Dez medidas contra a Constituição Federal

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Resumo: No momento em que as crises políticas, econômicas e jurídicas estão na ordem do dia, o Ministério Público Federal encabeça uma campanha contra a corrupção no Brasil, estipulando dez medidas que reputa serem condizentes para que o país se liberte da corrupção que o assola. Neste cenário, discute-se o crime de colarinho branco e os fatores criminológicos que são constitutivos de seu tipo, fazendo que a seletividade penal não o alcance, ou, quando o faça, não seja da mesma forma como os demais tipos penais estipulados pela legislação penal brasileira. Dentre as medidas propostas, estão normatizações que mitigam princípios e direitos fundamentais, não apenas para aqueles enquadrados do delito de corrupção, mas com consequências para todos os tipos penais existentes no Brasil. É objetivo deste trabalho analisar algumas das dez medidas propostas pelo Parquet Federal a fim de entender as repercussões, evidememente negativas, de sua eventual incorporação ao ordenamento jurídico.

Palavras-chaves: dez medidas contra a corrupção; constituição federal; inconstitucionalidades.

Sumário: Introdução; 1 A corrupção como força motriz de uma reforma; 2 Os crimes de colarinho branco e a seletividade: uma abordagem criminológica; 3 As inconstitucionalidades das dez medidas; Considerações finais.

Introdução

O Brasil vive um momento de crises, sejam elas econômica, política, e, inclusive, jurídica. Neste contexto, emergem sentimentos contraditórios, tanto por parte da população quanto dos órgãos estatais, que instigam mudanças significativas das instituições que se tem hoje. É por isso mesmo que se busca, através de um endurecimento do sistema jurídico, solucionar situações tão imbricadas na sociedade atual, como é o caso da corrupção.

Levantando a bandeira de exterminar a corrupção e, por conseguinte, a impunidade, o Ministério Público Federal lança, em março de 2015, um pacote de reformas ao sistema penal brasileiro, elaborado por integrantes da Força-tarefa da Operação Lava Jato.

A problemática de tal pacote de alterações, porém, foi largamente demonstrada por diversos juristas criminalistas e constitucionalistas, os quais foram uníssonos em afirmar que a reforma legislativa não soluciona a questão da corrupção, mas endurece a legislação e vai de encontro à Constituição Federal de 1988, por desrespeitar previsões por ela estipuladas.

É dessa maneira que serão analisadas, neste trabalho, algumas das principais alterações propostas pelo Ministério Público Federal no que concerne a suas inconstitucionalidades e eventuais medidas de controle de constitucionalidade que poderão ser cabidas caso tal reforma seja impulsionada pelo Poder Legislativo. Contudo, para que mais concretude seja dada à análise, é necessário, primeiro, discutir os crimes de colarinho branco e o significado de corrupção, o que será feito nos tópicos a seguir.

1 A corrupção como força motriz de uma reforma

A corrupção é um termo que, em sua interpretação mais simples e literal, abarca uma série de condutas e ações que podem ser denominadas como “corruptas”, tais como ganho ilícito, desfalque, trapaça, fraude, suborno, peculato, extorsão, dentre muitas outras condutas praticadas por parte de agentes da administração pública, que podem derivar desde pequenos desvios a grandes esquemas ilícitos de favorecimento pessoal e de terceiros (BREI, 1996). A imensa gama de condutas abarcadas pelo dito termo acaba por dificultar sua definição exata. Observa-se assim, um não consenso entre diversos doutrinadores de uma definição de corrupção enquanto um conceito nítido e fechado:

“O fenômeno pode ser observado numa gradação quase infinita. Vai de pequenos desvios de comportamento à total impunidade do crime organizado, por parte das várias áreas e níveis governamentais. Pode ocorrer suborno para a compra de um benefício legalmente previsto – e o que se compra é maior rapidez ou precedência sobre outros interessados -, como pode haver compra de um benefício ilegal. A natureza da ação, suas conseqüências e a punição prevista serão totalmente diferentes. Pode-se considerar um ato como corrupção numa perspectiva, e noutra, não. Por exemplo, um funcionário público que atende às suas afiliações é nepotista. A mesma ação, porém, praticada por um político, é mais aceita socialmente, podendo ser ele até mais admirado como político competente”. (BREI, 1996)

 Rui Cunha Martins, ao tratar sobre a definição e origem do conceito de corrupção, resgata um pensador do início da modernidade, Nicolau Maquiavel, o qual foi um dos primeiros autores a trabalhar com o termo em tela, dando, portanto, uma de suas primeiras definições enquanto conceito. Corrupção, na concepção de Maquiavel, nasce do clássico conceito de virtude, que seria a expressão dos valores próprios da república, referindo a consciência cívica, a virtude referir-se-ia à ação política propriamente dita, ao modo como a ação prática individual pode sobrepor-se aos acontecimentos e ao acaso” (MARTINS, 2013, p. 71). A partir do momento em que o filósofo se propõe a trabalhar sobre o conceito de virtude enquanto polo positivo, surge um polo oposto, que definiria a sua ausência, ou seja, a negação da virtude, o que inicialmente era definido por Maquiavel como uma noção de fortuna – no sentido de incerteza e sujeição aos humores do mundo – e também pela noção de corrupção (MARTINS, 2013). Este binômio pensado inicialmente por Maquiavel, virtude-corrupção, passa a ter desenvolvimento e evolução enquanto conceito, ou pelo menos do polo negativo dessa relação.

“Ao longo dessa evolução, é possível verificar que, enquanto o polo da virtude aparenta permanece principiologicamente inalterado, o polo da corrupção vai sendo sucessivamente ocupado pelos diferentes conceitos com os quais a virtude, isto é, o núcleo central do pensamento republicano, se ia defrontando, ou com os quais ia sendo obrigado a estabelecer relações que iam da recusa e da incomodidade à aceitação tácita e mesmo à incorporação. Foi esse o caso dos conceitos de comércio, que no quadro inglês substitui gradativamente a fortuna, e de crédito, os quais, ou em associação explícita à ideia de corrupção, ou em substituição ocasional desta enquanto referente de negatividade, ocuparam o lugar do pecado no seio da parelha”. (MARTINS, 2013, p.71)

Nota-se, desta forma, que a conceituação de corrupção, dada sua origem e sua repercussão na sociedade moderna de modo geral, baseia-se em fundamentos de cunho éticos e morais, calcando-se em uma dicotomia entre bom ou mau. Como bem exemplifica Brei (1996), ao tratar sobre a conceituação da corrupção, Órgãos e funcionários públicos são bons na medida em que cumprem com sua missão e suas funções (…)”, logo, caso assim não o façam, comportando-se de modo a causar dano ao interesse público, visando favorecer um ganho privado, adquire a conduta uma valoração negativa e destoante da esperada no exercício dessa função. Importante ressaltar que na relação em que se dá a conduta corrupta, existe um ganho, por parte do corruptor e o corrupto e perda para os demais atores da relação, especialmente o poder público (BREI, 1996).

“Os trabalhos ligados à conotação da cultura política ligam a corrupção às interações construídas pelos atores sociais, refletindo experiências e valores que permitem ao indivíduo aceitar ou rejeitar entrar em um esquema de corrupção. Ao lado do sistema institucional e legal, o sistema de valores é fundamental para motivar ou coibir as práticas de corrupção no interior de uma sociedade. A modernização implica a mudança dos padrões de valores e de ação por parte dos atores sociais. A corrupção, nessa lógica, representa, antes de tudo, a permanência de elementos tradicionais que utilizam, especialmente, o nepotismo, a patronagem, o clientelismo e a penetração junto à autoridade política para obter vantagens e privilégios”. (FILGUEIRAS, 2009)

A corrupção, nos últimos tempos, tomou lugar de destaque no plano político mundial, sendo sua prática presente tanto nos países em desenvolvimento, a partir das instabilidades institucionais, quanto naqueles desenvolvidos, cujas falhas nos sistemas democráticos são os fatores determinantes. Os fatores negativos da corrupção acabam por ser bastante perceptíveis, tendo em vista que a mesma repercute comprometendo o direito à propriedade, o império da lei, os incentivos e investimentos. Países nos quais a corrupção é generalizada, das unidades monetárias investidas em sua economia, boa parte é desviada, ou seja, desperdiçada, o que acaba por implicar em um menor investimento (PEREIRA, 2002).

O que pretende o Ministério Público Federal, no lançar de um projeto de dez medidas contra a corrupção, a partir da criminalização da conduta – a qual, conforme visto, não possui precisão semântica –, não impedirá que sua prática aconteça.

No contexto brasileiro a corrupção se mostra como um grave problema a ser enfrentado, cuja origem é estrutural de sua sociedade e de seu contexto político. Não há quem discorde que é indispensável, no atual momento, a implantação de medidas que visem combatê-la, tendo em vista o potencial alarmante que tem a corrupção de enfraquecer a democracia, uma vez que a mesma abala, por parte dos cidadãos e cidadãs, a confiança no Estado, a legitimidade dos governos e a moral pública (PEREIRA, 2002). Os escândalos políticos tornaram-se rotina da vida dos brasileiros, os casos de uso indevido da máquina administrativa, malversação dos recursos públicos, favorecimento ilícito a empresas privadas por parte de políticos e outras tantas mazelas, tem feito com que a crença no atual sistema político em funcionamento no Brasil seja inevitável (FILGUEIRAS, 2009).

“A posição do Brasil no ranking divulgado pela Transparency International que mede os índices de percepção da corrupção no mundo, no triênio de 1999-2001, mostram que o país ocupa um lugar bastante desconfortável. O país recebeu nota 4,0 em 2001 (3,9 em 2000 e 4,1 em 1999), está posicionado na 46ª posição entre 91 países (49ª entre 90 em 200, e 45ª entre 99 países em 1999). Registra-se que, no ranking de 2000 e 2001, o país considerado menos corrupto no mundo foi a Finlândia. Na comparação com os demais países da América Latina, em 2001, o Brasil ficou em sexto lugar entre 18 países, após Chile, Trinidad & Tobago, Uruguai, Costa Rica e Peru. Assim para a Transparência Brasil (2002:1), a percepção sobre o Brasil em 2001 não piorou, tampouco melhorou. Os números confirmam que o problema da corrupção no país continua sem receber a atenção estratégica que seria exigido”. (PEREIRA, 2002)

Há cerca de quinze anos o país já se encontrava em situação delicada acerca da corrupção, e evidentemente ainda se encontra, o que faz com que seja alarmante a necessidade por mudança. Disto, repita-se, não há quem discorde. Contudo, a maneira como quer o Ministério Público Federal implementar tal mudança, conforme veremos, não é hábil a solucionar a questão, pelo contrário, possui potencial de, inclusive, destruir com o já capenga sistema penal que o Brasil possui.

2 Os crimes de colarinho branco e a seletividade: uma abordagem criminológica

“A criminologia é, fundamentalmente, a chance de desconstruir a tautologia da cultura punitiva” (PANDOLFO, 2010, p. 1). Baseando-se nessa premissa, analisar-se-á no presente tópico a desconformidade das medidas do Parquet federal com a realidade empírica do sistema penal, provocando assim uma ruptura insustentável.

O princípio da igualdade no Direito Penal se materializa com a previsão de que toda a pessoa que praticar um ato típico, antijurídico e culpável receberá a pena adequada, após comprovação dos fatos no devido processo legal, transitado em julgado, com possibilidade de ampla defesa. Somente partindo dessa premissa, poderíamos justificar a pena imposta pelo Estado como uma garantia de proteção a bens jurídicos relevantes.

Todavia, a concretização do princípio igualitário no Direito Penal poderia gerar uma catástrofe, pois, como revelam, continuamente, os estudos de autorreportação, condutas criminosas são praticadas pela esmagadora maioria da população, dessa forma, a criminalização e encarceramento de toda a população que comete crimes, ou seja, em um mundo em que o Direito Penal desempenhe com eficiência perfeita o seu discurso programático, a maioria da população estaria aprisionada (ZAFFARONI, 2001). Assim, continuando com o penalista argentino (2001, p. 27):

“Torna-se óbvio que o sistema penal está estruturalmente montado para que a legalidade processual não opere e, sim, para que exerça seu poder com altíssimo grau de arbitrariedade seletiva dirigida, naturalmente, aos setores vulneráveis. Esta seleção é produto de um exercício de poder que se encontra, igualmente em mãos dos órgãos executivos, de modo que também no sistema penal “formal” a incidência seletiva dos órgãos legislativo e judicial é mínima. […] Os órgãos executivos têm “espaço legal” para exercer poder repressivo sobre qualquer habitante, mas operam quando e contra quem decidem.”

Investigando como se dava essa seleção, a criminologia crítica, desenvolve a ideia de seletividade econômica, pois, nas palavras de Andrade (2003, p. 50):

“A cifra negra é considerável e de que a criminalidade real é muito maior que a oficialmente registrada permitiu concluir que, desde o ponto de vista das definições legais, a criminalidade se manifesta como comportamento da maioria, antes que de uma minoria perigosa da população e em todos os estratos sociais, mas a criminalização é, com regularidade, desigual ou seletivamente distribuída”.

Ora, se as infrações penais são características de todos os estratos sociais da sociedade e apenas os setores vulneráveis sofrem suas sanções, podemos concluir, como concluiu o Ministério Público Federal, que há imunidade à justiça penal quando se trata de pessoas abastadas que cometem crimes sofisticados, como os econômicos.

O primeiro sociólogo a tratar do assunto foi Edwin Sutherland, em seu clássico White Collar Criminality, texto que batizou os chamados “crimes do colarinho branco”. Nele, o autor foi na contramão dos sociólogos da época que afirmavam que a pobreza gerava a criminalidade, fosse por razões psicológicas, físicas ou sociais e afirma que as condutas criminalizadas são realizadas em todos os estratos da sociedade, sendo que há apenas uma diferença de tratamento entre a criminalidade das classes superiores e inferiores, dando suporte teórico para a teoria da reação social desenvolvida por Becker décadas mais tarde (SUTHERLAND, 2015). Sutherland (2015, p. 99) é categórico ao afirmar que:

“Os aspectos nos quais os crimes das duas classes diferem são os incidentais ao invés dos essenciais da criminalidade. Elas se diferem principalmente na aplicação das leis penais. Os crimes da classe baixa são conduzidos por policiais, promotores e juízes, com penas de multa, prisão e de morte. Os crimes da classe alta não resultam em nenhuma ação oficial ou em ações indenizatórias em cortes civis ou conduzidos por fiscais e por conselhos ou comissões administrativos, com sanções penais na forma de advertências, ordens para cessar uma atividade, ocasionalmente, a perda de uma licença e, somente em casos extremos, aplicação de multas ou penas privativas de liberdade.”

Ou seja, resta evidente que as condutas que serão perseguidas são selecionadas de maneira desigual, decididas pelas agências executivas de controle e combatem crimes típicos dos estratos inferiores da sociedade, desconsiderando a gravidade da conduta criminal, subestimando os crimes provenientes dos estratos superiores e superestimando os crimes de menor danosidade penal, como furtos e roubos.

Isso acontece, segundo Lola Aniyar de Castro (1983, p. 79) “porque embora a perda para a sociedade, em um crime do ‘colarinho branco’, possa ser igual à quantidade total de milhares de furtos ou roubos, o delinquente de ‘colarinho branco’ e uma pessoa não estigmatizada pela coletividade”.

Dessa forma, tendo em vista a seletividade do sistema penal, demonstra-se o equívoco empírico do MPF, o sistema penal é estruturalmente ineficaz e não cumpre, no plano material, as funções vendidas por seu discurso.

Além disso, se ignorarmos o desbaratamento causado pelas análises criminológicas às noções de prevenção geral, seja na sua forma positiva ou negativa, e acreditarmos que a mesma é capaz de justificar a aplicação de pena, fica evidente que a ineficácia e a dificuldade na condenação dos acusados de crimes de colarinho branco, para fins deste artigo os de corrupção, se dão porque as agências de controle tratam de forma diferenciada os crimes provenientes das camadas elevadas, relevando-os. Frisando novamente, mesmo admitindo-se que a lei penal tem o condão de prevenir crimes, a criminologia mostra de maneira irrefutável que não se trata de defeito na legislação, como propõe o órgão ministerial, mas na aplicação da mesma. Reformar a lei penal para torna-la mais dura, ao invés de aumentar a atuação e fiscalização das condutas entendidas como corruptas, só fará com que mais pobres sejam jogados ao horror do cárcere nacional ao tirar dos mesmos direitos garantidos constitucionalmente, pouco alterando o cenário de corrupção endêmica que assola o país, pois não é o texto legal, mas a aplicação do mesmo que torna os criminosos de colarinho branco imunes.

Por fim, é importante salientar que considerando o objetivo evidente de efetivação do Estado Democrático de Direito, é necessário estabelecer que nesse modelo, somente se justifica a intervenção estatal através do Direito Penal mínimo (ROSA, 2004, p. 242). Pois, uma vez que todas as teorias que pretendem justificar a pena são absolutamente desconstituídas ao mero encontro com a realidade do sistema penal, “devemos desconfiar da aptidão para bem que é proposta como vocação de um corpo normativo voltado para a utopia de segurança” (KHALED JR, 2013, p. 16). Sobre o discurso da defesa social, surgem inúmeras teorias e ações, como são as medidas em tela, que pretendem dar uma resposta prática ao problema, fazendo com que a proteção dos Direitos Individuais, indispensáveis para garantir a segurança do cidadão contra o arbítrio do Estado, sejam substituídas por um ”culto explícito de sentimentos vingativos, outrora concebidos como incivilizados” (ALMEIDA, 2013, p. 276).

3 As inconstitucionalidades das dez medidas

Embora a proposta seja de acabar com a corrupção e com a impunidade, quem mais são atacadas pela reforma proposta pelo Ministério Público Federal são a Constituição Federal de 1988 e, como bem destacou Coutinho (2015), suas cláusulas pétreas. Apontar, portanto, as principais alterações que este pacote de reformas propõe e as possíveis ações de controle de constitucionalidade caso veja a ser promulgado tal projeto é o que será feito nesse tópico.

Inicialmente, incumbe destacar que, ao rechaçar as Dez Medidas Contra a Corrupção, não se está posicionando favoravelmente à existência da corrupção, pelo contrário, está se mostrando que não se pode desrespeitar as regras do jogo para a consecução desta finalidade, sob pena de incorrer em processos arbitrários. Coutinho (2015) muito bem pontua ao afirmar:

“Assim, ninguém é a favor ou pode ser a favor da corrupção; mas ninguém está autorizado a passar por cima da Constituição da República e demais leis e, antes, pelos seus fundamentos, seja lá por que for; e em nome de quem for, por mais nobre que possa parecer o motivo e ainda que seja ele o combate à corrupção”.

Porém, o autor (2015) preocupa-se bastante com a guinada conservadora que o Ministério Público Federal dá ao apresentar tal proposta, alegando que, neste ritmo, “(…) logo se terá pastores e falsos profetas pregando a prisão perpétua e a pena de morte como solução definitiva para os problemas criminais (…)”, preocupação que não deixa de ser importante, diante do alarmante repressivismo e punitivismo constantes no projeto.

Dando enfoque diferente, porém igualmente preocupado com o caminho escolhido para barrar a corrupção, Lenio Streck (2016) traz à memória que medidas semelhantes vigiam no período ditatorial, lamentando-se por quererem “(…) fragilizar direitos que foram conquistados a duras penas neste país tristemente marcado por ditaduras ao longo de sua história”.

Aury Lopes Jr. (2015) refere que as medidas contra a corrupção que o Ministério Público Federal defende se tratam de proposições calcadas na opinião pública, não servindo como contribuição séria acerca do problema apresentado e que, de fato, deve ser combatido. E, pior, não são medidas exclusivas aos crimes de corrupção. Segundo o autor (2015),

‘O problema é que as propostas afetarão a todos os crimes e a todos os processos penais, não só os de corrupção. Isso não está sendo dito e tampouco medido o impacto penal, processual penal e penitenciário que elas terão. São medidas vendidas para “dar conta de punir os grandes casos de corrupção”, os maxiprocessos e os poderosos, mas quem realmente pagará essa fatura serão os milhares de acusados descamisados, em milhares de processos criminais da criminalidade clássica, por crimes completamente diferentes e onde elas serão absurdamente excessivas e desnecessárias’.

Este recorte é bastante importante para se ter ideia do quanto significará tal reforma para o sistema penal, principalmente levando-se em conta o que foi apontado no tópico 1 deste trabalho, que deu conta de tratar da sofisticação que é fator constitutivo dos crimes de colarinho branco, como é o caso da corrupção.

Ao analisar as medidas, logo na primeira proposta é possível deparar-se com flagrante inconstitucionalidade, tudo no intuito de prevenir a corrupção. Coutinho (2015) rechaça esta ideia afirmando veementemente que “(…) isso é imoral! Não fosse antes inconstitucional e ilegal”. Streck (2016), compartilhando de tal análise, compara os testes de integridade propostos pelo Parquet com o flagrante forjado, em análise bastante acertada. Tal medida caracteriza prova ilícita, vedada pelo artigo 5º, inciso LVI da Constituição Federal de 1988, cabendo, portanto, Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Acerca da proibição da utilização de prova ilícita, o pacote de medidas contra a corrupção ainda avança e permite sua utilização em dez casos em que as provas ilícitas serão admitidas através da modificação do artigo 157 do Código de Processo Penal, acrescendo-se incisos do I ao X[1]. Streck (2016) destaca a possibilidade de utilização de prova ilícita quando para refutar álibi e ironiza a medida proposta, dizendo pensar que o processo penal servia ao réu. Badaró (2015) explica que as dez inovações trazidas no artigo 157 do CPP pecam quando, num momento, elencam o óbvio e, em outro momento, são incompreensíveis. “E, quando são inovadoras e compreensíveis, pecam pela inconstitucionalidade.”

Também ao analisar as Dez Medidas, Coutinho (2015) destaca algumas das quais vê problemas de ordem constitucional. Uma delas é a Proposta nº 4 que, justificando no “aumento da eficiência e da justiça dos recursos no processo penal, suprime direitos do acusado em âmbito recursal por entender que a defesa se utiliza de meios protelatórios.

Lopes Jr. (2015) também trata da proposta de alteração dos recursos, talvez porque esta seja uma flagrante inconstitucionalidade, não apenas pela supressão desse direito, mas, sobretudo, pelo modo como será feito. O autor explica que a adição do artigo 580-A ao Código de Processo Penal, cuja redação tratará da certificação do trânsito em julgado em casos de recurso manifestamente protelatório ou abusivo do direito de recorrer, além de trazer o sistema inquisitório ao permitir que esta medida seja tomada de ofício, carrega bastante problemática nos termos utilizados, porquanto habilita o decisionismo judicial, tão denunciado por Lenio Streck.

Esta medida, tão em debate, possui estrita relação com o prazo prescricional dos crimes. Na descrição da proposta[2], é apontado que a demora no julgamento dos recursos “(…) não apenas enseja a prescrição, mas potencializa um ambiente de impunidade, mesmo quando há mera protelação da punição, que estimula a prática de crimes (…)”. Há que se falar, primeiramente, acerca do alegado estímulo à prática de crimes, já que, para acreditar que a impunidade estimula o cometimento de delitos, é necessário acreditar que a punição irá os inibir, o que não parece soar razoável.

Ademais, não pode o réu ser responsabilizado por aquilo que não deu causa. A demora no julgamento do processo em nada tem relação com suas ações, já que, conforme pontuou Lopes Jr. (2015), caso o recurso preencha os requisitos objetivos e subjetivos para ser recebido, não pode ele ser rejeitado por uma arbitrariedade do julgador, logo, não há demora, pois o trâmite obedeceu às regras processuais.

Outra medida apresentada pelo pacote de reformas é a limitação em seis casos do cabimento de habeas corpus. Dá-se destaque à proibição para discutir nulidade, trancar investigação ou processo e como sucedâneo de recurso. A justificativa[3] apresentada explica que as alterações sugeridas “(…) visam evitar que, em instrumento moldado para a proteção da liberdade ambulatorial, sejam adotados, por exemplo, expedientes destinados a anular processos de forma açodada (…)”. Nas palavras de Streck (2016):

“Os argumentos são parecidos com os do tempo da ditadura. Em nome de uma boa causa se ataca o Estado (Democrático?) de Direito. Afinal, as alterações servirão para caçar somente os homens maus que habitam a república. E assim o MPF retoma o argumento dos militares a favor da restrição do habeas corpus: “estamos aperfeiçoando o sistema processual brasileiro”.

Por fim, embora o debate já tenha sido vencido, não há como não tratar da Proposta de Emenda Constitucional para a eliminação do efeito suspensivo dos recursos extraordinário e especial e autorização, a pedido do Ministério Público, da execução provisória da decisão penal condenatória[4].

Conforme bem pontuou Geraldo Prado (2015), o objetivo da alteração é antecipar o trânsito em julgado da sentença condenatória. O autor (2015) afirma categoricamente que esta proposta é uma afronta ao princípio da presunção de inocência, cláusula pétrea da Constituição Federal. Ou seja, caso venha a ser aprovada, deve ser objeto de Ação Direta de Inconstitucionalidade.

Lenio Streck (2016), em reflexão acerca dos argumentos utilizados pelo ministro Fachin no voto pela retirada do efeito suspensivo dos recursos extraordinário e especial em decisão liminar de habeas corpus, explica que não é uma questão processual meramente, mas sim uma questão constitucional, de modo que não se pode argumentar com a simples aplicação do Código de Processo Civil, o qual preceitua a excepcionalidade do efeito suspensivo nestes casos. A questão, obviamente, é maior que isso, aceitar tal interpretação é negar o artigo 5º, incisos LVII e LXI da Constituição Federal, bem como do artigo 283 do Código de Processo Penal.

Considerações finais

A partir do estudo elaborado, foi possível compreender que o conceito de corrupção é demasiado amplo, motivo pelo qual sua utilização acaba por tornar deficitária e imprecisa a tipificação de uma conduta ilícita, o que já é feito pelo ordenamento jurídico penal pátrio.

Não obstante, o Ministério Público Federal dela se utiliza para encabeçar projeto de cunho populista, cujo objetivo é combater, de forma heroica, a maior mazela que assola este país. Para isso, institui-se o rigor e a rigidez do sistema processual penal vigente, embora todos os estudos criminológicos que se dignem com a realização constitucional de democracia demonstrem a ineficácia e o prejuízo do método.

Fere-se, mutila-se os direitos humanos, os direitos fundamentais instituídos democraticamente, aproveitando-se o ensejo para elaborar uma verdadeira reforma ao processo penal no todo, e não apenas no que concerne à prática do delito de corrupção. Não parece acertado.

Coaduna-se ao cenário a novíssima decisão do Supremo Tribunal Federal, órgão vigia da Constituição Federal, em sede liminar das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43 e 44, que entendeu não ser obrigatório o efeito suspensivo dos recursos extraordinário e especial, permitindo a execução provisória da pena.

Deste modo, é a Constituição Federal diretamente atacada pelo projeto proposto pelo Parquet federal, de modo que a sede por demonstrar punição, recebendo, nos dias atuais, a efervescência de operações que desvendam esquemas envolvendo pessoas que antes não eram alvo do sistema penal, acaba por sobrepor os ditames morais, éticos e constitucionais.

É preciso combater a corrupção, principalmente por esta atividade impedir o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, mas combate-la dentro dos parâmetros legais condizentes com a efetivação dos direitos fundamentais e da Constituição.

 

Referências
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ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan, 2001.
 
Notas
[1] http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/conheca-as-medidas/docs/medida_7_versao-2015-06-25.pdf

[2] http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/conheca-as-medidas

[3] http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/conheca-as-medidas/docs/medida_4_versao-2015-06-25.pdf

[4] http://www.dezmedidas.mpf.mp.br/apresentacao/conheca-as-medidas/docs/medida_4_versao-2015-06-25.pdf


Informações Sobre os Autores

Carolina Flores Gusmão

Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Rio Grande FURG

Reysla da Conceição Rabelo de Oliveira

Acadêmica de Direito da Universidade Federal do Rio Grande FURG

Otávio Pontes Corrêa

Bacharel em Direito da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Mestrando em Direito e Justiça Social pela Universidade Federal do Rio Grande FURG


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