Aspectos polêmicos do crime de contrabando na importação

Resumo: Nas regiões de fronteira, o crime de contrabando, ao lado do tráfico de drogas, é o que mais atormenta a atividade dos poderes públicos, tanto de prevenção, fiscalização, repressão ou apuração das responsabilidades penais. O Brasil tem uma peculiaridade em relação a esse crime devido ao fato de possuir milhares de quilômetros de fronteira seca, praticamente impossíveis de serem suficientemente fiscalizadas. Mas, a grande problemática jurídica advém da própria noção de crime de contrabando, quando se está diante de situações que levantam sérias dúvidas acerca da materialidade dessa espécie de crime. O tema, vez por outra, ressurge, trazendo novas questões para velhos problemas, de modo que há necessidade dos produtores de ciência jurídica se dedicarem mais a tratar de tais assuntos. O artigo faz uma abordagem crítica sobre a posição comum doutrinária a respeito do crime de contrabando na importação, levantando polêmicas a respeito da importação para uso próprio, sem finalidade lucrativa, da importação de produtos sem registro de marca, da importação submetida a diversos regulamentos, do conceito de mercadoria proibida, da participação no contrabando pelos "batedores de estrada", da subsidiariedade ou especialidade do contrabando em relação à armas de pressão, armas de brinquedo, medicamentos e suplementos de atletas e quanto à aplicação do princípio da proporcionalidade na pena de perdimento do veículo de transporte, além de outros temas correlatos.

Palavras-chave: contrabando, questões polêmicas.

Abstract: In border areas, the crime of smuggling, alongside drug trafficking, is what most torments of government activity, much of prevention, enforcement, prosecution or investigation of criminal responsibility. Brazil has a peculiarity in relation to this crime due to the fact that it has thousands of kilometers of dry border, virtually impossible to adequately supervised. But the most serious problem arises from the legal notion of the crime of smuggling, when we are faced with situations that raise serious questions about the materiality of this kind of crime. The theme, occasionally resurfaces, bringing new issues to old problems, so there is need to more engaging people to produce more scientific articles discussing this matter. The article makes a critical approach on the common doctrinal position regarding the crime of contraband imports, raising controversy regarding the import for personal use, non-profit, the import of goods without trademark registration, importation subject to various regulations, the concept of merchandise prohibited, participation in the smuggling by "scouts" road, or specialty of subsidiarity in relation to smuggling guns, toy guns, drugs and supplements for athletes and for the application of the principle of proportionality in the penalty forfeiture of vehicle transportation, and other related topics.

Keywords: smuggling, controversial issues.

Sumário: Introdução. 1 Figura Típica.  2  Objetividade Jurídica.  3 Tipo Objetivo.  4 Objeto Material. 5 Instância Administrativa. 6  Conflito Aparente de Normas.  7 Sujeito Ativo. 8 Classificação. 9 Conclusão.

INTRODUÇÃO

Meu primeiro contato com o tema adveio do exercício da advocacia privada por alguns anos com foco específico sobre o Direito Tributário e Penal Tributário. Por algumas vezes, tive a oportunidade de efetuar defesas e sustentações orais perante Conselho de Contribuintes (hoje, Conselho de Recursos Fiscais) do Ministério da Fazenda  e perante o Conselho de Recursos Fiscais do Banco Central do Brasil, ambos na capital federal (Brasília-DF). Já nessas oportunidades ficava perplexo como desconhecimento quase generalizado dos advogados sobre a matéria em questão e ainda mais admirado com a falta de padrão e coerência dos julgadores. Depois de ingressar no cargo de Analista Processual no Ministério Público Federal e ser lotado na cidade de Ponta Porã, no Estado de Mato Grosso do Sul, passando a atuar diretamente e diariamente com tais condutas, pude perceber que as dúvidas abrangiam muitas outras questões.

Interessa notar a quase absoluta ausência de literatura especializada a respeito. Os manuais limitam-se (salvo raras exceções) a fazer uma análise do tipo sem adentrar para as nuances encontradas no dia a dia. Temas como PNEUS USADOS, MEDICAMENTOS, ARMAS DE PRESSÃO, PIRATARIA, AGROTÓXICOS, CIGARROS, BAGAGEM, VEÍCULOS, GASOLINA, SUPLEMENTOS PARA ATLETAS, ARMAS DE BRINQUERO, SIMULACROS DE ARMA DE FOGO, e outros correlatos, tão comuns e que ainda não foram suficientemente esclarecidos pela doutrina e jurisprudência, já estão merecendo uma literatura mais específica.

O presente artigo faz uma primeira análise crítica do tipo, abordando alguns desses aspectos como forma de abrir o debate, suscitando uma nova visão para velhos problemas.

Sua leitura poderá ser proveitosa para aqueles que têm relações além fronteiras, desde uma simples viagem internacional de passeio até grandes empreendimentos de comércio exterior, bem como para advogados, juízes, promotores, agentes da fiscalização aduaneira e demais operadores do direito que lidam com fatos relacionados à importação com possível repercussão criminal.

Longe de pretender demonstrar autoridade pessoal, este trabalho traz poucas referências doutrinárias e jurisprudenciais, posto que, sua exiguidade, dificultou bastante a pesquisa.

1 FIGURA TÍPICA

Crime único sob várias figuras ou Crimes diversos no mesmo tipo?

“CÓDIGO PENAL

Contrabando ou descaminho

Art. 334 Importar ou exportar mercadoria proibida ou iludir, no todo ou em parte, o pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria:

Pena – reclusão, de um a quatro anos.”

O tipo penal tem como objetivo cobrir fatos relacionados com a entrada e saída de mercadorias do país, que, por algum motivo, venham de encontro com o interesse nacional. Apesar do enunciado falar em contrabando OU descaminho, é quase unânime o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que se trata, na verdade, de dois crimes, que devem ser isoladamente considerados por possuírem diferentes objetividades jurídicas.  Enquanto o tipo do “contrabando” pune a simples entrada ou saída da mercadoria proibida, o “descaminho” pune a sonegação fiscal ocorrida nas operações de mercadorias com o exterior.  Assim como anota o ilustre José Paulo Baltazar Júnior (pág. 210)([1]), melhor redação para o dispositivo seria contrabando E descaminho.

Todavia não é de todo desarrazoada a afirmação de que o tipo revela apenas um único crime, com diferentes modalidades.

De fato, se considerarmos a tese de crime único, se um indivíduo, ao viajar para o exterior, trouxer mercadorias diversas e promover a entrada no território nacional sem o devido pagamento dos impostos devidos, estará sujeito apenas a ser processado por um crime, independente da natureza das mercadorias apreendidas.

Porém, se considerarmos a tese de crimes diversos, nas mesmas condições do exemplo acima considerado, a natureza das mercadorias apreendidas poderá ensejar a denúncia por dois crimes (Contrabando e Descaminho), se entre as mercadorias apreendidas houver qualquer daquelas cuja importação seja proibida.

Atente que, no exemplo em tela, não há se falar em consunção, visto que uma conduta não é meio necessário à outra. Também, qualquer argumento em torno das figuras da  continência ou conexão teria apenas reflexos processuais para a definição da competência, de modo que não poderia afetar a análise da materialidade.

Pois bem, continuando a tese de crimes diversos, ainda que seja considerada a possibilidade de concurso formal, há expressa previsão de exasperação da pena (art. 70, caput, primeira parte, CPP), de modo que a mesma conduta, observada sob tal tese, pode ensejar maior apenamento. Sem falar que há concreta possibilidade de algum julgador considerar a autonomia de desígnios e mandar somar as penas (art. 70, caput, segunda parte, CPP)!

A incoerência do argumento de crimes diversos decorre do fato de que, se o indivíduo trouxesse só mercadorias proibidas, seria menos apenado. Melhor seria praticar a conduta de modo mais grave para receber menor pena. Ou seja, em vez de trazer algumas mercadorias proibidas  dentre as permitidas, a interpretação de que contrabando e descaminho são crimes autônomos induz a que o indivíduo traga só mercadorias proibidas, o que, evidentemente, não é a finalidade da norma.

Temos que a tese de crimes diversos, tão pacífica na doutrina e na jurisprudência, aos poucos vem demonstrando sua fragilidade.

O ilustre José Paulo Baltasar Junior, apesar de defender a tese de crimes diversos, anotou em sua magistral obra “Crimes Federais” que há crime único e não concurso material ou formal quando o agente ingressa no território nacional trazendo, simultaneamente, mercadorias cuja importação seja proibida, o que configuraria contrabando, e outras de importação permitida mas sem o pagamento dos tributos devidos, o que levaria à tipificação de descaminho, indicando como referência jurisprudencial o Acórdão proferido pelo TRF4 na Apelação Criminal 9704467885/PR, relator Des. Federal Fábio Rosa, 1ª Turma, julgado em 14/07/1999 e na Apelação Criminal 20007002001875-9/PR, relator Des. Federal Élcio Pinheiro de Castro, 8ª Turma, j. 03/12/2003([2]).

Ora, tal entendimento, ao meu ver, é uma demonstração clara de que a tese de crimes diversos não pode subsistir.

Outra posição relevante a respeito do tema é a análise da insignificância.

Há tempos atrás, não se admitia a análise da tipicidade material sob o aspecto da insignificância nem para o contrabando, nem para o descaminho. Posteriormente, houve alteração no entendimento para considerar possível a análise da insignificância apenas para o descaminho, tomando por base objetiva o valor dos impostos federais devidos na operação. Aos poucos, porém, têm se levantado abalizadas vozes em defesa do mesmo critério de análise da insignificância também para os casos em que configurado contrabando. Nesse último caso, o cálculo do tributo devido seria tomado por estimativa se a importação fosse permitida.

Essa gradual virada quanto à aplicação do padrão de análise da insignificância, iguala o âmbito de proteção da norma penal, tanto para o contrabando quanto para o descaminho, fato que nos induz a pensar que se caminha no sentido de se considerar a figura jurídica do artigo 334 do Código Penal como descritiva de apenas um crime, ainda que com múltiplas condutas e com diferentes ofensividades (crime de ação múltipla e pluriofensivo), o que não é novidade alguma para a doutrina e para a jurisprudência([3]).

O fato é que a jurisprudência tem, de tempos em tempos, oscilado na questão, ora tratando a insignificância do contrabando da mesma forma que o descaminho, ora negando-a ao contrabando([4]). Relevante a posição de NUCCI que trata contrabando e descaminho como crime único, chegando a denominar descaminho de contrabando impróprio([5]).

2 OBJETIVIDADE JURÍDICA

Qual o bem jurídico protegido?

Em regra se tem como objeto material do crime de contrabando a mercadoria proibida. Porém, sob uma ótica mais alargada, podemos dizer que é objeto material do crime de contrabando qualquer bem sujeito ao poder de polícia administrativa, cuja importação ou exportação possa se revelar inconveniente ao interesse público.

Podemos dizer, também, que o delito de contrabando é pluriofensivo, posto que tem como bem jurídico protegido todos aqueles que se inserirem no conceito de interesse público: a saúde, a indústria nacional, o mercado nacional de bens e serviços, o meio-ambiente, etc.

Nesse passo, é importante que se diga que tais interesses são, precipuamente, protegidos por normas, ora veiculadas em lei, ora em atos administrativos, que, na verdade, são expressões materiais do poder de polícia.

O conceito de poder de polícia é dado pelo Direito Tributário, que o define como a atividade  da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos([6]).

Portanto, quaisquer bens ou serviços que estejam inseridos nesse contexto de limitação estatal para o fim de resguardar o interesse público, estão sujeitos à restrição quanto à importação ou exportação, cujo descumprimento pode ensejar o crime de contrabando.

Da vinculação do contrabando ao exercício do poder de polícia decorre que não há necessidade que a norma proibitiva da importação esteja definida em lei, basta qualquer ato administrativo (que passe pelo crivo da razoabilidade e da proporcionalidade), visando proteger o interesse público. Entendemos até mesmo possível a apreensão de mercadorias importadas mesmo que, a despeito de não estarem taxativamente proibidas em qualquer comando legal ou administrativo, dentro do caso concreto, seja gravemente ofensiva ao interesse público a sua importação.

É que os atos materiais de polícia tem como atributo inerente uma grande margem de discricionariedade. Tal atributo é indispensável para não engessar a ação da Administração em defesa do interesse público diante de situações ofensivamente concretas, porém ainda não previstas em norma escrita. Assim, entendemos possível que em situações de anormalidade em que esteja caracterizado risco para o interesse público nacional é possível a apreensão de mercadorias, ainda que a norma proibitiva da importação seja apenas implícita. Fica, porém a ressalta, que a conduta administrativa não teria qualquer repercussão penal, em face do princípio da legalidade, de forma que não se pode ser processado por contrabando se não existir norma expressa que proíba a importação.

Há, também, outra consequência relevante para o atrelamento do crime de contrabando ao exercício do poder de polícia. É que tal poder está presente em toda Administração, seja qual for o órgão, dentro, evidentemente, de suas atribuições legais (competência administrativa).

Assim, qualquer órgão pode decretar a proibição da importação/exportação, dentro dos critérios de razoabilidade e proporcionalidade, fundamentadamente motivado no interesse público, não se limitando aos órgãos do Ministério das Relações Exteriores ou à Receita Federal.

Desse modo, para se sabermos se determinada importação é proibida ou não, não basta verificarmos os normativos da Receita Federal, mas sim todos os normativos que tratam do assunto, tarefa, por sinal, assaz complicada, dada ao fenômeno de inflação normativa, presente em nosso país.

De fato,  faz parte do elemento normativo do tipo em tela o fato da importação, ou exportação ser proibida. Esta proibição decorre, como dissemos, de regulamentos administrativos, frutos do típico exercício do poder de polícia. Trata-se, portanto, de uma norma penal em branco, daquelas que devem, necessariamente, ser complementadas por outra norma de mesma ou diferente hierarquia jurídica([7]). No caso, só é possível conhecer a conduta proibida se conhecermos os regulamentos administrativos de importação e exportação. A tarefa não é simples. Tais regulamentos estão dispersos pelo ordenamento jurídico. Não há uma entidade encarregada de compilá-los.

Já se sustentou que a proibição da importação/exportação deveria estar em normativo da Receita Federal; outros, que não se poderia considerar típica a conduta cuja proibição não estivesse bem delineada nas Portarias da Secretaria de Comércio Exterior – SECEX. Temos que os argumentos não se sustentam.

Como dissemos, a restrição decorre do poder de polícia, que não está concentrado em um órgão, mas distribuído por todos os órgãos e entidades da Administração Pública. Decorre da teoria jurídica dos poderes implícitos([8]), pela qual a atribuição de determinada competência ou função administrativa implica na concessão dos meios necessário sua consecução. Desse modo, toda Administração Pública, centralizada (por seus órgãos) ou descentralizada (por suas entidades paraestatais) está autorizada a estabelecer regulamentos que, dentro de suas áreas de competência  legal, restrinjam atividades e interesses particulares em prol do interesse público. É claro que restrição desarrazoada, desnecessária, e desproporcional, ou seja, que não passe pelo crivo da proporcionalidade lato sensu, estará sujeita à revisão do poder judiciário, tendo em vista o que a doutrina americana denominou de substantive due process of law. Portanto, as restrições legais de importação/exportação constam de documentos dispersos, dificultando a sistematização e análise. Desta forma, regulamentos ambientais, sanitários, de segurança pública, que restringem a importação de pneus usados, plantas, animais, são plenamente válidos pelo exercício do poder de polícia, de modo que podem ser normas integradoras do conceito de contrabando, dando concretude ao elemento normativo do tipo. De se observar que, dentro dos respectivos âmbitos de incidência, as restrições podem ser determinadas por mais de um órgão, de modo que não se poderá considerar legal a importação/exportação enquanto não cumprir todas as exigências normativas expedidas por todos os órgãos envolvidos.

Há de se anotar que a proibição pode ser absoluta ou relativa.

Proibição absoluta é a que veda, peremptoriamente, a entrada (ou a saída) de determinada mercadoria no território nacional. A relativa é a que exige o prévio cumprimento de determinados procedimentos. Em regra, a proibição absoluta dirige-se à mercadoria em si, ainda que qualificada por determinada característica. Temos, por exemplo, a vedação à importação de cigarros que foram produzidos no Brasil com a finalidade específica de exportação. A vedação é objetiva e categórica. Não se permite e pronto. É absoluta. A reintrodução de cigarros nessas condições é crime de contrabando (exceto, no nosso entender, nos casos de insignificância). Noutro lado, temos como exemplo a importação de cigarros produzidos no exterior. Além de obedecer à série de normativos aduaneiros, há que se verificar se a mercadoria tem registro na Vigilância Sanitária. Se houver registro, a importação é permitida e não se fala mais em contrabando.

A questão do registro na ANVISA nos permite trazer mais uma polêmica para o debate. É que o entendimento que se tem em comum é que a MARCA de produto sujeito a registro e não registrada na ANVISA configura descumprimento do poder de polícia e, portanto, pode configurar crime de contrabando na importação. Mas, o que se pergunta é: a ANVISA protege a MARCA ou o PRINCÍPIO ATIVO? Será que a simples ausência de registro de MARCA é capaz de ensejar o crime de contrabando?

Tomemos por exemplo o medicamento PRAMIL. Aqui nesta região de fronteira é comum, quase diária, a apreensão desse medicamento e até a prisão de pessoas em flagrante porque tal marca não está registrada na ANVISA. Ocorre que o referido medicamento, traz como princípio ativo o SILDENAFIL, que é vendido por esse nome no Brasil (genérico do medicamento de marca Viagra). Será que a norma penal do art. 273,  inserta no capítulo da Saúde Pública (Capítulo III, do Código Penal) está a proteger a propriedade imaterial (Marca) ou a saúde (o princípio ativo adequado ao tratamento)? Creio que a resposta só pode ser a segunda alternativa. Ou seja, se o SILDENAFIL já está registrado na ANVISA, não haverá importação de medicamento proibido (art. 273, § 1-B, I, CP), nem contrabando (art. 334, caput, CP), seja qual for a marca comercial através da qual seja ele oferecido no mercado consumidor. Outro exemplo: importação de cigarros. Para marcas não registradas no Brasil, se o tipo de fumo tem registro na ANVISA, não haverá contrabando.

A distinção é relevante, tanto para os que advogam a tese de crime único, como para os que advogam a tese da distinção entre CONTRABANDO e DESCAMINHO.

Com efeito, na hipótese de importação de marca não registrada, mas cujo princípio ativo esteja registrado na ANVISA sob outra marca, tanto para a primeira como para a segunda corrente é  sempre será possível a análise da insignificância. Explica-se. Para a primeira corrente (crime único), cabe sempre a análise da insignificância. Para a segunda corrente (crimes diversos), caberá, no caso a análise da insignificância porque estará desclassificada a conduta de contrabando para descaminho, pois o que importa é o princípio ativo registrado na ANVISA e não a marca em si. Dessa forma, devem ser considerados fora do âmbito de proteção da norma do artigo 334, caput, do CP, toda proibição que não tenha como fundo o legítimo exercício do poder de polícia visando a proteção do interesse público, afastando qualquer possibilidade de se imputar crime na defesa de interesses meramente privados na importação.

3 TIPO OBJETIVO

 O que é importar?

São núcleos do tipo contrabando IMPORTAR e EXPORTAR.

Em linhas gerais, IMPORTAR significa trazer para dentro do país bem de procedência estrangeira. EXPORTAR é levar para fora do pais o que aqui está. Procedência não está relacionada com a origem da mercadoria. Cigarros brasileiros exportados para o Paraguai, quando ingressam no território nacional são importados. Cigarros americanos que são vendidos do Brasil para os Estados Unidos são exportados. No primeiro caso a procedência é Paraguaia e a origem é brasileira. No segundo caso, a procedência é brasileira, mas a origem é americana.

Em regras gerais, tanto para a doutrina como para a jurisprudência, basta a mera entrada/saída de qualquer bem do território nacional para se configurar ato de importação ou exportação([9]). Mas, a questão comporta mais uma polêmica. Ainda que a procedência não esteja relacionada à nacionalização, não podemos ter como de procedência estrangeira bens cuja permanência no exterior seja meramente temporária. Explica-se.

Quem viaja de carro para a argentina, não exporta o veículo, se não houve a intenção de nacionalizá-lo naquele país. A permanência era provisória. Não houve nacionalização. Então, não houve exportação. Quem volta do exterior com a bagagem que levou, não importa nada. Porque não trouxe mercadoria de procedência estrangeira. A permanência de tais bens no exterior era provisória.

Consideramos inconstitucional qualquer norma aduaneira que exija o pagamento de imposto no retorno de bens de origem e procedência brasileira que saíram provisoriamente do Brasil, por ferir o artigo 153, I, da Constituição Federal. De fato, a norma constitucional estabelece que o imposto de importação incide sobre “produtos estrangeiros”, de modo que na saída provisória de bens nacionais para retorno com o seu proprietário que não chegaram a ser nacionalizados no exterior, não incide tributo.

Ubi ratio ubi jus:  o mesmo entendimento deve ser aplicado no aspecto penal. Sabemos que é proibida a importação de PNEUS USADOS([10]). Tanto poderá ser enquadrado como crime ambiental como crime de contrabando. Porém, quem vai ao Paraguai trocar os pneus de seu veículo e coloca os pneus velhos dentro do carro, não comete crime de contrabando, nem crime ambiental, porque não importou nada. Só trouxe de volta o que levou consigo.  Infelizmente, tivemos contato com inúmeros processos em que pessoas estavam presas porque não deixaram seus pneus usados no Paraguai.  Evidente que a norma que proíbe a importação de pneus usados não quer fazer dos países vizinhos um depósito de lixo. Não se exige, nem se poderia exigir, que você deixe o usado lá. Aliás, se o pneu usado levado para casa quando trocado no Brasil não configura crime ambiental, também não é crime ambiental, nem contrabando, levar para casa o pneu usado próprio apenas porque trocado no Paraguai.  Como diria os defensores da Teoria da Imputação Objetiva, não houve incremento do risco proibido. Os usados já eram do indivíduo no Brasil, portanto não houve um incremento no risco de dano ambiental ao país que já não estivesse dentro de uma conduta socialmente aceitável.

E os VEÍCULOS USADOS? Também há proibição de importação([11]). Porém, não há contrabando se o veículo ingressa no território brasileiro na condição de provisoriedade, demonstrada pela situação de turista, negócios, ou qualquer outra.

4 OBJETO MATERIAL

O que é mercadoria proibida?

A norma penal é expressa em mencionar “mercadoria proibida”. Pergunta-se: qual o conceito de mercadoria? A maioria dos doutrinadores não chega a adentrar ao assunto, limitando-se a dizer que mercadoria é qualquer coisa móvel passível de comercialização([12]). Entretanto, o conceito é demasiadamente amplo, pois, em tese, qualquer coisa móvel pode ser objeto de comercialização. Cremos que o tipo é mais restritivo do que o afirmado pela doutrina.  Com efeito, o conceito jurídico de “mercadoria” é diferente de “produto”. Produto é conceitualmente qualquer bem que satisfaça uma necessidade humana. Mercadoria é o bem que se destina ao comércio. O artigo 966 do Código Civil define a atividade empresarial como aquela profissionalmente organizada para a produção ou circulação de produtos e serviços. Quem adquire produtos e serviços sem finalidade empresarial não adquire mercadoria. É por tal razão que o CDC jamais utiliza a expressão “mercadoria”, mas sim, “produto”, pois, mercadoria é conceito que induz à compreensão de que haverá utilização empresarial, o que não é compatível com o conceito jurídico de consumidor.

O eminente professos ROQUE ANTÔNIO CARRAZZA, esclarece a distinção, dizendo:  não é qualquer bem móvel que é mercadoria, mas só aquele que se submete à mercancia. Podemos, pois, dizer que toda mercadoria é bem móvel, mas nem todo bem móvel é mercadoria. Só o bem móvel que se destina à prática de operações mercantis é que assume a qualidade de mercadoria. … Portanto, é a destinação do objeto que lhe confere, ou não o caráter de mercadoria. … Para que um bem móvel seja havido por mercadoria, é mister que ele tenha por finalidade a venda ou a revenda. Em suma, a qualidade distintiva entre bem móvel (gênero) e mercadoria (espécie) é extrínseca, consubstanciando-se no propósito de utilização no comércio” (ICMS, Malheiros, 6ª ed., São Paulo, pág. 39).

Essa, também, foi uma das teses utilizadas pelo Supremo Tribunal Federal para dizer que não incide ICMS na venda de bens do ativo fixo da empresa, porquanto ausente o conceito jurídico de mercadoria, conforme o seguinte aresto: “ICMS. VENDA DE BENS NO ATIVO FIXO DA EMPRESA. NÃO INCIDÊNCIA DO TRIBUTO. A venda de bens do ativo fixo da empresa não se enquadra na hipótese de incidência determinada pelo art. 155, I, b, da Carta Federal, tendo em vista que, em tal situação, inexiste circulação no sentido jurídico-tributário: os bens não se ajustam ao conceito de mercadorias e as operações não são efetuadas com habitualidade. Recurso extraordinário não conhecido” (RE 194300, Relator Min. ILMAR GALVÃO, Primeira Turma, julgado em 24/04/1997, DJ 12-09-1997 PP-43737 EMENT VOL-01882-05 PP-01017).

Conclui-se, por evidente, que na “importação ou exportação de mercadoria proibida” exigida pelo caput do artigo 334 do Código Penal, está implícita a finalidade empresarial, ou seja, a intenção de lucrar com o bem importado. Reserva-se, portanto, a caracterização do contrabando para aquelas importações expressamente proibidas e que, pelas características de qualidade ou quantidade, revelem a destinação do bem à atividade lucrativa. Quem introduz no país bem cuja importação é proibida mas para uso próprio ou mesmo por encomenda de amigo ou parente, mas sem evidências de finalidade empresarial, não comete contrabando. Perdura o ilícito administrativo com a apreensão e perdimento do bem, mas não há o crime do artigo 334 do CP.

Não olvidamos que a tese é polêmica. Mas bem razoável.

Com efeito, não pretende o Estado punir criminalmente qualquer importação proibida. O Direito Administrativo já faz isso – e muito bem, com a pena de perdimento. A finalidade da norma é punir aquele que burla a proibição como uma oportunidade de obter lucros. Tomemos como exemplo pessoas que vão ao Paraguai e compram uma ARMA DE PRESSÃO para uso próprio. Sabemos a importação é proibida([13]) (proibição relativa). Por isso, aquele que traz uma única arma de pressão, sem obedecer os trâmites legais, não deve responder pelo crime do art. 334 do CP, ficando sujeito apenas à apreensão e à pena de perdimento. O mesmo se dá com MEDICAMENTOS VETERINÁRIOS, AGROTÓXICOS, Cds e DVDs de obras autorais pirateadas, GASOLINA, etc. A lógica da razão aplicável está na finalidade da importação. Tomemos por exemplo a GASOLINA. Ora, se fôssemos tomar o entendimento de que qualquer bem é mercadoria e que qualquer proibição configura contrabando, quem viaja para o exterior e lá abastece seu veículo deveria esvaziar o tanque antes de reentrar no Brasil, sob pena de responder por contrabando! Que contrassenso!  Claro que a finalidade da norma penal em tela é punir a atividade lucrativa que se desenvolve à burla das normativas de importação. Observe as demais figuras equiparadas([14]). A análise sistemática do artigo com seus parágrafos nos leva a concluir que o âmbito de incidência é a atividade lucrativa. Seja para o contrabando, seja para a figura do descaminho. O mesmo entendimento se aplica aos MEDICAMENTOS e SUPLEMENTOS para atletas, inclusive quanto à incidência do tipo do artigo 273  e figuras equiparadas, do Código Penal.

Tivemos a grata oportunidade de participarmos do debate no qual a Procuradoria da República em Ponta Porã concluiu pela atipicidade da conduta na importação de MEDICAMENTOS e SUPLEMENTOS para atletas quando ausente a finalidade lucrativa. Assim, ainda que seja bem de importação proibida, se a quantidade e a natureza da importação não revelem atividade lucrativa, descaracteriza-se o conceito de mercadoria e resulta que a conduta é atípica sob o ponto de vista penal.

Obviamente, que a necessidade de configuração da atividade lucrativa não atinge tipos especiais como o tráfico dinternacional e armas e munições. Basta trazer do exterior, sem autorização legal, uma arma para uso pessoal, e estará configurado o tráfico internacional de arma, porque o tipo previsto na Lei nº10.826/03 não possuiu o elemento normativo “mercadoria”. É, portanto, situação diversa do contrabando. Mas a exigência de interesse lucrativo dá margens para muitas polêmicas, que acho que podem ser perfeitamente resolvidas pelas razoabilidade. Importar uma máquina caça-níqueis é contrabando? Depende. Se a importação denota a atividade lucrativa (feita por um bicheiro, ou com ligações com o crime organizado ou por quem possui um bar ou boate, etc) é contrabando. Observe-se que, no caso, dada a natureza da mercadoria, basta um único exemplar para configurar a atividade lucrativa. Porém, se a importação é feita por um indivíduo excêntrico que quer usá-la na sua sala de visitas para seu próprio deleite, não há crime. Claro que a conduta é reprovável e punível com a pena de perdimento, mas não há crime.

5 INSTÂNCIA ADMINISTRATIVA

O perdimento administrativo influência na esfera penal?

No que tange ao delito de contrabando, em regra, observamos a absoluta independência entre as esferas administrativa e penal. Com efeito, o processo por crime de contrabando pode se dar sem qualquer decisão na esfera administrativa. Basta a comprovação da materialidade do crime pela apreensão das mercadorias proibidas e a identificação de sua autoria. Nenhum despacho, nenhuma análise administrativa é necessária. Cabe à autoridade policial que lavrou o flagrante demonstrar a proibição da importação, ou, caso remanesça alguma dúvida, requer perícia para a comprovação da natureza das mercadorias e a proibição de sua entrada em território nacional.

Ao tempo em que o auto de flagrante instaura o inquérito policial, as mercadorias apreendidas são encaminhadas ao setor aduaneiro local, para que a autoridade administrativa instaure o competente procedimento administrativo que culminará com a aplicação da pena de perdimento. Interessa notar que a pena de perdimento pode se dar tanto no processo administrativo, como no processo penal. Muitas vezes, nos dois processos concomitantemente. Pode ocorrer porém que o agente seja absolvido no processo penal, seja pela insignificância da conduta, seja pela ausência de dolo. Tal fato, porém, não produzirá qualquer repercussão na esfera administrativa, cuja pena de perdimento será mantida. Por exemplo, advogar que não é crime a importação de medicamento para uso próprio não significa dizer que é livre a importação. Qualquer medicamento, ainda que para uso próprio, que venha a ser  apreendido, sofrerá o perdimento administrativo. O inverso pode não ser verdadeiro. Eventual não aplicação da pena de perdimento no procedimento administrativo poderá implicar em alteração do quadro da tipicidade penal, de modo que se for reconhecido ao agente o direito de internalizar a mercadoria há descaracterização da tipicidade, porque não há mercadoria proibida. Mas tal conclusão só se dará se a autoridade administrativa concluir pela ausência de proibição.

Essa questão levanta polêmica da independência das instâncias.

Com efeito, quem dará a ultima palavra a respeito da proibição? A Administração ou a Justiça? E se houver decisões em sentidos opostos, qual prevalecerá? Entendo que deve-se prestigiar o interesse da Administração. De fato, se a natureza do crime de contrabando é tipificar atos sujeitos ao poder de polícia administrativa nas relações mercantis internacionais, é evidente que se a Administração, no âmbito de sua competência, diz que a mercadoria não é proibida, não compete à Justiça fazê-lo, porquanto não é próprio do Poder Judiciário exercer o poder de polícia de fronteira. É dizer, a conclusão administrativa pela inexistência de proibição deve ser acatada na esfera penal, ainda que o juízo tenha entendimento divergente. Deve-se, portanto, concluir-se pela atipicidade da conduta, absolvendo o agente. Trata-se de hipótese de coisa julgada administrativa favorável ao administrado com repercussão na esfera judicial. Tese nem sempre bem vista pelos tribunais.

Mas a recíproca não deve ser verdadeira.

Com efeito, se a Administração manifesta entendimento de que a importação é proibida em regular procedimento administrativo para o qual foi decretada a pena de perdimento, tal decisão, contrária aos interesses do administrado, pode ser revista na esfera judicial, por força do princípio da inafastabilidade do controle judicial. Tal revisão pode-se dar tanto em processo civil como no processo penal, nos quais se comprova o entendimento equivocado da Administração. De fato, se é elemento do tipo a condição proibida da mercadoria, o denunciado tem interesse jurídico de demonstrar a atipicidade da conduta, provando que o entendimento da Administração não é correto.

Interessa notar que o perdimento administrativo alcança também o veículo de transporte. Muitos julgadores têm aderido à tesa da proporcionalidade para afastar o perdimento do veículo quando o valor as mercadorias apreendidas é ínfimo em relação ao valor do veículo. A tese é perigosa. Pode induzir que os contrabandistas profissionais só comecem a utilizar veículos caros para o contrabando, de modo a afastar o seu perdimento. Por outro lado, a firmar-se tal tese só vai perder o veículo o contrabandista pobre, nunca o rico que pode fazer o contrabando de carreta.

Cremos que a questão não se deve resolver pela proporcionalidade, mas pela natureza do transporte. Se o veículo foi alterado, modificado, adrede preparado para o contrabando, sempre deverá haver o perdimento administrativo, inclusive o judicial decretado na sentença penal (art. 91, II, a, do Código Penal). Ainda, se o veículo foi recém-adquirido, denotando que se destinava especificamente à pratica do crime, deve haver o perdimento. Porém, se o veículo foi adquirido licitamente e pertencia há tempos como patrimônio do indivíduo, e não foi modificado para a prática de crime, deve-se prestigiar a o direito à propriedade em repúdio ao confisco, independente da proporcionalidade entre o valor da mercadoria e o valor do veículo.

6 CONFLITO APARENTE DE NORMAS

O crime de contrabando deve ser considerado como tipo subsidiário, isto é, só aplicável quando não haja norma específica para criminalizar determinada importação. Assim se dá com a importação de MEDICAMENTOS adulterados ou corrompidos (art. 273  do Código Penal) ou com finalidade lucrativa (§1º do art. 273, CP),  com o tráfico de armas e munições (artigos 18 e 19 da Lei 10860), ou com a importação de agrotóxicos (art. 56 da Lei 9.605/98). Pelo princípio da especialidade, o aparente conflito de normas se resolve pela aplicação pela norma que descreve a conduta de forma especial, de modo que não há espaço, em casos tais, para a incidência do tipo de contrabando.

Pode ocorrer, contudo, que a incidência da norma especial seja apenas aparente, devendo prevalecer a norma subsidiária. Isso se dá quando a lesão ao bem jurídico protegido pela norma especial não ocorreu.

Já tive a oportunidade de analisar se seria legal a prisão em flagrante, no qual a autoridade policial indiciou o autor do fato, ao mesmo tempo, pelo delito do artigo 334 e pelo artigo 273, ambos do Código Penal, apenas porque tal autoridade considerava que na importação de medicamento incidia os dois dispositivos legais. Numa primeira análise, o conflito aparente se resolveria pela incidência da norma especial (art. 273, CP), afastando a norma geral (art. 334, CP). Entretanto, como o caso era de medicamento para uso próprio, afastou-se de plano a incidência do artigo 273, depois analisou-se a conduta pelo incidência do 334. O juiz acolheu a tese da não incidência do 273, porém manteve a legalidade do flagrante por entender que a conduta descrita se amoldava ao tipo do artigo 334 do CP. Discordamos, data venia, dessa posição como anteriormente já afirmamos.

No caso de ARMAS DE BRINQUEDO, SIMULACROS DE ARMA DE FOGO e ARMAS DE PRESSÃO não incide a regra da Lei do Desarmamento (Lei nº 10.826/2003), mas se trata de CONTRABANDO. Há tráfico internacional de arma de fogo (art. 18 da Lei 10.826/03) apenas na importação proibida de ARMAS (conceito estrito), MUNIÇÕES e RÉPLICAS com potencialidade lesiva de arma de fogo.

7 SUJEITO ATIVO

Existe Participação ou favorecimento real?

O crime é comum, daqueles que não requerem nenhuma condição especial do sujeito para praticá-lo. Se o agente for servidor público que, no uso de suas funções, facilitar o crime, estará sujeito às penas do artigo 318 do CP, o que JOSÉ PAULO BALTAZAR JÚNIOR revela ser uma exceção dualista à regra da teoria monista.

A questão polêmica que se coloca quanto ao sujeito ativo é a respeito da participação, especialmente nos chamados “batedores de estrada”. Esses “batedores” são pessoas que vão, em outro veículo, à frente do veículo conduzindo mercadorias contrabandeadas. Sua função é verificar se há fiscalização na estrada para o fim de permitir que as mercadorias sejam desviadas da rota sob fiscalização, evitando o flagrante. Muitos advogados defendem a tese de que tal conduta estaria descrita no tipo do artigo 349 do CP([15]), pois que o batedor de estrada não pratica o verbo do tipo importar, nem auxilia o contrabandista na importação. Se olharmos friamente para a tese, há certa lógica.

De fato, normalmente os batedores dão “suporte” ao trânsito da mercadoria contrabandeada já dentro do território nacional. São contratados no Brasil, para atuarem além do recinto alfandegado ou das linhas limítrofes entre países. Tecnicamente, portanto, não participam do tipo, porque, quando atuam, a importação fraudulenta já está realizada. A lógica da tese não se sustenta se abordarmos o problema sobre outra ótica. É que a fiscalização aduaneira não está restrita aos recintos alfandegados em zona primária. Segundo o artigo 33 do Decreto-Lei 37/66, a fiscalização aduaneira se estende por todo território aduaneiro, que compreende, de fato, todo o território nacional([16]). Se a fiscalização aduaneira estivesse restrita à zona primária (recintos alfandegados), evidentemente que, ultrapassados esses limites, não haveria se falar em participação no crime de contrabando.

Entretanto, a importação fraudulenta não ocorre apenas na transposição da fronteira, mas enquanto a mercadoria proibida estiver no território aduaneiro, de modo que quem presta auxílio ao seu transporte e trânsito, mesmo formalmente já internalizada, participa da importação e responde pelo crime de contrabando sob a forma de participação. 

Não vemos como pode ocorrer a hipótese de favorecimento real no contrabando. Pois, ainda que o auxílio seja para consumo ou transformação da mercadoria importada fraudulentamente, essa participação seria em uma das figuras equiparadas previstas no §1º do artigo 334, do CP.

8 CLASSIFICAÇÃO

Quando e onde se dá a consumação? Pode haver tentativa?

A resposta anterior nos leva à levantar dúvida quanto à consumação e tentativa. É que, em geral, os manuais de direito penal se limitam a dizer que a consumação se dá com a mera entrada no território nacional. Diz-se, também, que é crime formal instantâneo. Ante à inexigência de resultado material no tipo, diz-se que o crime é formal.  Basta, portanto, a transposição da mercadoria proibida pela linha de fronteira para a ocorrência do  crime. Porém, devemos fazer algumas considerações.

Se todo território nacional é território aduaneiro, submetido, portanto, à fiscalização de fronteira, enquanto a mercadoria estrangeira estiver irregularmente no país, o crime está sob flagrante. O flagrante pode ocorrer, então, em qualquer parte do território nacional e a qualquer tempo da transposição da linha de fronteira. Aliás, tal entendimento encontra certo respaldo no enunciado da Súmula nº151 do Superior Tribunal de Justiça, que afirma ser da competência do local da apreensão das mercadorias para o processo do crime([17]). Ainda que se tenha que a manifestação do Superior Tribunal de Justiça envolve questão processual de prevenção, não é difícil concluir-se que só há prevenção quanto há competência, e só há competência para o local do resultado([18]). Ora, conjugando o enunciado da súmula com o artigo 70 e 71 do Código de Processo Penal, não poderíamos deixar de concluir que o crime de contrabando é crime permanente, daí sujeito à regra da prevenção, pelo local em que ocorreu o flagrante.

Outro ponto controvertido é a respeito de ser é possível a tentativa. Ora, sabemos que o verbo IMPORTAR pode compreender uma série de ações que visem introduzir bem no território nacional. Portanto, é possível a tentativa. Essa tentativa pode dar-se ainda no exterior, quando os atos de execução lá se iniciarem sem que a mercadoria chegue ao Brasil.  Pode ocorrer ainda que a tentativa se dê dentro do território nacional, quando a importação é submetida voluntariamente à fiscalização aduaneira pelo próprio importador. Isso ocorre quando o importador passa primeiro no setor aduaneiro, ou faz sua importação mediante Declaração de Importação. Nesses casos, se o fiscal verificar que há mercadoria proibida que não foi objeto de declaração em meio às permitidas, cremos que a solução se dá pela tentativa de contrabando, porque a mercadoria não teve o seu curso no interior do território nacional por fato alheio à vontade do agente. A execução foi interrompida pela fiscalização quando apresentada previamente a mercadoria pelo importador para tornar regular a sua entrada. Não houve consumação. Houve tentativa.

Se, entretanto, se verificar, por qualquer circunstância que o importador ao submeter sua mercadoria previamente à fiscalização não agiu com dolo, seja por erro de tipo ou erro de proibição, o fato é atípico, porque o crime não é punível na modalidade culposa.

9 CONCLUSÃO

Desprovida de toda pretensão da hercúlea missão de “nadar contra a correnteza”, o presente artigo trouxe ao debate algumas questões sobre o crime de contrabando, com as quais lidados diariamente aqui em nossa região de fronteira seca.

Das análises feitas, concluímos que os crimes de contrabando e descaminho são apenas um único delito, representados por diferentes condutas, mas que estão igualmente submetidos ao princípio da insignificância. O crime de contrabando requerer análise do conceito de mercadoria, que denota o aproveitamento lucrativo do bem importado, sendo atípicas condutas que tenham por objeto o uso próprio ou pequenas quantidades sem finalidade empresarial. O crime é permanente, sujeito à flagrante em qualquer lugar do território nacional, independente do lugar da importação, sendo da competência do Juízo da apreensão, o processo pelo crime. O contrabando é subsidiário de normas especiais que tratam de importação proibida, sendo que tal importação só pode decorrer do legítimo exercício do poder de polícia com vistas a resguardar o interesse público. A aplicação da teoria da proporcionalidade para aferição da perda do veículo utilizado no contrabando é assaz perigosa, porque pode resultar em punição mais grave dos menos favorecidos. De modo que entendemos que só deve haver perda do veículo quando adrede preparado para ser instrumento do crime. Na importação devem ser afastadas quaisquer reentradas de bens que saíram transitoriamente com o seu proprietário, não estando, portanto, sujeitas às punições administrativas ou criminais.

 

Notas:
[1]  BALTAZAR JÚNIOR, José Paulo. Crimes Federais, 8ª Edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012.
[2]   Opus cit, página 213.
[3]   Interessante decisão proferida pelo TRF4 nos autos da Questão de ordem em Recurso Criminal em Sentido Estrito n 50038962220124047202, Relator MÁRCIO ANTÔNIO ROCHA, SÉTIMA TURMA, publicada no D.E. 01/10/2012: “PENAL. PROCESSO PENAL. DESCAMINHO. ART. 334 DO CÓDIGO PENAL. PRINCÍPIO DAINSIGNIFICÂNCIA. VALOR DOS TRIBUTOS ELIDIDOS. PIS/COFINS. MULTA E CORREÇÃO MONETÁRIA. NÃO INCLUSÃO. REITERAÇÃO DA CONDUTA. 1. Firmou-se na jurisprudência a aplicação do Princípio da Insignificância ao crime de descaminho, nos termos do entendimento do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual é inadmissível que a conduta seja irrelevante para a Administração Fazendária e não o seja para o Direito Penal. 2. O parâmetro utilizado para a aferição da tipicidade material da conduta, no valor de R$ 10.000,00, tinha por base o art. 20 da Lei n° 10.522/2002 e a Portaria nº 49 do Ministério da Fazenda, de 1º/04/2004, e foi modificado pela Portaria nº 75 do Ministério da Fazenda, de 26/03/2012, que alterou para R$ 20.000,00 o valor para arquivamento das execuções fiscais, patamar que deve ser observado para os fins penais, nos termos da referida orientação jurisprudencial. 3. O montante dos impostos suprimidos deve considerar o Imposto de Importação e o IPI, sem o cômputo do PIS e COFINS. Entendimento do Superior Tribunal de Justiça. 4. A aferição do valor tributário elidido, para fins de insignificância,não inclui encargos adicionados sobre aquele valor, como multas e atualização monetária. Precedentes. 5. A Quarta Seção deste Tribunal firmou o entendimento de que não cabe diferenciar entre as figuras típicas do contrabando e do descaminho, previstas no artigo 334 do Código Penal, para fins de aplicação do Princípio da Insignificância na importação irregular de cigarros. 6. Condições pessoais, como eventual reiteração na conduta formalmente típica específica, são circunstâncias de caráter subjetivo que não interferem na aplicação do princípio da insignificância. Entendimento do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça”
[4]   Contra a análise da insignificância para o contrabando: STJ – AgRg no REsp 1325931/RR, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 23/10/2012, DJe 06/11/2012.
[5]   NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado, 10ª edição. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, pág. 1151, item 75.
[6]   Art. 78 do Código Tributário Nacional.
[7]   NUCCI, opus cit, pág. 1151, item 79.
[8] A Teoria dos Poderes Implícitos teve como precedente o celebre caso McCULLOCH v. MARYLAND, julgado em 6 de março de 18193, pela SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS, sob a presidência do eminente jurista John Marshall, em que foram delimitados os poderes dos estados federados em face do poder do governo federal, bem como estabelecidos os contornos dos poderes atribuídos ao Congresso Nacional.  No mencionado julgado, Marshall sustentou que a Constituição americana, ao estabelecer alguns poderes explícitos e objetivos a serem alcançados, também conferia poderes implícitos à sua consecução. Ou, como sempre referido pela doutrina e jurisprudência, ao prever os fins, a Carta Maior também concedia os meios necessários à execução desses fins, ainda que implicitamente  (LEGAL INFORMATION INSTITUTE. McCulloch v. Maryland Syllabus. CORNELL UNIVERSITY LAW SCHOOL. Disponível em <http://www.law.cornell.edu/supct/html/historics/USSC_CR_0017_0316_ZO.html> Acesso em 03 de agosto de 2011).
[9]   BALTAJAR JUNIOR, opus cit, pág. 211.
[10] Resolução 285/99 do CONAMA.
[11] Portaria DECEX 8/91.
[12] NUCCI, opus cit, pág. 1151, item 78.
[13]  Art. 218 do R-105, aprovado pelo Decreto n.º 3.665/00, c/c art. 14 da Portaria 006, do Departamento Logístico do Exército Brasileiro e art. 51 do Decreto 5.123/04.
[14] Código Penal, Artigo 334: “§ 1º – Incorre na mesma pena quem: a) pratica navegação de cabotagem, fora dos casos permitidos em lei; b) pratica fato assimilado, em lei especial, a contrabando ou descaminho; c) vende, expõe à venda, mantém em depósito ou, de qualquer forma, utiliza em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira que introduziu clandestinamente no País ou importou fraudulentamente ou que sabe ser produto de introdução clandestina no território nacional ou de importação fraudulenta por parte de outrem; d) adquire, recebe ou oculta, em proveito próprio ou alheio, no exercício de atividade comercial ou industrial, mercadoria de procedência estrangeira, desacompanhada de documentação legal, ou acompanhada de documentos que sabe serem falsos. § 2º – Equipara-se às atividades comerciais, para os efeitos deste artigo, qualquer forma de comércio irregular ou clandestino de mercadorias estrangeiras, inclusive o exercido em residências”, grifamos.
[15] Código Penal, Favorecimento real: “Art. 349 – Prestar a criminoso, fora dos casos de co-autoria ou de receptação, auxílio destinado a tornar seguro o proveito do crime: Pena – detenção, de um a seis meses, e multa”.
[16] DL 37/66: “Art.33 – A jurisdição dos serviços aduaneiros se estende por todo o território aduaneiro, e abrange: I – zona primária – compreendendo as faixas internas de portos e aeroportos, recintos alfandegados e locais habilitados nas fronteiras terrestres, bem como outras áreas nos quais se efetuem operações de carga e descarga de mercadoria, ou embarque e desembarque de passageiros, procedentes do exterior ou a ele destinados; II – zona secundária – compreendendo a parte restante do território nacional, nela incluídos as águas territoriais e o espaço aéreo correspondente. Parágrafo único. Para efeito de adoção de medidas de controle fiscal, poderão ser demarcadas, na orla marítima e na faixa de fronteira, zonas de vigilância aduaneira, nas quais a existência e a circulação de mercadoria estarão sujeitas às cautelas fiscais, proibições e restrições que forem prescritas no regulamento”.
[17] STJ Súmula nº 151- 14/02/1996 – DJ 26.02.1996: Competência – Contrabando ou Descaminho – Processo e Julgamento – Prevenção. A competência para o processo e julgamento por crime de contrabando ou descaminho define-se pela prevenção do Juízo Federal do lugar da apreensão dos bens.
[18]Código de Processo Penal: “Art. 70. A competência será, de regra, determinada pelo lugar em que se consumar a infração, ou, no caso de tentativa, pelo lugar em que for praticado o último ato de execução. (…) Art. 71. Tratando-se de infração continuada ou permanente, praticada em território de duas ou mais jurisdições, a competência firmar-se-á pela prevenção”.

Informações Sobre o Autor

Enivaldo Pinto Pólvora

Analista Processual do MPF


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