Os fins contraditórios da pena de prisão

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Resumo: Este trabalho é parte integrante de pesquisa desenvolvida em nível de mestrado acadêmico em direitos humanos junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB, e parte dos paradigmas modernos de justificação da punição para analisar os objetivos atuais da pena de prisão e seus aspectos contraditórios de utilidade e justiça.


Palavras-Chave: Prisão; Teoria da Pena; Direito Penal.


Abstract: This article is part of scientific research “What can education in prison?” developed in the academic master of human rights from the Federal University of Paraíba State, and starts from the modern paradigms that justify the punishment to review the current goals of the prison sentence and its contradictory aspects of utility and justice


Keywords: Imprisonment; Theory of Penalties, Criminal Law.


Sumário: 1. Os paradigmas de fundamentação da punição; 2. Teorias modernas de justificação da punição; 3.Sobre a inconsistência dos argumentos justificadores; 4.Utilidade e Justiça: fins contraditórios da pena de prisão; 5. Referências.


1. OS PARADIGMAS DE FUNDAMENTAÇÃO DA PUNIÇÃO


Os casos de desobediência à ordem social são presentes em cada sociedade, em todas as épocas (PAVARINI, 2002, p.25). Daí por que, da mais remota antiguidade às organizações sociais modernas, os variados grupos humanos recorrem, sem exceções, a práticas de caráter penal (ZOLO, 2002, p.22).


Contudo, se ao longo da história cíclica[1] dos discursos acerca das questões penais não houve um consenso dentre as tentativas de justificação da punição, numa simplificação teórica drástica, elas podem ser resumidas em dois conjuntos de argumentos, o paradigma da ordem cósmica e o paradigma da defesa social.


Nos contextos sociais tradicionais, predominava uma noção organicista da sociedade, de maneira que, o mundo humano era pensado em estrita analogia com o mundo cósmico sujeitando-se, portanto, a uma ordem social natural, mítica, hierárquica e antropologicamente imutável (TOSI, 2005, p.100).


Nesse cenário, a organização da vida social era fundada em laços orgânicos, de forma que, os indivíduos não eram considerados em sua singularidade, mas como partes integrantes de um todo, daí por que o papel da punição era o de permitir a descarga da emoção coletiva causada pelos desvios individuais, sacrificando aquele sobre o qual se concentrariam as culpas do próprio grupo (RABENHORST, 2002, P.42).


Em outras palavras, a partir dessa idéia de equilíbrio universal, a punição era concebida como um ressarcimento grupal e transcendental, em face de um comportamento lesivo que rompera a regularidade divina do mundo, uma purificação coletiva pelas culpas do infrator/pecador.[2]


Com a modernidade, estas representações coletivas de unidade social foram abolidas pelo processo de racionalização progressivo que elevaram o homem à condição de sujeito autônomo, moral e penalmente responsável.


A partir daí a forma Estado de administração do poder monopoliza a justiça punitiva apropriando-se dos conflitos individuais e colocando-se como principal afetado diante da ocorrência dos desvios sociais. Nasce o conceito de infração em substituição ao de dano, diante da necessidade de manutenção da disciplina, da obediência e do respeito para com o poder soberano (ANITUA, 2008, p.44).


Ensina ZOLO (2002, p.26-27) que, com o paradigma laico e moderno da defesa social a pena abandona o dever de restauração da harmonia universal e passa a objetivar o isolamento do desviante, a neutralização de sua periculosidade e sua reeducação à disciplina social para posterior readmissão. Nas palavras do filósofo Italiano:


“O que se pede ao réu não é a confissão da sua culpa e o reconhecimento de uma ordem universal inspirada em valores transcendentes (…) O que se pede agora é, antes, a aceitação e o respeito das regras políticas e econômicas adotadas pelo grupo. O sofrimento infligido ao desviante não é mais entendido como expiação, purificação e redenção. Trata-se de um sofrimento que possui uma função dupla: por um lado tem um significado retributivo para com os valores e os interesses sociais violados ou colocados em perigo pelo crime; por outro lado pretende desenvolver uma função corretiva e de dissuasão.”


Assim, nascido contemporaneamente às revoluções burguesas e as idéias iluministas e positivistas que consolidaram a modernidade, o paradigma da defesa social assumiu desde então o predomínio ideológico dentro do setor penal, pretendendo-se “a condensação dos maiores progressos realizados pelo direito penal moderno” (BARATTA, 1999, p.43-44).


Com efeito, na tentativa de justificar e racionalizar o sistema penal, a ideologia da defesa social reivindicou para si o mérito de ter liberado da punição as interpretações transcendentais e míticas, tornando-se assim um argumento bastante sedutor, pois que enriqueceu os modernos sistemas repressivos com os atributos da legitimidade e da cientificidade (PAVARINI, 2002, p.49).


2. TEORIAS MODERNAS DE JUSTIFICAÇÃO DA PUNIÇÃO


As questões em torno do sentido da pena se fazem atuais em todas as épocas e dizem respeito à investigação dos pressupostos sob os quais se pode justificar que o grupo de homens associados sob a forma-Estado prive de liberdade alguns de seus membros ou intervenha de qualquer outro modo de caráter penal (ROXIN, 1976, p.11). Com efeito, trata-se, pois, das razões que fazem justa ou aceitável, moral ou politicamente, a imposição da violência legal da pena em face da violência ilegal do delito.


Segundo FERRAJOLI (1998, p.247), a discussão tem se desenvolvido segundo duas linhas de princípios, os justificacionistas, para os quais a punição seria socialmente irrenunciável, e os abolicionistas, que não reconhecem justificação alguma, ocupando-se o presente trabalho, a partir deste momento, exclusivamente das primeiras.


As diversas soluções justificacionistas propostas ao longo da modernidade são chamadas Teorias da Pena, que são consideradas preventivas quando atribuem à punição a capacidade e a finalidade de evitar delitos futuros; retributivas quando miram o passado, entendendo a pena como uma reação punitiva em si mesma, ou em outras palavras, um padecimento de caráter maligno que se impõe ao autor do delito apenas por haver delinqüido; e mistas, quando unem elementos das duas teorias acima (HASSEMER e MUÑOZ CONDE, 2001, p.227).


Para os defensores[3] das teorias absolutas ou retributivas, o fundamento da punição resta-se configurado em que esta é a condigna e merecida retribuição em face da violação do direito ocorrida no momento do ato desviante, não havendo aí nenhuma necessidade de função utilitária preventiva (ROSAL e ANTÓN, 1999, 809).


A teoria da retribuição[4] parte da idéia de que o sentido da pena se baseia na compensação da culpabilidade do autor do desvio mediante a imposição de um mal penal, de forma que a pena haveria de se ocupar unicamente com a realização da justiça (ROXIN, 1976, p.12). Nesse sentido, ensinam (HASSEMER e MUÑOZ CONDE, 2001, p.228) que objetivamente, “la teoría retributiva sólo pretende que el acto injusto cometido por un sujeto, culpable del mismo, sea retribuido a través del mal que constituye la pena”.


“Son teorias absolutas todas las doctrinas retribucionistas, que conciben la pena como fin en si mismo, es decir, como castigo, como compensación, reacción, reparación o retribuición del delito, justificada por su valor axiológico intrínseco; por conseguiente no um medio, y menos aún um coste, sino un deber ser metajurídico que tiene em sí mismo su fundamento” (FERRAJOLI, 1998, p.253).


Explica o filósofo italiano que as doutrinas absolutas ou retribucionistas se fundamentam na máxima de que é justo devolver o mal pelo mal, princípio este, de origens arcaicas, comum em ordenamentos humanos primitivos que se orientavam pela vingança de sangue[5]. Assim, a concepção absoluta de justificação da punição giraria em torno de três idéias elementais, a vingança, a expiação e o reequilíbrio entre pena e delito, argumento que nunca foi abandonado por completo na cultura penalista (FERRRAJOLI, 1998, p.254).


Dessa forma, defende ROXIN (1976, p.12) que é inquestionável que a idéia da compensação retributiva goza de uma força prática relevante, pois resgata um reflexo de harmonia superior em face da frágil existência terrena, daí por que conta, até os dias atuais, com um grande número de adeptos.


A segunda solução moderna proposta à questão da justificação da punição são as chamadas Teorias Relativas, que contemplam todas as doutrinas utilitárias que consideram a punição como um instrumento para a prevenção de futuros delitos, e dividem-se em teorias de prevenção geral (se referem à generalidade dos cidadãos) e teorias de prevenção especial (dizem respeito unicamente à pessoa do delinqüente). Aqui, não se castiga para o restabelecimento de uma ordem de valores, mas sim para evitar a ocorrência de condutas indesejáveis (MIR PUIG, 1994, p.118).


Ensina ROXIN (1976, p.17) que a teoria da prevenção geral parte da idéia de que, mediante um efeito intimidatório causado pela aplicação da pena se pode motivar a generalidade dos cidadãos a comportar-se segundo as leis e os valores vigentes. Assim, para a teoria preventiva geral, a ameaça de imposição de uma pena ou sua execução, serve, por um lado, para inibir os deliquentes em potencial (concepção negativa restrita), e por outro, para fortalecer a consciência jurídica dos cidadãos, sua confiança e sua fé no direito e nas instituições (concepção positiva ampla) (HASSEMER e MUÑOZ CONDE, 2001, p.227).


Por sua vez, as teorias de prevenção especial se dirigem à figura do autor, de forma que a pena seria justificada pela possibilidade de impedir que este venha a praticar novos desvios. Segundo ROXIN (1976, p.15), isto pode ocorrer corrigindo os corrigíveis (ressocialização), intimidando os intimidáveis e fazendo inofensivos mediante a aplicação da pena de privação da liberdade os que não são nem corrigíveis nem intimidáveis.


Assim explica FERRAJOLI (1998, p.262) que as quatro finalidades preventivas utilizadas pelo utilitarismo das teorias relativas são, a emenda ou correção do réu, sua neutralização, a dissuasão de toda a generalidade de pessoas da tentação de imitá-lo mediante o exemplo do castigo ou de sua ameaça, e por fim, o reforço da ordem mediante a afirmação penal dos valores sociais lesionados.


“Combinando los dos critérios (prevenção geral e prevenção especial) tendremos cuatro grupos de doctrinas relativas o utilitaristas, caracterizadas respectivamente por las cuatro finalidades preventivas anteriormente enunciadas: a) las doctrinas de la prevención especial positiva o de la corrección, que atribuyen a la pena la función positiva de corregir al reo; b) las doctrinas de la prevención especial negativa o de la incapacitación, que le asignan la función negativa de eliminar o de um modo u outro neutralizar al reo; c) las doctrinas de la prevención general positiva o de la integración, que le asignan la función positiva de reformar la fidelidad de los asociados al orden constituído; d) las doctrinas de la prevención general negativa o de intimidación, que le asignan la función de disuadir a los ciudadanos mediante el ejemplo o la emenaza de la pena” (FERRAJOLI, 1998, p.263).


Diante da dificuldade de se combinar os argumentos retribucionistas e prevencionistas, na primeira metade do século XX surgem as chamadas teorias mistas ou teorias de união, que se por um lado postulam que a pena deve servir para retribuir a culpabilidade do desviante, por outro entendem que ela não pode se furtar ao efeito preventivo, tanto em relação à generalidade quanto ao condenado.


Ensinam (HASSEMER e MUÑOZ CONDE, 2001, p.228) que as teorias mistas atendem aos diferentes estágios de realização da justiça punitiva. Assim, no momento da cominação penal, quando o legislador tipifica um fato e contrapõe a ele uma determinada pena, se pode pretender um efeito preventivo geral da abstenção de praticar a conduta proibida, resultado análogo ao decorrente das medidas cautelares como a prisão preventiva na fase de instrução processual.


Por outro lado, sustentam os citados doutrinadores que quando da condenação criminal, a magnitude da punição que se impõe deve ser, antes de tudo, uma justa e medida retribuição pelo grau de culpabilidade do autor e gravidade do delito por ele praticado, e na execução penal, aparecem em primeiro plano as idéias ressocializadoras do tipo preventivo especial de maneira que a pena possa servir para reintegrar socialmente o condenado e evitar que ele volte a deliquir no futuro.


“En todo caso, las teorías de la unión muestran que, aunque entre las distintas teorías de la pena existe um abismo y contradicciones a veces insalvables, se pueden, a pesar de todo, construir puentes que permitan um diálogo entre las diversas formas de entender cómo debe la sociedad reaccionar frente a la criminalidad, procurando controlar la misma y reducirla (ya que es imposible e incluso indeseable su total desaparición) a un nível suportable para uma convivência pacífica y justamente organizada” (HASSEMER e MUÑOZ CONDE, 2001, p.230).


Sem embargo, as teorias da pena acabam se enraizando a partir de cada cultura jurídica determinada e em cada contexto econômico e social experimentado, a partir dos quais se verificam os aspectos retributivos ou preventivos.


3. SOBRE A INCONSISTÊNCIA DOS ARGUMENTOS JUSTIFICADORES


Desde a modernidade as teorias de explicação racional da pena têm sido dominadas por duas posições, uma absoluta ou retributivista, outra relativa ou preventiva, contudo, os argumentos de legitimação e fundamentação apresentados por ambas não ultrapassam a pura pretensão teórica, de forma que, não se revelam suficientes no sentido da formulação de um princípio filosófico que justifique em termos universais a razão última da punição (ZOLO, 2002, p.34).


Em desfavor da concepção retribucionista, ROXIN (1976, p.12) apresenta três explicações. A primeira diz respeito ao fracasso da teoria retribucionista quanto à tarefa de impor limites em relação ao conteúdo do poder estatal, uma vez que, em sendo a justa compensação pela culpabilidade humana a base de seus argumentos, não se pode supor que o Estado deva retribuir com uma punição sempre que houver culpa, independentemente de sua amplitude, e assim, uma questão fundamental carece de solução: sob quais pressupostos a culpabilidade humana autoriza o Estado a castigar?


Um segundo argumento contrário à teoria retribucionista apresentado pelo catedrático alemão questiona a liberdade volitiva humana como fundamento da punição, pois, a idéia de compensação pela culpabilidade estaria comprometida diante da impossibilidade de demonstração científica da existência do livre arbítrio. Em outras palavras, a suposição de que o indivíduo criminoso poderia ter agido de outra maneira que não a delituosa não basta para justificar a grave intervenção punitiva.


A terceira objeção levantada por ROXIN (1976, p.14) é “que la idea misma de retribuición compensadora sólo se puede hacer plausible mediante um acto de fe”, pois, não há como compreender no âmbito da razão a eliminação de um mal anterior (delito) mediante a imposição de um mal posterior (punição), posição esta, que se identifica mais com os impulsos históricos de vingança típicos das culturas mítico-tradicionais do que com as expectativas dos Estados desde a modernidade.


No mais, acrescente-se aos argumentos opostos anteriormente que as teorias retribucionistas ocupam-se exclusivamente de uma concepção metafísica da punição, que ao rejeitar conseqüências externas (efeitos preventivos) caminha no sentido contrário à realidade (RAMÍREZ, 1995, p.21) e a favor dos paradigmas transcendentais de justificação, pois, ao enraizar-se na existência de um nexo necessário entre culpa e castigo, ressuscita a idéia da punição como restauração e reafirmação da ordem natural violada ou purificação pelo castigo, concepções, segundo FERRAJOLI (1998, p.254), arcaicas e absurdas.


Por tudo isso, afirma RABENHORST (2002, p.46) que nada na argumentação do modelo retributivo permite assegurar a racionalidade da punição, uma vez que:


“Com efeito, por que punir o criminoso seria mais “racional” do que perdoá-lo? Afinal, considerar a punição como um imperativo (e não como uma faculdade ou possibilidade) é imaginar que um homem não pode expiar seus crimes. Em contrapartida, acreditar que um homem pode efetivamente se redimir, implica em avaliar melhor o lugar do perdão no âmbito dos nossos sistemas penais.”


Assim como as teorias absolutas ou retributivas, as teorias relativas ou preventivas também estão arraigadas em argumentos pouco suficientes.


Ao pretenderem legitimar a punição a partir da idéia de utilidade contemplando assim benefícios para a sociedade e para o infrator, as teorias preventivas partem de uma suposta racionalidade sociológica e econômica do homem (condições para a racionalidade do Estado/prevenção geral), e de uma diferenciação bio-antropológica entre os indivíduos (prevenção especial), que, segundo RAMÍREZ (1995, p.22), constituem falsos fundamentos que não possuem alicerces na realidade.


Isto posto, explica o penalista que, analisando criticamente a teoria da prevenção geral, nem o Estado pode ser definido como um ente absolutamente racional em sua atuação, nem os homens podem ser reduzidos a um único padrão de racionalidade, daí que a utilidade social pretendida pelos defensores de tal teoria, prevenção e dissuasão, torna-se indemonstrável, restando apenas a categorização dos diferentes graus de irracionalidade entre os homens, que conduz ao agravamento das penas para determinadas categorias selecionadas.


“Hay los aparentemente racionales y los irracionales declarados, que a su vez tienen grados de declaración de irracionalidad: es el camino para la doctrina de la seguridad nacional y la consecuente legislación de emergencia actual. La pena respecto del irracional ha de mantener o reforzar la racionalidad aparente y, a su vez, ha de separar al irracional declarado dentro del Estado-racional. (…) Lo útil es la seguridad del Estado. La prevención general se convierte también en un planteamiento ideologizante (…) sólo manifestación del poder del Estado, a través del cotrol formalizado que es el derecho penal.” (RAMÍREZ, 1995, p.22)


Por outro lado, analisando apenas a teoria da prevenção especial, tem-se que a diferenciação entre os homens que os distingue entre perigosos e não perigosos é igualmente indemonstrável, não é substancial, mas sim uma imposição do poder do Estado, que instrumentaliza e manipula o indivíduo para a utilidade social da defesa Estatal.


No mais, não obstante o tratamento correcional que baseia a teoria da prevenção especial constituir-se como uma grave intervenção na vida do indivíduo, ainda que se pretenda a correção do delinqüente, o máximo que se pode assegurar são as condições externas para esse processo (HASSEMER e MUÑOZ CONDE, 2001, p.346), e nesse sentido, ensina ZOLO (2002, p.31) que a práxis tem demonstrado a completa irracionalidade punitiva pela incongruência dos meios com relação aos fins formalmente declarados.


Aduz ainda ROXIN (1976, p.15) que, no que concerne à teoria preventiva especial a falta de idoneidade diz respeito a não delimitação de seus pressupostos e consequências (intervenção Estatal ilimitada), a não explicação da punibilidade dos delitos sem perigo de repetição e a inconsistência da idéia de adaptação forçada, que não contém em si mesma uma legitimação. Já quanto à teoria preventiva geral, sustenta o catedrático que a intimidação não é passível de comprovação, que não é justo e aceitável que se imponha um mal a alguém para que outros se omitam a cometer outro mal, e que através dela não se garante a limitação do poder Estatal, com fortes tendências para o terror institucionalizado.


Em resumo, ao se pretender um Estado social e democrático de direito em que a punição não se converta na total negação da liberdade e dignidade humana, sua legitimação e fundamentação não pode se prender absolutamente nem nas teorias retributivas, nem tampouco nas teorias preventivas.


4. UTILIDADE E JUSTIÇA: FINS CONTRADITÓRIOS DA PENA DE PRISÃO


Não obstante a inconsistência dos argumentos justificadores das teorias da pena, alternando entre a utilidade das teorias preventivas e a justiça das teorias retributivas, se propõe oficialmente como finalidades concomitantes da pena de prisão a punição do delinqüente, a prevenção de novas infrações pela intimidação do condenado e dos criminosos em potencial, além da regeneração do prisioneiro (THOMPSON, 2002, p.3).


Porém, desde o século passado, sobretudo em decorrência dos fenômenos da especificação, universalização e multiplicação dos direitos humanos[6], a meta da regeneração passou a ter ênfase especial, como se verifica, v.g., no bojo das Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros da ONU, aprovadas pelo Conselho Econômico e Social da organização em julho de 1957, e de maneira análoga, na Lei de Execuções Penais do Brasil.


58. O fim e a justificação de uma pena de prisão ou de qualquer medida privativa de liberdade é, em última instância, proteger a sociedade contra o crime. Este fim somente pode ser atingido se o tempo de prisão for aproveitado para assegurar, tanto quanto possível, que depois do seu regresso à sociedade o delinqüente não apenas queira respeitar a lei e se auto-sustentar, mas também que seja capaz de fazê-lo. 59. Para alcançar esse propósito, o sistema penitenciário deve empregar, tratando de aplicá-los conforme as necessidades do tratamento individual dos delinqüentes, todos os meios curativos, educativos, morais, espirituais e de outra natureza, e todas as formas de assistência de que pode dispor. (Regras Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros da ONU).


Art.1 A execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado. (Lei 7.210/1984 – Lei de Execuções Penais Brasileira)”


Explicam GARCIA-PABLOS de MOLINA e GOMES (1997, p.350) que a meta da regeneração ou modelo ressocializador encontra guarida no princípio de co-responsabilidade social diante da questão criminal, de forma que, um Estado “social” não pode se conformar com a aflitividade pura da punição, daí por que se deve buscar, na medida do possível, a neutralização dos efeitos nocivos da prisão, o que só seria possível mediante uma intervenção positiva no condenado, que não haveria de pretender mudanças qualitativas em sua personalidade, mas tão somente incrementar suas expectativas e possibilidades de participação social.


Ocorre que, em oposição às intenções normativas nacionais e internacionais, na praxe carcerária os fins de punição e intimidação permanecem intocados, e no caso de atrito entre estes e o propósito ressocializador, sempre prevalece a lógica da justiça e não a lógica da utilidade. Com efeito, arraigada à idéia de punição e aprisionamento está a idéia de sofrimento, e no mesmo sentido, a intimidação pelo castigo necessita que este seja apto a amedrontar, condições estas, incompatíveis com a finalidade regenerativa (THOMPSON, 2002, p.4-5).


Acrescente-se que, na prática, os meios para a obtenção desses fins conflitantes são a garantia da segurança (impedimento de fugas) e a disciplina (manutenção da ordem interna do estabelecimento prisional), que tendem a ser elevados pela sociedade a um patamar de prevalência em relação aos próprios fins da prisão. Tais meios são perseguidos mediante a implantação de um regime rígido e asfixiante sob os reclusos, que segundo THOMPSON (2002, p.9), se traduz na supressão do auto-discernimento, da responsabilidade pessoal e da iniciativa, atributos fundamentais para o sucesso de uma intervenção ressocializadora.


Essa incongruência entre meios e fins faz com que a meta da regeneração não ultrapasse a mera condição de expressão de desejo, e assim, o ideal de readaptação do condenado à vida em sociedade dá lugar à necessidade de adaptação do condenado às regras carcerárias. Em outras palavras, embora o mundo prisional em muito se distancie do mundo em liberdade, o comportamento adequado segundo os padrões penitenciários habilita o prisioneiro à condição de regenerado e pronto para o retorno à sociedade.


Isto posto, se por um lado a idéia de regeneração pela prisão pareça lógica, justa e humana, vez que é útil tanto para a sociedade quanto para o delinqüente, ainda que se pudesse provar a eficácia concreta do modelo ressocializador, este haveria de ser compatível com determinados princípios de justiça, decorrentes da natureza eminentemente punitiva da prisão, que se coadunam com as necessidades de ordem e equilíbrio de uma sociedade regida por normas e valores e fragilizada diante dos altos índices de criminalidade (HASSEMER e MUÑOZ CONDE, 2001, p.238-344).


Com efeito, a insegurança, o medo e a sensação de abandono social que acometem os indivíduos na atual sociedade do risco e que dão causa à formação de um Estado penal e penitenciário[7], fomentam impulsos coletivos irracionais ainda presentes no núcleo da lógica penitenciária, e fazem com que as prisões atuais não se libertem da idéia de vingança, consubstanciada no tratamento penal hostil, pela qual buscam a estabilidade social e a expiação das frustrações coletivas (ZOLO, 2002, p.36).


 


 Referências

ANITUA, Gabriel Ignacio. Histórias dos pensamentos criminológicos. Tradução Sérgio Lamarão, Revan: instituto carioca de criminologia, Rio de Janeiro, 2008.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos, 2 ed, Freitas Bastos: instituto carioca de criminologia, Rio de Janeiro, 1999.

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón – teoría del garantismo penal. Editorial Trotta, Valladolid, 1998.

GARCÍA-PABLOS de MOLINA e GOMES, Antonio e Luiz Flávio. Criminologia. 2 ed, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 1997.

HASSEMER e MUÑOZ CONDE, Winfried e Francisco. Introducción a la criminología. Tirant lo blanch libros, Valencia, 2001.

MIR PUIG, Santiago. El derecho penal en el Estado social y democrático de derecho. Editorial Ariel, Barcelona, 1994.

PAVARINI, MASSIMO. Control y Dominación – Teorías criminológicas burguesas e proyecto hegemônico. Tradução Ignacio Muñagorri, 1 ed, Siglo XXI Editores Argentina, Buenos Aires, 2002.

RABENHORST, Eduardo R. A ‘ultima ratio’ do direito de punir – a propósito de um texto de Danilo Zolo. Verba Juris: Anuário da Pós-Graduação em Direito, ano 1, número 1, jan./dez. 2002, João Pessoa, editora Universitária (UFPB), 2002, p. 39 – 49.

RAMÍREZ, Juan Bustos. Introducción. IN: RAMÍREZ, Juan Bustos. Prevencion y teoria de la pena. Editorial Jurídica ConoSur Ltda, Santiago de Chile, 1995.

ROSAL e ANTÓN, M. Cobo Del e T.S. Vives. Derecho Penal parte general. Tirant lo blanch libros, Valencia, 1999.

ROXIN, Claus. Problemas básicos del derecho penal. Trad. Diego Manuel Luzón Peña, REUS S.A, Madrid, 1976.

THOMPSON, Augusto. A Questão Penitenciária. Editora Forense, Rio de Janeiro, 2002.

TOSI, Giuseppe. História conceitual dos direitos humanos. IN: TOSI, Giuseppe, Direitos Humanos: história, teoria e prática. João Pessoa, Editora Universitária (UFPB), 2005, p.99 – 125.

ZOLO, Danilo. Filosofia das penas e instituições penitenciárias. Verba Juris: Anuário da Pós-Graduação em Direito, ano 1, número 1, jan./dez. 2002, João Pessoa, editora Universitária (UFPB), 2002, p.22 – 38.

 

Notas:
**
Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Romulo Rhemo Palitot Braga, Doutor em Direito Penal – Universitat de Valéncia; Professor Adjunto de Direito Penal da UFPB; Coordenador Regional Adjunto do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais; Advogado Criminalista.

[1] Segundo ANITUA (2008, p.17) a história registra uma multiplicidade de pensamentos criminológicos, que vêm se alternando de maneira cíclica, de forma que, aqueles que surgem em momentos anteriores não desaparecem por completo, mas transformam-se ou reaparecem com nova atuação, manifesta ou latente.

[2]  A justificação da punição enquanto confirmação da ordem cósmica não é exclusividade das sociedades antigas, estando presente, de maneira análoga, nos argumentos da teologia católica medieval, como se verifica nas práticas de repressão à heresia encabeçadas pela Santa Inquisição, que sacralizaram a tortura em busca da confissão de culpa e purificação do infrator/pecador.

[3] A idéia de retribuição apresenta incontáveis variantes, contudo, as de maior influência na história do pensamento criminológico são atribuídas à Kant e Hegel. Kant, em sua metafísica dos costumes, defendeu que a pena não poderia jamais ser considerada como um meio para a realização de outro bem, mas um fim em si mesma, daí por que deveria se executar ainda que não proporcionasse benefício algum, ou do contrário, a dignidade do homem seria comprometida. Por sua vez, Hegel, em sua filosofia do direito, sustentou a pena como uma superação do delito, ou seja, a punição seria legítima na medida em que representa a negação da negação do direito. 

[4] Existe uma variante subjetiva da teoria da retribuição, inspirado no paradigma da ordem cósmica, que considera que a pena deva ser também um instrumento de expiação para o autor do delito, assim, uma espécie de penitência que deve cumprir o condenado para purgar seu ato injusto. 

[5]  Forma originária de castigo que consistia no direito que recaía sobre a parte ofendida e seu grupo de parentesco de opor-se contra o ofensor via métodos físicos e privados de solução de conflitos.

[6] Ensina TOSI (2005, p.22) que a partir da declaração universal de 1948, os direitos humanos se desenvolveram a partir de três tendências, a universalização, processo de construção de uma comunidade internacional em que os direitos dos indivíduos são reconhecidos em todos os países do mundo; multiplicação, pela qual surgiram novos bens a serem protegidos, como o meio ambiente, o direito à identidade cultural e o direito à imagem; especificação, pelo qual a pessoa humana considerada de maneira abstrata e genérica foi dando lugar a novos sujeitos titulares dos direitos, considerados em suas diferenças e especificidades, como a mulher, o idoso, o preso.

[7] Explica WACQUANT (2001, p.7) que o recrudescimento atual dos casos de violência urbana tem levado à baixa credibilidade das instituições de segurança pública junto à sociedade, legitimando assim o paradoxo da penalidade neoliberal, no qual o Estado econômico e social dá lugar ao Estado penal e penitenciário, marcado por uma postura histérica e mais repressiva diante do crime e gerando certo grau de fragilização dos direitos.


Informações Sobre o Autor

Mazukyevicz Ramon Santos do Nascimento Silva

Agente de Segurança Penitenciária na Paraíba; Especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos – UFPB/MJ; Mestrando em Direitos Humanos – UFPB; Membro do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da UFPB; Professor da Escola de Gestão Penitenciária da Paraíba – EGEPENPB


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