Responsabilidade penal da pessoa jurídica e prisão preventiva

A instituição da responsabilidade penal das pessoas jurídicas, especialmente com seu advento na reforma do Código Penal Francês e, em sua esteira em terras brasileiras, na edição da Lei 9605/98 (art. 3o.), vem sendo objeto de inúmeras polêmicas. Vários questionamentos têm sido suscitados na doutrina, dentre os quais a falta de uma regulamentação legal quanto aos procedimentos aplicáveis aos crimes imputados às pessoas jurídicas. Isso porque o nosso legislador, diferentemente do Francês,[1] “nada mais fez do que enunciar a responsabilidade penal da pessoa jurídica, cominando-lhe penas, sem lograr, contudo, institui-la completamente. Isso significa não ser ela passível de aplicação concreta e imediata, pois lhe faltam instrumentos hábeis e indispensáveis para a consecução de tal desiderato.”[2]


Não obstante, respeitável corrente doutrinária aponta para a possibilidade de superação da lacuna legal no âmbito processual, através de um procedimento de “integração” do sistema jurídico, utilizando-se, com as devidas adequações, as normas processuais penais e civis vigentes.[3]


Realmente são possíveis boas soluções por esse método, a darem respostas a inquietantes questões como, por exemplo, a forma de citação, intimações, interrogatório, direito ao silêncio, aplicação da Lei 9099/95, competência etc.[4]


Ocorre que em face do caráter inusitado do tema, surgirão inevitavelmente problemas cuja solução nem sempre possibilitará respostas tão simples.


A indagação em que basicamente consiste este breve trabalho é daquelas que, a nosso ver, não comportariam uma solução adequada nem mesmo no bojo de uma legislação especificamente voltada ao deslinde da problemática processual penal atinente  às peculiaridades da pessoa jurídica.


Embora o artigo 3o., Parágrafo Único, da Lei Ambiental acolha o “sistema da dupla imputação”[5], ao registrar que “a responsabilidade das pessoas jurídicas não exclui a das pessoas físicas, autoras, co – autoras ou partícipes do mesmo fato”,  não é impossível que apenas a pessoa jurídica esteja sendo processada ou que algum ou alguns de seus integrantes não estejam no polo passivo da relação jurídica penal.[6] Isso pode acontecer por diversos fatores, inclusive mais comumente pelo fato de tornar-se difícil a determinação da responsabilidade individual em certos casos concretos.


Com fulcro nisso, imagine-se uma situação em que um representante legal de pessoa moral processada, o qual, por seu turno, não se encontra na qualidade de réu ou indiciado, mas apenas como representante para fins processuais, venha a tumultuar a apuração dos fatos, mediante, por exemplo, intimidação de testemunhas, ocultação de provas, destruição de corpo de delito etc.


Certamente os interesses na aplicação da lei penal e da conveniência da instrução criminal (art. 312, CPP), estariam a justificar, numa situação ordinária, o decreto da Prisão Preventiva, acaso cabível de acordo com a natureza da infração (art. 313, CPP) e os demais requisitos da prisão cautelar (prova  da existência do crime e indícios suficientes de autoria – art. 312, “in fine”, CPP).[7]


Mas, será que neste caso seria admissível a prisão cautelar do representante, que, embora praticando atos reprováveis, não figura no polo passivo da ação penal?


Castelo Branco, ao tratar do tema dos efeitos do não atendimento à citação edital e revelia nos casos de pessoas jurídicas, conclui pela possibilidade de aplicação parcial da disciplina do art. 366, CPP. Assim, afirma serem plenamente compatíveis com os casos de responsabilidade das empresas, a suspensão do processo e do prazo prescricional, bem como a produção antecipada de provas como medida cautelar e assecuratória.[8] Porém, no que tange à possibilidade de decretação da custódia preventiva (art. 366 “in fine”, CPP), conclui pela sua total incompatibilidade com o caso. Isso pela simples razão de que a prisão somente tem cabimento em relação às pessoas naturais. “Inadmissível, portanto, a imposição da medida cautelar de índole pessoal contra o ente coletivo ou, até mesmo, contra o seu representante legal, pelo simples fato de ele estar investido nessa função, não guardando qualquer relação de participação ou autoria com a prática delitiva.”[9]


A Prisão Preventiva somente poderia alcançar as pessoas físicas e somente aquelas que integrem o polo passivo da relação processual penal nos termos do art. 3o., Parágrafo Único, da Lei 9605/98, obviamente, desde que satisfeitos os requisitos e motivos dos arts. 312 e 313 do Código de Processo Penal.


No caso que agora ventilamos o entendimento exposto é amplamente aplicável. Mesmo na situação mais grave de atuação no sentido de prejudicar a aplicação da lei penal e a instrução processual, inadmissível seria a decretação de Prisão Preventiva de alguém que não está sendo processado ou investigado.


Nem mesmo em uma reforma legislativa processual penal, com vistas às peculiaridades das pessoas jurídicas, tal custódia poderia ser prevista sem jogar por terra toda a sistemática de garantias penais e processuais. Esta seria uma teratológica  forma híbrida de prisão processual e administrativa, cujo sujeito passivo não estaria a responder naquele processo ou inquérito por nenhuma acusação ou suspeita. Ou mesmo uma espécie de “cautelar satisfativa” no âmbito processual penal, a infringir garantias constitucionalmente tuteladas (v.g. art. 5o., XXXIX, LIV, LV, LVII, LXVII, CF).


Restaria como resposta repressiva à conduta ilícita do representante a sua responsabilização por infração aos artigos 344, CP (Coação no Curso do Processo) e/ou 347, CP (Fraude Processual), em procedimento autônomo. Mas, uma solução imediata para assegurar a regularidade processual no âmbito do crime atribuído à  pessoa jurídica permanece, a nosso ver, uma aporia a exemplificar as dificuldades ingentes com que se depara o Direito Penal do século XXI.


 


Referências bibliográficas:


CASTELO BRANCO, Fernando. A Pessoa Jurídica no Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2001.

GOMES, Luiz Flávio (Coord.). Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e Medidas Provisórias e Direito Penal. São Paulo: RT, 1999.

PIERANGELI, José Henrique (Coord.). Direito Criminal. Belo Horizonte: Del Rey, 2000.

PRADO, Luiz Regis. Crimes contra o ambiente. São Paulo: RT, 1998.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica. São Paulo: RT, 1998.

SILVA JÚNIOR, Euclides Ferreira da.  Curso de Direito Processual Penal. 2a. ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000.

 

Notas:

[1] Em França editou-se uma chamada Lei de Adaptação (Lei n. 92-1336/1992) com normas processuais especiais para os casos envolvendo responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Editou-se ainda o Decreto 93-726/1993 com normas específicas sobre a execução penal das reprimendas impostas às pessoas jurídicas.

[2] Luiz Regis PRADO, Crimes contra o ambiente, p. 21.

[3] Ada Pellegrini GRINOVER, Aspectos processuais da responsabilidade penal da pessoa jurídica. In: Luiz Flávio GOMES (Coord.), Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica e Medidas Provisórias e Direito Penal, p. 46.

[4] Ver a respeito pioneira monografia sobre o tema: Fernando CASTELO BRANCO, A Pessoa Jurídica no Processo Penal, p. 131 – 155.

[5] Sérgio Salomão SHECAIRA, Responsabilidade Penal da Pessoa Jurídica, p. 129.

[6] Aliás, há quem alegue que a responsabilização somente da pessoa jurídica por razões simbólicas e de dificuldades probatórias, seria realmente a regra. Ver neste sentido: Raúl CERVINI, Criminalidad Organizada Y Lavado de Dinero. In: José Henrique PIERANGELI (Coord.), Direito Criminal, p. 80 – 81.

[7] Euclides Ferreira da SILVA JÚNIOR, Curso de Direito Processual Penal, p. 160 – 163.

[8] Fernando CASTELO BRANCO, A Pessoa Jurídica no Processo Penal, p.  141 – 142.

[9] Ibid., p. 143.


Informações Sobre o Autor

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.


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