Política criminal e justiça restaurativa

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Resumo: A proposta deste trabalho foi a de procurar uma aproximação entre a política criminal e a justiça restaurativa, utilizando as vertentes criminológicas do abolicionismo e minimalismo como suporte. Desta maneira, por meio de uma revisão bibliográfica sobre os principais pontos, tem como norte o esclarecimento da proposta de política criminal, pensada como gestão política dos conflitos humanos; e a justiça restaurativa, como uma realidade que se mostra presente no cenário brasileiro, percebida a partir de seus distintos objetos e capacidades. Por fim, o estudo desdobra na verificação entre as orientações criminológicas abolicionistas e minimalistas e sua respectiva relação com a justiça restaurativa, constatando numa aproximação pelo discurso alternativo e preocupação quanto à adoção de uma orientação reformista.

Palavras-Chave: Política Criminal, Justiça Restaurativa, Minimalismo, Abolicionismo.

Abstract: This work proposes to seek a rapprochement between criminal policy and restorative justice, using the criminological aspects of abolitionism and minimalism as support. In this way, through a literature review on the main points, there is north clarification of criminal policy proposal, conceived as a political management of human conflicts; and restorative justice as a reality in the Brazilian scenario, perceived from its objects and capabilities distinct. Finally, the study unfolds in check between the abolitionists and minimalist criminological orientations and their respective relation to restorative justice, finding an approach for alternative discourse and concern about the adoption of a reformist orientation.

Keywords: Criminal Policy, Restorative Justice, Criminal Minimalism, Penal Abolition.

Sumário: Introdução. 1. Aspectos histórico-conceituais da Política Criminal 2. Política Criminal e Justiça Restaurativa 3. Entre Abolicionismos e Minimalismos 3.1 Abolicionismos 3.2 Minimalismos.  4. Conclusão 5. Referências

INTRODUÇÃO

A intenção deste trabalho é a de iniciar um debate acerca da possibilidade de utilização da justiça restaurativa enquanto adequada política criminal, que se apresente com uma racionalidade distinta da lógica aflitiva e que seja importante para a gestão política dos conflitos do homem.

O estudo tem a pretensão de se apresentar como um ensaio, na tentativa de buscar um diálogo entre os fins político-criminais e a adoção de uma lógica tradicionalmente diferente da punitiva.

A análise das orientações criminológicas demonstra uma aproximação e influência no discurso restaurativo, focando-se nas vertentes mais alternativas.

1. Aspectos histórico-conceituais da Política Criminal

A política criminal, segundo explica Claus Roxin (2000, p.1-3), apresentou-se, inicialmente, como parte da chamada “ciência global do direito penal”, conforme formulação de Franz Von Listz” (gesamte Strafrechtswissenschaft). Entendia referido autor que o direito penal poderia ser visualizado, por um lado, como uma ciência social e por outro, como uma ciência jurídica, razão pela qual tratar a relação do direito penal com a política criminal era algo contraditório. Acerca do pensamento de Listz, Roxin informa que:

“À política criminal assinalava ele os métodos racionais, em sentido social global, do combate à criminalidade, o que na sua terminologia era designado como a tarefa social do direito penal, enquanto ao direito penal, no sentido jurídico do termo, competiria a função liberal-garantística de assegurar a uniformidade da aplicação do direito e a liberdade individual em face da voracidade do Estado Leviatã”. (ROXIN, 200, p. 2-3)

Trata-se de um esforço para conceber a ciência criminal a partir de um sistema fechado, em que o direito penal, ao constituir uma “barreira inultrapassável da Política Criminal” (LISTZ apud ROXIN, 2000, p.1), traz como resultado uma dogmática que se reduz a fórmulas abstratas, consoante se percebe de uma leitura do direito como um fim em si mesmo, o qual ignora questões relativas à realidade social.

Atualmente o que se percebe é uma visão mais voltada à integração entre direito penal, criminologia e política criminal, conforme orientação de Sérgio Salomão Shecaira, que apresenta a política criminal como uma disciplina, cuja função é a de eleger estratégias estatais para lidar com a criminalidade e controle social. Neste sentido:

“A política criminal é uma disciplina que oferece aos poderes públicos as opções cientificas concretas mais adequadas para controle do crime, de tal forma a servir de ponte eficaz entre o direito penal e a criminologia, facilitando a recepção das investigações empíricas e sua eventual transformação em preceitos normativos. Assim, a criminologia fornece o substrato empírico do sistema, seu fundamento cientifico. A política criminal, por seu turno, incumbe-se de transformar a experiência criminológica em opções e estratégias concretas assumíveis pelo legislador e pelos poderes públicos. O direito penal deve se encarregar de converter em proposições jurídicas, gerais e obrigatórias o saber criminológico esgrimido pela política criminal”. (SHECAIRA, 2006, p.46)

Paulo Queiroz (2006, p.20) ressalva ainda que “a política criminal, como parte da política, constitui a sistematização das estratégias, táticas e meios de controle social da criminalidade, penais e não penais; diz respeito enfim a gestão política dos conflitos humanos por parte do Estado (…)”, o que amplia a atividade em todos os níveis: legislativo, executivo e judiciário.

Como atividade política, o autor entende que esta gestão não abrange apenas a atividade legislativa e a do administrador, mas também tem reflexo na atividade dos operadores do direito penal, interferindo no trabalho de magistrados, promotores, policiais e demais agentes. Tal característica revela o papel fundamental de influência que a política criminal exerce na condução de cada atividade e opção na forma como lida com o crime, a exemplo das decisões judiciais.

Para Roxin, a solução para lidar com a tensão entre as ciências criminais, em especial política criminal e dogmática, é realizar um caminho onde o direito penal seja guiado por princípios político-criminais, de modo que estas ciências estritas atuem de forma relacional, como uma unidade dialética e não contraditória. Importante trazer o pensamento do autor, ao declarar que:

“De todo o exposto, fica claro que o caminho correto só pode ser deixar as decisões valorativas político-criminais introduzirem no sistema do direito penal, de tal forma que a fundamentação legal, a clareza e previsibilidade, as interações harmônicas e as conseqüências detalhadas deste sistema não fiquem a dever nada à versão formal-positivista de proveniência listziana. Submissão ao direito e adequação a fins político-criminais (kriminalpolitische ZweckmäBikeit) não podem contradizer-se, mas devem ser unidas numa síntese, da mesma forma que Estado de Direito e Estado Social não são opostos inconciliáveis, mas compõe-se uma unidade dialética (…)”. (ROXIN, 2002, p.20)

Neste sentido, é a orientação de Selma Santana para a necessidade em se promover uma relação de unidade funcional entre a política criminal e a dogmática jurídico-penal, ao dissertar: “Esta última, conservando a sua posição de plena autonomia, deve ser transcendente em relação às demais Ciências Criminais, tornando-se transistemática, de modo que ente ela e a dogmática jurídico-penal se estabeleça uma autêntica relação de unidade funcional.” (SANTANA, 2010, p.145)

2. Política Criminal e Justiça Restaurativa

Do que fora tratado, percebe-se que, no tocante a questões processuais, a política criminal deve ser levada em conta enquanto ciência transcendental ao sistema penal. Assim, acredita-se ser possível uma política criminal em que se utilize da justiça restaurativa enquanto movimento que permite se pensar de forma inovadora algumas questões relativas ao crime.

A Justiça Restaurativa surge para o Direito sob uma perspectiva mais “humanista” no enfrentamento ao crime, revelando-se um sistema mais flexível, voltado para a reparação e que objetiva a pacificação social, bem como preocupa-se com a responsabilização daquele que cometeu ações que causaram danos. Reconhecendo a diversidade teórica e prática da justiça restaurativa, apresenta-se aqui a definição do termo feita por Claudia Santos, para quem

“A justiça restaurativa deve ser vista como um modo de responder ao crime (e, nessa medida, como uma pluralidade de práticas associadas a uma pluralidade de teorias agrupadas em função de uma certa unidade) que se funda no reconhecimento de uma dimensão (inter) subjectiva do conflito e que assume como função a pacificação do mesmo através de uma reparação dos danos causados à (s) vítima (s) relacionada com uma auto-responsabilização do (s) agente (s), finalidades estas que só logram ser atingidas através de um procedimento de encontro, radicado na autonomia da vontade dos intervenientes no conflito, quer quanto à participação, quer quanto à modulação da solução.” (SANTOS, 2008, p.304-305)

Diante da diversidade de definições[1], práticas[2] e objetivos[3], torna-se difícil a tarefa de apresentar uma teoria unificada da justiça restaurativa. Mylène Jaccoud (2005, p.163) elege que esta multiplicidade de orientações, elementos e finalidades tão diversificados colocam a justiça restaurativa como um modelo eclodido. Em sentindo semelhante, Pallamolla (2009, p.54-55), ao tratar da dificuldade em definir um conceito rígido sobre o tema, opta por caracterizá-la através como um conceito aberto e fluido, que tende a se renovar através de suas experiências.

A mediação penal pode ser compreendida um encontro entre vítima e ofensor mediado por um terceiro imparcial, geralmente conhecido como mediador, tendo como objetivos principais, segundo Van Ness e Strong (2010, p.67), os de identificar a injustiça causada pelo crime, consertar os erros e considerar as intenções futuras entre as partes, representando este o aspecto prospectivo da justiça restaurativa.

Consoante Van Ness e Strong (2010), a conferência familiar trata de um modelo que visa o encontro não apenas entre o ofensor e a vítima, juntamente com familiares e outros membros da comunidade afetada, no qual o qual é guiado por um facilitador, assumindo a figura de terceiro imparcial, em que ofensor e vítima contam as suas experiências e como aquilo afetou sua vida, de modo que a o final um plano é elaborado por todos.

Os círculos restaurativos são modelos mais amplos de participação e inclusão e configuram um gênero que engloba círculos de sentença, em que se objetiva dar uma sentença para um processo criminal, Howard Zehr (2012, p. 62) apresenta também os círculos de apoio, que costumam ser usados para preparação dos anteriores, círculos para lidar com conflitos, utilizados em ambientes de trabalho, e círculos como forma de diálogo comunitário.

Não obstante, é possível reconhecer que a justiça restaurativa pode ser pensada como uma nova racionalidade, não necessariamente voltada para as questões criminais, mas que possui força e desperta interesse de diversos grupos, tendo em vista que costuma ser incentivada pela contestação de elementos centrais da justiça penal, em especial a forma de punição estritamente voltada à pena privativa de liberdade, bem como na preocupação com o espaço da vítima enquanto sujeito do processo, além de permitir que este possa ser construído de forma colaborativa e autônoma entre os interessados, atingindo suas necessidades.

3. Entre Abolicionismos e Minimalismos

As alternativas de enfrentamento ao sistema criminal costumam ser identificadas sob aspectos de diversas correntes de pensamentos, as quais, para fim de serem utilizadas como orientação para uma política criminal voltada para a restauração, limitar-se-ão àquelas que fazem parte da chamada criminologia crítica, notadamente o abolicionismo penal e o minimalismo penal.

Conforme lições da criminóloga Vera Regina Andrade, o abolicionismo penal e o minimalismo penal surgem a partir de um contexto de deslegitimação dos sistemas penais, o qual é composto por uma série de desconstruções teóricas e práticas, “em cujo centro se encontra a consolidação do paradigma da reação ou controle social na forma de uma revolução de paradigmas em Criminologia dos sistemas penais.” (ANDRADE, 2006, p. 169).

Acerca do objetivo principal, a autora aponta a diferença principal entre as duas correntes, identificando que o abolicionismo se vincula a um discurso de extinção do sistema penal[4], acompanhado por sua substituição através de formas alternativas de resolução de conflitos, enquanto o minimalismo defende a máxima contração deste sistema, seja utilizando-se como um meio visando o abolicionismo, ou como um fim em si mesmo.

3.1 Abolicionismo  

Isto posto, Andrade (2006, p. 165) prossegue identificando a impossibilidade em se referir a estes termos no singular. Isto porquê, tanto o abolicionismo, como o minimalismo apresentam vertentes variadas, seja sob um aspecto teórico, quanto prático, razão pela qual seu estudo merece ser feito sob uma perspectiva plural.

Sendo assim, é possível identificar como vertentes do abolicionismo penal a “(…) marxista representada por Thomas Mathiesen, (…) a tendência estrutural-histórica de Michel Focault; a concepção fenomenológico-historicista de Nils Christie e a perspectiva fenomenológica de Louk Hulsman.” (SANTOS, 2014, p.67).

Assim, Claudia Santos identifica (2014, p.67-70) uma relação próxima entre as críticas abolicionistas e os objetivos que se aproximam da justiça restaurativa, como o pensamento de Hulsman acerca do conflito criminal e a falta de sentido do processo penal pelos próprios intervenientes e da própria pena de prisão. Por outro lado, a partir de uma perspectiva de justiça comunitária, Nils Christie argumenta que o roubo do conflito pelo sistema penal é um grande prejuízo, devendo o mesmo ser abolido e dar liberdade para as partes decidirem seus processos.  

Ademais, Camila Prando e Rodrigo dos Santos, apresentam três alternativas ao direito penal sob perspectiva abolicionista, as quais são elencadas por Larrauri em:

“(…) a primeira trata-se do informalismo, através do qual a resposta legal é produzida para cada caso a partir de uma negociação das partes envolvidas no conflito – deslocando-se as regulações legais até uma semi-autonomia das esferas sociais -, evitando-se assim a imposição de valores sociais: a segunda, parte de uma noção de lei que seja usada unicamente como marco de referência da forma pela qual deve resolver-se o conflito, sem a formulação prévia, entretanto, do conteúdo destas soluções; a terceira, trata-se da substituição da lei penal pela lei civil, dando-se, assim, uma ênfase na negociação, no rol de vítima e nas medidas de compensação e reparação”. (PRANDO; SANTOS, 2006, p. 207-208) 

Tratam-se de alternativas que coincidem em grande grau com as apresentadas pela justiça restaurativa. Como visto, esta justiça, por ser baseada na informalidade, mostra-se flexível para resolver os conflitos de forma alternativa,  com regras e princípios próprios, além de possuir autonomia processual, o que pode ser pensada em âmbito formal ou não. A diferença essencial está no próprio objetivo geral desta corrente, qual seja, de abolir todo o sistema, pois, ainda que contrastando suas estruturas, a justiça restaurativa reconhece sua limitação de lidar com todas as situações criminalmente existentes[5].

Isto não representa que a justiça restaurativa defenda a manutenção de um sistema punitivo, mas enquanto existente um sistema criminal, pode ser pensado para a responsabilização restaurativa do indivíduo, de modo que a estrutura telescópica (PIRES, 2004) ganhe outro sentido e a forma de encarar a resposta penal não seja concentrada na resposta automática à pena.

3.2 Minimalismos

Por outro lado, ANDRADE (2006, p.174) explica que o minimalismo penal também apresenta suas variadas versões, as quais, sob uma perspectiva teórica, constituem-se em minimalismos como meios para o abolicionismo, minimalismos como fins em si mesmos e minimalismos reformistas. Segundo a autora, os mais conhecidos são o modelo de base interacionista-materialista de Alessandro Baratta, o modelo de base interacionista, foucaudiana e latino-americana de Zaffaroni e o modelo de base liberal iluminista, em que os dois primeiros são voltados a um minimalismo como meio e o último utiliza-se a perspectiva do minimalismo como fim.

Os modelos de minimalismo como um meio, segundo ensinamentos da autora supracitada, são aqueles que, “partindo da deslegitimação do sistema penal, concebido como uma crise estrutural irreversível, assumem a razão abolicionista porque não vêem possibilidade de relegitimação do sistema penal, no presente e no futuro.” (ANDRADE, 2006, p. 175). Tal consideração se percebe do modelo defendido pelo criminólogo e filósofo Alessandro Baratta, cuja política criminal é guiada por quatro indicações estratégicas.

Inicialmente, o autor prevê que uma política criminal alternativa deve excluir o direito penal instrumento como instrumento, trabalhando com uma perspectiva criminal transformativa e não apenas numa perspectiva “vagamente reformista e humanitária” que não se contraponha às estruturas punitivas fortemente incrustadas no sistema, mas se volte para “grandes reformas sociais e institucionais que para o desenvolvimento da igualdade, da democracia, de formas de vida comunitária e civil alternativas e mais humanistas (…)” (BARATTA 2002, p. 201).

Com isto, Baratta (2002) prevê a necessidade em ser distinguido o termo “política penal” daquele referente a “política criminal”, em que no primeiro caso, deve ser entendido como uma resposta baseadas nas estruturas que alimentam o poder punitivo estatal, enquanto no segundo deve ser vista como uma política voltada a transformação social e institucional. Por esta divisão, percebe-se que a justiça restaurativa se apresenta como uma racionalidade mais responsiva que reconhece a importância em se modificar a resposta de lidar com um conflito, inclusive criminal, que promova transformações não apenas no sistema, mas para a própria sociedade, dando respostas mais satisfatórias, contribuindo para a paz social.

A segunda estratégica se refere à despenalização (BARATTA, 2002, p.202-203) e verifica que uma política alternativa deve priorizar uma reforma profunda em questões ligadas ao processo, judiciário, política, etc., objetivando democratização destes setores, tendo em vista que a criminalização do direito penal é realizada desigualmente, o que gera a necessidade de encorajar ao máximo a contração deste sistema punitivo.

Por esta razão, Baratta defende tanto a substituição das sanções penais por formas de controle não estigmatizantes, por exemplo, como sanções civis, como incentiva o “encaminhamento de processos alternativos de socialização do controle do desvio e da privatização dos conflitos, nas hipóteses em que isso seja possível e oportuno” (2002, p.202-203). Neste sentido, é possível perceber que há casos em a resolução do conflito é mais indicada a ser feita de forma alternativa ao processo penal, ou seja, há situações em que a atenção dada à dimensão local (privada) precisa ser melhor trabalhada do que a dimensão social (pública).

Deste modo, entende-se que a política alternativa de despenalização, em especial quando trata das derivações dos processos para outros meios que não o tradicional pode ser conseguida a partir de uma política criminal restaurativa. Para tanto, sua importância deve ser vislumbrada não apenas para lidar com uma dimensão local do crime, como também social, priorizando, quando não for possível o acordo entre as partes, respostas estatais que não sejam automatizadas à pena privativa de liberdade.

Como terceira estratégia, Baratta (2002, p.23) objetiva a abolição do cárcere, tendo como medidas comuns a ampliação de medidas alternativas, formas de suspensão do processo, etc. Nota-se que a justiça restaurativa fornece outros meios de responsabilização que não a pena privativa de liberdade, sendo destacada a reparação – não apenas financeira, mas também simbólica, o perdão, acordo para prestação de serviços comunitários, etc. Há programas restaurativos que podem ser usados em fases que evitam a promoção processual, ou mesmo na própria execução penal.

Por fim, orienta o autor para a observância da “função da opinião pública e dos processos ideológicos e psicológicos que nesta se desenvolvem, em sustentação e legitimação do vigente direito penal desigual” (BARATTA, 2002, p.204). Trata-se da superação da cultura punitiva que é naturalizada pelo direito penal, a qual incentiva discursos punitivos, os quais, por sua vez, contaminam os demais processos formais e informais de controle social. É fundamental a alteração desta racionalidade, podendo ser uma política criminal alternativa e restaurativa pela responsabilização e não punição, como forma mais adequada de lidar com o delito.

Por outro lado, o modelo de Ferrajoli é aquele baseado no garantismo penal, partindo da deslegitimação do sistema pena, para uma relegitimação do próprio sistema, e por isso Vera Regina (2006, p. 176) constitui como um minimalismo como um fim em si mesmo. De um modo geral, a justiça restaurativa e o garantismo penal apresentam princípios e orientações que podem ser contraditórios, mas devem ser considerados a partir de lógicas diferentes, tendo em vista que defendem princípios e valores distintos.

Já o minimalismo reformista, segundo indica Andrade (2006, p. 168) como o próprio nome indica, não busca a contração, nem a relegitimação do sistema, mas atuar a partir da reforma penal e penitenciária, sob o princípio da intervenção mínima do direito penal. A justiça restaurativa, tendo esta influência, enfraquece suas próprias bases e corre o risco de ser utilizada como instrumento legitimador do sistema penal enquanto sistema punitivo, e por isto, este movimento, considera-se que deve ser afastado da política proposta a apresentar uma nova forma de lidar com o crime, com a responsabilização do ofensor, e satisfação das necessidades da vítima, inclinada para a paz social.

Frente ao exposto, os fundamentos abolicionistas e minimalistas, notadamente o trabalhado com bases do programa proposto por Baratta, são mais próximos e indicados em caso de orientações político criminais.

Conclui-se que esta perspectiva alternativa é a mais viável para adotar a justiça restaurativa enquanto política criminal, diante das estratégias analisadas e mais adequadamente compreendida no ideal restaurativo, sendo verificada a possibilidade de diálogo entre as correntes e porque se mostra mais propícia para pensar numa política que possa vir a ser utilizada para além do penal, com possibilidade de interlocução e fluxo com outras políticas públicas, transformando-se, simplesmente, em uma alternativa.

CONCLUSÃO

A crise de legitimidade do direito penal cada vez mais se expande e as respostas para lidar com este problema continuam sendo guiadas por uma lógica punitiva, ainda que aparentemente prevejam tímidas reformas. A constatação que se chega é pela necessidade de se pensar de forma inovadora o direito penal, afastando os obstáculos epistemológicos construídos e mantidos desde a Modernidade, o qual impede de considerar uma nova racionalidade para o mesmo.

A justiça restaurativa se mostra como um exemplo de nova racionalidade de responsabilização, a qual prioriza em dar tratamento às situações conflituosas. Com isto, tem como metas o reconhecimento dos danos causados e suas derivadas necessidades, a obrigação de repará-las e o engajamento de todos os envolvidos nas consequências do crime.

A política criminal apresenta importantes mecanismos de gestão de conflitos que atingem todas as esferas do Estado. Uma racionalidade restaurativa pode vir a fazer parte da atividade legislativa, administrativa e judicial, haja vista que os encaminhamentos dos casos propícios à justiça restaurativa são feitos por agentes ligados às instituições penais. Deste modo, torna-se importante que os profissionais jurídicos estejam dispostos a incentivar a cultura restaurativa, de modo que a previsão legislativa de um processo alternativo restaurativo não surte tanto efeito se a cultura adversarial e punitiva continuar presente no pensamento dos que lidam com a administração do conflito penal e que, por isso, são os principais responsáveis por promover e incentivar esta mudança de comportamento das partes de um conflito. Para tanto, uma mudança de racionalidade é necessária e deve ser feita não apenas nas instituições penais, bem como na Academia, e principalmente pela própria sociedade.

 

Referências
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Minimalismo e abolicionismo: a crise do sistema penal entre a deslegitimação e a expansão. Disponível em: < https://periodicos.ufsc.br/index.php/sequencia/article/viewFile/15205/13830> Acesso em 09 de julho de 2015.
BARATTA, ALESSANDRO. Criminologia Crítica e crítica ao direito penal. 1ª edição – Rio de Janeiro: Revan, 2002.
FROESTAD, Jan.; SHEARING, Clifford. Prática da Justiça – O Modelo Zwelethemba de Resolução de Conflitos. In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato Campos Pinto; GOMES PINTO, Renato Sócrates (org.). Justiça restaurativa. Brasilia/DF: Ministério da Justiça e PNDU, 2005, p. 79-124.
JACCOUD, Mylène. Princípios, Têndências e Procedimentos que cercam a Justiça Restaurativa. In: SLAKMON, Catherine; DE VITTO, Renato Campos Pinto; GOMES PINTO, Renato Sócrates (org.). Justiça restaurativa. Brasilia/DF: Ministério da Justiça e PNDU, 2005, p. 163-188.
PALLAMOLLA, Rafaella da Porciuncula. Justiça Restaurativa: da teoria à prática – 1ª Ed. – São Paulo: IBCCRIM, 2009
PIRES, Álvaro. A Racionalidade Penal Moderna, o Público e os direitos Humanos. Revista Novos Estudos. CEBRAP, n. 68, março de 2004 (p.39-60)
PRANDO, Camila Cardoso de Mello. SANTOS, Rogério Dultra dos. Por que estudar criminologia hoje? Apontamentos sobre um discurso contra-hegemônico à dogmática penal tradicional. in O ensino jurídico em debate: o papel das disciplinas na formação jurídica. org. Daniel Torres de Cerqueira e Roberto Fragale Filho. Campinas, SP: Millennium, 2006.
ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2000 
SANTANA, Selma. Justiça restaurativa: a reparação como conseqüência jurídico-penal autônoma do delito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010SANTOS, Cláudia Cruz. A justiça restaurativa: um modelo de reacção ao crime da justiça penal: porquê, para quê e como? 1ª Edição, Lisboa, Coimbra Editora, 2014 (p.304-305)
SHECAIRA, Sergio Salomão. Criminologia. 2.ed São Paulo, SP : Revista dos Tribunais, 2008.
VAN NESS, Daniel; STRONG, Karen. Restoring justice: an introduction to restorative justice. LexisNexis Group, Cincinnati, 2010.
 
Notas:
[1] Pallamolla (2009, p.56-60) apresenta três concepções de justiça restaurativa elaboradas por Johnstone e Van Ness que apresentam diferentes propósitos, mas que nem sempre são antagônicos, podendo serem acumulados. A primeira concepção é a do encontro e tem como objetivo a ideia de oportunizar às partes envolvidas no conflito um local para, juntos, encontrarem formas de resolvê-lo. Valoriza o protagonismo das partes a partir de um processo dialogado. A segunda concepção é a da reparação e tem como propósito, como o próprio nome diz, a reparação do dano causado pela ofensa, propiciando a reintegração do ofensor e restauração da comunidade envolvida, sem a necessidade de utilizar de meios que causem dor na responsabilização. Por fim, a terceira concepção é da transformação e ultrapassa a simples busca pela resolução do conflito, mas prevê que o objetivo principal seja o de “transformar a maneira pela qual as pessoas compreendem a si próprias e como se relacionam com os outros no dia a dia” (PALLAMOLLA, 2009, p.60).

[2] Há pelo menos três técnicas que se destacam nos processos restaurativos: mediação penal, círculos restaurativos e conferências familiares. 

[3] Froestad e Sharing elencam uma série de finalidades e elementos da justiça restaurativa que os teóricos costumam defender: “De acordo com Bazemore e Walgrave (1999: 371-74) os objetivos restaurativos primários são oferecer um modo mais aberto e satisfatório para reparar danos e solucionar conflitos e reduzir os papéis profissionais na justiça criminal, buscando menos intervenções do sistema e mais intervenções da comunidade. Para Dignan (2005: 8) o foco restaurativo é definido pela ênfase na responsabilidade pessoal do infrator, pela característica de inclusão do processo, e pela promoção de formas não-coercitivas de tomadas de decisão. Wright (2001: 360-61) argumenta que as qualidades do processo são uma parte essencial da resposta, apontando suas qualidades construtivas e terapêuticas (potenciais) e a ênfase em reparar o dano. Crawford e Newburn (2003: 22-23) vêem três elementos como centrais: a inclusão dos interessados, os processos deliberativos e os resultados restaurativos, somando o valor da construção de consenso e da resolução de problemas com base no conhecimento e na capacidade locais, abraçando uma gama criativa de soluções potenciais. De acordo com Van Ness e Strong (1997: 42), os quatro elementos centrais da justiça restaurativa são os valores dos encontros (diretos), a reparação, a reintegração, e a participação. Moore e McDonald (2000: 55) sublinham as regras da democracia participativa, regras justas, disputa justa, e resultados justos; participação, deliberação, equidade, e a não-tirania.” (FROESTAD e SHEARING, p. 81) (grifo nosso)

[4] A autora entende que sistema penal representa a “totalidade das instituições que operacionalizam o controle penal (Parlamento, Polícia, Ministério Público, Justiça, Prisão) a totalidade das Leis, teorias e categorias cognitivas (direitos + ciências e políticas criminais) que programam e legitimam, ideologicamente, a sua atuação e seus vínculos com a mecânica de controle social global (mídia, escola, universidade), na construção e reprodução da cultura e do senso comum punitivo que se enraíza , muito fortalecidamente, dentro de cada um de nós, na forma de microssistemas penais.” (ANDRADE, 2006, p.169-170)

[5] Conferir Zehr: “A Justiça Restaurativa não é, de modo algum, resposta para todas as situações. Nem está claro que deva substituir o processo penal, mesmo num mundo ideal. Muitos entendem que, mesmo que a Justiça Restaurativa pudesse ganhar ampla implementação, algum tipo de sistema jurídico ocidental (idealmente orientado por princípios restaurativos) ainda seria necessário como salvaguarda e defesa dos direitos humanos fundamentais.” (ZEHR, 2012, p.22)


Informações Sobre o Autor

Maiara Batista Dourado

Mestranda em Direito Público pelo programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia


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