Delitos de Perigo Abstrato Frente ao Ordenamento Jurídico Brasileiro

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Resumo: Os delitos de perigo abstrato têm sem propagado no ordenamento jurídico como um todo, muito embora seja uma matéria que gere dúvidas quanto a sua constitucionalidade. O Brasil é por disposição constitucional um Estado Democrático de Direito onde a dignidade da pessoa humana se apresenta como um dos fundamentos de sua formação. Nesta senda todas as normas legais no Brasil prestam referência ao texto constitucional, onde encontra fundamentação formal e material para sua construção e adequação normativa. Uma vez que toda fundamentação vem da Constituição, como explicar no ordenamento jurídico pátrio a existência de delitos de perigo abstrato, que de maneira expressa ferem princípios constitucionais é o objetivo do presente trabalho.


Palavras-chave: Princípios Constitucionais; Bem Jurídico Penal; Delitos de perigo abstrato.


Abstract: The offenses of abstract danger have spread without the legal system as a whole, although it is a matter that generates doubts about its constitutionality. Brazil is a constitutional provision for a democratic state where human dignity is presented as one of the fundamentals of their training. In this vein all legal norms in Brazil provide reference to constitutional text, which is formal and material basis for its construction and suitability rules. Since all reasoning comes from the Constitution, as explained in legal parental rights crimes of the existence of abstract danger, which expressly against constitutional principles is the goal of this work.


Keywords: Constitutional Principles, Criminal Law Well, Crimes of abstract danger.


Sumário: 1. Introdução. 2. Princípios constitucionais penais. 2.1. Princípio da Legalidade. A) Reserva Legal. B) Taxatividade; C) Irretroatividade. 2.2. Princípio da Intervenção Mínima. 3. Bem Jurídico. 4. Bem Jurídico Difuso. 5. Construção do Fato Punível Penal. 6. Conclusão. Referências bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO


O direito é um fenômeno jurídico, objeto com o qual o homem se relaciona intelectualmente. Dessa afirmação depreende-se que o direito é objeto, e o homem sujeito. Nessa relação irão surgir conceitos jurídicos, representações intelectuais do direito, que uma vez articuladas de acordo com certos modelos constituirão paradigmas dominantes, formando um sistema.


Essa relação tem por objetivo a proteção de interesses da vida humana. Os interesses surgem das relações dos indivíduos entre si e dos indivíduos para com o Estado e a sociedade ou vice-versa. Cabe ao direito extremar os círculos de eficiência de cada um de modo a determinar até onde a vontade e os interesses de um individuo podem se manifestar livremente sem que penetre na esfera de atividade alheia.


Se a missão do direito está na tutela dos interesses humanos, a função especial do direito penal consiste na reforçada proteção de interesses que a merecem e dela precisam, por meio da cominação e da execução de uma pena como mal infligido ao criminoso.


O paradigma penal das sociedades democráticas contemporâneas, consubstanciado na tutela subsidiária de bens jurídicos penais, não faz referência a valores sem uma recíproca exigência de que sua infração suponha uma repercussão negativa dos indivíduos. A preocupação com as consequências globais da ação humana, capaz de gerar riscos em tempo e lugar largamente distanciados da ação deu origem aos bens supraindividuais cuja titularidade pertence à coletividade.


A verdadeira característica do bem jurídico coletivo ou universal reside em que ele deve ser gozado por todos e por cada um, sem que ninguém fique excluído. Daí, desumível é, que se trata de uma relação difusa com os usuários desse bem, o que legitima a sua proteção, pois se lastreiam nos interesses fundamentais da vida social da pessoa.


Na construção típica poderão ou não ser vislumbradas lesões efetivas ao bem jurídico, daí a doutrina dividir os delitos quanto à danosidade e periculosidade. Os tipos de perigo descrevem somente a produção de um perigo para o bem jurídico, o perigo se situa em um campo problemático do cálculo de probabilidades, muito embora não deixe de parecer um tanto quanto paradoxal essa tutela antecipada em dias que se prega a intervenção penal mínima, tendo como elementos essenciais, a possibilidade ou probabilidade de produção de um determinado evento.


É nesse viés que entra essa pesquisa, de modo a estudar os delitos de perigo abstrato, em especial a proteção a bem jurídicos difusos, cujo objetivo consiste em demonstrar sua total inaplicabilidade dentro de um panorama de direito penal como “ultima ratio”, sendo sua inconstitucionalidade imanente a partir de sua definição.


2. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS PENAIS


A Constituição Federal de 1988 possui em seu interior uma série de princípios especificamente penais, sejam eles expressos ou implícitos.


Mas, afinal, o que são princípios?


Quem responde a essa pergunta é Celso Antonio Bandeira de Melo (1996) ao dizer que:


“Princípio é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico. É o conhecimento dos princípios que preside a intelecção das diferentes partes componentes do todo unitário que há por nome de sistema jurídico positivo” (MELO, 1996, p.545)


Nessa linha de raciocínio, serão os princípios constitucionais que traçarão o norte do direito penal brasileiro. Aqui será dado destaque ao princípio da legalidade e o da intervenção mínima, pois servirão de alicerces para a construção do raciocínio expresso ao longo desse trabalho.


2.1. Princípio da Legalidade


Na Constituição Federal de 1988 o princípio da legalidade encontra-se expresso no artigo 5º, inciso II, nos termos “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa se não em virtude de lei”. Luis Luisi (2003) afirma que a doutrina tem desdobrado o princípio da legalidade em três postulados, um quanto às fontes das normas penais (reserva legal); outro relacionado ao enunciado dessas normas (taxatividade); e, um terceiro relacionado à validação das disposições penais no tempo (irretroatividade).


a) Reserva legal


O postulado normativo da reserva legal está expressamente descrito no mesmo artigo 5º da Constituição Federal, inciso XXXIX, nos termos “não há crime sem lei anterior que o defina nem pena sem prévia cominação legal”, traduzindo a velha máxima do direito romano “nullum crimen nula poena sine lege”.


É, parafraseando Luiz Luisi (2003), “patrimônio comum da legislação penal dos povos civilizados, estando, inclusive, presente nos textos legais mais importantes do nosso tempo” (LUISI, 2003, p. 21). Assiste razão ao referido autor quando se volta para a leitura do artigo II, 2 da Declaração Universal dos Direitos do Homem que diz:


“Ninguém será condenado por atos ou omissões que no momento em que se cometerem não forem crimes segundo o direito nacional ou internacional. Tão pouco se imporá pena mais grave que a aplicável no momento da comissão do delito.”


O Direito Penal é um Direito exclusivamente positivo, excluindo a possibilidade dos costumes ou dos princípios gerais não escritos ou até mesmo da analogia em se estabelecer delitos e penas. Assim, cabe somente à esfera legislativa, o estabelecimento do que é ou não crime, bem como as penas que lhes devam ser imputadas, fruto que é do sistema de freios e contrapesos. Ainda em decorrência do postulado da reserva legal, Francisco Muñoz Conde e Mercedes García Arán (2007) defendem que a lei penal deveriam receber um amparo constitucional superior as demais leis ordinárias, em suas palavras:


“La ley penal expresa los intereses que La sociedad considera más importantes para La convivencia, destinando a su proteccíon el instrumento más grave de que dispone. La legitimacíon exclusivamente atribuida ao legislador para elaborar la ley penal debe ejercerse com el máximo consenso posible em torno a sua elaboración y promulgación, lo que resulta favorecido por la exigencia  de la mayoría cualificada propia de lãs leyes orgánicas”.[1] (MUÑOZ CONDE e GARCÍA ARÁN, 2007, p. 103)


O mais importante para o presente trabalho é se ter em mente a reserva legal como uma essencial garantia de liberdade e objetiva Justiça.


b) Taxatividade


Também denominada de “determinação”, a taxatividade é o segundo postulado do princípio da legalidade. Trata-se de um postulado dirigido ao legislador, vetando que este elabore tipos penais com expressões ambíguas, imprecisas de modo a ensejar diversas interpretações. Se a norma penal adotar conteúdos vagos, além de privar o princípio da legalidade de conteúdo material, diminui a segurança jurídica, algo que é essencial em um ramo do direito que é procedimentalista como o direito penal. 


A lei penal deve definir o fato criminoso com clareza, de modo a estabelecer os atributos essenciais e específicos da conduta humana, e, de modo a impossibilitar sua confusão com outra. A necessidade de criar normas penais perfeitamente determinadas visa à proteção do cidadão contra abusos do judiciário. Entretanto, essa taxatividade deve ser um pouco relativizada, ou seja, nem tanto nem tampouco, não podendo amarrar tanto uma conduta de modo a impedir sua subsunção à norma, mas não se pode deixar aberta a ponto de ser ineficiente. Como dizem Muñoz Conde e García Arán (2007):


“Una técnica legislativa correcta debe huir tanto de los conceptos excesivamente vagos en los que no es posible establecer una interpretación segura, como de las enumeraciones excesivamente casuísticas que no permiten abarcar todos los matices de la realidad. El punto justo es, en ocasiones, tan difícil de establecer que quizá por ello la jurisprudencia constitucional es especialmente cauta al referirse al principio  de taxatividad.”[2] (MUÑOZ CONDE e GARCÍA ARÁN, 2007, p. 104)


Determinando com cautela e por meio de uma técnica adequada o fato criminoso, o legislador mantém a unidade sistemática normativa do Direito Penal. Nesse processo de elaboração da norma, o legislador deve ater-se também a idéia de que o ordenamento jurídico é um todo sistêmico, e como tal, as normas não podem entrar em conflito entre si. Por isso, elas devem ser perfeitamente determinadas a criação de condutas que devam ser penalmente abolidas


c) Irretroatividade


Também conhecido como proibição da retroatividade, esse postulado impõe a atualidade da lei, determinado que ela só seja aplicada aos fatos cometidos após o inicio de sua vigência. A irretroatividade da lei penal dá segurança aos cidadãos ante as mudanças de valorações do legislador, de modo a não ser punido ou ser punido de maneira mais severa, por fatos que no momento de sua feitura não eram criminalizados, ou se o eram, a punição era mais branda, esse postulado somente se aplica in mala partem, ou seja, contra o agente. Como lembra Jorge de Figueiredo Dias (2007):


“Este direito como que se reduz, no âmbito penal, ao princípio que traduz uma proibição de retroactividade em tudo quanto funcione contra reum ou in malem parte. Através dele se satisfaz a exigência constitucional e legal de que só seja punido o facto descrito e declarado passíel de pena por lei anterior ao momento da prátrica do facto. Com este conteúdo e esta extensão a proibição da retroactividade da lei penal fundamentadora ou agravadora da punibilidade constitui uma das traves mestras de todo o Estado democrático contemporâneo.” (DIAS, 2007, p. 194)


É fácil desumir que o momento de aplicação da lei penal é o momento da prática do fato, o próprio código penal adota a ideia de que o tempo rege o delito no artigo 3º. A análise do âmbito temporal da realização fática é um problema que decorre da proibição da retroatividade, mas isso não será objeto de estudo nesse trabalho.


2.2. Princípio da Intervenção mínima


O poder punitivo estatal deve estar regido e limitado pelo princípio da intervenção mínima, com isso, se objetiva dizer que o direito penal só deve atuar nos casos de ataques graves aos bens jurídicos mais importantes. Ora chamado de intervenção mínima, ora chamado de lesividade, Juarez Cirino dos Santos (2010) lembra que esse princípio “proíbe a cominação, a aplicação e a execução de penas e de medidas de segurança em casos de lesões irrelevantes contra bens jurídicos protegidos pela lei penal” (SANTOS, 2010, p. 26). Nas legislações penais contemporâneas não se encontra explicitado, mas é imanente que por seus vínculos com outros postulados explícitos, e com fundamentos do Estado de Direito se impõem ao legislador, e mesmo ao hermeneuta. Como lembra Claus Roxin (2008) o Direito Penal também tem a função de impedir danos sociais, já que “os bens jurídicos são pressupostos de um convívio pacífico entre os homens, fundado na liberdade e na igualdade; e subsidiariamente significa a preferência a medidas sócio-políticas menos gravosas” (ROXIN, 2008, p. 35). Assim torna-se fácil a compreensão de que os bens jurídicos devem ser protegidos para impedir danos à sociedade.


Esse princípio é a expressão positiva do princípio da insignificância, determinando critérios quantitativos (extensão da lesão do bem jurídico) e qualitativos (natureza do bem jurídico lesionado) para a punibilidade. É entendimento na doutrina majoritária que a função primordial do Direito Penal consiste na proteção dos bens jurídicos. Deve-se ter em mente que os bens jurídicos exercem dupla atividade no ordenamento jurídico. Eles devem limitar a ação punitiva estatal na devida quantidade e qualidade da lesão ao bem jurídico, bem como, deve demonstrar o limite de ação dos indivíduos de modo a impedir que lesionem o bem.


O Direito Penal deve ter aplicação subsidiária, deve ser a ultima forma de ação do Estado, quando todos os demais meios de proteção ao bem jurídico tiverem falhado. Entretanto, tem havido uma confusão no que diz respeito ao direito penal e a proteção a esses bem jurídicos penais. Ocorre que, boa parte da doutrina tem defendido uma antecipação do Estado de modo a valer-se do Direito Penal na tutela de bens jurídicos supraindividuais, haja vista sua relevância para a sociedade como um todo. Essa postura é controversa e até hoje abre ensejo para diversos debates sobre o tema.


3. BEM JURÍDICO


A ideia de bem jurídico remonta do século XVIII dentro das concepções contratualistas defendidas à época. Paul Johan Anselm Ritter Von Feuerbach formulou sua teoria quanto aos direitos subjetivos, onde o Estado só deveria agir quando houvesse um delito que lesionasse direitos subjetivos do cidadão, o Estado era um garantidor das condições de vida comum. Em 1834, Biernbeaum substitui a ideia de direito subjetivo, introduzindo no universo jurídico a idéia de bem. O autor passa a criar a concepção de que o Estado não criaria bens jurídicos, apenas ia garanti-los, estando esses bens acima do Direito e do Estado. Renato de Mello Jorge da Silveira (2003) ressalta que ao introduzir a idéia de bem jurídico, Biernbeaum “não chega a utilizar-se da expressão ‘bem jurídico’, mas, sim, de uma série de outras expressões de tipo descritivo, as quais se identificam com esse conceito. Entretanto, graças a tais formulações é que lhe foi atribuída a paternidade da idéia de ‘bem jurídico’” (SILVEIRA, 2003, p. 41).


Posteriormente Binding, como ressalta Antonio Carlos da Ponte (2008), vem a defender a concepção segundo a qual “norma e bem jurídico constituem um binômio inseparável. A toda norma corresponde um bem jurídico, que no sentir do legislador é algo valioso e imprescindível à manutenção da ordem jurídica” (PONTE, 2008, p.147). Depois Franz Von List (2003) conceitua o bem jurídico como interesse juridicamente protegido.


Com o tempo surgiu a concepção neokantiana que, baseando-se na ausência de um conceito material de bem jurídico, desenvolve uma concepção metodológica ou telemetodológica do bem jurídico, dando um valor cultural ao delito, e, tendo por característica a referência do delito do mundo valorativo, ao invés de situá-lo no terreno social. Após a segunda guerra mundial em que a forte influencia nazista passou a orientar o direito penal, os adeptos da Escola de Kiel passaram a defender que a realidade e o valor não poderiam ser separados, revalorizando o conceito de bem jurídico.


Juarez Tavares (2000) fala nas dificuldades quanto à conceituação de bem jurídico dadas as variedades com que se apresenta fazendo desta tarefa uma atividade quase impossível. É uma missão espinhosa cujo resultado dificilmente será determinado com nitidez e segurança, mas há um consenso devido ao seu núcleo formador. Mesmo assim, Dias (2007) entende que bem jurídico seria a “expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso” (DIAS, 2007, p.114).


Por sua vez, Muñoz Conde e García Arán (2007) entendem que a necessidade de convivência, condensada com a ideia freudiana de que ao mesmo tempo em que frustra as necessidades humanas individuais, a sociedade também as satisfaz, supondo a proteção dessa convivência por parte do Estado, uma vez que só dentro dela o indivíduo pode se autorealizar e se desenvolver. A autorialização humana estaria condicionada a certos pressupostos de utilidade, e por isso esses objetos seriam objeto de proteção pelo direito. Daí a definição por eles trazida, no sentido de que “bienes jurídicos son aquellos presupuestos que la persona necesita para su autorrealización y el desarrollo de su personalidad en la vida social”[3] (MUÑOZ CONDE e GARCÍA ARÁN, 2007, p. 59)


Já Márcia Dometila Lima de Carvalho (1992) e Jesús Maria Silva Sánchez (1999) entendem que cabe a norma constitucional a eleição de bens jurídicos, pois se deve ter em mente que da Constituição partem os princípios máximos do ordenamento, logo, qualquer ofensa ao bem jurídico ofenderia a princípios constitucionais e o ordenamento jurídico como um todo. Como diz Carvalho (1992) “O conteúdo da tipicidade é o bem jurídico, se só a partir dele se pode dar um conteúdo ao injusto, ele se torna, então, o ponto de união entre dogmática e política criminal, isto é, entre teoria do delito e realidade social” (CARVALHO, 1992, p. 35). Para dialogar com Ponte (2008), observa-se que além de dar o conteúdo à tipicidade, e somente a partir dele dar significado ao injusto, pode-se concluir que é o bem jurídico quem faz a ligação entre a dogmática (teoria do delito) e a política criminal (realidade social). Nos Estados Democráticos de Direito é comum uma relação interativa entre princípios constitucionais e proteção jurídico-penal a bens jurídicos, sendo necessário buscar na Constituição a gênese e a função social do bem jurídico. Esse processo é uma relação quase que simbiótica, e ao ver dessa pesquisa necessária, a busca de uma fundamentação constitucional dos bens jurídicos penais. A Constituição determina como os bens devem ser hierarquizados, como as penas devem ser graduadas a luz dessa proteção, e esse tipo de leitura levam a concepção de um conceito principiológico do bem jurídico penal. Como leciona Carvalho (1992):


“A nova constituição traz um caráter limitador das leis penais, no momento em que regula os direitos e liberdades fundamentais, contemplando, implicitamente, ou mesmo de forma explícita, os limites do poder punitivo, e os princípios informadores do direito repressivo: as proibições penais não s podem estabelecer para fora dos limites que permite a Constituição, isto significando, também, que não podem ser afrontados os princípios éticos, norteadores da Lei Maior, mesmo que instituídos em dispositivos programáticos, sem regulamentações que lhes garantam uma existência real.” (CARVALHO, 1992, p. 37/38)


A adoção de um conceito de bem jurídico penal à luz da Constituição Federal traz a segurança de que no Brasil o Direito Penal apresenta como valor maior a Dignidade da Pessoa Humana.


4. BEM JURÍDICO DIFUSO


A existência de uma espécie de bem jurídico de natureza coletiva é reconhecida na doutrina desde a formulação do conceito de bem jurídico. Silveira (2003) afirma que Birbaum já reconhecia que a lei penal já não apenas deveria possibilitar a livre coexistência dos indivíduos, mas servir também de forma imediata a fins sociais, Franz Von Liszt (2003) apontava a diversidade de formas dos bens jurídicos, decorrente da complexidade da própria vida e das coisas, processos e instituições que a integram e nela se movimentam. O autor sustentava a existência de portadores individuais dos bens, ao lado de portadores supraindividuais, entre os quais sobressaía o Estado como portador dos interesses coletivos.


A verdadeira característica do bem jurídico coletivo ou universal reside em que ele deve ser gozado por todos e por cada um, sem que ninguém fique excluído. Daí, desumível é, uma relação difusa com os usuários desse bem, o que legitima a sua proteção, pois se lastreiam nos interesses fundamentais da vida social da pessoa.


A relevância autônoma dos bens jurídicos coletivos provém da potencial multiplicação indeterminada de interesses de toda e qualquer pessoa, se bem que não individualizáveis em concreto. Como diz Dias (2007), “tais bens apresentam-se, por sua própria natureza, como muito mais vagos e carentes de definição precisa, de mais duvidosa corporização ou mesmo de impossível tangibilidade” (DIAS, 2007, p.151).


A qualificação dos bens jurídicos supraindividuais é, no geral, bem quista pela doutrina italiana, embora tenha sofrido críticas da doutrina hispânica. Silveira (2003) lembra que estudiosos como Corcoy Bidasolo e Marco Cresti afirmam que a terminologia difusa manifesta reprovação quanto à sua legitimidade e que interesses difusos possuem uma noção sem significado jurídico. A doutrina brasileira, por sua vez, entende os bens jurídicos supraindividuais e difusos como complementares do interesse coletivo. Embora a lei imponha a denominação supra-individual, todos são tidos como os mesmos.


Ada Pellegrini Grinover (1984) afirma que todos tratam de interesses metaindividuais. Entretanto, enquanto os interesses coletivos referem-se a interesses de uma coletividade de pessoas interagindo apenas entre si, os interesses difusos dizem respeito a uma valoração de pessoas e valores genéricos, pessoas e interesses de massa, conflitando entre si. Esses interesses têm seu vínculo entre pessoas e fatos conjunturais genéricos, e ainda, a característica de pautarem-se em dados acidentais e mutáveis, pois no geral referem-se à qualidade de vida.


Essa distinção só se mostra relevante por ocasião de especificar conceitos de bens gerais, coletivos e difusos. Em primeira análise, entende-se que os interesses gerais não se fragmentam em uma pluralidade de situações subjetiva, ou seja, o coletivo como um todo é seu titular, é o caso de uma sociedade empresarial, o condomínio, a família que dão base ao surgimento de um interesse comum nascido da relação de base que une seus componentes. Em um plano mais complexo, onde a identificação da relação de base não é tão facilmente determinável, é o interesse coletivo do sindicato, congregando todos os empregados de uma determinada categoria profissional. Já o interesse difuso propriamente dito, consiste no interesse que não encontra apoio em uma relação de base bem definida, reduzindo o vínculo entre pessoas a fatores conjunturais extremamente genéricos. É o caso de viver sob certas condições sócio-econômicas, ou consumir o mesmo produto, ou seja, são interesses espalhados e informais à tutela de necessidades, também coletivas, sinteticamente referidas a qualidade de vida. Silveira (2003) lembra que no que diz respeito aos interesses supraindividuais, tem-se o chamado interesse público exercido com relação ao Estado (a ordem pública, a segurança pública), embora constitua interesse que todos compartilham.


O que se deve ter em mente é que o caráter coletivo do bem jurídico não exclui a existência de interesses individuais que com ele convergem: se todos os membros de uma comunidade (ou de certa comunidade) se veem prejudicados por condutas pesadamente poluidoras, cada um deles não deixa, individualmente, de sê-lo também e de ter um interesse legítimo na preservação das condições vitais. Resta, porém, a repetida objeção de que a multiplicidade de condutas perigosas para a manutenção das condições gerais de vida conduz a que o delito coletivo perca sua determinabilidade numa medida insuportável face ao princípio da legalidade e que o bem jurídico por aquele protegido se torne impescrutável para os seus destinatários.


5. CONSTRUÇÃO DO FATO PUNÍVEL PENAL


Com a reforma penal de 1984, o Brasil adotou o modelo finalista do fato punível para a construção de seus tipos penais. Santos (2010) afirma que segundo esse modelo


“a ação humana é exercício de atividade final ou, como objetivação da subjetividade, realização do propósito: o homem pode, em certos limites, por causa do saber causal, controlar os acontecimentos e dirigir a ação para determinados fins, conforme um plano”. (SANTOS, 2010, p. 77)


O grande mérito do finalismo consiste em retirar os elementos subjetivos da culpabilidade e inseri-los no próprio tipo penal, deixando na culpabilidade somente as circunstâncias que diziam respeito à reprovação da conduta contrária ao Direito, formando uma culpabilidade normativa e permitindo a criação de tipos dolosos e culposos[4]. É o finalismo quem dá a operacionalidade ao modelo tripartido do crime, também adotado na legislação pátria. Esse modelo seria formado pelo tipo de injusto e a culpabilidade, sendo o primeiro constituído pelo tipo legal e pela antijuridicidade. 


Já nos dizeres de Muñoz Conde e García Arán (2007), a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são as características comuns a todos os delitos, cujo ponto de partida é a tipicidade sempre, uma vez que só a conduta típica, no caso a descrita no tipo penal, pode servir de base para as posteriores valorações, de modo a se formar um conceito progressivo de delito. Em outros termos, só há crime se a conduta for típica, antijurídica e culpável. Por ser o elemento inicial e objeto maior desse trabalho, haverá um apego maior à conduta típica.


A norma penal regulamenta as condutas humanas e tem por base uma conduta que ela entende como regular. De toda a extensa gama de comportamentos humanos a norma seleciona alguns e tenta regular para proteger bens maiores que permitem o desenvolvimento individual e coletivo, os já falados bens jurídicos. Para isso se cria os tipos penais.


O tipo penal é como lembram Eugênio Raul Zaffaroni e José Henrique Pierangeli (2006) “um instrumento legal e logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes” (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2006, p. 381), essas condutas humanas que são a base de toda reação jurídico-penal, se manifestam por meio de atos positivos e negativos (ações ou omissões), sendo ambos importantes para o Direito Penal.


O fato típico penal será formado por elementos descritivos, normativos e subjetivos, cuja finalidade é a identificação do bem jurídico protegido pelo legislador. Como lembra Cézar Roberto Bittencourt (2004), os elementos descritivos são facilmente compreendidos com a percepção dos sentidos (objetos, animais, coisas, etc.); os elementos normativos são os que merecem um desenvolvimento da atividade cognitiva, implicando em um juízo de valor (expressões como: sem justa causa, sem licença de autoridade competente, fraudulentamente, etc.) e os elementos subjetivos que são a culpa e o dolo.


Ora, se toda a construção típica antecede a uma conduta, que para ser penalmente relevante precisa lesionar um bem jurídico penal, como justificar os delitos de perigo abstrato frente o princípio da lesividade?


O chamado crime de perigo abstrato é, na visão de Günther Jakobs (2003), aquele que cresce sob a justificativa de que “para a administração de uma sociedade mais ou menos complexa nunca bastou o estabelecimento de normas contra a lesão de bens jurídicos” (JAKOBS, 2003, p. 24), de modo que hoje, chega-se a falar, de maneira nítida, em tutela penal antecipada.


No que tange a proteção de bens jurídicos supraindividuais, o legislador tem claramente preferido por esse modelo de tipificação, muito embora recaia no perigoso campo da proliferação indiscriminada de normas. No interior da Constituição Federal é evidente a presença de mandados de criminalização, pode-se citar o Art. 225 § 3º[5], no que tange a ordem econômica, no artigo 170[6] ela estabelece os princípios gerais da atividade econômica. Quanto ao direito do consumidor, seu artigo 5º, XXXII[7], prevê que o Estado proverá a defesa do consumidor, vinculando o legislador ordinário de modo a obrigá-lo criminalizar essas condutas. O Código Penal deixa claro a preocupação difusa. Tipos penais como o crime de incêndio (art. 250 do CP)[8], de epidemia (art. 267 do CP)[9], de envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal (art. 270 do CP)[10]. Variando tipos de perigo abstrato e concreto, o Código Penal se satisfaz com incriminações sob um ponto de vista anterior ao fato, deixando de considerar a potencialidade do risco advindo de determinadas ações. Por exemplo, se preocupa com a questão da Saúde Pública sem que esta se mostre afetada.


Ora, todo bem jurídico necessita realizar as potencialidades nele contidas de uma série de condições acompanhantes, os delitos de perigo abstrato visam à manutenção da vigência da norma, cuja atividade policial não se mostre o suficiente para a proteção, mas não se acredita que cabe ao Direito Penal agir à frente da atividade administrativa do Estado. Como diz Günther Jakobs (2003), “os delitos de perigo abstrato não apenas lesionam a ordem pública, mas lesionam um direito à segurança” (JAKOBS, 2003, p. 27). Sem contar que nos dias de hoje, o limiar divisório entre o comportamento permitido e o contrário à norma é muito tênue, de modo que acaba sendo fixado arbitrariamente.


Vale ressaltar que se o tipo penal serve para a proteção de bens jurídicos concretos, no caso concreto deve-se comprovar se foram postos a perigo, pois se alguém for condenado por um resultado probatório pouco claro, contraria o princípio do in dubio pro reo, pois caso o tribunal exija uma comprovação de que o bem jurídico tenha sido exposto a um risco, estar-se-ia falando de um delito de perigo concreto.


6. CONCLUSÃO


Os delitos de perigo abstrato, pelo que aqui fora exposto, não respeitam o princípio da legalidade, pois não obedecem ao postulado da taxatividade, permitindo uma arbitrariedade para sua aferição. Essa arbitrariedade, por sua vez, é perigosa, pois muitas vezes depende de elementos subjetivos que não têm como ser provados, e se o fossem, estar-se-ia diante de um delito de perigo concreto. Por fim, a lesividade, que é o princípio maior do direito penal do bem jurídico, não chega a ser contemplada, criando-se punições para potencialidades lesivas. Se a fundamentação desses tipos for a segurança do bem, não será matéria de Direito Penal, passa a ser objeto de outra esfera de ação estatal.


Portanto, conclui-se que os ditos delitos de perigo abstrato são inconstitucionais por definição, não havendo justificativa plausível dentro do ordenamento jurídico nacional para a sua permanência. Se a Constituição ordena que determinadas atividades sejam criminalizadas, ela prega a proteção do Bem Jurídico Penal, não ordena a criação de normas penais que ensejariam mais incertezas do que propriamente a segurança. Assim sendo, em especial no que diz respeito aos bens jurídicos supraindividuais, outras formas de criminalização devem ser buscadas, mas nunca relativizando princípios constitucionais fundamentais como a legalidade e a lesividade.


 


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ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Vol. 1, 6ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006.

 

Notas:

[1] A lei penal expressa os interesses que a sociedade considera mais importantes para a convivência, destinando a sua proteção o instrumento mais grave que dispõe. A legitimação exclusivamente atribuída ao legislador para elaborar a lei penal deve exercer-se com o máximo consenso possível em torno de sua elaboração e promulgação, o que resulta favorecido pela exigência da maioria qualificada própria das leis orgânicas. (tradução do autor)

[2] Uma técnica legislativa correta deve fugir tanto dos conceitos excessivamente vagos nos quais não é possível estabelecer uma interpretação segura, como das enumerações excessivamente casuístas que não permite cobrir todas as nuances da realidade. O ponto justo é, em ocasiões, tão difícil de estabelecer que talvez por isso a jurisprudência constitucional seja especialmente cautelosa ao referir-se ao princípio da taxatividade. (tradução do autor)

[3] Bens jurídicos são aqueles pressupostos que a pessoa necessita para sua autorealização e o desenvolvimento de sua personalidade na vida social. (tradução do autor)

[4] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal – parte geral. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva 2004. p. 188-189

[5]  Art. 225 -Omissis
§ 3º – As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.
[6] Art. 170 – A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

[7] Art. 5º – Omissis
XXXII – o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor
[8]Art. 250 – Causar incêndio, expondo a perigo a vida, a integridade física ou o patrimônio de outrem:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa.
[9] Art. 267 – Causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos:
Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos
[10] Art. 270 – Envenenar água potável, de uso comum ou particular, ou substância alimentícia ou medicinal destinada a consumo:
Pena – reclusão, de 10 (dez) a 15 (quinze) anos


Informações Sobre o Autor

Wallton Pereira de Souza Paiva

Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Paraíba, mestrando em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.


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