Criminalidade e Proteção às Testemunhas. Breves Considerações Sobre a Pena de Morte

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1. Crime organizado. Intimidação de testemunhas. Restrita eficácia do Programa destinado à sua proteção. Sugestão e discussão de uma inovação processual que melhor protegeria as testemunhas desconhecidas do réu. Um novo papel para a OAB?

Examinando o grande polvo — não nos parece um exagero metafórico — da criminalidade, e buscando novas alternativas para combate-lo, abordemos, de início, o difícil problema da colheita da prova oral de acusação, nos processos contra membros do crime organizado.

Desnecessário discorrer longamente para comprovar o poder financeiro e intimidador desse tipo de organização. Mesmo as nações mais ricas vêem-se relativamente impotentes na sua coerção porque em quase todos os processos judiciais a prova testemunhal é indispensável para uma sentença condenatória. E poucas são as testemunhas dispostas — por óbvias razões — a arriscar suas vidas em benefício de uma sociedade moralmente mais sã e livre do medo. Depor pode significar uma sentença de morte. Não do réu, mas da própria testemunha. “Máfias” — hoje um termo genérico —, cartéis da droga, “Primeiro Comando da Capital”, “Comando Vermelho”, e outras organizações do gênero, tornaram-se verdadeiros micro-governos, impondo o silêncio a eventuais testemunhas e até, em alguns países, a bairros inteiros, com fechamento do comércio e luto obrigatório pela morte de criminosos broncos mas poderosos.

Não se argumente com os Programas de Proteção às Testemunhas. Tais “Programas” são úteis apenas para criminosos arrependidos que ajudaram a acusação em troca de imunidade, ou penas mais brandas. Eles depõem porque vêem-se obrigados a escolher o mau menor. Entre a certeza de passar o resto de suas vidas na prisão, onde poderiam ser assassinados a mando do “alcagüetado”, ou viver em outro país — com identidade trocada e recebendo uma pensão do Estado —, preferem a solução que lhes propicie alguma liberdade e lhes dê maior chance de sobrevivência. Isso porque o “chefão mafioso” delatado geralmente não é jovem e pode morrer de causas naturais — quando não de modo violento, vitimado por seus concorrentes. Nesses casos, com o passar do tempo — é a esperança do desertor —, a delação cairia, talvez, no esquecimento; ou seria vista com menor empenho de vingança. Viverá, porém, o “pentito”, furtivamente, em outra unidade da federação, ou no Exterior, com a constante preocupação de evitar lugares públicos. Qualquer mínima notoriedade, ou casual exposição de seu rosto na mídia pode significar o fim de seus inquietos dias.

Outra possível utilidade do “Programa” está na sua aplicação em favor de testemunhas de modesta posição social. Sapateiros, encanadores, pedreiros, serventes de pedreiros, ajudantes de cozinha, etc. — desde que completamente destituídos de ambição — poderão talvez  — talvez, frise-se — aceitar a posição de testemunhas de acusação em processos criminais contra perigosos membros do crime organizado. Isso porque, para eles, com identidade trocada, substituir solas de sapato, trocar canos furados, assentar tijolos ou cozinhar em outro país talvez não signifique um ônus insuportável. Principalmente, se houver uma compensação financeira pelos transtornos decorrentes da mudança de domicílio e identidade.

Já para uma testemunha com esperança de ascensão social, esse “Programa” não oferece nenhum estímulo. Um advogado, um médico, um engenheiro, um jornalista, um artista, jamais aceitará depor contra perigosos membros do crime organizado — e mesmo contra perigosíssimos membros do “crime desorganizado” — em troca da promessa estatal de mudança da identidade e residência furtiva em outro estado, ou país. Quase todo advogado sonha com alguma notoriedade. E o mesmo acontece com os demais profissionais liberais. Estariam eles, pergunta-se, dispostos a arriscar suas vidas — e também a de seus familiares — só para ver triunfar a Justiça, com mais um “mafioso” na cadeia? Sabendo que os comparsas do réu estão nas ruas, talvez em frente de sua casa, com ordem para matá-lo, dificilmente sacrificariam suas esperanças de sucesso e de uma vida normal. Não aceitariam a condenação a um anonimato vitalício e cheio de temores, vivendo como coelhos assustados, mudando constantemente de tocas, só porque tiveram a infelicidade de presenciar, casualmente, um ato criminoso.

Exigir tal sacrifício da testemunha é desumano e impraticável. Ela, se perceber, de imediato, com o que está lidando, sequer relatará o que viu às autoridades policiais. Se souber, depois, que se trata de delito do crime organizado, recusar-se-á a confirmar, em juízo, o que disse na polícia. E como criticar, com razoabilidade, tal procedimento? A omissão da testemunha será compreensível, embora terrivelmente lesiva aos interesses sociais na luta contra o crime.

O que fazer, então, para que as testemunhas “comuns” — não “pentiti” —, e até mesmo algumas vítimas, desconhecidas do réu, possam colaborar com a justiça, depondo sobre os fatos, mas sem com isso renunciar, para sempre, a um futuro talvez brilhante e sem temores de vingança?

Está aí o nó górdio — ou o principal problema, desconheço outro mais grave — do conflito entre o direito-dever do Estado de fazer cumprir suas leis, reprimindo a criminalidade, e o direito constitucional de ampla defesa, assegurado a todo acusado. Esse conflito não foi resolvido satisfatoriamente com o Programa de Proteção de Testemunhas, pelas razões acima expostas.

Os réus têm, claro, o direito de conhecer todas as provas produzidas contra eles. O contraditório é preceito constitucional e até mesmo pré-constitucional. Nenhuma nação, mesmo minimamente civilizada, deixa de reconhecer o direito de defesa. E, para se defender, o réu precisa, conhecer qual a acusação que pesa contra ele e quais as provas que a alicerçam. Somente conhecendo a prova é que poderá invalidá-la, com críticas pertinentes, ou produzindo contra-prova.

A lei, olimpicamente indiferente ao problema, até agora — exceto com o precário “Programa” — não se interessou pelo fato concreto do temor das testemunhas. Talvez porque não tenha vislumbrado qualquer possível saída legal, constitucional, teoricamente sustentável, para o problema, tendo em vista a incontornável necessidade do contraditório. Ocorre que o medo — inevitável — de testemunhar deforma a atuação plena do Estado, tolhe-o em funções essenciais: punir os criminosos mais perigosos e garantir a segurança física daquele cidadão que já cumpriu, ou cumprirá, o incômodo dever cívico de relatar os crimes que presenciou.

Não esquecer que além da segurança física dos cidadãos — notadamente os mais prestantes, que testemunharam —, o Estado tem também a obrigação de defender a comunidade contra os malefícios sociais e econômicos causados pela criminalidade, principalmente a organizada. Esta suga a riqueza das nações e leva parcelas substanciais de sua população à um maior grau de miséria, de dependência de drogas, de guerras fomentadas pelos traficantes de armas, de vidas sem esperanças, transformadas em um fardo que só é alijado dos ombros no momento da morte. Cada milhão desviado dos cofres públicos e remetido ao Exterior representa um milhão a menos nas áreas de saúde, educação, saneamento básico e segurança.

Como resolver esse conflito de direitos, aparentemente insolúvel? Pedindo, o juiz, ao “mafioso” que seja humano, compreensivo, e não tome “providências” contra a testemunha que pode levá-lo à prisão? Pedir ao advogado de defesa — ausente o réu da sala de audiências — que não revele ao cliente o nome da testemunha, com isso impedindo-o de se vingar?

Tais exortações seriam obviamente risíveis. O crime organizado distingue-se pela mais absoluta ausência de inibições éticas. Aliás, é essa ausência que confere ao crime inúmeras vantagens práticas sobre seu adversário, o Estado, pois este, processualmente, é amarrado por miríades de proibições e formalismos. A única “ética”, aprovada — e imposta sem discussão — pelo criminoso é a do silêncio, em favor dele mesmo: o compromisso de não revelar à polícia os segredos dos criminosos e suas transações irregulares. O resto — morte, chacinas, aleijão, falsificações, suborno, seqüestros, ameaças, etc. — é algo perfeitamente aceito pelo criminoso, até mesmo recomendável, se executado com as cautelas recomendáveis para cada caso. Juízes e promotores normalmente não são ameaçados — há poucas exceções em sentido contrário — porque se o fossem aumentaria a pressão da lei, e os criminosos sabem que seria irrealizável o assassinato de todos os juízes e promotores do país. Mas com testemunhas comuns não existe tal obstáculo quantitativo. Assim, elas estão, no atual estágio do Direito Processual Penal, quase desamparadas. Segundo o livro “O Século do Crime”, a que nos referiremos logo em seguida, John Gotti, chefe da “Famíglia Gambino”, de Nova York, “escapou quatro vezes à condenação, mediante o assassinato de testemunhas-chave, para ser finalmente condenado graças ao depoimento do “arrependido” Sam Graviano”(pág.113).

Com os ferozes métodos da intimidação a luta entre o Estado e o crime organizado torna-se desigual, — afinal, o Estado não pode aterrorizar e matar testemunhas — o que explica a quase irrefreável expansão do crime organizado em todo o planeta. E essa expansão continuará cada vez mais confiante se, nas legislações dos países mais adiantados — os outros seguirão o exemplo — não houver um salto de qualidade, uma inovação — que se lerá em seguida — embora com ligeira “rachadura”, justificada pelo realismo, no escudo constitucional da ampla defesa. A inovação implicaria, é certo, em ligeira quebra de um tabu jurídico da instrução criminal. Seria uma técnica que conservaria o “direito de defesa”, porém mitigado com um mecanismo que dispensasse o duro dilema da testemunha de relatar o que viu — passando a viver amedrontada e escondida em outro país, com nome trocado — ou silenciar, por medo, mantendo-se viva, mas com isso traindo seu dever de cidadã, indiretamente estimulando a impunidade. Absorvida pela legislação a inovação tornar-se-ia integrante do “devido processo legal”.

José Arbex Jr. e Claudio Julio Tgnolli, no livro “ O Século do Crime”, redigido após longa pesquisa, nos revela que em Moscou, em dezembro de 1995, foi divulgada pela polícia local uma lista que “indica os preços cobrados pela máfia russa para assassinar dignitários: US$ 7 mil para eliminar empresários e US$ 120 mil para políticos do coturno de um Boris Ieltsin. Detalhe interessante é que existe um acréscimo de 20% no caso de o cliente desejar que o assassino também seja morto para não haver a mínima pista do crime” (pág. 25).

Segundo os mesmo autores — e seus dados são mais ou menos confirmados  em revistas e jornais — “a Organização das Nações Unidas realizou duas conferências de cúpula, num prazo inferior a cinco meses, para tratar do mesmo assunto.(…) As duas conferências” — em Nápoles e no Cairo — “mostraram que máfias internacionais, baseadas em 23 países, estariam faturando, por ano, algo entre US$ 750 bilhões e US$ 900 bilhões, ou o equivalente a quase o dobro do Produto Interno Bruto do Brasil. Essa soma, divulgada num estudo do FMI, estaria sendo gerada por US$ 200 bilhões, faturados anualmente pelos cartéis colombianos da droga”. E “… a ONU constatou que o crime organizado atingiu dimensões que desafiam a própria noção de uma ordem jurídica internacional reguladora da relação entre os Estados. Gerando cifras que superam os PIBs da grande maioria dos países, as “máfias” deixaram de ser um assunto de polícia para se tornarem uma questão geopolítica e financeira de primeira grandeza.”(pág. 32)

Métodos tradicionais de proteção às testemunhas — ameaças de prisão — tornaram-se totalmente risíveis. Mesmo preso, o acusado temível e economicamente poderoso pode ordenar, a seu bel prazer, o assassinato das testemunhas, ou seqüestro de seus familiares. Para isso existem os telefones celulares. Se neutralizados, estes, por dispositivos eletrônicos, instalados pela administração penitenciária, existem as visitas de parentes, amigos e alguns pouco patronos menos compromissados com o código de ética dos advogados. É literalmente impossível evitar que o criminoso poderoso instrua seus asseclas a ameaçar ou matar testemunhas dispostas a prejudicá-lo, relatando a verdade. E o Programa de Proteção às Testemunhas oferece proteção muito limitada, só servindo, praticamente — convém repetir —, para melhor proteger aos “mafiosos arrependidos” que, de qualquer modo morreriam, se presos, e por isso decidem cooperar.

Qual a inovação que aqui se propõe para, confessadamente, “cortar o nó górdio”, vez que será impossível desatá-lo, se mantido com máxima pureza o conceito de ampla defesa?

A solução é atribuir a um advogado, indicado pela OAB — não pelos réus — a missão de ouvir e inquirir aquelas testemunhas de acusação — desconhecidas dos réus e que temem pelas suas vidas.

Se uma testemunha souber de fato essencial e for desconhecida do réu — e também de seu patrono — ela seria ouvida na presença do juiz, do promotor e de um respeitável advogado criminalista, especialmente indicado pela OAB. Esse profissional seria bem remunerado pelo Estado porque, sem essa condição, criminalistas de grande competência não se prestariam a colaborar. Esse advogado, após estudar os autos do inquérito e do processo faria todas as perguntas benéficas ao acusado. Perguntas capazes de derrubar ou enfraquecer o depoimento daquela testemunha de acusação, mas redigidas, em suas respostas, com a obrigação de não constar do depoimento detalhes que depois poderiam levar o réu — ou seu advogado constituído —, a identificar o depoente. Assim, por exemplo, não se mencionará, no depoimento escrito, que “o depoente, que possui uma loja em frente do local em que a vítima foi baleada presenciou o crime…”, ou coisas equivalentes. A tarefa desse advogado, escolhido pela OAB, será a de defender o réu naquele depoimento, mostrando as eventuais contradições ou inverossimilhanças dessa específica prova oral, mas com a restrição de não poder ensejar ao réu, na redação das respostas, ou seu advogado constituído, a identificação da testemunha.

Com relação às testemunhas de defesa, às vítimas e testemunhas de acusação que o réu já conheça — e sabe serem presenciais de seus atos criminosos— , obviamente serão elas inquiridas pelo advogado constituído do réu, porque aí não haverá identidade a preservar. O advogado de confiança da OAB, nesses casos, poderá estar presente, se quiser, mas como simples observador e para melhor conhecer o conjunto probatório. Igualmente, a prova pericial e documental será de pleno acesso ao réu e seu advogado nomeado, que redigirá também todas as alegações.

Sugestão utópica? Talvez não. Tais depoimentos poderiam — a jurisprudência iria burilando sua utilidade — ter um peso ligeiramente menor no conjunto probatório. E se necessária a presença de um funcionário na sala, para datilografar o depoimento — funcionário que, em tese, poderia depois, ser ameaçado ou subornado pelo réu para identificar a testemunha — esta poderia usar um disfarce qualquer; um capuz, por exemplo. A lei, instituindo a “inovação”, estabeleceria que, se provado que o patrono indicado pela OAB traiu a confiança nele depositada — transmitindo ao réu, ou seu patrono de livre escolha, a identidade da “testemunha sigilosa” —, esse criminalista seria processado criminalmente, pagaria alta multa e seria suspenso, por vários anos, do exercício profissional.

Com que fundamento sugere-se, aqui, que a OAB exerça essa discutível e anômala missão?

Porque a OAB sempre reivindicou um papel de relevância, até mesmo institucional, na realização da justiça. Não é ela um simples sindicato profissional, estrito defensor dos interesses da classe dos advogados. Considera-se órgão de cooperação com a justiça, prestando um “serviço público especializado de caráter permanente”, no dizer de Ruy Azevedo Sodré, transcrevendo Dario de Almeida Magalhães (vide artigo do Dr. Luiz Otávio de Oliveira Amaral, na “Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo”, nova série, ano 5, n.9, janeiro-junho de 2002, pág.81). E Themistocles Brandão Cavalcanti chega a dizer que “no seu ministério privado, o advogado presta serviço público e exerce função social”( art.2º, § 1º, do Estatuto atual ), constituindo, com os juízes e membros do Ministério Público, elemento indispensável à administração da justiça…”

Se presta serviço público e exerce “função social”, está autorizada a cooperar com o bem comum no combate à criminalidade; mesmo porque um advogado — a não ser por aberrante desvio profissional —, jamais poderá ser membro do crime organizado. Sua missão é visceralmente contrária ao crime, embora defendendo, no limite da lei, qualquer acusado. O advogado é, também, um cidadão. E não pode esquecer que sua própria família deve ser menos ameaçada pela criminalidade, cada vez mais sem limites.

Como diz — embora em outro contexto — Rubens Approbato Machado, em entrevista ao “Jornal dos Advogados”, de julho de 2002, pág.22, a OAB “tem missão institucional, a de defender a sociedade… o que exige de nós responsabilidade extraordinária”. Ajudando a diminuir a criminalidade estará defendendo a sociedade. Estará sendo altamente responsável.

A OAB não se equipara a um simples sindicato. Não é um Sindicato dos Eletricitários, ou dos Encanadores, certamente voltados estritamente à defesa dos interesses de seus associados. Se o advogado tem, como realmente tem, uma dimensão maior, mais abrangente, chegando a elemento “indispensável à administração da justiça” — e até a compondo, no quinto constitucional —, parece-nos razoável, não abusivo — embora inovação a ser examinada —, que a OAB coopere, doravante, na realização de uma justiça menos imperfeita, permitindo que as vítimas e testemunhas desconhecidas do réu —  se temerosas de relatar o que viram —, possam se animar a depor, presumindo — pelo menos presumindo —, que poderão falecer de morte natural após o depoimento.

A OAB não tem, pelo menos residualmente, a missão de construir um mundo melhor? E como isso será factível com testemunhas apavoradas, recusando-se a abrir a boca na frente de um juiz? Os advogados, como cidadãos, tem filhos, netos, e esposa, que precisam ser protegidos contra uma criminalidade cada vez mais audaz, porque montada no dinheiro e na mais absoluta dispensa da ética.

O crime tornou-se um empreendimento comercial. É, também, um dos frutos da desigualdade social, mas mesmo os países de mais alta renda “per capita” revelam a existência de “máfias” de todo tipo porque faz parte da natureza humana obter um máximo de lucro com um mínimo de trabalho, ou nenhum trabalho. E essa “mágica” quase sempre implica em crime. É incompleta a idéia de que o criminoso é, sempre e sempre, um “coitadinho” desempregado, impulsionado pelo desespero. O seqüestrador, pergunta-se, que foi bem sucedido no primeiro seqüestro — talvez impulsionado pelo desemprego —, conseguindo um bom e fácil resgate, abandona seu novo “ramo” e monta um pequeno negócio honesto, renunciando ao crime para sempre? Não. O usual é que continue no caminho lucrativo, embora arriscado. Justificar-se-á dizendo, talvez, que nunca teve vocação para o comércio, ou indústria, e que qualquer emprego oferece, como emprego, “uma micharia”. Um conhecido traficante de morro, no Brasil, chegou a dizer, em entrevista, que cinqüenta mil reais por mês seria “uma merréca”. Gente desse tipo jamais aceitaria viver com baixos ou médios salários. Continuará no seu lucrativo “ramo” enquanto não for fisicamente obstado.

Com a presença de um advogado de grande competência — assim reconhecido pela OAB — e sabedor dos fatos — ele leu os autos e talvez possa conversar com o patrono constituído do réu — haverá um direito ao contraditório, embora com algum prejuízo para a defesa. Todavia, embora mitigado esse direito — talvez só o réu conheça algumas peculiaridades e motivações dessa “testemunha sigilosa” —, é mais saudável à democracia essa ligeira restrição à defesa do que a quase garantia da impunidade absoluta, garantida pelo pavor de algumas testemunhas. É uma questão de proporcionalidade. Se a OAB sempre se destacou na luta contra as ditaduras, não poderia ser censurada se cooperasse também na luta contra uma outra forma de ditadura, privada, ignorante, profissionalmente criminosa, bem mais primitiva que a ditadura política, pois nem mesmo tenta salvar as aparências, como ocorre com esta última.

Alguns anos atrás, houve, na Colômbia, o julgamento de criminosos pertencentes a um dos cartéis da droga. Os juízes, em plena sessão, permaneciam com um capuz, não permitindo sua identificação. A foto foi exibida em diversos jornais. O capuz era uma óbvia “ilegalidade”, porque impedia o levantamento de eventual exceção de suspeição. Mas a justiça colombiana foi obrigada a deixar de lado a pureza processual porque, do contrário, somente juízes com vocação suicida aceitariam participar daquele julgamento.

É preciso não esquecer que o poder quase ilimitado ensejado pelo comércio da droga deforma a mente, quase sempre ignorante, dos “chefões” do narcotráfico, — mesmo daqueles que se abstêm de consumir os produtos que vendem — fazendo com que se considerem semideuses, acima do bem e do mal, com arrogante poder de vida e morte sobre “insignificantes” testemunhas. Não é, assim, aberrante — se bem pesados os dois interesses opostos — que se comece a discutir a possibilidade de se ouvir aquelas vítimas e testemunhas temerosas — desconhecidas do réu —, na presença de um competente criminalista indicado pela OAB, ausente o réu e seu patrono constituído. O nível de violência e de autoconfiança dos marginais atingiu um tal nível que é necessário pensar em algo novo. Invasões de delegacias por marginais já se repetem. Só falta o estupro de delegadas em pleno distrito policial. Ou — considerando a “lei do silêncio”, e a conseqüente inutilidade da instrução criminal — deveria o Estado, como única alternativa de defesa social, criar grupos encapuzados de elite para assassinar, sem julgamento, traficantes de grande coturno?

A humanidade civilizada está numa encruzilhada. E quando nestas é que se pensa nas “pontes”. Se a locomotiva do Estado — obrigado a cumprir as leis penais — vai se chocar com a locomotiva da ampla e defesa, é o caso de se pensar na “ponte” acima sugerida — ou outra melhor —, preservando-se a vida dos passageiros, embora com alguns arranhões nas paredes externas dos comboios. Mesmo porque todo direito é relativo, dependendo do contexto.

Tortura é algo impensável no atual estágio do Direito, mas se a polícia descobrisse, por exemplo, e sem sombra de dúvida — inclusive com a confissão espontânea — que um terrorista fanático “plantara” um artefato nuclear — adquirido via máfia russa — no centro de Nova York, ou Washington, Londres, Paris, Tókio, Roma (pátria do Direito), São Paulo ou Rio de Janeiro, e dissesse que ela iria explodir dentro de dez horas, recusando-se a  indicar o local onde estava escondida, nem mesmo o mais diamantino jurista italiano se oporia a uma tortura qualquer — embora denominada, elegantemente, “induzimento corretivo extraordinário” — que permitisse obter a confissão sobre onde se encontrava a maldita bomba a ser desarmada. A menos, talvez, que o referido jurista morasse em país bem distante do local da explosão, ou estivesse mesmo com inclinações suicidas, querendo morrer, envolto em bandeira, com a aura de jurista inflexível.

O que foi dito até aqui visa suscitar uma reflexão. A redação de uma lei permitindo a substituição do advogado, em proteção à identidade de específicas testemunhas, exigirá certos detalhamentos que fogem à intenção do autor nestas linhas. Operadores do Direito, se não rejeitarem globalmente a idéia, certamente trarão ao tema importantes observações e correções ao que foi aqui exposto. O que não parece certo é, resignadamente, cruzar os braços e continuar permitindo que a criminalidade violenta e organizada continue quase impune, dependente dos “pentiti”, ou jogando nos ombros de indefesas testemunhas um ônus que não deveria ser apenas delas, mas de toda a comunidade, nela incluída a OAB, que sempre reivindicou um papel superior a de um sindicato.

2. Pena de Morte e “cláusulas pétreas”. Finalidades da pena.

Outro possível reforço no combate à criminalidade — tanto no crime organizado quanto nos crimes violentos em geral — está na adoção da pena de morte, tema que constitui verdadeiro tabu na imprensa bem comportada do Brasil. Experimente, o leitor, enviar a um jornal de grande reputação um artigo a favor da instituição da pena de morte no nosso país. Há uma quase certeza de que não será publicado. A grande imprensa, vacinada contra qualquer censura governamental, aceita discutir todos os temas, mesmo os mais aberrantes. Com uma exceção: a pena de morte. A censura, aí, é interna, talvez inconsciente. “Vale a pena discutir tal ignorância?” —  parece indagar-se o diretor do jornal.

Qual a razão dessa repulsa moral e intelectual, quase física — a adrenalina flui subitamente na circulação do ouvinte — à pena capital?

A nosso ver a aversão tem raiz predominantemente emocional, derivada principalmente do sentido da visão. Nada a ver com a lógica, a justiça, a eficácia ou ineficácia desse castigo na diminuição da criminalidade. Os fundamentos lógicos, racionais, vêm depois da emoção, convocados para dar uma base teórica, racional, a esse instintivo sentimento de repulsa.

Essa reação está, a nosso ver, associada à lembranças de cenas fortes de barbarismos ligados à pena capital: cabeças separadas do tronco pela lâmina da guilhotina; o condenado estrebuchando na ponta de uma corda; a eletricidade literalmente fritando — diz-se que fica no ar um odor de carne assada — o condenado, que se sacode, impotente, na cadeira elétrica — os olhos vendados por uma tira de couro para que os globos oculares não saltem das órbitas; o réu, duplamente amarelo, ajoelhado em um estádio esportivo lotado, esperando, indefeso, o tiro na nuca, talvez meditando sobre a ironia de sua família ter ainda que pagar o preço da bala como “custas processuais”; o condenado, amarrado a uma cadeira, na câmara de gás, retendo ao máximo a respiração. Isso, sem mencionar os métodos mais antigos e deliberadamente dolorosos, como a crucificação, a inominável empalação,  a quebra dos ossos dos membros, técnicas doentias que importava em vários dias de suplício, aguardando a morte. É quase incompreensível, hoje, que a humanidade tenha chegado a tais requintes de crueldade, tentando, pelo horror, afastar o homem do crime.

As execuções, fotografadas ou filmadas, impressionavam terrivelmente. Amoldavam a opinião pública contra a pena de morte, o que é um sinal, muito bom, de que a humanidade, em sua vasta maioria, mantém viva a chama da compaixão. Se, porém, presumimos, imediatamente antes de exibida a execução do réu pela televisão — esta, por sua difusão, ajudou bastante na eficácia das campanhas abolicionistas — houvesse uma reconstituição, por artistas, da cena da morte da vítima, sendo ela, por exemplo, estuprada, esfaqueada, golpeada  com martelo, queimada com cigarros, humilhada antes de baleada no rosto, ou cenas semelhantes — principalmente sendo a vítima criança, velha ou indefesa —, as pessoas aprovariam, de coração, a cena de execução do condenado, mesmo sacudindo-se ele doidamente na cadeira elétrica, ou na forca. Alguns até achariam que o castigo era pouco, face à maior crueldade do réu, presenciada na tela. O réu teria tido pelo menos o benefício de um julgamento, direito que não concedeu à sua vítima. A imagem desta, apavorada e sangrando, mudaria completamente o enfoque moral no encarar a pena máxima.

Ocorre que as televisões só exibiam a cena da execução…

Não é de admirar, portanto, que a humanidade, exigindo respeito à sua elogiável sensibilidade, se voltasse para o extremo oposto, abolindo a pena de morte, fosse qual fosse a forma de execução. — “Não!” — diziam. — “O homem que errou precisa é ser recuperado!”. — Ocorre que o único lugar em que poderia haver recuperação — ao mesmo tempo que se prestaria alguma satisfação à revolta da sociedade —, seria na prisão, porque “lugar de bandido é na cadeia!”

Assim, depositando, a sociedade, suas esperanças na privação da liberdade — onde, teoricamente, o criminosos ficaria meditando sobre seu erro, purificando-se moralmente — a pena de morte foi progressivamente desaparecendo da legislação dos povos cultos. Mas, com o tempo, pareceu ao homem da rua — eleitor —, que o medo da cadeia não era suficientemente inibitório dos crimes mais revoltantes. E a pena de morte foi voltando aos poucos, como ocorreu em diversos estados dos Estados Unidos da América do Norte. Voltou porque pareceu à população que seria necessário “um medo muito mais forte” para inibir os impulsos das grandes maldades e violências. Com uma cena de execução bem menos traumática — a injeção letal — a intimidação “máxima” seria alcançada, sem o efeito anti-educativo, grosseiro, da cadeira elétrica, forca, ou câmara de gás.

Nos dias de hoje, notadamente no Brasil, com a mídia exibindo diariamente cenas deprimentes de violência criminosa, a população mudou para uma reação oposta à de trinta anos atrás. Houvesse um plebiscito sobre a instituição da pena de morte no Brasil a aprovação seria francamente majoritária. Havendo dúvida sobre a utilidade do plebiscito — porque implicaria gastos governamentais— far-se-ia uma prévia pesquisa de opinião pública, por duas ou agências confiáveis. Mas não se propõe o plebiscito porque os contrários à pena de morte — que têm grande influência na mídia — sabem claramente qual seria a inclinação popular. Preferem clamar por “mais polícia nas ruas, penas mais longas e mais presídios!”

Não vamos transcrever aqui a batalha das estatísticas sobre aumento ou diminuição da criminalidade após a adoção, ou abolição, da pena de morte. Um humorista já definiu que estatístico é aquele homem que morre afogado em um rio que tem, em média, meio metro de profundidade. E um economista afirmou que os números, quando devidamente torturados, confessam qualquer coisa. Fiquemos com argumentos do senso comum e, na dúvida sobre o que seja a “vontade do povo”, deixemos a solução para um plebiscito. Sem a desculpa de que a emoção “viciaria” o julgamento popular. A se impedir a intervenção da emoção nas decisões populares, as próprias eleições presidenciais deveriam ser abolidas por algumas décadas, pois os candidatos ainda são escolhidos por seu “carisma”, simpatia pessoal, “jeitão”, entusiasmo e outros itens bem distantes da fria demonstração de sua capacidade e solidez de seus programas de governo.

Ocorre que os “donos” da opinião pública não gostam da idéia de um plebiscito sobre a pena máxima. Principalmente desconfiando que ele seria a favor dela. Lembram-se, talvez, das cenas televisivas em que o condenado é massacrado pela eletricidade. Além disso, “pode ocorrer o erro judiciário, não é mesmo”? — Lembram ainda o que ocorreu, recentemente, nos EUA, com alguns testes de DNA que provaram que alguns réus, já no corredor da morte, eram inocentes. E se a finalidade das penas — perguntam — é recuperar, como recuperar um cadáver? Acham, tais “donos”, que a preferência popular pela pena de morte — “coisa de ignorante!” — é fruto da “indignação irracional”; que a população é imatura, pensa infantilmente, necessitando de pessoas que pensem corretamente por ela. Só não postulam que o povo seja proibido de votar diretamente para cargos majoritários, porque aí já seria demais. Afinal, os donos da opinião pública são democratas. Mas democratas especialmente “qualificados”, capazes de “calar a boca do povo quando ele não sabe o que está falando”.

A maior parte do pensamento de esquerda opõe-se à pena de morte no Brasil. Dizem — acreditando no que falam — que somente pretos e pobres seriam condenados à pena máxima. Não protestavam contra a pena capital — quando aplicada abundantemente nos países socialistas —, porque lá tais penas eram merecidas. O “paredón”, por exemplo, seria justo, porque incidia sobre egoístas exploradores do povo. E seria, de qualquer forma, um bom “exemplo” — no caso da China continental — mesmo não sendo o condenado um explorador, porque não haveria outro modo de coibir os incertos e difusos impulsos criminosos de um bilhão e trezentos milhões de habitantes. Agora, no Brasil, nem pensar nesse castigo, porque somente negros e pobres — praticamente os únicos inquilinos das cadeias — receberiam a pena máxima.

A respeito da quase total ausência de “ricos” — digamos assim, esquematicamente — nos presídios brasileiros, cumpre, em ligeiro parênteses, desmistificar a questão.

A massa carcerária é composta, em sua vasta maioria, por latrocidas, assaltantes, seqüestradores, ladrões, estupradores, assassinos, estelionatários, e traficantes de drogas. Isso porque o homem “rico” dificilmente precisará incorrer em tais crimes, mesmo que seja — por propensão genética — especialmente inclinado à desonestidade. Não comete os crimes acima rotulados porque não precisa deles. Consegue os chamados “bens da vida” sem necessidade de empunhar uma arma. Natural, portanto, que não estejam encarcerados. Suas eventuais más-tendências se manifestam em infrações outras, em “espertezas” na área cível e tributária. Além do mais, o “rico” constitui parcela mínima da população, sendo compreensível, estatisticamente, que, também nos presídios, devam constituir uma minoria.

A junção dos dois fatores — desnecessidade de praticar crimes violentos contra o patrimônio e relativa raridade dos “ricos” na população em geral — já explicaria a escassa presença de pessoas abonadas nas cadeias. Poderia haver mais, claro, não fossem as falhas da legislação processual penal, e outras brechas legais — exploráveis em maior extensão por criminalistas competentes e bem pagos —, mas de qualquer maneira sempre seria mínima a presença dos “ricos” nos presídios porque, repita-se, “rico” não necessita ser violento. Essa baixa proporção ocorre nos presídios do mundo inteiro.

Penitenciárias abarrotadas de milionários provocariam risos, tal a estranheza. Não é uma questão de ter, o “rico”, caráter melhor ou pior que o pobre, porque o material humano natural é mesmo: “homo sapiens”. Dispondo de dinheiro — em cuja falta, ou escassez, reside a motivação para a maior parte dos crimes —, o “abonado” raramente comete estupros. Não por santidade, mas por ser arriscado. Dizia o dramaturgo Nelson Rodrigues que o dinheiro compra tudo, até amor verdadeiro. E quando o rico se torna homicida, ninguém pode chamar de “moleza” a sua persecução, porque a mídia se encarrega de explorar ao máximo a novidade. Diríamos, até, que quando o “rico” mata, a polícia se desdobra — é forçada a isso pelo alvoroço da imprensa, que lucra com o aumento da vendagem — em grau bem maior do que quando o homicídio é praticados por pobre, contra pobre. Assim, é superficial dizer que, na hipótese da pena capital ser implantada no Brasil — recomendável somente para casos que envolvam morte —, somente os pobre seriam executados. Haveria, como sempre, mais pobres do que “ricos” condenados à morte porque os “pobres” constituem número muito maior e necessitam — quando rebelados, impacientes — da violência para conseguir aqueles “bens” — seja de que natureza for — que os “ricos” conseguem sem precisar infringir o Código Penal. O homem abonado, por exemplo, que vem a perder a mulher amada para outro homem tem, disponíveis — graças aos encantos do dinheiro —, muito mais consolos afetivos e sexuais que o homem pobre, igualmente abandonado, privado talvez de sua única fonte de alegria. Um escritor porto-riquenho, autor do livro que inspirou o filme “O Pagamento Final”, dizia — talvez com outras palavras, o livro não está à mão — que a coragem, a “macheza” do homem pobre é sua única riqueza. Ele mata mais facilmente, quando ofendido ou abandonado, porque não pode perder a única coisa que lhe resta, o “brio” do “homem que é homem”. É assim que ele se sente — certa ou erradamente — produto que é de sua cultura.

Por quê a preferência popular pela pena capital — se comprovada com um plebiscito —  deveria ser sufocada no Brasil? Por ser resultado da ignorância? São, por acaso, ignorantes os eleitores e legisladores da maioria dos estados norte-americanos, dos chineses, dos japoneses, e dos demais países que admitem a pena capital?

O governo da República Popular da China, adota, estrategicamente, a execução em público — em um estádio, antes de iniciados os jogos — porque somente assim a imensa população do país — quase oito vezes superior à do Brasil — verá, com os próprios olhos — uma propaganda barata em país com baixa renda “per capita” — , que a lei está atenta e efetivamente pune os criminosos. Gabam-se, os chineses, de que sua criminalidade é — grosseiramente calculando — dez vezes inferior à norte-americana, não obstante sua população seja dez vezes maior que a americana.

A intimidação é, ainda, queiramos ou não, a finalidade básica da pena. E, se a vida é o maior dos bens, a perspectiva de sua supressão corresponde, logicamente, à intimidação máxima, poupando incontáveis vítimas, entre as quais se inclui os próprios homicidas. Nada conturba mais a vida de um indivíduo normal, de bons costumes, que uma acusação de homicídio. Quantos criminosos não se arrependem de não ter parado à tempo, antes de cometer um homicídio ou ato de extrema improbidade? Muitos que opinam pela pena de morte assim o fazem não pensando em vingança contra os assassinos, mas sim imaginando como proteger melhor o restante da população.

Diz-se que a pena de morte não intimida porque, com ou sem ela, os homicídios sempre existiram na humanidade. O argumento não tem valor porque não se pode saber exatamente quantos homicídios deixaram de ser praticados, justamente em razão da pena cominada. A força oculta do temor, do respeito à lei, tem a natureza do iceberg. As omissões — os crimes desejados, mas não executados —, não são nem poderiam ser calculados. Qualquer estatística a respeito de intenções homicidas seria pouco confiável.

Se a pena de morte não intimida o suficiente — como alegam os abolicionistas —, por quê ainda conservamos a pena de prisão, que intimida menos ainda e deforma a personalidade? Mesmo a prisão, embora desmoralizada, ainda é útil, porque alguma intimidação exerce, se bem que menor. E enquanto preso, o criminoso profissional — não sendo um “chefão mafioso”, munido de celulares — não está incomodando a população ordeira. As multas de trânsito também não impedem novas infrações, mas ninguém sustenta sua abolição porque sem elas o trânsito seria ainda mais caótico.

Que a morte intimida mais que a reclusão constata-se pela luta desesperada que os condenados, no “corredor da morte”, nos EUA, travam para converter suas sentenças em prisão perpétua. Condenados à morte tornam-se até escritores de nomeada, no afã de evitar a morte com data marcada. A morte é inevitável, todos sabem, mas o que dói é saber a sua data. Um castigo — agora apenas moral, indolor, em muitos lugares com injeção — que a sociedade entende como necessário, considerando que o assassino não mostrou nenhuma piedade quando eliminou, sem julgamento, um seu semelhante. Às vezes com requintes de perversidade e sem que a vítima tenha lhe feito mal algum.

A pena de prisão, principalmente no Brasil, perdeu, com o tempo, substancial poder de intimidação. O criminoso profissional, “organizado” ou mesmo “desorganizado”, matutando os prós e os contras do futuro roubo de carretas, ou assalto a banco, ou comércio de drogas, ou seqüestro, ou simples estupro — pretendendo matar depois a sua vítima, para não ser reconhecido — raciocina da seguinte forma: “1. posso não ser preso, nem reconhecido, nem processado: 2. se, com muito azar, processado for, tenho alta chance de ser absolvido, por ausência ou dubiedade de provas (“in dubio, pro reo”); 3. se for reconhecido por vítima ou testemunha, posso intimidá-la o suficiente para que silencie; posso até mesmo matá-la: 4. se, contrariando tantas probabilidades, for condenado em última instância, meus amigos, bem armados — graças ao bendito dinheiro do crime —, podem conseguir o meu resgate; ou poderei, talvez, fugir por um túnel, ou helicóptero: 5. se tudo isso falhar, uma coisa é certa: conforme o caso, só cumprirei um sexto da pena, pois o Estado não dispõe de estabelecimentos para a progressão da pena; 6. enquanto na cadeia, poderei, através de celulares, ou outros correios verbais, continuar no comando da minha “empresa”; 7. o presídio, de certa forma, oferece uma vantagem: protege-me contra as investidas das gangues rivais; terei guarda-costas nas guaritas, involuntariamente me protegendo”.

A população — querendo mas envergonhada de verbalizar a pena de morte, algo de absoluto “mau gosto’ —, clama por penas mais longas e duras, “cumpridas até o fim. Vinte ou trinta anos, de cabo a rabo”. A se atender tal desejo, desapareceria o intuito teórico da “recuperação”, pois o condenado sairia velho da cadeia. Recuperado para quê, para gozar de uma desconfortável aposentadoria?

A prisão, longamente cumprida, produz danos psicológicos. O Prof. Cézar Roberto Bitencourt, do Rio Grande do Sul, no seu longo artigo “A Falência da Pena de Prisão”( Revista dos Tribunais, 670/241) — um estudo profundo e sintético que deveria ser lido por todos os interessados no tema “prisão” —, discorre, com erudição e segurança, sobre os malefícios do isolamento, o que explicaria o alto índice de reincidência, mesmo em países do primeiro mundo. Ele até mesmo demonstra que a prisão é “um meio criminógeno”.

Cadeias, apenas elas, mesmo as melhores, não são solução para a criminalidade mais perigosa. Se muito confortáveis, fazem perder o medo, tornam-se um prêmio para o criminoso “pé de chinelo” que, fora dela, não teria meios de comer sem recorrer aos furtos pouco lucrativos. Cumprida a pena, sente-se tentado a voltar a seu relativo conforto carcerário, que não lhe nega abrigo e comida. Além disso, excelentes cadeias são caras demais.

Os administradores públicos — que não conseguem, por falta de recursos, sequer oferecer serviços de saúde decentes à população mais pobre —, perguntam-se se deveriam, mesmo, aplicar milhões de dólares na construção de presídios, comida e vigilância de criminosos que, em geral, não se recuperam. Mais prático e barato —  certamente pensam, ironicamente, sem jamais falar —, seria dar, a cada criminoso sem importância, dois salários mínimos mensais para que se abstenham de assaltar a população. Se voltassem a roubar, voltariam para a cadeia. — “Que fiquem em casa, vendo televisão. Um ambiente menos deletério que a prisão. Com isso, podendo comer e comprar cigarro, o custo financeiro de cada preso seria bem menor para o Estado, e haveria, provavelmente, menos assaltos motivados pela necessidade. Sobraria dinheiro público para missões bem mais úteis”. Lidando com “quase incuráveis inválidos sociais” — por culpa deles mesmos, dos pais, da genética ou da sociedade —, não seria totalmente sem base a idéia, embora pitoresca e jamais verbalizável porque violenta e justa seria a reação dos mais pobres, que nunca cometeram crimes e são obrigados a viver com um salário mínimo. E não haveria a garantia de que tais “pés de chinelos” não fossem tentados a complementar a “aposentadoria por invalidez social” com alguns furtozinhos.

Diz a teoria que a finalidade da pena é recuperar. Mas o que significa, exatamente, “recuperar”?

Recuperação significa arrependimento? Se for assim, um padre, ou um professor de ética, ou um magistrado que cometeu um único crime qualquer, e se arrependeu logo em seguida, não precisaria permanecer na prisão caso uma insuspeita junta de médicos e psicólogos comprovasse que ele já se arrependeu, até, talvez, tentando o suicídio. Se está inequivocamente arrependido, “recuperado”, por quê mantê-lo na prisão, se já alcançada a finalidade da pena, principalmente se for idoso? Mantê-lo no cárcere só deformaria a sua personalidade, desviada momentaneamente no momento que cometeu o gesto criminoso. Mas o que pensaria a população desse “escandaloso privilégio” em favor desse membro das castas mais altas? O exemplo demonstra que a finalidade da pena não é apenas a  “recuperação” — leia-se arrependimento. A idéia de castigo está latente no desejo de punição contra o criminoso. Recuperação, verdadeiramente, só existe quando o criminoso é analfabeto, ou quase isso, e não tem profissão. Aí sim, justifica-se a prisão, em seu sentido de recuperação, porque ao sair do cárcere o condenado terá algo que não tinha anteriormente: melhor instrução e um meio decente de sobrevivência. Agora, “mafiosos”, ou criminosos de alto coturno — verdadeiros empresários da criminalidade —, raramente se arrependem, se não houver prolongado sofrimento moral em longas condenações, com presídios caros e extremamente bem dotados de técnicas que realmente os isolem do comando de suas “empresas”. Aí, quando saírem, já serão homens velhos, tendo sido inútil sua recuperação, para eles indigesta, enfiada goela abaixo e com grande despesa estatal. Eles não saem recuperados, saem é cansados.

É preciso não se olvidar, pensando-se  nas penas em geral, que o mal já feito raramente se desfaz. A vingança, a retribuição do mal com o mal, é, assim, algo irracional, sem utilidade prática. No caso do homicídio, a vítima não retorna à vida, após a condenação do criminoso. E o arrependimento — a recuperação —, quando sincero, é raro. Mesmo sincero, não devolve a vida ceifada. Assim, resta a intimidação como quase única utilidade da pena. Intimidação do próprio réu — para que não repita seu erro —, e também dos demais membros da comunidade, sempre atentos ao que ocorre em seu redor, observando se os crimes são ou não punido. Se forem, “põem suas barbas de molho”.

Já que é preciso intimidar, para desestimular as tentações acenadas pelo crime — sempre um caminho mais rápido e direto para satisfação dos desejos —, nada mais prático e eficaz — supomos — que a intimidação máxima, a pena de morte, que alertará o cidadão no sentido de poupar a vida do seu semelhante, mesmo inimigo, pois do contrário ele também será morto. Se ela conseguir intimidar — mais que a pena de prisão — boa parcela de pessoas inclinadas a assumir o risco de matar — ninguém pensa em se aplicar a pena capital nos crimes que não envolvam morte — já terá cumprido a sua missão, como forte remédio social. E os “serial killers” serão barrados, finalmente, em suas carreiras, facilitadas pelo anonimato das grandes cidades. Veja-se o caso do “maníaco do Parque Ibirapuera”.

As considerações acima são, todas, “politicamente incorretas”. Nadam contra uma corrente de pensamento que já está tranqüilizada — em sentido oposto — por longa aceitação nos níveis acadêmico e de mídia. O intelectualmente aceitável, tolerável, quando se fala em criminalidade no Brasil, é clamar contra a falta de presídios, de “polícia nas ruas”, ou, sociologicamente, contra a pobreza, que leva os jovens, principalmente, às drogas e à criminalidade. Mas não esquecer que os jovens são as principais vítimas de crimes contra a vida, morrendo aos magotes nos fins de semana. Isso porque o homicídio tornou-se um crime banal e não é muito difícil evitar ou escapar da prisão. E não se deve esquecer que o maior fornecedor de cadáveres, nas favelas e proximidades, é o traficante de drogas, matando não por comida mas por pontos de venda. As chacinas são contingências rotineiras dos “negócios”.

É usual o adepto da pena de morte clamar, indignado, contra “esses animais”, os latrocidas, seqüestradores e outros criminosos violentos. Um leitor espirituoso de jornal já se referiu a eles como “minerais”, para não ofender os animais. É uma indignação justa. Mas o autor destas linhas optou por uma análise a mais fria possível.

O que é melhor, no momento, para o país? Manter o “status quo” — com penas pouco intimidativas, presídios superlotados, fugas e rebeliões quase semanais —, ou reforçar o respeito à lei, criando-se uma pena que — se não houver uma fuga imediata — será cumprida “eternamente”, sem possibilidade de fugas e celulares, porque o barbudo carcereiro lá de cima — ou seu oposto, nas profundezas — é insubornável.

Dizer que a pena que morte é impossível no Brasil — só com revolução… —, porque está proibida na Constituição Federal de 1988, constituindo “cláusula pétrea” — art. 60, § 4º da C.F. —, é escravizar o país inteiro a um detalhe redacional precipitado e que, a rigor, deveria ter ficado fora do texto constitucional. Se, raciocinando por absurdo, cem por cento da população brasileira, a unanimidade, pretendesse instituir a pena de morte, ou a prisão perpétua, seria preciso anular toda a Constituição, convocar nova constituinte e redigir nova Carta só para alterar quais as penas aplicáveis no país? As chamadas “cláusulas pétreas” constituem assunto complexo, demandariam um enorme espaço para seu exame. Federação, república, e outros temas de grande relevância — alicerces de inúmeras outras disposições constitucionais —, realmente não poderiam ser modificados, nem mesmo com emendas, sem uma completa reestruturação da Constituição Federal. Cláusulas realmente “pétreas”, porque mexendo uma “pedra” de baixo, sustentáculo de inúmeras outras, o castelo inteiro poderia ruir. Mas admitir, ou não, a Carta, determinada pena criminal no rol das punições aplicáveis no país não nos parece merecer, substancialmente, o título pomposo de “cláusula pétrea”, insusceptível de emenda constitucional. Anular a presente Constituição, convocar nova Assembléia Constituinte e redigir, durante anos — muitas outras pretensões de reforma aproveitariam a carona — uma nova Carta básica seria afrontar a razoabilidade, o mesmo que matar mosquito com canhão — sem querer, com  comparação, reduzir seres humanos, embora assassinos, a insetos.

Não se ignora que a raiz principal da criminalidade — apenas a principal, que fique claro… — está mergulhada no adubo da miséria e da má distribuição de renda. Mas esse é um problema, econômico e social, que só se resolverá a longo prazo. E envolve inúmeros fatores, entre os quais o número de filhos nas mulheres de baixa renda. Com um excesso de mão de obra, os salários ficam cada vez mais degradados. E há ainda a agravante da automação e dos computadores, que ”tomam” os empregos daqueles com baixa escolaridade. O desemprego e a falta de recursos são maus conselheiros. O “progresso”, o tecnológico, é, de certa forma, o inimigo do progresso, se o legislador não for suficientemente inteligente na dosagem da intervenção estatal.

A propaganda, por sua vez, estimulando o consumo de bens que, pelas vias “normais’, não podem ser alcançados pelo jovem pobre, incentiva a tentação da “via rápida”. Se a todos esses fatores se somar a falta de medo da lei — também um forte fator criminógeno — como ocorre no atual momento da vida brasileira, é de se esperar um aumento cada vez maior da barbárie. E o crime organizado — rico, arrogante, ponta de lança da criminalidade —, continuará ocupando um espaço sempre maior.

Encerrando, a pena de morte — com injeção, quase uma eutanásia precoce — está aqui apresentada como um novo e forte remédio — aparentemente mais eficaz que os atualmente ministrados — contra a criminalidade mais violenta e que aparenta ter perdido o medo da lei.

Deixo claro que não é, pessoalmente, uma “cruzada”.

São Paulo, 15 de agosto de 2002

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Francisco César Pinheiro Rodrigues

 

Advogado, Desembargador aposentado e escritor. É membro do IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo

 


 

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