Direito fundamental à prescrição e inconstitucionalidade da Lei n. 12.234/2010

Superadas as fases da vingança divina e privada, compete ao Estado, por meio de lei, definir os crimes e cominar as respectivas sanções penais. Para este conjunto de normas foi adotada a nomenclatura “Direito Penal Positivo” (direito penal objetivo). E em nosso sistema jurídico, esta tarefa foi entregue de modo privativo à União (artigo 22, inciso I, da Constituição da República Federativa do Brasil).


Ao ser criado determinado crime, o Estado impõe uma norma, consistente em que todos se abstenham de praticar a conduta descriminada pelo tipo penal. Caso alguém pratique a conduta proibida estará violada a norma penal, surgindo para o Estado o chamado direito de punir ou ius puniendi (direito penal subjetivo).


Embora não haja consenso doutrinário acerca desta construção proposta, trazemos à baila o magistério de Giuseppe Bettiol:


“Se no momento em que o Estado estatui a norma encontramo-nos no campo da exteriorização do poder soberano, não se pode dizer que o Estado em momento ulterior se apresente nas vestes de ente soberano: então ele, ao lado do indivíduo, é portador de interesses que a norma penal tutela. Poder-se-á, entretanto dizer que exista um direito subjetivo do Estado à omissão do crime, a que corresponda uma obrigação por parte do indivíduo de abster-se de todo comportamento que comprometa o interesse protegido? A resposta não pode ser senão positiva, porque na situação concreta existe tanto o referido interesse, quanto o poder reconhecido à vontade do titular de exigir de todos o respeito ao interesse tutelado” (BETTIOL, G. Direito Penal. trad. Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco. 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977, v. 1, p. 235).


Em verdade, violada a norma penal nasce para o Estado uma pretensão, denominada de pretensão punitiva. E seguindo a regra geral do Direito, esta pretensão punitiva deve ser exercitada e satisfeita judicialmente no prazo determinado legalmente, sob pena de não mais poder ser exercida. Em regra, o Estado não dispõe de prazos indeterminados para exercer a sua pretensão punitiva, devendo se submeter àqueles fixados pela lei penal.


Caso o Estado não exerça a pretensão punitiva no prazo previsto em lei, estará ocorrida a prescrição, fato que levará à extinção da punibilidade do agente (artigo 107, inciso IV, do Código Penal), ou seja, acarretará a impossibilidade de aplicação de pena ao autor. Logo, conclui-se que, a prescrição é um fenômeno jurídico que ataca a pretensão do Estado em punir o criminoso, mas não o direito de ação penal pública, que é abstrato, incondicionado e imprescritível.


Talvez o principal fundamento da prescrição seja o transcurso do tempo. Definido como um fato jurídico, o tempo acarreta importantes consequências no Direito Penal. No mundo fenomênico o tempo costuma ser implacável. Tem o condão de apagar da memória das pessoas humanas os mais lamentáveis acontecimentos, e no plano jurídico não poderia ser de forma distinta.


Elencando os possíveis fundamentos da prescrição, Sebastian Soler enxerga que:


“La prescripción tiene, teóricamente, diversos fundamentos: el simple transcurso del tiempo, la desaparición de los rastros y efectos del delito, la presunción de buena conducta, el olvido social del hecho, etc. En nuestro derecho vemos funcionar como base del sistema un doble motivo: el transcurso del tiempo y la conducta observada por el sujeto” (SOLER, S. Derecho Penal Argentino. 10ª ed., Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, 1992, p. 541).


A prescrição definida por BASILEU GARCIA como “a renúncia do Estado a punir a infração, em face do decurso do tempo” (GARCIA, B. Instituições de Direito Penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, tomo II, p. 368), pode ser conceituada como a perda da pretensão punitiva estatal, diante do transcurso de determinado lapso temporal fixado em lei. A prescrição nada mais é do que um decurso de tempo legalmente qualificado.


Embora, modernamente, a doutrina entenda que a prescrição ataca a pretensão, há quem sustente ainda que a prescrição atacaria a ação ou execução da pena, a depender da hipótese. Até mesmo no direito comparado verificamos que este posicionamento ainda persiste:


“O Código Penal Alemão expressamente se refere a prescrição da ação e a prescrição da execução da pena. Esta expressão ‘prescrição da execução da pena’ é mais precisa, mais correta, porquanto o que realmente acontece com o decurso do tempo, depois de prolatada uma sentença condenatória, não é uma prescrição de pena, mas sim da parte do Estado, uma prescrição extintiva do direito de executar a pena imposta” (Código Penal alemão: direito comparado. trad. Lauro de Almeida. 1ª ed. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1974, p. 39).


Conforme afirmado, em geral, o Estado não dispõe de prazos indeterminados para o exercício da pretensão punitiva, ou seja, a prescritibilidade dos crimes é a regra. Se a prescrição é a regra, quais seriam as exceções? A Constituição Federal de 1988 elencou duas hipóteses excepcionais de imprescritibilidade penal em seu artigo 5º: a prática do racismo (inciso XLII); e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (inciso XLIV).


Em que pese a gravidade em abstrato destas condutas, nada justifica a criação destas exceções à regra da prescritibilidade dos crimes em geral. Estas previsões em nada, ou em muito pouco, contribuem para a solução da impunidade. Além disso, abre-se a possibilidade de um indesejável casuísmo penal. Quais seriam os critérios utilizados pelo legislador para eleger figuras penais imprescritíveis?


Neste compasso, EUGENIO RAÚL ZAFFARONI critica os casos de imprescritibilidade penal sob o fundamento de que:


“Não existe na listagem penal crime que, por mais hediondo que se apresente ao sentimento jurídico e ao consenso da comunidade, possa merecer a imprescritibilidade, máxime se atentarmos que as expectativas comunitárias de reafirmação da validade da ordem jurídica não perduram indefinidamente” (ZAFFARONI, E. R. Manual de Direito Penal brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v. 1, p. 645).


Críticas à parte, a partir destas previsões constitucionais, restou possível inferir das normas uma nova garantia que reforça a noção de prescritibilidade. Os dois casos de imprescritibilidade penal foram tratados no rol do artigo 5º, da Constituição Federal, justamente aquele destinado a assegurar os direitos e garantias fundamentais do cidadão. Se somente estas duas modalidades delitivas são imprescritíveis, a contrario sensu, os demais crimes são prescritíveis. A Constituição Federal ao criar hipóteses de figuras penais imprescritíveis, assegurou, ainda que implicitamente, a prescritibilidade dos crimes em geral ou o direito à prescrição.


Portanto, o direito à prescrição foi reconhecido como um do direitos fundamentais, fazendo parte do rol das chamadas cláusulas pétreas. Sendo assim, nem mesmo o “Poder Constituinte Reformador ou Derivado”, poderá validamente deliberar sobre proposta de emenda constitucional tendente a abolir o direito à prescrição (artigo 60, parágrafo quarto, inciso IV, da Constituição da República Federativa do Brasil).


Desta previsão constitucional, denota-se que, a vedação é imposta desde a deliberação, momento logicamente anterior à edição da emenda constitucional. Além disso, a Constituição Federal fala em “proposta de emenda tendente a abolir”, o que importa em dizer, não ser necessário que a proposta vise abolir o direito fundamental à prescrição, bastando que tenda a aboli-lo.


Caso ocorra proposta de emenda à Constituição tendente a abolir o direito à prescrição, é possível que os legitimados possam se socorrer da via judicial adequada perante o Supremo Tribunal Federal, com vistas a impedir que o Parlamento edite uma norma contaminada pelo vício da inconstitucionalidade.


Neste sentido, pronunciou-se o Supremo Tribunal Federal:


“Proposta de emenda à CF – Instituição da pena de morte mediante prévia consulta plebiscitária – Limitação material explícita do poder reformador do Congresso Nacional. Inexistência de controle preventivo abstrato (em tese) no direito brasileiro” (ADI 466, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 3-4-1991, Plenário, DJ de 10-5-1991).


A partir das disposições constitucionais analisadas, torna-se possível concluir que, se não é possível a edição de emenda à Constituição tendente a abolir o direito à prescrição, com muito maior razão, o legislador ordinário está impedido de elaborar uma norma neste sentido. Porém, não é o que de fato ocorreu. A Lei n. 12.234, de 5 de maio de 2010, que alterou os artigos 109 e 110, do Decreto-Lei n. 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, praticamente aboliu de nosso sistema jurídico-penal uma das modalidades de prescrição da pretensão punitiva, a denominada prescrição retroativa.


Fruto de uma criação genuinamente jurisprudencial, após calorosos debates sobre a matéria, que importaram em avanços e retrocessos, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a prescrição retroativa pela edição da Súmula 146, que diz: “a prescrição da ação penal regula-se pela pena concretizada, quando não há recurso da acusação”.


A prescrição retroativa pode ser definada como a modalidade de prescrição da pretensão punitiva que determina a recontagem dos prazos anteriores à sentença penal com trânsito em julgado para a acusação, sendo regulada pela pena concretamente aplicada, e tendo como marco inicial a publicação da sentença penal condenatória.


Nelson Hungria tratou didaticamente do tema, ao dizer que:


“O parág. único do artigo [110] sanciona uma exceção à regra constante do art. 109. Dispõe-se neste, como vimos, que o período de prescrição da ação se regula pela pena cominada, em abstrato, ao delito. Este critério vigora desde a data do crime, quando o prazo começa a correr, na forma do art. 111, até a data em que passa em julgado a sentença final, quando a prescrição é a da condenação, regulada, já agora, pela pena imposta na sentença, como firmado no corpo do art. 110. De modo que, enquanto a sentença não se torne definitiva, a base para o cálculo da prescrição será a pena abstrata. Mas a esta regra abre-se a exceção declarada no parágrafo: ‘se da sentença condenatória somente tiver havido recurso do réu, a base para o calculo da prescrição é a pena concretizada na mesma sentença, e não mais a pena prevista em lei” (HUNGRIA, N. Comentários ao Código Penal. 5ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 1977, v. 4, p. 366-367).


Não podemos perder de vista que esta criação tem como pano de fundo uma política criminal menos repressora dos direitos e garantias fundamentais do cidadão. Na verdade, a jurisprudência buscou solucionar o problema dos presos com pena prescrita. A prescrição da pretensão punitiva, que antes da sentença penal condenatória é calculada pelo máximo em abstrato da pena cominada ao crime, passa a ser regulada pela pena fixada na sentença ou acórdão, com trânsito em julgado para a acusação.


Seguindo esta linha de raciocínio, Juarez Cirino dos Santos de posicionou no sentido de que:


“O enunciado da lei é lógico: afinal, causas interruptivas da prescrição só podem existir em prazos que fluem no fluxo do tempo real – isto é, para o futuro –, nunca em processos mentais retrospectivos baseados no fluxo do tempo imaginário – isto é, para o passado, em direção contrária do tempo. Não obstante a clareza do texto legal, a posição repressiva dominante na literatura e na jurisprudência penal brasileira ainda prevalece: ignora a lei, mantendo na prisão milhares de condenados com pena prescrita, segundo a prescrição retroativa do art. 110, § 2º, CP” (SANTOS, J. C. Direito Penal. 2ª ed., Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007, p. 682).


Com a Reforma da Parte Geral do Código Penal, promovida pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984, o parágrafo primeiro do artigo 110 tinha a seguinte redação: “a prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação, ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada”. Ademais, o parágrafo segundo do artigo 110 estabelecia que: “a prescrição, de que trata o parágrafo anterior, pode ter por termo inicial data anterior à do recebimento da denúncia ou da queixa”.


As antigas disposições dos parágrafos do artigo 110 admitiam que o magistrado reconhecesse a prescrição da pretensão punitiva retroativa dentro do lapso temporal marcado entre os termos da data do fato e o do recebimento da denúncia ou queixa. Este regramento estava em harmonia com o princípio da duração razoável do processo, atualmente elevado à cláusula pétrea (artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição da República Federativa do Brasil).


A Lei n. 12.234, de 5 de maio de 2010, além de revogar o parágrafo segundo do artigo 110 do Código Penal, deu nova redação ao parágrafo primeiro. Com o advento desta lei, o mencionado dispositivo passou a ter a seguinte redação: “a prescrição, depois da sentença condenatória com trânsito em julgado para a acusação ou depois de improvido seu recurso, regula-se pela pena aplicada, não podendo, em nenhuma hipótese, ter por termo inicial data anterior à da denúncia ou queixa”.


Com o advento desta lei, o legislador pretendeu que o magistrado não mais reconhecesse a prescrição da pretensão punitiva retroativa dentro do lapso temporal marcado entre os termos da data do fato e o do recebimento da denúncia ou queixa. Em primeiro lugar, ressalta-se que a nova lei, em sendo menos benéfica ao réu, somente pode ser aplicada a fatos posteriores à data de sua publicação, por prestígio ao magno princípio da irretroatividade da lei penal (artigos 5º, inciso XL, da Constituição da República Federativa do Brasil, e 2º, parágrafo único, do Código Penal).


A doutrina penal de cunho garantista vem tecendo severas críticas a esta mudança legislativa. Na verdade, esta lei não está em harmonia com os postulados do Estado Democrático de Direito e do Direito Penal Constitucional. Ao vedar a possibilidade de reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva retroativa em termo anterior ao do recebimento da denúncia ou queixa, restou configurado um verdadeiro retrocesso legislativo. Além disso, a nova disposição penal é incompatível com o princípio constitucional da duração razoável do processo.


Compartilhando deste entendimento, colacionamos as críticas formuladas por Cezar Roberto Bitencourt:


“Embora a Lei n. 12.234/2010 não tenha suprimido o instituto da prescrição de nosso ordenamento jurídico, ao excluir a prescrição em data anterior ao recebimento da denúncia, afronta os princípios do não retrocesso ou da proporcionalidade e da duração razoável do processo. A violação aos direitos fundamentais do cidadão – limitando-os, suprimindo-os ou excluindo-os –, a pretexto de combater a impunidade, é muito mais relevante que possíveis efeitos positivos que por ventura possam ser atingidos” (BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal. 16ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2011, v. 1, p. 818).


Ao lado destes preciosos argumentos, inegavelmente a Lei n. 12.234, de 5 de maio de 2010, ao vedar a possibilidade de reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva retroativa em termo anterior ao do recebimento da denúncia ou queixa, feriu de morte esta modalidade de prescrição, pelo que restringiu em muito a viabilidade de ocorrência da espécie.


E ao praticamente eliminar as possibilidades de reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva retroativa, é forçoso concluir que a Lei n. 12.234, de 5 de maio de 2010, tende a abolir a prescritibilidade dos crimes em geral, ou direito à prescrição, qualificado implicitamente pela Constituição da República Federativa do Brasil como um dos direitos fundamentais dos cidadãos.


Conclui-se que, a Lei n. 12.234, de 5 de maio de 2010, a pretexto de combater a impunidade criminal, violou os direitos fundamentais à prescrição e da duração razoável do processo, além de representar indesejável retrocesso legislativo, sendo assim considerada materialmente inconstitucional. Os respeitosos argumentos que sustentam a edição de leis penais desta índole parecem ser frágeis, ou até mesmo débeis, se comparado ao atual panorama criminal que nossa sociedade está enfrentando. Nada justifica o sacrifício de uma garantia fundamental dos cidadãos, nem mesmo a tentativa sem sucesso de combater a famigerada impunidade.


 


Referências bibliográficas:

BETTIOL, G. Direito Penal. trad. Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco. 2ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977, v. 1.

BITENCOURT, C. R. Tratado de Direito Penal. 16ª ed., São Paulo: Editora Saraiva, 2011, v. 1.

GARCIA, B. Instituições de Direito Penal. 7ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, v. 1, tomo II.

HUNGRIA, N. Comentários ao Código Penal. 5ª ed., Rio de Janeiro: Editora Forense, 1977, v. 4.

SANTOS, J. C. Direito Penal. 2ª ed., Curitiba: ICPC; Lumen Juris, 2007.

SOLER, S. Derecho Penal Argentino. 10ª ed., Buenos Aires: Tipografica Editora Argentina, 1992.

ZAFFARONI, E. R. Manual de Direito Penal brasileiro. 7ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v. 1.

Código Penal alemão: direito comparado. trad. Lauro de Almeida. 1ª ed. São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1974.


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David Pimentel Barbosa de Siena


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