dificultoso a identificação de alguma Soberania que seja, muito menos a Soberania na sua conformação clássica, ou seja, aquela concebida pelas luzes da modernidade.


As fronteiras são permeáveis e perdem sua razão de ser em um contexto no qual atores não-estatais podem comunicar-se através do espaço.


Esse paradigma atualmente experimentado pelas nações ao redor do globo é percebida por Paulo Bonavides[33] o qual explica que:


A soberania constitucional estampa, portanto, a face do Direito que aí avulta, associada, indissolúvel, aos conceitos gêmeos de soberania popular e soberania nacional.


Trata-se de uma confluência postulativa, suscetível de salvaguardar, preservar e reerguer das suas ruínas teóricas o modelo e a definição de suprema potestas, tão apoucada, tão combatida, tão exorcizada, por derradeiro, conforme já assinalamos, pela inconfidência dos juristas da globalização e do Neoliberalismo, que conspiram contra o povo e contra a independência da Nação, no intento de lhe destituir a soberania.”


Assim, o Estado Constitucional Moderno deixou de ser um ator unitário para converter-se num marco a mais, não o único, no qual se negociam e resolvem as diferenças políticas.


A ação coletiva cada vez escapa mais da jurisdição do Estado Constitucional Moderno. Por tal razão, aliás, fica cada vez mais difícil manter a idéia do Estado como garantia – ou depositário – do interesse geral.


Nesse sentido, Said Maluf[34] explica que:


Atualmente, as nações integram uma ordem constitucional, e, dentro dessa ordem superior, o poder de autodeterminação de cada uma limita-se pelos imperativos da preservação e da sobrevivência das demais soberanias.


Na ordem internacional, essas limitações decorrem das participações dos Estados em organizações internacionais, são justificadas pelas necessidades de coexistência pacífica, segurança e desenvolvimento e são alavancadas pela globalização (…).


A globalização, assim considerada, produz reflexos no conceito de soberania, na medida em que acaba por atingir cada país de forma desigual, na proporção da riqueza, poder, ou desenvolvimento social, econômico e tecnológico de cada um”.  


Do mesmo modo, Walter B. Wriston[35] pondera que:


“A emergência da informação como a forma proeminente de capital inverte este impulso em direção ao poder centralizador. A nação-Estado não desaparecerá; na verdade, aparecerão muitas novas nações. Nem a soberania desaparecerá, seja como idéia ou como instituição. Mas o poder do Estado diminuirá, particularmente seu poder soberano: o poder para julgar sem ser julgado, para delimitar os poderes e privilégios das demais instituições dentro da sociedade”.


Nesse sentido, ainda, Gomes Canotilho[36] assevera que “hoje os fins dos estados podem e devem ser os da construção de “Estados aberto e internacionalmente “amigos” e “cooperantes” no plano externo”.


Assim, Noberto Bobbio propugna pela necessidade de se proceder a uma nova síntese jurídico-política capaz de racionalizar e disciplinar juridicamente as novas formas de Poder, as novas autoridades que estão surgindo.


Nesse sentido, ainda, Noberto Bobbio[37] assevera que:


O Poder dos estados nacionais pode-se dizer, encontra-se em adiantado processo de deterioração. Não é o Poder que desaparece, mas sim uma forma específica de sua organização, que teve seu ponto forte no conceito jurídico-político de Soberania.


A importância histórica desta concepção está em haver objetivado uma conciliação entre Poder e Direito, entre ser e dever ser. Esta síntese, sempre problemática, mas possível, buscou identificar um Poder supremo e absoluto, mas submetido à Lei, com o Poder da Sociedade política.”


E conclui, Noberto Bobbio[38], asseverando que:


Com a crise desta concepção de Soberania, vários autores indicam uma leitura atenta dos fenômenos políticos que estão ocorrendo. Como escreve Bobbio, é preciso proceder a uma nova síntese jurídico-política capaz de racionalizar e disciplinar juridicamente as novas formas de Poder, as novas autoridades que estão surgindo.


Este processo de fenecimento da Soberania está, muito provavelmente, vinculado com o fenecimento do próprio Estado.”


Defende-se, desse modo, que a existência de uma Sociedade internacional e, conseqüentemente, de obrigações vinculantes para o Estado Constitucional Moderno, não é incompatível, em princípio, com a Soberania deste.


Nesse sentido, ainda, André Ramos Tavares[39] pondera que:


Vale lembrar, ainda, a posição defendia por LÉON DUGUIT, que se enquadra naquilo que se convenciona denominar teoria negativista da doutrina, concepção segundo a qual a soberania não passa de uma idéia abstratamente concebida. Assim, segundo esse autor, o que há é a crença na soberania, que atualmente estaria em declínio.


MARITAN enfrenta o problema da soberania posicionando-se pela necessidade de voltar a atenção para os supremos interesses da Humanidade, de que fala MACHADO PAUPÉRIO, não glorificando um conceito essencialmente abstrato como o de soberania, tal como demonstrado por DUGUIT.”


E conclui, lançando argumentos no sentido de justificar a possibilidade de uma consideração secundária da soberania na conformação Estatal, a partir das seguintes enunciações:


Também CELSO BASTOS pondera, com muita precisão: “À pergunta que formulamos de se o termo soberania ainda é útil para qualificar o poder do Estado, deve ser dada uma resposta condicionada. Estará caduco o conceito se por ele entendermos uma quantidade certa de poder que não possa sofrer contraste ou restrição. Será o termo atual se com eles estivermos significando uma qualidade ou atributo da ordem jurídica estatal”.


Nesse passo, e ainda segundo REGIS FERNANDO DE OLIVEIRA, acentua-se que a soberania já não possui a mesma força vital que lhe era dirigida em épocas passadas. Isto porque: “entende-se atualmente que a soberania não é um poder absoluto nem ilimitado. Tampouco essencial à definição de Estado, como queria Bodin”.”


Portanto, a preservação do Estado em nossa realidade mundial justifica-se na compatibilidade de sua soberania com a Ordem Internacional, a partir da noção de que seus compromissos internacionais derivam de seu consentimento.


Dessa forma, ficaria ressalvada a doutrina da soberania, mas permaneceria viva. Essa idéia é defendida, ainda, por Manoel Gonçalves Ferreira Filho[40], o qual pondera que:


“Esta integração, contudo, não significará a extinção de tais Estados que continuarão a existir como integrantes do novo ente. Sem dúvida, isto tenderá a eliminar do quadro político o elemento “soberania”, no sentido preciso do termo, embora o uso deste possa sobreviver, sobretudo, por motivos de orgulho nacional.”


Assim, a nova conformação da soberania não representa a sua extinção, desde que se considere a vontade do mesmo na implementação dos compromissos internacionais.


Entretanto, a bem da verdade, a soberania parece estar intrinsecamente ligada ao poderio econômico; ela não passa do plano conceitual para o real se não estiver acompanhada de poder econômico. É claro que os Estados sempre interferiram uns na soberania dos outros, invadiram, colonizaram, escravizaram, mas na atualidade a limitação da soberania por meios não bélicos tornou essa interferência muito mais sutil: o Estado é soberano em teoria (por isso é Estado), mas, na prática, gerencia seus assuntos internos e internacionais mais pensando na reação mundial ou de determinados países do que conforme aquilo que poderia fazer enquanto Estado soberano.


Na prática, o que se vê é que a soberania tem graus quase infinitos, que variam de acordo com o poder econômico que cada país possui. Em outras palavras, a soberania muda conforme as formas de organização do poder e, hoje, quem tem o poder é quem tem o poder econômico.


Tem-se, então, uma disparidade entre o conceito e a realidade, disparidade essa que tende a aumentar, caso o conceito de soberania não seja revisto. A soberania do Estado não é ilimitada e tampouco é o Estado completamente independente.


5. DA SUBLIMAÇÃO DO ESTADO E A CRISE DE EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS – LIQUIDANDO AS CONSTITUIÇÕES DIRIGENTES


O Estado na sociedade contemporânea apresenta um papel fundamental na proteção da dignidade humana. Elemento, sem a qual, o retrocesso evolutivo poderá ser vislumbrado antes da metade desse século.


Nesse sentido, reafirmando o papel do Estado em nosso tempo, Darcy Azambuja[41] assevera que:


“Na sociedade contemporânea, mais do que nunca, o Estado é o guardião da liberdade. Reivindicada outrora contra os governos absolutos, a liberdade atualmente encontra sua maior garantia no poder do Estado, através do direito. Nos regimes verdadeiramente democráticos, ela não é ameaçada pelo poder do Estado, e sim pelos indivíduos, gregarizados por fanatismos políticos, por ideologias da violência, como o nazismo de Hitler, o fascismo de Mussolini, a ideologia materialista de Marx e o pensamento concreto de MaoTsé-tung. Contra elas o poder tem de elaborar leis de emergência, que são direitos porque interpretam a reação da consciência social contra os que ameaçam submergir as liberdades humanas, nas vagas vermelho-negras do inumamismo totalitário.”


Por tal razão, a sociedade organizou-se em torno do conceito de Estado.


Por sua vez, o Direito advém do Estado, fonte da qual ele emana.


Assim, apesar do Direito não ser criado pelo Estado, é esse que o avaliza, concedendo-lhe concretude.


E, justamente nesse sentido, Darcy Azambuja[42] conclui que:


“Nos regimes democráticos não pode haver antinomia nem submissão entre Estado e direito. O Estado não cria o direito, apenas o promulga, cumpre e faz cumprir. O Estado é o direito institucionalizado, é o direito que se realiza por meio da ação dos órgãos institucionais. O direito é idéia, a do bem público, encarnada no Estado. Não se confundem, mas se integram numa síntese, como o corpo e a alma do homem.”


Ocorre que na conformação mundial que se apresenta em nosso tempo, o Estado, cada dia mais enfraquecido, cede espaço à ordem internacional, a qual se insere na ordem interna, realocando os valores constitucionalmente construídos, a partir da experiência histórica de cada povo.


Nesse sentido, Reinhold Zippelius[43] explica que:


“Como já foi referido, podem em particular as interdependências inter-estatais conduzir a ingerências na soberania. Assim, p.ex., na relação entre superpotências e Estados satélites, pode perder-se a possibilidade do direito interno destes últimos se realizar contra as intervenções do Estado hegemônico. Mas também em processos juridicamente formais de interação inter-estadual é possível uma aproximação gradual a um point of no return a partir do qual um Estado membro já não pode contrariar, com toda a eficácia do direito interno, os acordos comuns e as disposições dos órgãos supranacionais (ver abaixo III).”


E prossegue Reinhold Zippelius[44], evocando a definitividade do quadro atual, em que os Estados não possuem escolha outra, que não ceder aos imperativos da ordem internacional, ponderando que:


Tais sistemas de integração inter-estatal são hoje em dia praticamente imprescindíveis (parágrafo 40 I). Com a intensificação dos laços e interdependências internacionais diminui, porém, a flexibilidade de os Estados, se agruparem “de forma soberana”, dentro da comunidade das nações, consoante a “mudança das exigências da política mundial, e “de acordo com princípios flexíveis no sentido da formação de constelações de equilíbrio sempre diferentes” (Erler 1955, 39 s.). Esta desmobilização do arrangement internacional restringe sobretudo a margem de acção dos Estados que interam um dos grandes sistemas de alianças.


Finalmente, também se pode imaginar que, com a progressiva organização da comunidade das nações, as vinculações de direito internacional obtenham crescente eficiência para se imporem contra o direito nacional contrário. Isto significa que as normas internas contrárias ao direito internacional perdem, então, a possibilidade segura da sua aplicação regulada. Assim se chega a uma fase transitória, que, deixando para trás o dualismo entre o direito nacional e internacional (II 3), conduz a uma ordem jurídica supra estatal, eficaz e homogênea (II 2).”


Assim, o Estado detém os procedimentos de elaboração e aplicação do Direito.


E nesse sentido, sem adentrar na polêmica entre monistas, dualistas e pluralistas, fato é que do Estado, ao menos, provém o direito institucionalizado.


Portanto, para o Estado, o valor absoluto é o ser humano, razão de sua conformação. E por tal razão, o Estado apresenta uma relação latente com o Direito.


Sua presença ao longo da história, em suas várias roupagens, coadjuva com a do Direito. Esse fenômeno é justamente apontado pela doutrina de Luiz Fernando Coelho[45], o qual explica que:


“O Estado é, portanto, o pressuposto basilar de toda essa mitologia, pois se o considera criador do direito ou cooptador das regras de conduta pertencentes a ordens normativas por não-jurídicas. Ele é apresentado na dogmática do direito público como ente real e transparente, uma essência anistórica que sempre existiu, embora resistido de formas históricas variáveis. É o que está implícito no adágio ubi societas ibi ius, tratando a filosofia política de explicá-lo como algo além e acima dessas aparências históricas.”


Assim, o direito institucionalizado é a única forma possível de promoção dos direitos do homem, em seu amplo espectro, sem a figura do Estado, esses ficam a mercê de critérios subjetivos e variáveis, na forma de direitos humanos, a depender do consenso internacional, com reduzido espectro de aplicabilidade; ante a rarefeita estrutura burocrática dos organismos internacionais.


Portanto, a seminal ligação entre o Estado e o Direito é fundamento de existência e aplicabilidade dos direitos fundamentais.


Tal noção é trazida por Darcy Azambuja[46], o qual pondera que:


“O direito está intimamente ligado ao Estado que se pode dizer que lhe é intrínseco e consubstancial, tanto que alguns pensadores considerem o Estado como um sistema de normas jurídicas. Por isso é lícito afirmar que o direito, nos Estados modernos, é por excelência o instrumento para realizar o bem público.”


Assim, o enfraquecimento do poder Estatal representa o enfraquecimento do Direito, instrumental normativo necessário à promoção da dignidade da pessoa humana.


Portanto, o Direito em si, e a estrutura estatal conformativa e concretizadora dos direitos do homem encontra-se ameaçada, pelo processo de relativização da Soberania. Seja, porque a principal fonte produtora do Direito poderá vir a desaparecer; seja, por outro lado, pelo fato de que toda a estrutura burocrática do estado se desmantelaria, o que redundaria na ausência de conformação real dos direitos de primeira dimensão, e não supressão dos direitos de segunda dimensão, pela ausência de políticas públicas – raciocínio aplicável aos direitos englobados nas demais dimensões.


De outra parte, a identidade nacional, vertida no sistema normativo estatal, viabilizada pelos processos democráticos institucionalizados, deixaria de existir, gerando uma crise de identidade, com o desaparecimento dos Estados Nacionais.


A simples alegação de que o Estado Constitucional Moderno assume voluntariamente suas obrigações internacionais, ficando, dessa forma, submetido ao Direito Internacional por sua própria vontade soberana, não é convincente para se sustentar quando posta à prova.


Ocorre que tal ponderação, volta-se, preponderantemente, ao aspecto externo ao Estado, considerando seu intento associativo, por razões econômicas ou de segurança, ante os imperativos factuais da globalização. Não considera, em profundidade, pensamos, as conseqüência de tal fenômeno, em seu plano interno.


Nesse ponto, Jürgen Habermas[47], ao tratar da soberania e identidade nacional, já na década de noventa, apontava que:


“A aproximação entre os Estados da Comunidade Européia Européia, especialmente através do mercado interno, que entrará em vigor a partir de 1993, coloca numa nova luz a relação entre Estado nacional e democracia, pois os processos democráticos, constituídos em nível de Estado nacional, não conseguem atingir o nível de integração econômica realizada em nível supranacional.”


Entretanto, tal noção defendida por Jürgen Habermas é contraposta por vozes doutrinárias, as quais propugnam pela necessidade de integração econômica, ante o imperativo de sobrevivência das nações, buscando justificar-se na argumentação já mencionada, de que o Estado voluntariamente, a partir de sua soberania, contrai obrigações para si, por meio de tratados.


Nesse sentido, o ensinamento de André Ramos Tavares[48] refletem essa maneira contemporânea e poderia-se dizer, inexorável, de se enxergar o fenômeno da relativização da Soberania Estatal. Assim, pontua que:


“De pronto, é preciso enfrentar verdadeiros “tabus” científicos. A soberania não pode ser encarada como elemento perigoso, cujo manuseio pode levar à desgraça de uma nação. Afinal, a integração econômica é imprescindível, e para ela há de convergir a soberana vontade de qualquer Estado. Na realidade, o fenômeno da integração comunitária dos Estados só foi possível graças ao fato de os Estados concordarem em compartilhar suas soberanias.”


Como reflexo desta concepção, aliás, as Constituições passaram a prever que o Estado Constitucional Moderno “soberano” poderia assumir voluntariamente obrigações internacionais.


E nesse sentido, tais obrigações, por previsão constitucional, passaram a depender da aprovação dos parlamentos respectivos, de modo a se legitimar essas obrigações internacionais pelo titular do Poder Soberano.


Entretanto, a legitimação pelo titular do Poder Soberano opera-se em um plano meramente formal, visto que, por razões que prescindem os interesses próprios dos Estados, os mesmos têm de aderir aos compromissos internacionais, por uma simples razão de sobrevivência econômica.


Nesse sentido, Manoel Gonçalves Ferreira Filho[49] assevera que:


O atual tipo de Estado, o Estado de base nacional, de poder soberano, ajusta-se mal ao fenômeno da globalização. É ele “pequeno” demais para controlar as conseqüências da mundialização das questões econômicas e de segurança.


Em vista disto, nota-se uma tendência ao seu reagrupamento em unidades maiores. Isto, entretanto, não deverá levar a um Estado mundial, em vista da persistência e, mais, da oposição entre civilizações existentes.”


Esse viés predatório do contexto econômico que fulcra o paradigma mundial é sinal de nossos tempos. Indelével capitulação dos Estados menos providos economicamente, frente aos atuais blocos econômicos e potências hegemônicas remanescentes.


Nesse sentido, Raquel Frantantonio Perini[50] pondera que:


Na verdade, a soberania dos outros Estados deve ser também um fator de limitação da soberania, ou seja, o Direito Internacional deve tornar, de certo modo, a soberania do Estado ainda mais relativa.


A vida da comunidade internacional, já foi dito, exige que o Estado moderno se acomode aos supremos interesses da humanidade, sendo obrigado, muitas vezes, em nome da paz e do bem comum internacional, a modificar até mesmo sua própria legislação constitucional. O Estado não pode renegar sua qualidade de participante da atual comunidade de Estados, da mesma forma como a comunidade internacional deve respeitar os direitos dos Estados componentes.”


Desse modo, em que pese o imperativo de respeito, pela comunidade internacional, dos direito dos Estados participantes; interesses de ordem econômica suplantam interesses correlatos à defesa e consagração de direitos fundamentais de seus cidadãos.


Tal fenômeno é vislumbrado por Paulo Márcio Cruz[51], o qual explica que:


“É exatamente no que diz respeito aos Direitos Humanos que o Estado Nacional vem mostrando notáveis indícios de exaustão diante da globalização e das normas jurídicas internacionais. O reconhecimento e garantia de um conjunto de direitos do homem, considerados como fundamentais, foi elemento caracterizador do próprio Estado Moderno, desde sua origem. Apesar deste fato, a história tem mostrado que este reconhecimento estatal/nacional não pôde evitar, em muitas ocasiões e em muitos e diferentes países, que fossem desrespeitados direitos considerados, na cultura moderna e contemporânea, inerentes à dignidade humana em qualquer momento ou circunstância. Particularmente as catástrofes humanas que estão acontecendo na África, em alguns países da América Latina, no Oriente Médio, na Indochina e na Ásia”.


E prossegue, concluindo, Paulo Márcio Cruz[52], que:


“O retrocesso dos Direitos Humanos em muitas áreas do planeta – inclusive naquelas consideradas como as mais “civilizadas” e “cultas” – está dando lugar a uma tendência de deterioração dos Direitos Humanos que foram reconhecidos através de documentos internacionais, como forma adicional de promover seu cumprimento. A Carta das Nações Unidas[12], de 1945, foi o primeiro reconhecimento internacional do primado dos direitos humanos. E no âmbito da Organização foram elaboradas declarações que buscaram o reconhecimento e aceitação destes direitos como regra comum a todos os seus países-membros. O destaque é para a Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas no dia 10 de dezembro de 1948. Esta Declaração teve, inevitavelmente, um caráter genérico, tendo sido complementada por outros documentos posteriores, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ambos de dezembro de 1966.”


O mais grave, aliás, é que a globalização, insistindo na perpetuação desse conjunto estrutural mercadológico, de feição mundial; está criando uma situação de pobreza estrutural, não havendo, com o enfraquecimento da figura do Estado, pela sublimação de sua soberania, o anteparo existente pela função promocional da pessoa humana, desempenhada pelo Direito.


Nesse sentido, Lafayette Pozzoli[53] assevera que:


“A persistência e o constante agravamento dessa realidade mostram que não se trata de uma situação conjuntural, mas de um quadro de pobreza estrutural, grave e ameaçadora. É urgente modificar esse quadro, e neste sentido, o direito tem um importante papel. A pobreza estrutural não é uma fatalidade histórica, mas um desafio à sociedade e uma tarefa a enfrentar. Trata-se de um imperativo ético, de um apelo dos povos, que não se pode abafar. O mundo não pode transforma-se num mercado global, sem outra lei que a do mais forte, mas sim repensar a globalização para introduzir o social, o político e o cultural entre os pontos maiores das preocupações dos blocos de países.”


Desse modo, a conjuntura global verificada em nosso contexto atual, revela uma nova forma de organização do poder Estatal, a partir da inserção dos interesses do capital das grandes organizações corporativas na construção da vontade Estatal.


Alterando-se a convergência de interesses fundantes do Estado, afastando a convergência à defesa do ser humano, para a defesa do capital, representa a refundação do contrato social, sob os auspícios do capitalismo global.


Nesse sentido, Tarso Genro[54]:


Não se trata de interpor uma “parte do povo” – os “pobres” ou “oprimidos” – como novos detentores da soberania. O que se trata é de introduzir, no sistema normativo, regras de disputa destinadas a permitir que a legitimação dos governos e, portanto, as suas fontes da soberania, sejam adequadas a um novo tempo. Um tempo em que se desigualaram radicalmente as “capacidades subjetivas”, individuais e agrupadas, de produção pública da soberania e aumentaram as forças dos interesses privados sobre a totalidade do Estado.


Trata-se de forjar um novo “contrato social”. Não um novo “pacto social”, que sempre foi um recurso jurídico-político das elites em horas de crise da sua hegemonia. Mas um novo “Contrato”, que permita a emergência de novas formas para a constituição de maiorias na sociedade, através de meios diretos de legitimação; e também no parlamento, através da reorganização do espaço da política delegada, que contará com novos impulsos para a produção normativa, “capazes inclusive (…) de dar um novo sentido ao modo de vida atual”.


Portanto, ao se relativizar a Soberania Estatal, e por consequência sublimar o poder do Estado, subtrai-se do povo, instrumento de concreção de justiça.


Desse modo, ao se esvaziar o Estado, retirando-lhe sua fundamentação conceitual, faz-se pouco da construção ideológica protetiva da dignidade humana, embasada na coação normativa que emana do Direito. Arrisca-se perpetrar-se um vácuo normativo, ante a insipiência dos instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos.


Nesse sentido, Simone Goyard Fabre[55] explica que:


“Ora, a experiência e a história nos ensinaram que o direito internacional, mesmo repleto de boas intenções, é freqüentemente desprovido de eficácia: as resoluções da ONU, quaisquer que sejam sua lucidez e sua pertinência, em geral não têm caráter obrigatório e, por conseguinte, não são executórias; podemos, ademais, perguntar-nos para que servem as decisões dos juízes de um tribunal internacional se não é possível, por meio de procedimentos precisos com vocação instrumental, transformar o dever-ser das sentenças num dever-fazer aplicado e obedecido. Não mais na ordem interestadual do que na ordem interna, o direito político não pode satisfazer-se com intenções ou idéias generosas de alcance simbólico; necessita de meios materiais para que suas decisões sejam executadas e produzam efeitos jurídicos.”


Assim, a questão que se apresenta, nessa nova ordem mundial, já em adiantado processo de conformação, se a pessoa humana poderá sobreviver fora da realidade estatal, inserida, porquanto, em uma realidade internacional.


Trazendo perplexidade e esse esboço de vida futura, Simone Goyard Fabre[56] evoca a limitação da Ordem Jurídica Internacional, quanto a aplicação sancionatória, de uma ordem normativa impositiva:


“É preciso que, num mundo em que a obediência consentida é rara, haja medidas que venham sancionar a desobediência dos Estados ou dos indivíduos: por exemplo, não basta que a consciência universal reprove os crimes de guerra, as perseguições ou os atos de terrorismo; cumpre que o direito político possa atribuir-se os meios de punir os que, em qualquer país que seja, atentem contra a dignidade do homem, e, mais ainda, os meios de controlar a aplicação das decisões tomadas.”


Portanto, problemas à vista, considerando que na realidade atual, o Estado é o principal, senão único órgão aparelhado à promoção dos direitos do homem, vertidos, pelas Constituições respectivas, em direitos fundamentais. Esses, inerentes à natureza humana, figurando, em verdade, como seus atributos essenciais.


Tal fenômeno é explicado por Raquel Frantantonio Perini[57], a qual pondera que:


“José Eduardo Faria fala, então, do fim do “monismo jurídico” e o surgimento de uma situação de “pluralismo normativo”, ou seja, a existência de ordens jurídicas autônomas num mesmo espaço geopolítico, “intercruzando-se e interpenetrando-se” de modo constante.”


Portanto, ao se sublimar o Estado, enfraquece-se o direito institucionalizado, e, portanto, aparelhado a se fazer realizar; notadamente quando estamos a nos referir aos direitos sociais.


A força normativa das Constituições, norte axiológico dos Estados é reduzida, senão aniquilada, suplantada por outros valores, os quais não irão sempre se conformar com acepções constitucionais dos direitos do homem.


Tal situação é apontada por Walter Claudius Rothenburg[58], o qual, citando Gomes Canotilho, tece as seguintes considerações:


“A crescente importância do Direito Internacional estremeceu irremediavelmente a autonomia dos países, que já não consegue se sustentar-se no argumento da soberania absoluta. Com isso, a própria força do ordenamento jurídico interno, mitigou-se e tem hoje de levar em consideração a produção e aplicação normativa internacional. A internacionalização – como observa agudamente Canotilho – debilita o “patriotismo constitucional” e torna “evidente a transformação das ordens jurídicas nacionais em ordens jurídicas parciais, nas quais as constituições são relegadas para um plano mais modesto de << leis fundamentais regionais>>.”


E, prossegue, apontando essa aniquilação da força normativa constitucional pelo processo contínuo de sublimação da identidade nacional pelo vórtice globalizante:


“Mesmo que as constituições continuem a ser simbolicamente a magna carta da identidade nacional, a sua força normativa terá parcialmente de ceder perante novos fenótipos políticos-organizatórios, e adequar-se, no plano político e no plano normativo, aos esquemas regulativos das novas <<associações abertas de estado nacionais abertos>>.”


Não é por acaso que tais menções a Gomes Canotilho foram pinçadas, por Walter Claudius Rothenburg do prefácio da segunda edição da Constituição Dirigente. Essa nova conformação mundial está a liquidar esse conceito, expurgando a significação dessas constituições; Constituições Dirigentes, as quais pretendiam dirigir os caminhos do Estado, dando-lhes uma significação própria, fundada em valores ético-humanistas.


Portanto, a relativização da Soberania Estatal, converge, em essência, na desconstrução do Estado, erodindo o Direito, a partir da conspurcação da sua legitimidade democrática, com interesses estranhos ao interesse público, matizados, não raras vezes, por interesses econômicos, a partir de outras instâncias jurídicas.


Nesse sentido, Tarso Genro[59] aponta que:


“A emergência de novas “fontes materiais” de Direito no plano internacional, jamais enfrentadas pelas Constituições democráticas que estruturam os atuais Estados-nação, quanto às restrições que causam ao exercício da sua soberania, obriga que se verifique o real grau de sobrevivência do princípio da soberania delegada, nas atuais condições históricas. Trata-se do surgimento – segundo Capella – do “soberano privado supraestatal” que institui pela força normativa dos fatos no plano internacional, “instâncias privadas de criação do Direito.”


Assim, se tudo continuar como está, o horizonte que se aproxima é da sublimação da pessoa do Estado, submerso pela ordem internacional.


Ao fim e ao cabo, irão restar estruturas institucionais, sem alma, figurando como cadáveres insepultos. O Estado, sem soberania, é um ente sem essência; em suma, sem justificação alguma para sua existência.


E nesse sentido, ensina Herman Heller[60], nos advertindo que:


“Quando se perde a fé na legitimidade da existência do Estando concreto ou do Estado como instituição, pode considerar-se que chegou o seu fim, seja para o povo do Estado, seja para o correspondente círculo de cultura ou inclusive para a humanidade. Nesse sentido, o Estado vive da sua justificação.”


E mais, num futuro mais longínquo, mas possível, restarão, tão somente, lembranças de uma era de idéias que convergiam em instituições cujo intento era composto por esforços de se concretizar a dignidade da pessoa humana, memória da nação de outrora. Sonhos do passado povoados por referências ao ideal de promoção da personalidade humana, em sua nuance social, moral e intelectual; agora perdidas na nova ordem econômica globalizada.


6. CONCLUSÃO


Aquele velho conceito de soberania surgido no século XVI, onde o poder era absoluto e incontrastável, não havendo qualquer outro poder acima do seu, não mais se verifica, em nossa realidade, ante o processo de globalização a que todas as nações do planeta estão submetidas.


A Referida mudança parece dever-se a uma interdependência – principalmente econômica – cada vez maior, devido à globalização da economia. A interdependência dos países, tal como tem se manifestado na atualidade, parece suscitar vários problemas. Assim, se é certo que sempre houve intercâmbios entre os países, nos mais variados setores, sobretudo no setor comercial; é certo também que a facilitação e o aumento da rapidez e da intensidade das relações entre os países, nas últimas décadas, tornou os países muito mais próximos, no sentido de que se formou uma rede de trocas, uma economia global, da qual os países não podem mais fugir.


Nesse contexto, como referido, a independência dos países vêm diminuindo muito, seja devido a tais relações comerciais, seja no que se refere a blocos como a Comunidade Européia, nos quais as decisões dos Estados participantes dependem, em muitos casos, declaradamente, daquilo que pensam os demais.


Portanto, o processo de sublimação da soberania dos Estados, e a destruição da figura do próprio Estado já vem acontecendo, independentemente de os Estados associarem-se ou não, pois, em suas relações com o mundo, e mesmo dentro de seu próprio território, o Estado se vê, muitas vezes, “encorajado” e até mesmo abertamente obrigado, a fazer o que órgãos internacionais, outros países, ou um só país mais poderoso, acham que ele deva fazer.


Assim, no mundo globalizado, o Estado já não é mais soberano absoluto nem dentro de seu território, em relação a seus próprios súditos. Interesses outros, que não os autorizados pela nação, por legitimação constitucional, se imiscuem na ordem interna, conformando o sistema normativo do Estado.


Desse modo, a relativização da Soberania Estatal, converge, em essência, na desconstrução do Estado, erodindo o Direito, a partir da conspurcação da sua legitimidade democrática, com interesses estranhos ao interesse público, matizados, não raras vezes, por interesses econômicos, a partir de outras instâncias jurídicas.


E, por consequência, com a destruição do Estado, arrisca-se perpetrar-se um vácuo normativo, ante a insipiência dos instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos.


Portanto, se a marcha dos acontecimentos continuar nesse passo, o horizonte que se delineia é o de uma nova ordem mundial, cuja pauta é ditada pelos imperativos de ordem econômica, ideário muito distante de qualquer menção à dignidade da pessoa humana.


 


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Notas:

[1] AZAMBUJA, 2011, p. 20.

[2] MIRANDA, 1997, pp. 70 e 71. 

[3] FILHO, 2009, p. 04.

[4] FILHO, 2009, p. 04.

[5] AZAMBUJA, 2011, p. 121.

[6] AZAMBUJA, 2011, p. 124.

[7] AZAMBUJA, 2011, p. 131.

[8] BONAVIDES, 2003, p. 30.

[9] FILHO, 2009, p. 06.

[10] FILHO, 2009, p. 06.

[11] DALLARI, 2005, p. 84.

[12] AZAMBUJA, 2011, pp. 52 e 53.

[13] FILHO, p. 47.

[14] FILOMENO, 2009, p. 86.

[15] FILHO, 2009, p. 04.

[16] FILHO, 1999, pp. 46 e 47.

[17] FILHO, 2009, p. 47.

[18] MALUF, 2010, pp. 29 e 30.

[19] BONAVIDES, 2003, p. 21.

[20] DUVERGER, 1976, p. 19.

[21] DUVERGER, 1976, p. 19

[22] FERRAJOLI, 2002, p. 01.

[23] TAVARES, 2009, p. 1015.

[24] MALUF, 2003, p. 30.

[25] MALUF, 2010, p. 29.

[26] FILHO, 1999, pp. 46 e 47.

[27] SANTOS, 2010, p. 67.

[28] CRUZ, Paulo Márcio da. Soberania e superação do Estado Constitucional moderno . Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1431, 2 jun. 2007. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9955>. Acesso em: 10 ago. 2010.

[29] FABRE, 2002, p. 440.

[30] PERINI, Raquel Fratantonio. A soberania e o mundo globalizado. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 76, 17 set. 2003. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/4325>. Acesso em: 22 ago. 2011.

[31] BONAVIDES, 2003, p.44.

[32] TAVARES, 2009, p. 1017.

[33] BONAVIDES, 2003, p.44.

[34] MALUF, 2010, pp. 30 e 43.

[35] WRISTON, 1994, p. 31.

[36] CANOTILHO, 2003, p. 1369.

[37] BOBBIO, 1994, p. 1188.

[38] BOBBIO, 1994, p. 1188.

[39] TAVARES, 2009, p. 1016.

[40] FILHO, 2009, pp. 16 e 17.

[41] AZAMBUJA, 2011, p. 418.

[42] AZAMBUJA, 2011, p. 423.

[43] ZIPPELIUS, 1994, p. 88.

[44] ZIPPELIUS, 1994, p. 88.

[45] COELHO, 2003, p. 367.

[46] AZAMBUJA, 2011, p. 418.

[47] HABERMAS, 1997, p. 279.

[48] TAVARES, 2009, p.1014.

[49] FILHO, 2009, pp. 16 e 17.

[50] PERINI, Raquel Fratantonio. A soberania e o mundo globalizado. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 76, 17 set. 2003. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/4325>. Acesso em: 22 ago. 2011.

[51] CRUZ, Paulo Márcio. Soberania, estado, globalização e crise. 2005. Disponível em: <www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=672>. Acesso em 10 ago.2010.

[52] CRUZ, Paulo Márcio. Soberania, estado, globalização e crise. 2005. Disponível em: <www.mundojuridico.adv.br/sis_artigos/artigos.asp?codigo=672>. Acesso em 10 ago.2010.Paulo Márcio Cruz

[53] POZZOLI, 2003, p. 57.

[54] GENRO, Tarso. Democracia, Direito e Soberania. 2011. Disponível em: <http://tarsogenro.com.br/democracia-direito-e-soberania-estatal>. Acesso em 11 set. 2011.

[55] FABRE, 2002, pp. 460 e 461.

[56] FABRE, 2002, p. 461.

[57] PERINI, Raquel Fratantonio. A soberania e o mundo globalizado. Jus Navigandi, Teresina, ano 8, n. 76, 17 set. 2003. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/4325>. Acesso em: 22 ago. 2011.

[58] ROTHENBURG, 2005, pp. 77 e 78.

[59] GENRO, Tarso. Democracia, Direito e Soberania. 2011. Disponível em: <http://tarsogenro.com.br/democracia-direito-e-soberania-estatal>. Acesso em 11 set. 2011.

[60] HELLER, 1968, p.260.


Informações Sobre o Autor

Alexandre Gazetta Simões

Mestrando em Teoria do Direito e do Estado pelo Centro Universitário Eurípedes de Marília (UNIVEM). Pós-graduado, com Especialização em Gestão de Cidades (UNOPEC). Direito Constitucional (UNISUL). Direito Constitucional (FAESO). Direito Civil e Processo Civil (FACULDADE MARECHAL RONDON). Direito Tributário (UNAMA). graduado em Direito (ITE-BAURU. Analista Judiciário Federal – TRF3. Professor de graduação de Direito na Associação Educacional do Vale do Jurumirim (EDUVALE AVARÉ). Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito do Instituto Palatino. Membro do Conselho Editorial da Revista Acadêmica de Ciências Jurídicas da Faculdade Eduvale Avaré. – Ethos Jus. Co-autor da obra “Ativismo Judicial – Paradigmas Atuais” (2011) Letras Jurídicas. Co-Organizador da obra “Ensaios Sobre a História e a Teoria do Direito Social” (2012) Letras Jurídicas


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