Direito à vida: aborto- estupro- feto anencefálico

“Como cientista, eu sei – e não apenas “acredito” – que a vida humana se inicia na concepção”. Bernard Nathanson[1], que, para começar, pousou as mãos abertas sobre a mesa e disse que aquelas mãos tinham feito muitas milhares de vítimas. Era um homem profundamente arrependido, que corria o mundo procurando resgatar alguma paz interior, um homem perseguido por terríveis remorsos. A utilização de uma nova tecnologia para estudar o feto no útero, quando se tornou director de um grande hospital de obstetrícia, fê-lo compreender a enormidade do seu erro.

O presente estudo visa abordar o direito à vida, enquanto direito fundamental, assim como as ligações existentes entre este e o aborto. Versa sobre os  limites gizados na Lex Fundamentalis e legislação infraconstitucional, estabelecendo diferenças entre as várias espécies de aborto, sem descurar o caráter social relativo ao controle de natalidade.

Quiçá por ser um dos mais rumorosos problemas da Ciência Jurídica — o direito à vida — e pela própria maneira como vem sendo tutelado (e violado) entre nós, assim como a sua evolução na tábua histórica até os dias hodiernos, o tema despertou nosso interesse em perscrutar alguns aspectos acerca de suas características e os problemas relativos à sua positivação e exigibilidade, enquanto integrante dos chamados direitos fundamentais. Note-se que, por ser inato à natureza humana e por ser um direito fundamental, o direito à vida é mais antigo — óbvio — que a própria teoria dos direitos fundamentais.

1) CONCEITO DE VIDA:

Inicialmente tentaremos definir definir o significado de vida para que possamos emoldurar a abrangência e atuação de nossa inquirição.

O vocábulo vida possui inúmeros significados, dificultando por demais um sentido pronto e acabado. Trata-se de assunto cuja conceituação é tida como inextrincável por muitos autores. Todavia, diligenciaremos no sentido de buscar diferentes concepções de tratadistas para iniciarmos nosso deslinde.

Interessante a posição do  Constitucionalista, José Afonso da Silva [2], ao tecer considerações acerca do direito à vida, reconhecendo a dificuldade de uma definição, como se constata:( Curso de Direito Constitucional Positivo, 9.a edição. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo: 1991).

“Não intentaremos dar uma definição disto que se chama vida, porque é aqui que se corre o risco de ingressar no campo da metafísica suprarreal, que não nos levará a nada”.

É sabido que a tarefa de definir o sentido exato de vida revela-se por demais colossal, em virtude das dificuldades sobre o tema. Mesmo porque a vida está em constante movimento, acontecendo a todo instante diante de nós. Alguns estudiosos, sobretudo das Ciências da Saúde, dizem ser a vida a continuidade de todas as funções de um organismo vivo. Ou então o período compreendido entre a concepção e morte. Trata-se, como podemos inferir, de idéia muito vaga, carecedora de precisão, não correspondendo a nenhum dado sensorial ou concreto, insuficiente para conceituar, por conseguinte, a proposição em comento. Em suma, a definição não consegue apresentar características individuadoras, inequívocas, do que seja vida.

Circunstância a tornar ainda mais espinhosa o ofício de atribuir uma definição à vida, é a relação que se tem por hábito fazer com seu contraposto morte. Autores tanatologistas costumam afirmar, que, por exclusão, vida é tudo aquilo que não está morto, ou seja, que não faleceu, não finou, não expirou, não pereceu. Embora atribuam clareza solar às suas definições, cremos que tal assertiva é por demais incompleta, senão, defeituosa.

O próprio José Afonso da Silva [3], elucida que

“no texto constitucional (art. 5o, caput) não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade.”

E, após essa introdução, passa a concluir:

“É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que mude de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte.

Já o filólogo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira [4], traz a seguinte definição de vida (do latim vita): ( HOLANDA, Aurélio Buarque de. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2.a edição revista e ampliada. Editora Nova Fronteira. São Paulo: 1994).

“Conjunto de propriedades e qualidades graças às quais animais e plantas, ao contrário dos organismos mortos ou da matéria bruta, se mantêm em contínua atividade, manifestada em funções orgânicas tais como o metabolismo, o crescimento, a reação a estímulos, a adaptação ao meio, a reprodução , e outras; existência; o estado ou condição dos organismos que se mantêm nessa atividade desde o nascimento até a morte; o espaço de tempo que decorre desde o nascimento até a morte.”

Irrefutável portanto, que o objeto da tutela constitucional é a vida humana, levando o já referido José Afonso da Silva [5] a pontificar que, “por isso é que ela constitui a fonte primária de os outros bens jurídicos.” É o centro gravitacional sobre o qual orbitam todos os outros direitos do gênero humano. Em conseqüência, temos que, do asseguramento do direito à vida defluem todas as outras situações, quer sejam jurídicas, políticas, econômicas, morais ou religiosas do Homem (in genere). Assim , “de nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos” .  

A tarefa de consubstanciar juridicamente, de maneira indiscutível, o direito à vida, cumpre ao Direito Constitucional, viga mestra de todas as outras ramificações. Por isso que o laureado Afonso Arinos [6], ao tecer escorreita dissecação sobre o objeto de estudo do Direito Constitucional, declara que:

“outro aspecto de que se reveste o Direito Constitucional é que ele abrange a estrutura jurídica do Estado , suas normas fundamentais, a definição e o funcionamento dos seus órgãos, os direitos públicos individuais e outros assuntos, estejam eles, ou não estejam, consignados no texto da Constituição”.

2)  DIREITO À VIDA E ABORTO

Por todo o respeito que a Constituição Federal de 1988 guarda ao bem-jurídico vida, pela disposição do tema na legislação infraconstitucional, conseqüentemente, o aborto é prática que afronta incisivamente o direito à vida, por razões que saltam à vista. O desrespeito aos direitos do nascituro, as funestas técnicas usadas para extirpar a vida humana de seu nascedouro, os medicamentos abortivos, são rotinas infelizes em hospitais e nos anais da polícia.

É correto afirmar que o aborto, fora dos casos legais e morais, fere o direito fundamental à vida, deixando entrever casos de sua inexigibilidade jurídica. À luz do direito positivo ele se biparte em legalizado e criminoso, consoante seja ou não permitido pela lei, variável através dos tempos e no seio de todos os povos.

3) DIREITO À VIDA NA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE 1988.

Essencial é a importância do tema versado que, não bastasse o legislador constituinte seguindo orientação do mestre  Hans Kelsen [7], que concebeu o ordenamento jurídico como um sistema escalonado e gradativo de normas, que em cujo topo deveria figurar a norma fundamental, iniciaremos a breve análise acerca dos direitos à vida pelo que dispõe nossa Constituição da República de 1988  sobre a matéria  colocá-lo no caput do 5o — quando prefacia o Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos) do Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais)  da Carta Política:

art. 5o – Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (grifamos).

A prioridade que o legislador constitucional de 1988 imprimiu ao direito à vida é altamente relevante.  Este coloca-se à frente de outros e, a mens legistaroris, afigura-nos no sentido de que a vida humana seja considerada um ponto central e eqüidistante em relação aos demais direitos.É a coluna cervical do arcabouço jurídico, de onde emanam todos os demais direitos.

4) – ABORTO:

O etimologia da palavra aborto (de ab-ortus) transmite-nos a idéia de privação do nascimento, “interrupção voluntária da gravidez, com a morte do produto da concepção”. Este é o ensinamento de Heleno Cláudio Fragoso[8]:

“O aborto consiste na interrupção da gravidez com a morte do feto.”

Cremos que aborto é a interrupção intencional da gravidez, resultando a morte do nascituro ou nascente. Para o lexicógrafo Aurélio, o significado jurídico da amblose é a “interrupção dolosa da gravidez, com expulsão do feto ou sem ela.” . Na lição de Hélio Gomes[9]:

“Interrupção ilícita da prenhez, com a morte do produto, haja ou não expulsão, qualquer que seja o seu estado evolutivo, desde a concepção até momentos antes do parto.”

Para Tardieu, abortamento é a “expulsão prematura e violentamente provocada do produto da concepção, independentemente de todas as circunstâncias de idade, vitalidade e mesmo formação regular”.

Leoncini  ensina que amblose é a “interrupção da gravidez antes do termo normal, com morte do produto da concepção, em nexo de causa e efeito”. Pode haver ou não a expulsão do feto. Na última hipótese, a expulsão pode ser tardia, pode haver mumificação ou formação de litopédio (feto morto ou calcificado).

Carrara  [10] define o feticídio como “a dolosa morte do feto no útero, ou sua violenta expulsão do ventre materno, e de que se siga a morte”.   

Realçado o seu propósito de proteger em verdade a vida do embrião, o Código considera como lesão gravíssima o abortamento conseqüente a lesões corporais. (art. 129, § 2º, V, do CP). 

Para Giuseppe Maggiore [11] — é a “interrupción violenta e ilegítima de la preñez, mediante la muerte de un feto inmaturo, dentro o fuera del útero materno”.

Neste prisma, é merecedora de todos os encômios a atitude da Doutrina Cristã na evolução da garantia do direito fundamental à vida, pois “deve-se ao Cristianismo o entendimento segundo o qual o aborto significa a morte de um ser humano, e, pois, virtualmente, homicídio” . Assim, segundo ensinamento do Professor Willis Santiago Guerra Filho[12], ao tratar dos “Direitos Subjetivos, Direitos Humanos e Jurisprudência dos Interesses (relacionados com o pensamento tardio de Rudolph Von Jhering)”, “a noção de um ‘direito subjetivo’, isto é, do direito como atributo do sujeito , como se pode imaginar, era estranha aos antigos, pois pressupõe o desenvolvimento da idéia, tipicamente moderna, de subjetividade, do indivíduo apartado da ordem cósmica objetiva, em que encontrava seu posto, junto com outros seres, alguns inferiores a ele, e outros, como os deuses, superiores.”

E conclui:

“A individualização do sujeito, pela descoberta de sua interioridade espiritual, se operará sob o influxo decisivo do cristianismo, cujo apogeu intelectual se dá no século XIII, com figuras tais como São Boaventura, Santo Tomás de Aquino e Roger Bacon.”

 Foi sem dúvida o Cristianismo que trouxe a concepção, válida até hoje, de que o feto, mesmo no ventre materno, embora não se possa reputar como pessoa no sentido jurídico, representa um ser a quem a sociedade deve proteger e garantir seu direito fundamental à vida. Neste sentido, Jorge Miranda[13] faz certo que:

“É com o Cristianismo que todos os seres humanos, só por o serem sem acepção de condições  são considerados pessoas dotadas de um eminente valor. Criados à imagem e semelhança de Deus , todos os homens são chamados à salvação através de Jesus que, por eles, verteu o Seu Sangue. Criados à imagem e semelhança de Deus, todos os homens têm uma liberdade irrenunciável que nenhuma sujeição política ou social pode destruir”.

  A tendência geral, na atualidade, é de atenuação da pena para a mulher que pratica ou consente no aborto e penas mais gravosas para os abortadores.

Com isso aumentou consideravelmente o número de mulheres que procuravam fugir aos lídimos deveres da maternidade. Assim, o Estado resolveu limitar os casos sociais ensejadores do móvito.

Resta clara a posição de que aborto não é meio contraceptivo. O resultado negativo de experiências como a descrita supra mostram que é melhor iniciar campanhas em favor do meios anticoncepcionais, apontando os perigos das práticas abortivas, especialmente em relação com as doenças crônicas do aparelho genital de que resulta a esterilidade e, sobretudo, pelo direito fundamental à vida.

Merece, pois, toda a guarida da legislação, já que o feticídio é conduta que afronta a própria moral humana.

Extrai-se pouquíssimo, assim, desse tipo de argumentação. Ainda  que se reduza o feto, contrariando o bom senso, a simples parte  do corpo da mulher, o suposto direito desta “sobre o próprio  corpo” é obviamente insuficiente para assegurar êxito à causa  que com tal escora se visa a sustentar.

“O aborto é pequeno assassínio em virtude da exigibilidade da vítima,  mas muito maior  em vista  da  premeditação aleivosa e tocaia, e tanto ou mais odioso do que outro,  já que a vítima é ferida  na  sombra e  não  enuncia sequer um grito,  um vagido  para  defender  seu  direito  à  existência e implorar a piedade da mãe que o fere.” (Eliane Alfradique, in Uma Visão Geral sobre o artigo 5º da Constituição da República, publicado in http://www.tex.pro.br).

5) DIREITO PÁTRIO — OS CASOS DE ABORTO LEGAL (ABORTO NECESSÁRIO OU TERAPÊUTICO E O ABORTO NO CASO DE GRAVIDEZ RESULTANTE DE ESTUPRO — ALCANCE DO ARTIGO 128 DO CÓDIGO PENAL ).

O artigo 124 do Código Penal dispõe: “Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”. Considere-se que não há consentimento quando (art. 126, § único) a gestante é menor de quatorze anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

“Neste caso, o sujeito ativo tanto pode ser a gestante como qualquer pessoa, em regra, parteira ou médico. A gestante é o sujeito ativo do crime de aborto provocado e do aborto consentido, isto é, quando provoca em si mesma o aborto ou quando consente que lhe provoquem. São as duas formas previstas no art. 124. O terceiro provocador é o sujeito ativo do aborto sofrido, como do consentido (arts. 125 e 126). A diferença, neste último caso, está em que a gestante será punida em conformidade com o disposto no art. 124 do CP, enquanto que o provocador sofrerá a pena do art. 126 do C. Penal”. (Euclydes Custódio da Silveira [14], Direito Penal, Crimes contra a Pessoa, 2ª ed., Sâo Paulo, Ed. RT, 1973, p. 10 ).

Nossa visão sobre o assunto:

“O sujeito passivo somente é a mulher gestante no caso de aborto praticado sem o seu consentimento, referindo-se neste caso, também aos casos de alienação mental, menoridade e violência, fraude ou ameaça, porque nestes casos a mulher não age, sed agitur”, porque nestes casos, não tem a mulher capacidade para consentir”.(ALFRADIQUE, Eliane, Comentários ao art. 5º da Constituição da República, in http://www.tex.pro.br).               

“No aborto provocado pela própria gestante (auto-aborto), assim, como no consentido (arts. 124 e 126), o sujeito passivo é o produto da concepção, não se distinguindo entre o óvulo fecundado, embrião ou feto. É, em suma, o nascituro, o ente que está por nascer. No aborto sofrido (arts. 125 e 126, § único) e no consentido provocado por terceiro (art. 126, caput), também a gestante é sujeito passivo se lhe resulta lesão grave ou morte. Pouco importa que o produto da concepção seja viável ou não, pois o objeto jurídico do crime é a vida endo-uterina, e não a vitalidade, ou a capacidade de alcançar a maturidade”. Assim pensamos, porque entendemos que a vida começa no momento da fecundação e todos os meios que tentam ou impedem que essa vida siga seu curso natural é ilegal, não somente para a mãe que consente, mas para quem pratica um ato tão cruel. Pensar-se em controle de natalidade, sim, mas com a educação ministrada às adolescentes e as mulheres de pouca informação, não com a retirada agressiva, executando sem piedade um ser humano sem direito a defesa.

Importante frisar que a prova da gravidez e de que o aborto foi provocado é assunto médico-legal, normalmente esclarecido no laudo pericial, cuja eventual deficiência não impedirá que o processo siga seus ulteriores termos até o julgamento pelo Tribunal do Júri, desde que apoiada noutros elementos persuasivos da materialidade do crime.

A realização do exame de corpo de delito é indispensável no processo relativo a crime que deixa vestígios, como o aborto, sem a possibilidade de ter-se consumado sem que os vestígios sensíveis ficassem. Sua falta acarreta nulidade do processo, nos termos dos arts. 158 e 564, III, letra “b”, do CPP.

OBJETO MATERIAL:

Entre nós, o Código Penal (Lei no 7.209, de 11 de julho de 1984), declara a proibição do aborto. Todavia, o aborto necessário, legal ou terapêutico e o aborto no caso de gravidez resultante de estupro não são punidos. São casos de aborto legal, onde a lei, prevendo situação especial, os autoriza. Duas as hipótese previstas na legislação: para salvar a vida da gestante quando não houver outro recurso e para interromper a gravidez resultante de estupro. Assim, dispõe o artigo 128, do Estatuto Repressivo, ad litteris:

“Art. 128 — Não se pune o aborto praticado por médico:

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.”

Destarte, no primeiro caso, é caso de aborto terapêutico, “porque representa verdadeiro tratamento” ou necessário “porque é realmente necessário”. A intervenção do médico justifica-se pelo chamado estado de necessidade, quando se torna imprescindível e inadiável para ser salva a vida da mulher que o gerou. É prática lícita e irrenunciável frente a incompatibilidade entre a vida materna e embrionária. No segundo caso, trata-se de evitar que a mulher, por haver sido estuprada e, ipso facto, engravidar, não tenha uma gravidez acintosa, produto de um crime monstruoso.”

As mulheres vítimas de violência carnal foram alvo de proposta apresentada ao III Congresso Científico Panamericano (Lima, 1924), por Jimenez de Asúa[15] — assim redigida:

“Tendo em conta que há casos excepcionais de violação, em que a ultrajada verá no filho, concebido pela força, uma recordação amaríssima dos instantes mais penosos de sua vida, pode formular-se um artigo, que poderia incluir-se nos códigos penais de toda a América espanhola, concedendo ao magistrado a faculdade de outorgar à mulher violada que o solicite, por excepcionais causas sentimentais, autorização para que um médico de responsabilidade moral e científica lhe pratique o aborto libertador das suas justas repugnâncias”.

6) ABORTO NECESSÁRIO:

Prevê o art. 128, do CP, os casos de aborto legal quando ocorrem circunstâncias que tornam lícitas a prática do fato. São o aborto necessário e o aborto da vítima de estupro. Segundo o artigo mencionado, “não se pune o aborto praticado por médico”: I- se não há outro meio de salvar a vida da gestante; II- se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido do consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal”.

Há autores que entendem que nesses casos estamos diante de causas excludentes da criminalidade, embora a redação do dispositivo pareça indicar causas de ausência de culpabilidade ou punibilidade.

Entendemos que o caso se subsume à causa de ausência de punibilidade. Isto porque, crime há, pois está se matando uma vida humana, tenha a origem que for, mas que pela situação e circunstância do caso, não é punido o aborto pelo estado de necessidade no primeiro caso(salvar a vida da gestante), e no segundo, também não é punível pelo fato de aquela gravidez resultar de um crime hediondo como o estupro, onde a violência empregada retira as forças da mulher e repugna o ato praticado. Aqui se faz presente o sentimento ético ou humanitário, limitando-se a excluir a punibilidade da prática do aborto pelo fim “honoris causa”.

Poderá ser autorizado em processo sumaríssimo o aborto. Argumentar que a lei não indica como necessária a autorização para a realização da amblose chega a ser pueril. Ora, se estamos tratando de crime de estupro, daqueles delitos que deixam vestígios, nenhuma dificuldade se apresenta para a prova do cometimento do referido delito.

Excluindo o crime de aborto no caso de interrupção da gravidez resultante de estupro, o legislador brasileiro deu solução corajosa a questão tão controvertida. É este o aborto sentimental ou por indicação ética.     

É cediço que o estupro inclui-se, criminologicamente falando, entre aqueles delitos que violentam a sociedade pela hediondez de sua prática, bem como, por atentar contra a liberdade da mulher e afrontar todos os preceitos de ordem moral e religiosa de nossos tempos, ou seja, aqueles que as autoridades não tomam conhecimento pela hediondez da conduta, o medo de retaliação, aliada à desonra humilhante e ao pundonor da vítima. Receosa de ser ainda mais afrontada em sua honra, à pobre mulher não resta outra alternativa senão guardar silêncio. Muitas vítimas., com medo de novas humilhações, ao invés de procurarem a ajuda do Poder Judiciário para abortarem, preferem o caminho da ilegalidade, pois recorrem a clínicas particulares, sempre clandestinas, que acabam por praticar o aborto.

Ressalte-se que a norma excludente faz menção ao aborto praticado por médico, portanto, conduta exclusiva desses profissionais. Aliás , o Código de Ética Médica recomenda que, sempre que possível, o aborto seja precedido de consulta a uma junta. Lembre-se que o aborto de mulher cuja gravidez seja resultado de atentado violento ao pudor (“constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal) deverá ser deferido com espeque na analogia in bonam partem.

7) ANENCEFALIA:

Questão assaz interessante, tanto na doutrina como na jurisprudência, é a do chamado aborto eugênico ou eugenésico, ou seja aquele em que o nascituro apresenta fundadas probabilidades de apresentar graves e irreversíveis anomalia físicas e/ou mentais. O adjetivo eugênico, deriva de eugenia (do grego eugéneia), isto é, a “ciência que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento da raça humana.” . Para Hélio Gomes,[16] “a eugenia é um conjunto de princípios científicos destinados a orientar a procriação hígida” ou então, “o estudo de fatores que, sob o controle social, possam melhorar ou prejudicar as qualidades raciais das gerações futuras, quer física, quer mentalmente” . Rastreando acerca da evolução da Eugenia, o saudoso Hélio Gomes [17] faz certo que Licurgo foi o primeiro eugenista prático do mundo, pois “procurava eliminar débeis e inválidos e aconselhava aos pais (conselho eternamente bom) que legassem aos filhos, não riqueza, mas saúde. a maior de todas as fortunas.”

Não há neste estudo a intenção de definir-se um conceito de anencefalia pela falta de qualificação técnica para tal, mas pelos estudos e pesquisas feitas sobre o tema, apenas com o objetivo de entedimento do que é anencefalia, propomos e ousamos dar uma acadêmica definição:

Anencefalia é um defeito do tubo neural (uma desordem envolvendo incompleto desenvolvimento do cérebro, espinha dorsal e suas coberturas de proteção). O tubo neural  é de envoltura estreita que dobra e fecha entre a terceira e quarta semana da gravidez para formar o cérebro e a espinha dorsal do embrião. Anencefalia ocorre quando o fim “cefálico” ou de cabeça do tubo neural não fecha, enquanto resultando na ausência de uma porção principal do cérebro, crânio, e couro cabeludo. Crianças com esta desordem nascem sem ambos (a parte dianteira do cérebro) e quando acontece que o “encefálico” ou de cabeça do tubo de neural não fecha,  resultando na ausência de uma porção principal do cérebro, crânio, e couro cabeludo. Crianças com esta desordem nascem sem ambos um (a parte dianteira do cérebro) e um cérebro (o pensamento e coordenações da área do cérebro). O tecido de cérebro restante está freqüentemente exposto–não coberto através de osso ou pele. A criança é normalmente surdo, inconsciente, e incapaz de sentir dor. Embora alguns indivíduos com anencefalia podem nascer com um talo de cérebro rudimentar, mas a falta de um cérebro funcionando permanentemente, regras que refogem a possibilidade de já ganhar consciência. Ações reflexivas como respiração (respirando) e respostas para soar ou toque pode acontecer. A causa de anencefalia é desconhecida. Embora é crido que a dieta da mãe, a falta de vitamina podem ter um papel importante, os cientistas acreditam que muitos outros fatores também são envolvidos.

E com clareza coloca o jurista Cezar Roberto Bitencourt [18], quando afirma que, “modernamente, não se distingue mais entre vida biológica e vida autônoma ou extra-uterina. É indiferente a capacidade de vida autônoma, sendo suficiente a presença de vida biológica”.(Teoria Geral do Delito. São Paulo: Saraiva, 2000.)  Sendo assim, se tal afirmação for considerada verdadeira, como conseqüência, o abortamento de feto anencefálico enquadra-se como crime contra vida. Ora, o feto possui batimentos cardíacos, circulação sanguínea, e isto, já caracterizaria vida biológica.

Porém, cabe lembrar que o produto desta gestação só possui “vida” devido ao metabolismo da mãe, que a criança, ao nascer, conseguiria “sobreviver” apenas alguns instantes e viria a óbito logo em seguida. Assim, a ausência de cérebro não daria a este ser nenhuma expectativa de vida. E, mesmo com a afirmação acima de que, a capacidade de vida autônoma torna-se irrelevante à questão do aborto, torna-se indispensável expor aqui a desnecessidade de uma mãe carregar em seu ventre um filho que não tenha possibilidade de ter uma vida extra-uterina, e que ela, além da dor física que terá durante nove meses de gravidez, que neste caso tornar-se-ia a menor das dores, sofrerá de forma que só uma mãe possa sofrer ao imaginar seu filho “nascendo” e “morrendo”, em seguida.

Descortina-se uma corrente jurisprudencial que vem admitindo a amblose no caso de abnormidade fetal comprovada. Aqui mesmo no Estado, tivemos uma manifestação judicante neste sentido. Dois casos merecem destaque e sua narrativa: o primeiro, de um mulher vítima de estupro, que procurou o juiz para pedir consentimento para a prática do aborto, e, após todas as formalidades cumpridas, ainda assim, o magistrado quis novamente ouvir a interessada, quando para surpresa do julgador, ela compareceu acompanhada de seu novo companheiro. Ouvida essa mulher, diante do juiz, promotor, assistente social, psicóloga, declarou ela e seu namorado, que resolveram de comum acordo desistirem da realização da amblose (aborto) e que juntos criariam aquele ser. A emoção foi geral.

Um outro caso conhecido e ocorrido dentro de família idônea e bem formada, se deu, quando a filha do casal, grávida, tomou conhecimento que seu filho possuia um deformidade craniana que a possibilidade de ser uma criança normal era  0,01%. Foi diagnosticado através de exames modernos como “doppler”, ecografia, como demonstrado através do original exame:  Mesmo assim, continuou a gravidez, não   admitindo abortar. Exames revelavam meningocele e defeito no continente ósseo, no feto gerado e ainda assim, a mãe repudiou o aborto. Nove meses se passaram e nasceu a criança perfeita, com saúde plena e sem qualquer anomalia, hoje com nove (09) anos de idade. Veja-se, para maior reflexão para aqueles que pugnam pelo aborto nestes casos, os Ultra-sons (Doppler):

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Dissertam os doutrinadores que se posicionam favoravelmente ao aborto eugenésico (como deste caso, entre outros) citando autores como Aníbal Bruno, Nelson Hungria [19], ensinando que os laureados juristas lembrados se posicionam contra o aborto, objetando que na época de sua edição, a ciência médica ainda não avançara a ponto de oferecer um diagnóstico seguro sobre a inviabilidade fetal nestes casos. Reconhecemos que a ciência médica avançou, que contamos hoje com exames de última geração que mostra o interior do útero materno com grande propriedade. Mas, até esses exames podem falhar. Inúmeros casos que foram detectados como inviáveis ao feto, surpreenderam os médicos. Nem mesmo um exame por mais preciso que possa parecer, nos dá a certeza da inviabilidade fetal. São conhecidos os erros de diagnóstico em todo o tipo de doença. Não por culpa médica, mas por falha nos aparelhos ou falha na interpretação do diagnóstico. E nós, operadores do Direito, não podemos descurar.

Aníbal Bruno ensinava que:

“É impossível definir com segurança o que resultará do jogo entre os genes favoráveis e desfavoráveis provindos dos dois núcleos germinais e submetido por sua vez à influência das infinitas condições que irão cercar a evolução do novo ser e imprimir-lhe a extrema complexidade da sua estrutura e do seu comportamento individual. Em verdade, estamos diante de um problema obscuro, sobre o qual a ciência da herança ainda não pode dizer a palavra decisiva. E nada mais contrário aos princípios que regem o Direito do que pretender decidir sobre tais incertezas o destino de um ser humano”. ((Direito Penal, Parte Especial, Tomo IV, Rio de Janeiro, Forense, 1966, pp. 174/175).

O mestre Nelson Hungria [20] leciona:

“Andou acertadamente o nosso legislador em repelir a legitimidade do aborto eugenésico, que não passa de uma das muitas trouvailles dessa pretensiosa charlatanice que dá pelo nome de eugenia. Consiste esta em um amontoado de hipóteses a conjeturas, sem nenhuma base científica. Nenhuma prova irrefutável pode ela fornecer no sentido da previsão de que um feto será, fatalmente, um produto degenerado. Eis a lição de Von Franqué: <Não há doença alguma da mãe ou do pai, em virtude da qual a ciência, de modo geral ou nalgum caso particular, possa com segurança, prever o nascimento de um produto degenerado, que mereça, sem maior indagação, ser sacrificado”. (Comentários ao Código Penal, Vol. V, Rio de Janeiro, Forense, 1958, pp. 313).

O que não se pode é banalizar a vida humana, o maior milagre da Criação.

A asserção do clássico Nélson Hungria[21], a respeito da gravidez extra-uterina e da gravidez molar, pode, perfeitamente, ser aplicada à hipótese do feto  anencefálico.

“O feto expulso ( para que se caracterize aborto) deve ser produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto” (Comentários ao Código Penal, Forense, 1958, vol. V, p. 207/208).

Do ponto de vista médico, o feto anencefálico é uma patalogia e como patalogia deve ser tratada. Como diz a professora Débora Diniz [22], pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da  Universidade de Brasília, “A ausência dos hemisférios cerebrais, ou no linguajar comum “a ausência de cérebro”, torna o feto anencéfalo a representação do subumano por excelência”.

A expressão leiga “anencéfalo” não corresponde à ausência de encéfalo (pelo contrário), que é onde pelas regras vigentes na medicina mundial, inclusive no Brasil, na Resolução CFM 1.480/97 determinada pela legislação transplantadora de 1997, deve obrigatoriamente ser diagnosticada a morte encefálica.

Uma decisão judicial que ignore os fatos neurológicos relativos a esse julgamento, estará contrariando ou mudando os critérios mundialmente aceitos para definir existência de vida humana, que nada tem a ver com sua “perspectiva de futuro” em nossa legislação constitucional, inclusive.  A aceitação da premissa incondicional de vida ser o que tem “perspectiva de futuro” trará consigo práticas espúrias dentro e fora da medicina, como demonstramos neste texto.

Entenda-se também que muitos neonatos “encefálicos” são capazes de manter a respiração, mantendo o tronco encefálico funcionante. Alguns possuem mesmo parte do cérebro presente. A maior parte dos “anencéfalos” nasce em parada cardio-respiratória (natimortos, portanto). Esses dados demonstram que o termo “anencefalia” é tecnicamente incorreto, pois pressupõe ausência total do encéfalo. Alguns autores têm proposto os termos meroanencefalia e holoanencefalia para a diferenciação dos casos em que há ausência parcial e total do encéfalo, respectivamente. Casos menos severos de meroanencefalia podem sobreviver vários anos.

Ao contrário do que foi emitido nos  comentários da recente Resolução do CFM, que autoriza a retirada de órgão de “anencéfalos”, a afirmação preliminar do CFM (de que “os anencéfalos são natimortos cerebrais”) não pode ser aceita como verdade.   Pressupõe esses considerandos do CFM que o conceito de morte cortical, ou seja de pessoas nas quais as “higher brain functions” se encontram na aparência irreversivelmente inativas (apesar de que as funções neurovegetativas mediadas pelo tronco encefálico e pelo diencéfalo se encontrem ainda ativas – tal como ocorre com o chamado “estado vegetativo persistente” em que o indivíduo continua respirando e deglutindo por meses ou anos e, eventualmente, em até 20% dos casos, podem recuperar a consciência) devem ser consideradas como mortas.  Essa idéia, contida na Resolução do CFM sobre “Anencéfalos”,  não tem sido aceita em qualquer país em nenhum dos 3 níveis de discussão enumerados acima: filosófico, conceitual ou diagnóstico. (www.biodireito-medicina.com.br)
Uma vez decidida a permissão judicial da “interrupção da gravidez” do “anencéfalo”, tudo que os gestores da medicina brasileira farão será orientar “técnicas de abordagens” às gestantes desses fetos, para que eles nasçam e seus órgãos sejam retirados.  Há Estados que possuem projetos de leis (ou leis em vigor) que conferem vantagens econômicas às famílias de doadores de órgãos.  No caso dessas gestantes, é muito fácil fazer-lhes uma proposta vantajosa. Prática que seria perigosa em todos os sentidos.

Ainda é nosso o posicionamento sobre o abortamento por anencefalia: “A anencefalia, anomalia fetal consistente na ausência da calota craniana, não é permissiva para se autorizar o aborto, como se infere do art. 128, I e II, do CP. A lei não prevê a isenção de pena para o abortamento eugenésico, isto é, com a eliminação de fetos doentes ou defeituosos. O Magistrado não tem o poder de autorizá-lo, nem será o médico jungido a fazê-lo, porque ofenderia, por certo, sua consciência e ética profissional. O feto, nesses casos, é dotado de vida intra-uterina ou biológica e é, por isso, protegido pelas normas constitucionais e pelo direito natural. O Direito Civil tutela o nascituro porque há possibilidade de vida –  art. 4.º do CC – , daí advindo uma série de conseqüências, principalmente de ordem sucessória. Permitir o aborto equivaleria à prática da eutanásia, só que praticada contra um ser em formação, dotado de todas as funções”.(Eliane Alfradique, Comentários ao artigo 5º da Constituição da República, publicado em http://www.tex.pro.br).

Na realidade, a Lei Federal de 97 não dá ao CFM a autoridade para mudar o conceito de morte (nível conceitual de discussão), alterando-o de morte encefálica para morte cerebral, como ele o fez na sua  recente Resolução permitindo a extração de órgãos de “anencéfalos”, mas apenas para estabelecer como será reconhecido o indivíduo portador da condição pré-definida pelo conceito de morte encefálica. (www.biodireito-medicina.com.br). A permissão judicial para a “interrupção da gravidez” trará um forte corolário de graves situações que irão muito além do que pretende-se julgar no STF.

Desde a concepção, há ser humano, amparado pelo direito à vida e com prerrogativa da dignidade humana, qualquer seja o prognóstico de seu futuro, inclusive quanto à duração de sua existência. Pensar e agir de modo diverso é abrir portas para o comércio abortista e a perigosa venda de órgãos.

Diego León Rábago,[23] in “La Bioética para el Derecho”, México, ed. Faculdade de Direito, Universidade de Guanajuato, 1ª. ed., 1998, pág. 207, explica demonstrar a genética suficientemente que, desde o momento mesmo em que surge à vida o zigoto, já há um ser humano. Keith L. Moore[i] [24], citado por Rábago [25], define o zigoto como a célula resultante da fecundação de um óvulo pelo espermatozóide e acrescenta que um zigoto é “o começo de um novo ser humano”. Rábago [26], no ponto, ainda esclarece que não se devem confundir as células germinativas, óvulo e espermatozóide, com o zigoto. Aquelas são originadoras, este é o originado. Noutro passo, complementa que, com o surgimento do zigoto, se inicia o processo contínuo do desenvolvimento do ser humano, o qual abrange sua integração orgânica e seu crescimento, conforme as determinações de seu código genético. Por virtude do fenômeno vital da divisão, crescimento e diferenciação celulares, o zigoto se converterá em preembrião, em embrião, em feto, em criança, em jovem, em adulto e em velho. Como sinala, ademais, Rábago [27], enquanto tudo isso sucede por determinação do código genético, contido já no zigoto, as transformações que se operam são morfológicas, porém não essenciais. Existe uma identidade absoluta entre o zigoto e o preembrião, o embrião, o feto, a criança, o adulto e o velho. Trata-se do mesmo ser que passa por diversas etapas de desenvolvimento (op. cit., págs. 207 e 208).

Assim, diante das informações também da Genética, quanto à natureza do zigoto e do desenvolvimento do organismo celular, não há deixar de acolher o entendimento de que, desde o instante da concepção, existe vida humana, dotada das virtualidades e potencialidades da pessoa humana.

Pois bem, essa conclusão não se pode alterar, se e quando, no curso do desenvolvimento do ser humano, ainda na fase fetal, ocorra anomalia ou malformação a comprometer o funcionamento de órgão ou de sistema próprio da natureza desse ente, que, não obstante isso, continua mantendo a vida, no ventre materno, com a deficiência que o acomete.

Com efeito, Pontes de Miranda[28], expressando a doutrina em curso no sistema jurídico brasileiro, anotou (“Tratado de Direito Privado”, Rio de Janeiro, Editor Borsoi, 1954, Parte Geral, Tomo I, § 50, n° 4, pág. 163): “Quando o nascimento se consuma, a personalidade começa. Não é preciso que se haja cortado o cordão umbilical; basta que a criança haja terminado de nascer (= sair da mãe) com vida. A viabilidade, isto é, a aptidão a continuar de viver, não é de exigir-se. Se a ciência médica responde que nasceu vivo, porém seria impossível viver mais tempo, foi pessoa, no curto trato de tempo em que viveu. O Código Civil desconhece monstros, monstra. Quem nasce de mulher é ser humano. Não cogita do hermafrodita, no tocante à personalidade (C. Crome[ii], System, I, 206).[29]

Estava no Código Civil de 1916, art. 4º.: “A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”. Preceitua, no mesmo sentido, o novo Código Civil, Lei n° 10.406/2002, em seu art. 2°: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”.

Clóvis Bevilaqua,[30] à sua vez, já escrevera (in Código Civil do Brasil Comentado, 11ª. ed., 1956, pág. 145), a respeito do art. 4º. do CCB de 1916: “2 – A personalidade civil do homem começa com o nascimento, diz concisamente o Código. Basta que a criança dê sinais inequívocos de vida, para ter adquirido a capacidade civil. Entre os sinais apreciáveis estão os vagidos e os movimentos característicos do ser vivo; mas, particularmente, perante a fisiologia, é a inalação do ar cuja penetração, nos pulmões, vai determinar a circulação do sangue no novo organismo, o que denota ter o recém-nascido iniciado a sua vida independente. Realizado o nascimento, pouco importa que, momentos depois, venha a morrer o recém-nascido. A capacidade jurídica já estava firmada, direitos já podiam ter sido adquiridos que se transmitiram ao herdeiro do falecido. Não há, também, distinguir, se o parto foi realizado naturalmente, ou se exigiu intervenção da obstetrícia.”

Noutro passo, acrescenta (op. cit., pág. 145): “O Código afastou as questões antiquadas da viabilidade e da forma humana, que, aliás, ainda se encontram em alguns códigos modernos. Sem dúvida, há partos prematuros, e outros há em que, apesar da maturidade, o produto da concepção é incompatível com a vida (V. Afrânio Peixoto,[31] Medicina Legal, pp. 219 e 226). Ao direito civil, porém, estas questões não devem preocupar. Em primeiro lugar, o ponto de vista do direito é social e não biológico. Portanto, pode o indivíduo ser considerado incapaz de viver, e no entanto, por isso mesmo que vive, merece a proteção do direito. Imagine-se um indivíduo malformado, que os peritos declaram inapto para a vida. Não obstante, ele dura alguns dias. Se alguém o matar, comete ou não um crime? Ninguém responderá pela negativa. Por quê? Porque esse indivíduo é um ser humano. Da mesma forma que o direito penal o protege, deve protegê-lo o direito civil. Conseqüentemente deve considerá-lo capaz de adquirir direitos, deve dar-lhe um tutor, se ele tiver perdido os pais, ou estes forem incapazes. Depois, se o direito assegura vantagens ao nascituro, por que há de ser mais duro e menos benévolo com o que nasce? A ciência condena-o, certamente, à morte, dentro em breve.

Mas, além de que a ciência pode enganar-se, o direito não pode reconhecer esse caso de morte civil, em uma época em que já não subsistem as outras formas. Finalmente, a doutrina da viabilidade não oferece a necessária segurança às relações jurídicas. O direito precisa de saber quando começa a existência das pessoas, para que o movimento da vida social não se interrompa ou não fique indeciso”. Rematando sua lição, Clóvis Bevilaqua[32] explica a rejeição do Código Civil à exigência de forma humana, nestes termos (op. cit., pág. 146): “Igualmente ocioso é exigir a forma humana como requisito da personalidade civil. Há monstros e aleijões viáveis, como há formas teratológicas inadequadas à vida. O direito romano recusava a capacidade jurídica aos que contra formam humani generis, converso more, procreantur (D. 1, 5, fr. 14). Mas essa doutrina deve ser afastada. É humano todo ser, que é dado à luz por mulher, e, como tal, para os efeitos do Direito, é homem”.

Pontes de Miranda[33] aduz (op. cit., § 51, n° 4, pág. 172): “protege-se o feto, como ser vivo, como se protege o ser humano já nascido, contra atos ilícitos absolutos e resguardam-se os seus interesses, para o caso de nascer com vida; biologicamente, o conceptus sed non natus já é homem; juridicamente, esse ser humano ainda não entrou na vida social, que é onde se enlaçam as relações jurídicas.” E ainda, no item 5, a seguir, completa: “O nascimento com vida encontra a eficácia do fato jurídico da concepção. Note-se bem; a concepção é que compõe o fato jurídico. (…); os efeitos do fato jurídico, em cujo suporte fáctico está a concepção (ainda sem nascimento), se produzem, sem qualquer pendência ou condicionalidade. O parto sem-vida pré-exclui qualquer efeito por diante; o parto com vida completa o suporte fáctico para surgir a pessoa, no preciso sentido jurídico. O infans conceptus é suporte fáctico à parte; o suporte fáctico entra no mundo jurídico e, como fato jurídico, irradia eficácia. Com os elementos desse suporte fáctico, mais o nascimento com vida, compõe-se o suporte fáctico de que exsurge a pessoa” (op. cit., págs. 172 e 173). Por último, é lição de Pontes de Miranda,[34] op. cit., § 52, item 6, pág. 181:

“O problema de ter nascido com vida o ser humano é quaestio facti, que se há de resolver com os recursos da ciência do momento; não é quaestio juris. Se nasceu com vida e morreu, adquiriu o ser humano os direitos, pretensões, ações e exceções e foram transmitidos deveres, obrigações e situações passivas nas ações e exceções; transmitindo, por sua vez, aqueles e esses, se, com a morte, os não perdeu, ou não os perdeu nos minutos que viveu”.

De outra parte, no plano constitucional, cumpre ter presente a regra fundamental do art. 5º., caput, da Lei Maior de 1988, ao garantir a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade. Escreve nesse particular, Alexandre de Moraes[35], em sua obra “Direito Constitucional, São Paulo, Editora Atlas, 9ª. ed., 2001, pp. 61/62: “O direito à vida é o mais fundamental de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os demais direitos. A Constituição Federal proclama, portanto, o direito à vida, cabendo ao Estado assegurá-lo em sua dupla acepção, sendo a primeira relacionada ao direito de continuar vivo e a segunda de se ter vida digna quanto à subsistência. O início da mais preciosa garantia individual deverá ser dado pelo biólogo, cabendo, ao jurista, tão-somente, dar-lhe enquadramento legal, pois do ponto de vista biológico a vida se inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, resultando um ovo ou zigoto. (…). Conforme adverte o biólogo Botella Lluziá[iii], o embrião ou feto representa um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do pai, nem com a da mãe, sendo inexato afirmar que a vida do embrião ou do feto está englobada pela vida da mãe. A Constituição, é importante ressaltar, protege a vida de forma geral, inclusive uterina”.

Nessa mesma linha, a lição de José Afonso da Silva[36], in “Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, 19ª. ed., 2001, p. 200: “Vida, no texto constitucional (art. 5º., caput), não será considerada apenas no seu sentido biológico de incessante auto-atividade funcional, peculiar à matéria orgânica, mas na sua acepção biográfica mais compreensiva. Sua riqueza significativa é de difícil apreensão porque é algo dinâmico, que se transforma incessantemente sem perder sua própria identidade. É mais um processo (processo vital), que se instaura com a concepção (ou germinação vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, até que muda de qualidade, deixando, então, de ser vida para ser morte. Tudo que interfere em prejuízo deste fluir espontâneo e incessante contraria a vida.” E, noutro trecho, observa (op. cit., pág. 201); “A vida humana, que é o objeto do direito assegurado no art. 5º., caput, integra-se de elementos materiais (físicos e psíquicos) e imateriais (espirituais). (…). Por isso é que ela constitui a fonte primária de todos os outros bens jurídicos. De nada adiantaria a Constituição assegurar outros direitos fundamentais, como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos. No conteúdo de seu conceito se envolvem o direito à dignidade da pessoa humana, o direito à privacidade, o direito à integridade físico-corporal, o direito à integridade moral e, especialmente, o direito à existência”.

No mesmo sentido, Jacques Robert[37] (“Libertés publiques,” Paris, PUF, 1980, pág. 234), citado por José Afonso da Silva [38], à sua vez, leciona: “O respeito à vida humana é a um tempo uma das maiores idéias de nossa civilização e o primeiro princípio da moral médica. É nele que repousa a condenação do aborto, do erro ou da imprudência terapêutica, a não-aceitação do suicídio. Ninguém terá o direito de dispor da própria vida, a fortiori da de outrem e, até o presente, o feto é considerado como um ser humano”. Discorrendo sobre o direito à existência, na perspectiva constitucional, José Afonso da Silva[39] acrescenta (op. cit., p. 201): “É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável. Existir é o movimento espontâneo contrário ao estado morte. Porque se assegura o direito à vida é que a legislação penal pune todas as formas de interrupção violenta do processo vital. É também por essa razão que se considera legítima a defesa contra qualquer agressão à vida, bem como se reputa legítimo até mesmo tirar a vida a outrem em estado de necessidade da salvação da própria”.

Nesse mesmo sentido, dentre tantos outros autores, ensina a professora Maria Celeste Cordeiro dos Santos,[40] da Universidade de São Paulo, em sua obra “O Equilíbrio do Pêndulo. A Bioética e a Lei. Implicações Médico-Legais”, Ícone Editora, 1998, pág. 152, verbis:

“A Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu artigo 5º., consagrou, entre outros direitos básicos, o direito à vida. Tal direito é inviolável (sagrado). Embora o texto constitucional não se refira expressamente ao nascituro, tudo está a indicar que sua vida é um bem que a Constituição se obriga a proteger de forma a que não sofra qualquer violação. Protege-se, assim, também, a vida humana intra- uterina. (…). Em qualquer dos estágios, zigoto, mórula, blástula, concepto, embrião, feto, recém-nascido há apenas um ‘continuum’ do mesmo ser”. Referindo-se à proteção à vida, anota a autora mencionada (op. cit., págs. 152 e 153): “O inciso XXXVIII, do mesmo artigo 5º. (da Constituição), reconhece a instituição do júri com competência para julgamento dos crimes dolosos contra a vida, entre os quais se inclui o abortamento. (…). O direito penal dedica distintas normas para a proteção desta vida desde o momento de sua concepção – aborto, infanticídio e o homicídio – até seu término (vida post-mortem). No primeiro caso, nosso direito, como o alemão, protege o bem jurídico vida em germen e tem por objeto o feto ou embrião (ou óvulo fecundado). No segundo protege a vida desenvolvida, o que caracteriza como objeto da ação a pessoa ou o recém-nascido“. E conclui (op. cit., pág. 153): “O respeito à vida é respeito a todas as formas de vida humana”.

Observa, de outra parte, Ingo Wolfgang Sarlet,[41] in “A Eficácia dos Direitos Fundamentais”, Porto Alegre, Editora Livraria do Advogado, 1998, p. 103: “Da concepção jusnaturalista remanesce, sem dúvida, a constatação de que uma Constituição que – de forma direta ou indireta – consagra a idéia da dignidade da pessoa humana justamente parte do pressuposto de que o homem, em virtude tão-somente de sua condição biológica humana e independentemente de qualquer outra circunstância, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados pelos seus semelhantes e pelo Estado”. Nesse sentido a conclusão de M. Kriele[42], “Einführung in die Staatslehre, pág. 214”, citado por Sarlet, na obra aludida, pág. 103, ao apontar oportunamente “para a circunstância de que foi justamente a idéia de que o homem, por sua mera natureza humana, é titular de direitos, que possibilitou o reconhecimento dos direitos humanos e a proteção também dos fracos e dos excluídos, e não apenas dos que foram contemplados com direitos pela lei, por contratos, em virtude de sua posição social ou econômica”.

À sua vez, a professora Maria Celina Bodin de Moraes[43] do Departamento Jurídico da PUC – RJ, em trabalho publicado sob o título “O Direito Civil Constitucional”, na coletânea “1988 – 1998 – uma década de Constituição”, organizada por Margarida Maria Lacombe Camargo,[44] Editora Renovar, RJ, 1999, explica que a “raiz da palavra ‘dignidade’ é derivada do latim dignus – aquele que merece estima e honra, a quem se deve respeito, aquele que é importante”, acentuando: “Foi o Cristianismo que, pela primeira vez, concebeu a idéia de que a cada ser humano era preciso atribuir a deferência devida à dignidade de Deus, porque somos todos seus filhos e, em conseqüência, todos irmãos” (pág. 125). Adiante, acrescenta (op. cit., p. 126): “Ressalte-se que o princípio constitucional não garante o respeito e a proteção da dignidade humana apenas no sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, nem tampouco traduz somente o oferecimento de garantias de integridade física, psíquica e moral do ser humano. A Constituição Federal considera esta dignidade ‘fundamento da República’. Dados o caráter normativo dos princípios constitucionais e a unidade do ordenamento jurídico, para o que nos interessa nesta sede, para o Direito Civil, isto vem a significar uma completa transformação, uma verdadeira transmutação. Assim, e exemplificativamente: enquanto o Código Civil (1916) tutela, prioritariamente, os bens dos menores, o Estatuto da Criança e do Adolescente – posterior à promulgação da Constituição – protege, de modo integral, a criança e o adolescente, como pessoas em desenvolvimento”.

O postulado da dignidade humana universalizou-se como um pólo de atração para cada vez mais novos e novíssimos refletores do modismo constitucional – democrático. Com isso, abriu-se o receituário dos direitos sublimados na Constituição, que se multiplicam na razão direta dos conflitos insurgentes no meio social e das exigências insaciáveis da positivação jurídica, na esteira do humanismo ultrapluralista, solidarista e internacionalizado destes tempos”. Em outro trecho de seu ensaio, anota Siqueira Castro[45] (op. cit., pp. 104/205):

“Em realidade o humanismo solidarista que conquistou a filosofia política e a teoria do Estado neste século findante operou sobretudo o fenômeno da constitucionalização de inúmeras categorias do direito privado, através de sua inserção no culminante e seleto conjunto de normas e princípios constitucionais. Esses novos direitos supralegais, em razão do papel integrador da ordem jurídica desempenhado pela Constituição, passaram a exercer uma espécie de liderança axiológica em face dos microssistemas normativos associados a comandos constitucionais, a exemplo dos regimes jurídicos aplicáveis à propriedade, à proteção do consumidor, à tutela da infância e da adolescência, à nova configuração da família calcada na igualdade entre os cônjuges e na proteção constitucional da chamada união estável, à salvaguarda do meio ambiente e ao resguardo da imagem e da intimidade individual”.

À vista das referências doutrinárias de direito civil e de direito constitucional acima alinhadas, bem de ver é que, em nosso sistema jurídico, não cabe deixar de reconhecer a vida, bem como a natureza humana no conceptus sed non natus, independentemente de eventual grave anomalia que apresente, no curso do desenvolvimento fetal, não sendo, ademais, pertinente, para tanto, discussão sobre sua viabilidade, após o nascimento com vida, ou acerca da duração provável desse ser humano, mesmo nos casos em que presumível existência breve na fase extra-uterina. Certo é que, protegido pela ordem jurídica, desde a fase intra-uterina, o ser humano, se nascido com vida, adquire personalidade jurídica, podendo ser titular de direitos e pretensões na ordem civil, o que sucede, à evidência, até o óbito.

Assim sendo, quando se dá, entretanto, interrupção da gravidez, seja qual for o momento da gestação, por deliberação da mulher, isoladamente, ou com a intermediação de terceiro, disso resultando a morte do conceptus, ocorre aborto voluntário, a teor dos arts. 124 a 126 do Código Penal, classificado entre os crimes contra a vida, que são uma subclasse dos delitos contra a pessoa.

A abalizada lição de Nelson Hungria,[46] in Comentários ao Código Penal, ed. Rev. Forense, RJ, 1953, 2ª. edição, vol. V, p. 276: “Ao invés da circunstância da expulsão do feto, que não passa de um epifenômeno e pode deixar de ocorrer, o que se apresenta como necessário e suficiente à configuração do aborto é a interrupção da gravidez. É este, aliás, o critério médico-legal, a que deve afeiçoar-se a noção jurídico-penal; aborto é a interrupção da gravidez, seguida ou não da expulsão do feto, antes da época da sua maturidade (Morisani). Garimaud assim define o aborto criminoso: “é a cessação prematura e dolosa da gravidez, ou sua interrupção intencionalmente provocada, com ou sem o aparecimento dos fenômenos expulsivos”. Mais concisamente, pode dizer-se: “é a solução de continuidade, artificial ou dolosamente provocada, do curso fisiológico da vida intra-uterina”. Anota ainda Nelson Hungria[47] (op. cit., p. 277):

“O aborto, em face do Código, é crime de dano (ou material): é necessário, para sua consumação, que se opere, efetivamente, a ocisão do feto intra uterum ou a interrupção da gravidez e conseqüente morte do feto. O verbo provocar empregado nos arts. 124, 125 e 126, não pode ter outro sentido senão o de dar causa a, originar, promover. O Código, ao incriminar o aborto, não distingue entre óvulo fecundado, embrião ou feto: interrompida a gravidez antes do seu termo normal, há o crime de aborto. Qualquer que seja a fase da gravidez (desde a concepção até o início do parto, isto é, até o rompimento da membrana amniótica), provocar sua interrupção é cometer o crime de aborto”. Noutra passagem de seus Comentários citados (pág. 277), acrescenta o saudoso Ministro Nelson Hungria[48]: “Admitida a intenção de provocar o aborto, ou, seja de suprimir o feto, não tem importância o momento em que este vem a morrer: se quando ainda no útero materno, ou se quando já expulso, uma vez que a morte tenha ocorrido em conseqüência da própria imaturidade do feto ou dos meios abortivos empregados. Não há distinguir a ocisão direta do feto intra uterum e a morte deste extra uterum por deficiência de maturação”.

De acrescentar, ademais, é que, para a existência do aborto, consoante observa Hungria [49] (op. cit., pág. 289), “não é necessária a prova de vitalidade do feto”. Conforme adverte Hafter, “pouco importa se o feto era, ou não, vital, desde que o objeto da proteção penal é aqui, antes de tudo, a vida do feto, a vida humana em germe. (…). Do mesmo modo, é indiferente o grau de maturidade do feto: em qualquer fase da vida intra-uterina, a eliminação desta é aborto”. Thormann e Overbeck, citados por Hungria [50], no ponto, registram (op. cit., pág. 289): “O grau de maturidade (desenvolvimento) do feto não representa, aqui, papel algum; conseqüentemente, não importa ao conteúdo de fato do crime que a ação abortiva seja praticada nos primeiros ou nos últimos meses de gravidez”.

O que bem importa é que se faz cessar, com a interrupção da gravidez, uma vida, que a Constituição e as Leis querem protegida. Cumpre, no particular, ter sempre presente a observação de Carrara[51], recolhida por Hungria [52](op. cit., pp. 275/276): “Não é, de modo algum, incerto que o feto seja um ser vivente; impossível negá-lo quando, cada dia, a gente o vê crescer e vegetar. (…). O feto no útero vive, e não nos interessa definir fisiologicamente a índole de tal vida, pois não é possível que o feto esteja ali dentro como um corpo morto”.

Nos fetos anencefálicos, verifica-se a ausência completa ou parcial da calota craniana e das estruturas anatômicas correspondentes e de tecidos que a ela se sobrepõem; são eles privados, assim, da possibilidade de funções superiores. Possuem, entretanto, esses seres humanos organismo, com funções vitais, que os mantêm vivos e com desenvolvimento no ventre materno e na fase extra-uterina, quando a atingem, embora, segundo a ciência, de breve duração. Cabe, no ponto, referir, ainda, as atividades, neles existentes, dos sistemas circulatório e respiratório e as funções do sistema nervoso dos níveis medular e encefálico inferior, na nomenclatura de Arthur Guyton,[53] com a presença de tronco encefálico e “porções variáveis do diencéfalo”.

Referindo-se, ainda, às “funções da formação reticular e do núcleo do tronco cerebral específicas no controle de movimentos estereotipados subconscientes”, o professor Arthur Guyton,[54] em seu Tratado aludido, pág. 619, faz destacada nota, quanto à criança anencefálica, registrando que, “raramente”, “nasce sem as estruturas cerebrais acima da região mesencefálica, e algumas dessas crianças mantiveram-se vivas por muitos meses. Tais crianças são capazes de executar essencialmente todas as funções de alimentação, como sucção, expulsão de comida desagradável da boca, e levar as mãos à boca para sugar seus dedos. Além disso, elas podem bocejar e estirar-se. Eles podem chorar e seguir objetos com os olhos e movimentos de sua cabeça. Pressionando-se, também, parte anterior de suas pernas, faremos com que eles passem a uma posição sentada”.

Apesar de uma expectativa de vida tão reduzida, não é sempre possível definir a iminência do óbito e a redução da vida pode ser influenciada em muito pelos tratamentos intensivos.

Ora, decorrência de tudo isso é concluir que a interrupção da gravidez de feto anencefálico, colimando e obtendo sua morte e impedindo-o, assim, de prosseguir o desenvolvimento intra-uterino, outra caracterização não pode ter senão a de aborto, nos termos dos arts. 124, 125 e 126, do Código Penal. O anencefálico é um ser humano vivente e a reduzida expectativa de vida não limita os seus direitos e a sua dignidade, assim como a Constituição e as leis do País querem ver construída a República, à base do respeito à vida e à pessoa, na integralidade de seu ser.

De outro lado, não se exige sequer que o feto seja viável, no tipo penal do aborto, pois, como escreve Euclydes Custódio da Silveira,[55] citado por Vicente Celso da Rocha Guastini,[56] in “Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial”, coordenação de Alberto Silva Franco,[57] Editora Revista dos Tribunais, SP, 7ª. ed., vol. 2, pág. 2.225, “o objeto jurídico do crime é a vida endo-uterina, e não a vitalidade, ou a capacidade de alcançar a maturidade”.

Não cabe, além disso, considerar gravidez patológica, quando o produto da concepção vem a manifestar-se, na vida intra-uterina, como feto anencefálico. Em realidade, a eventual anomalia do feto não implica gravidez patológica; esta ocorre nos casos anormais de gravidez extra-uterina, ou molar. Nessa linha, a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (RJTJSP 35/237)[58] “Cumpre observar, ainda, que, para o aborto, embora com pressuposto na gravidez, é irrelevante o grau de desenvolvimento do embrião ou do feto no útero materno. A gravidez dá-se desde a fecundação até o rompimento do saco amniótico, isto é, até o início do parto. É mister que a gravidez seja normal e não patológica. Os casos anormais de gravidez extra-uterina, ou molar, são patológicos, e a interrupção nesses casos não pode constituir aborto. Não se exige que o feto seja vital (que tenha capacidade de normal desenvolvimento)”. Na gravidez extra-uterina, o óvulo não se desenvolve no útero, apresentando variedades (intersticial, tubária etc), anotando Nelson Hungria,[59] na obra citada, pp. 284/285: “Em tais casos, o desenvolvimento fetal não se opera senão por breve tempo; ou sobrevêm complicações por abundante hemorragia, ou ruptura da trompa, etc, que produzem naturalmente a morte da mulher. Outras vezes, o feto permanece no lugar, mas vem logo a deter-se no seu desenvolvimento e sofre processos progressivos, entre os quais o da calcificação, apresentando-se a formação de um litopédio“. Quanto à gravidez molar, escreve o mesmo Hungria (op. cit., pág. 286): “Igualmente, e com mais forte razão, a expulsão de uma mola não pode concretizar crime de aborto. (…). As molas verdadeiras não são fetos, e, quanto às molas falsas, nada têm a ver com o processo gestativo”.

Pois, bem, em caso de feto anencefálico, há vida em desenvolvimento no útero materno e o processo de gravidez pode ter seu curso normal, ocorrendo, como acontece em significativo percentual, o nascimento desse ser humano, com vida, momento em que adquire personalidade civil, a teor do art. 2º., do vigente Código Civil, qualquer seja o tempo de sua duração extra-uterina, a qual, embora presumivelmente breve, é de incerta determinação, máxime, em face de possíveis tratamentos intensivos.

Escrevendo sobre o “aborto necessário”, Nelson Hungria [60] (op. cit., pág. 297/298) explica: “O aborto necessário pode ser assim definido: é a interrupção artificial da gravidez para conjurar perigo certo, e inevitável por outro modo, à vida da gestante. (…). A ele (médico) incumbe averigüar se a incompatibilidade entre a moléstia em ato e o estado de gravidez é de molde a acarretar a morte (não apenas dano à saúde) da gestante: no caso afirmativo, é-lhe permitido interromper a gravidez, com o sacrifício do feto”.

Essa situação não se configura, pelo só fato do conceptus ser portador de anencefalia. A vida da mãe, que o gerou, não está em risco, porque, em seu ventre, esse ser humano, com uma anomalia no sistema nervoso, se vem normalmente desenvolvendo. De resto, eventuais distúrbios de saúde terão, na assistência médica, o acompanhamento necessário, máxime, à vista dos progressos da ciência. No que respeita aos aspectos psíquicos da gestante, após tomar conhecimento da grave anomalia que acomete o ser humano em desenvolvimento no seu ventre, decerto, deverão ter o atendimento que a ciência especializada oferece, bem assim a compreensão e o consolo de todos os que a acompanham. Nada, porém, está, a autorizar, no caso, a interrupção voluntária da gravidez, com a conseqüente morte do feto anencefálico.

Também não é verdade que a mãe sentirá repugnância pelo filho deficiente, ao nascer. É próprio do amor materno compadecer-se daquele que está desfigurado pela doença e ameaçado de morte iminente. Ao contrário, se a gestante, pressionada por outros que lhe dizem que seu filho é uma ‘coisa’ ou um ‘monstro’, acaba consentindo no aborto, carregará pelo resto da vida o terrível quadro clínico conhecido como síndrome pós-aborto, que inclui: depressão, medo, choro, remorso, tendência ao suicídio, noutras palavras, aniquilação da psique da mulher”.

Registre-se, o acerto das decisões judiciais que negam autorização para a interrupção da gravidez, quando anencefálico o feto, por falta de amparo legal e por constituir inequívoco atentado à vida humana protegida pela Constituição (art. 5º., caput).

Preciso é, a esse respeito, o voto da sábia relatora, Ministra Laurita Vaz,[61] no Habeas Corpus n° 32.159 – RJ, na Quinta Turma do colendo Superior Tribunal de Justiça, dele cabendo, nos limites deste Parecer, destacar:

“A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesses casos, o princípio da reserva legal. (g.n)

Com efeito, o Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto previstas no art. 128, do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da conduta nos autos originários é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente uma hipótese que, insisto, fora excluída de forma propositada pelo Legislador. Deve-se deixar a discussão acerca da correção ou da incorreção das normas que devem viger no País para o foro adequado para debate e deliberação sobre o tema, qual seja, o Parlamento”.

No mesmo sentido, bem anotou o ilustre Desembargador Carlos Brazil,[62] do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, em lúcido voto sobre a matéria, no Mandado de Segurança n° 42/2000:

“Assim, a Constituição Brasileira nega agressão à vida humana de modo incondicional, sem distinção entre a vida sadia ou doente, nova ou velha, vida intra ou extra-uterina, ocorrendo assim uma coerência lógica e axiológica, segundo a qual não pode um juiz emanar uma ordem para prática do aborto, por inexistência de um procedimento legal, e da pretendida autorização legal, por total ausência de amparo legal; tal ordem, antes de mais nada, seria inconstitucional”.

No exame desse tema, importa, no caso, por primeiro, ter presente que o ser humano, no ventre materno, possui vida própria protegida pela ordem jurídica, diferente da de sua mãe, que dele não pode dispor conforme lhe aprouver ou a ela for mais conveniente, principalmente, no extremo gesto de eliminá-lo. Não é possível, em realidade, considerar o produto da concepção como parte do corpo da gestante, qual em Roma sucedia. Nelson Hungria [63]escreve (op. cit., pág. 259): “Ensinava a escola estóica que partus antequam edatur mulieris pars est vel viscerum, de modo que a mulher que abortava nada mais fazia do que dispor de seu próprio corpo, no exercício de irrecusável jus in se ipsa“. Noutro trecho, observa Hungria [64] (op. cit., 261): “Foi, porém, com o cristianismo que se consolidou a reprovação social do aborto”, acrescentando (op. cit., pág. 262): “Na época atual generalizou-se, entre todos os povos civilizados, a incriminação do aborto provocado, seja qual for a fase da gestação, não tendo passado de efêmera e deplorável experiência, em alguns países, a legislação permissiva de tal prática”.

Não cabe dar prevalência ao que se pretende na inicial, que instrui a Consulta, porque isso importaria em destruir a vida do ser vivo e em desenvolvimento no útero materno, ou seja, fulminar, irreversivelmente, o direito fundamental à vida do feto anencefálico, antecipando-lhe a morte, eliminando uma vida que, mesmo se houver de ser breve, embora indeterminado o momento do óbito, nem com isso deixará de ser vida humana protegida pela Constituição e as leis, com a nobreza do ser humano.      

Oportuna e esclarecedora a manifestação, embargada de sentimento grandioso de Jeróme Lejeune,[65] respeitado médico especialista em Genética Fundamental e Professor da conceituada Universidade René Descartes, de Paris, famoso por ter sido o descobridor de que os portadores de Síndrome de Down têm um cromossomo a mais que as pessoas consideradas normais:

Vislumbra-se aqui, na possibilidade de nascimentos de seres com anormalidade, a imbricação entre os Direitos Penal e Civil, ao lembrarmos que, em legislações pretéritas, alguns códigos civis prendiam-se à questão da viabilidade do ser-humano (vitae habilis) para que lhe fosse conferida a personalidade. Necessário, portanto, que o ente humano fosse viável, para, só assim, ser investido dos direitos da personalidade. Modernamente, é sabido que “perante o nosso Código (civil), qualquer criatura que provenha de mulher é ente humano, sejam quais forem as suas anomalias e deformidades que apresente.”

8) ABORTO HONORIS CAUSA:

Outra modalidade é o aborto honoris causa, aquele “realizado como conseqüência à gravidez extra matrimonium” , ou no caso, por exemplo, da mulher solteira (ou viúva) que engravida e receia ser desonrada pela desaprovação do tecido social.

É cediço que existem fortes movimentos feministas junto ao Congresso Nacional, exercendo constante pressão entre os parlamentares, para que o aborto seja amplamente permitido pela nossa legislação penal. Os mais progressistas afirmam que a mulher é dona de seu corpo e só a ela compete decidir sobre sua vida (mulieris portio vel viscerum, do antigo Direito Romano) . Mesmo em casos absurdos como o de ciese extra matrimonium.

Oportuna a manifestação da promotora de justiça, ex-assessora da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (Governo Franco Montoro) e dirigente da Assessoria de Defesa da Cidadania da Secretaria de Justiça, Luíza Nagib Eluf[66], externada em entrevista ao Jornal do Conselho Federal de Medicina. Sendo uma das integrantes da conhecida “sub-comissão de São Paulo” – comissão de ilustres juristas com o fito de elaborarem um novo Código Penal – fora indagada se é favorável ao aborto em quaisquer circunstâncias. Eis a resposta, in verbis:

“Nenhum de nós é favorável à prática indiscriminada do aborto. O aborto não pode ser usado como método anticoncepcional. Ele é um último recurso. Ninguém, em sã consciência, vai negar que o aborto é uma contingência muito desagradável na vida de uma mulher. As mulheres não gostam de fazer aborto. Uma mulher só faz aborto num momento em que está desesperada e quando não há outro meio de conseguir sobreviver, psicológica e fisicamente. As mulheres recorrem à práticas precárias de aborto porque não têm dinheiro para pagar uma clínica. Normalmente, elas sabem que estão correndo risco de vida. Mesmo assim, se arriscam, porque a gravidez é insuportável. E só quem fica grávida sabe disso. Mulheres não são máquinas de reproduzir. E nenhuma mulher vai fazer aborto, só porque é permitido por lei.”

Uma das maiores autoridades do globo sobre o assunto —— Jérome Lejeune [67]— declaradamente contra a legalização do aborto, afirma que, de uma maneira geral, “o aborto continua sendo um crime em qualquer circunstância. Os fetos que apresentam problema, as crianças que nascem doentes, com síndrome de Down, por exemplo, têm todo o direito de viver, o mesmo direito dos seres humanos considerados 100% saudáveis.” E conclui, posicionando-se de maneira corajosa e surpreendente para um médico: “Os defensores do aborto dizem que o feto na barriga da mãe, especialmente nas primeiras semanas da gravidez, ainda não é uma pessoa, ainda não vive. Isso é uma distorção da verdade científica.”

O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Nelson Jobim [68], advertiu a classe médica, nesta quinta-feira, de que a nova norma do ministério da Saúde sobre o aborto de mulheres vítimas de violência sexual não tem valor legal por ser um ato do Poder Executivo.

Segundo o jornal Folha de S. Paulo, o Ministério da Saúde irá editar uma norma técnica indicando aos médicos da rede pública que não há obrigação legal por parte da mulher vítima da violência de apresentar, ao requisitar o aborto – uma das duas únicas situações em que a interrupção da gravidez é legal no País -, um boletim de ocorrência do estupro.

Além de não haver a obrigatoriedade de pedir o boletim de ocorrência, segundo o Ministério, o médico não deve temer um processo no caso de ficar provado que não houvera o estupro alegado pela paciente, novamente embasado no Código Penal, que isenta de pena “quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima”.

Médicos e juristas dizem que o Boletim de Ocorrência não é prova da alegação do estupro. “O BO não prova nada, é apenas uma notícia do fato. Não se pode confundir assistência médica com inquérito policial. Ninguém pede para uma pessoa que foi quase assassinada um prova de que sofreu tentativa de homicídio”, disse o juiz José Henrique Torres, professor de direito penal da PUC de Campinas à Folha.

O médico Isac Jorge Filho [69], presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), acha que a não obrigatoriedade do boletim de ocorrência pode incentivar o aborto ilegal, e por isso não acredita que os hospitais irão abrir mão dele tão cedo. Ele diz que o Cremesp deve aguardar a publicação da norma, avaliar o conteúdo e, caso decida não exigir o documento, convocará os conselheiros para uma manifestação oficial sobre o assunto. Ética e digna de cumprimentos a posição destes médicos.

Tentativas modernas de desumanizar as crianças em gestação referindo-se a elas como meras massas de tecidos ou fetos impessoais não são baseadas em princípios bíblicos.

9) A nova norma sobre o aborto em caso de estupro:

Pela lei brasileira, o aborto é permitido quando a gravidez coloca em perigo a vida da gestante e quando ela é resultado de estupro. Agora, o Ministério da Saúde propôs uma nova norma de conduta para os médicos: ao atenderem o pedido de aborto de uma mulher cuja gravidez seja resultado de estupro, eles não precisam exigir que a dita mulher apresente um BO.

É assim corrigida uma norma de 1998, segundo a qual a apresentação do BO policial era obrigatória para realizar um aborto legal em caso de estupro.

A primeira decisão judicial no Brasil autorizando uma gestante a interromper a gravidez por anencefalia do bebê aconteceu em Rondônia, em 1989. A primeira em São Paulo data de 1993. O ginecologista Thomaz Gollop [70], autor das informações e diretor do Instituto de Medicina Fetal, disse que no Brasil já chegaram à Justiça cerca de 3.000 casos de anencefalia. “Em 97% das ações, os juízes autorizaram a interrupção da gravidez”, afirmou Gollop.

No filme Grito do Silêncio, filmaram um aborto e  consegue-se  perceber que no início o feto tenta escapar dos instrumentos e que abre a boca, como se estivesse pedindo socorro, até que cansado desiste da luta e é vencido.

Finalmente, afirmam que não poderiam terminar deixando lembrar que, “em 1857, a Corte Suprema dos Estados Unidos declarava que o negro não possuía personalidade jurídica e, portanto, estava sujeito ao seu dono. Um século mais tarde, essa mesma Corte declarava o nascituro sem nenhum direito. A coincidência das duas sentenças é muito grande, e foi ressaltada recentemente em artigo do grupo Mulheres Unidas em Favor da Criança não Nascida”, publicado no jornal norte-americano “The Washington Post”. As coincidências são claras. Um dos juízes da Suprema Corte, que na ocasião foi voto vencido, dizia profeticamente: “A partir de agora, a mulher pode abortar por qualquer motivo ou sem nenhum motivo”. Estamos, pois, diante de um apartheid abortista.

As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam partem. Há de prevalecer, nesse casos, o princípio da reserva legal. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128 do Código Penal, os casos ora comentados. O máximo que podem fazer os defensores da conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador.

 

Bibliografia:
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21. HUNGRIA, Nelson, Comentários ao Código Penal, p. 276.
22. HUNGRIA, Nelson, op. cit. 284-285.
23. HUNGRIA, Nelson, op. cit. p. 277.
24. HUNGRIA, Nelson, Presidente do Supremo Tribunal Federal em entrevista ao Jornal Folha de São Paulo.
25. JORGE FILHO, Isac, Presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.
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34. MOORE Keith, citado por Léon Rábago.
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42. Silva, José Afonso da, in Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editores, 19ª ed., 2001, p. 20.
43. SILVA, José Afonso da, op. cit. p. 201.
44. SILVA, Euclydes Custódio da, Direito Penal, Crimes contra a Pessoa, 2ª ed., São Paulo, Ed. RT, 1973, p. 10.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Eliane Alfradique

 

Juíza de Direito Aposentada
Mestre em Direito Público pela UFF/RJ
Doutora em Direito Penal e Processual Penal pela UGF/RJ
Consultora Jurídica da Nante Internacional.

 


 

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