A relativização da coisa julgada

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A relativização da coisa julgada é tema que vem sendo muito discutido dentro do Direito e que gera opiniões conflitantes de diversos renomados autores. De um lado encontraremos os defensores da segurança jurídica que a coisa julgada traz, inclusive como forma de pacificação social. De outro encontraremos os defensores da relativização que acreditam que a justiça deve prevalecer sobre tudo.

A dificuldade ganha relevo no momento que percebemos que estamos diante de duas garantias constitucionais. Confira as palavras de Cândido Dinamarco: …a coisa julgada material tem por substrato ético-político o valor da segurança jurídica, que universalmente se proclama como indispensável a paz entre os homens ou grupos. Esse valor de primeira grandeza, alçado a dignidade constitucional mediante a garantia do respeito a coisa julgada, só não pode prevalecer quando a estabilidade do julgado significar imutabilidade de situações de contrariedade a outros valores humanos, éticos ou políticos de igual ou maior porte.”[1]. A imutabilidade oriunda da coisa julgada encontra fundamento no artigo 5º inciso XXXVI da Constituição Federal que preceitua que nem a lei prejudicará a coisa julgada. Também encontra fundamento no Código de Processo Civil que em seu artigo 267 inciso V §3ºdiz que o juiz não julgará novamente causa já decidida, devendo extinguir o processo sem adentrar o mérito.

Já a justiça da decisão pode ser vislumbrada dentro de todo nosso ordenamento jurídico. A justiça como um todo encontra-se dentro de nos mesmos, exalta regras e comandos, é inerente ao ser humano, nascendo junto com ele. Nas palavras de Miguel Reale: “É preciso notar, entretanto, que, apesar de ter projetado para fora de si e de ter antropomorfizado estes fenômenos nas divindades da justiça, o homem sentiu que, no fundo, a Justiça estava nele mesmo, ao colocar e compreender a Justiça também com um virtus.”[2] Trata-se de uma idéia superior à própria Constituição. Uma decisão injusta revolta a sociedade e gera descrédito para o judiciário. Para a idéia não ficar em demasia abstrata, não é difícil pensarmos em uma coisa julgada injusta que afete direitos protegidos dentro dos próprios direitos e garantias fundamentais ao indivíduo. É por isso que a matéria torna-se tão difícil de ser solucionada.

Mas, antes de nos aprofundarmos no trabalho, devemos ressaltar algumas generalidades a respeito da coisa julgada. Como dito acima, é instituto processual ligado ao fim do processo e a imutabilidade daquilo que foi decidido. Nas palavras de Wambier “Trata-se de instituto que tem em vista gerar segurança. A segurança, de fato, é um valor que desde sempre tem desempenhado papel de um dos objetivos do direito. O homem está sempre a procura de segurança e o direito é um instrumento que se presta, em grande parte, ao atingimento desse desejo humano. Por meio do direito, procura-se tanto a segurança no que diz respeito ao ordenamento jurídico como um todo, quanto no que tange as relações jurídicas individualizadas. É quanto a esta espécie de segurança que a coisa julgada desempenha o seu papel.”[3] A doutrina costuma dividi-la em coisa julgada material e coisa julgada formal. Esta ultima, também chamado de preclusão máxima, tem lugar quando já não caiba mais recurso da decisão proferida, gerando efeitos apenas naquele processo. Exemplificando, faz coisa julgada formal a sentença que extingue o processo por carência de ação. Já a coisa julgada material só se apresenta quando estivermos tratando de sentenças definitivas de mérito. Com ela a decisão torna-se imutável, não podendo ser rediscutida a lide nem naquele processo e também em nenhum outro. As duas formam-se ao mesmo tempo mas só teremos as duas se se tratar de sentença de mérito.

Vale lembrar que não fazem coisa julgada material as razões de decidir, as sentenças processuais, as decisões proferidas em jurisdição voluntária e no processo cautelar, salvo naquele processo cautelar que reconhecer a prescrição ou a decadência. A coisa julgada material também não atinge as relações continuativas como é o caso da relação alimentícia que as vezes enseja a modificação do quantum fixado em razão de alterações na esfera econômica das partes.

A coisa julgada material pode ser impugnada via ação rescisória e desde que preenchidos os requisitos estabelecidos no artigo 485 do Código de Processo Civil, especialmente o prazo de dois anos. Mas, caso o processo não tenha preenchido nem os pressupostos processuais de existência e já tenha transcorrido in albis prazo para eventual ação rescisória, podemos  pensar no cabimento de uma  querella nulitatis visando declarar a nulidade da decisão proferida, como no caso de um processo que chegou a seu fim sem nem mesmo ter havido citação.

Através destes apontamentos podemos vislumbrar a importância da coisa julgada material dentro de nosso ordenamento pátrio e também a dificuldade em mitiga-la. A discussão ganha relevo, especialmente, através de duas situações específicas: a investigação de paternidade e a coisa julgada inconstitucional. A respeito da paternidade o problema encontra-se naqueles casos em que há uma decisão proferida que pode ser considerada injusta face a um novo exame de DNA que trará uma certeza quase irrefutável. Imagine a situação daquele filho que teve o pedido negado pela falta de certeza e que agora dispõe da tecnologia necessária para provar que aquele é seu pai. Inclusive é a respeito deste assunto a ementa juntada ao trabalho. Em minha opinião fica clara a necessidade da mitigação da coisa julgada para casos como este em que temos direitos indisponíveis. Existem opiniões contrárias inclusive no sentido de que estaríamos criando uma mão dupla de ações, já que também teríamos algumas negatórias de paternidade.

Já o fenômeno da coisa julgada inconstitucional se dá quando um processo é decidido de acordo com  uma lei teoricamente constitucional e ainda vigente, formando a coisa julgada material. Posteriormente, através do controle de constitucionalidade, seja difuso ou concentrado, tal lei é declarada inconstitucional.  Mais uma vez defendo ser cabível a mitigação nesta hipótese porque tal coisa julgada encontra-se viciada, gerando nulidade ipso iure. Uma vez declarada a inconstitucionalidade da lei, os efeitos de tal declaração devem ser ex tunc, abstraindo-se a possibilidade de modulação pelo STF. Assim sendo a norma é ‘cassada’ desde o seu nascimento não podendo produzir efeitos e muito menos embasar a coisa julgada já que para aquele processo estaria faltando uma das condições da ação na modalidade causa de pedir. A respeito do tema: “Na seara do direito público, assim como o caráter da insanabilidade não está ligado as nulidades absolutas, que podem ser conhecidas de ofício e a qualquer tempo…..A norma jurídica tida posteriormente como inconstitucional, portanto, é para nós norma inexistente juridicamente. É pura e simplesmente um fato jurídico.”[4]Vale ressaltar que também se discute os meios para tal desconstituição. Em alguns casos, como na coisa julgada inconstitucional teríamos um nada jurídico. Mas acredito que a parte possa fazer uso de uma ação rescisória caso ainda esteja no prazo decadencial; de embargos a execução no caso de um processo executivo; e finalmente da querella nulitatis insanabilis.

Sou obrigado a dizer, data máxima vênia,que não concordo com opiniões que dizem que a coisa julgada geraria insegurança ao sistema e que sua aplicação implicaria num alargamento que levaria a um sistema totalitarista. Confira argumentos neste sentido nas ilustres palavras do Mestre Nelson Nery: “Desconsiderar a coisa julgada é eufemismo para esconder-se a instalação da ditadura, de esquerda ou de direita, que faria desaparecer a democracia que deve ser respeitada, buscada e praticada pelo processo. Adolf Hitler assinou, em 15.7.1941, a Lei para a intervenção do Ministério Público no Processo Civil, dando poderes ao parquet para dizer se a sentença seria justa ou não, se atendia aos fundamentos do Reich alemão e aos anseios do povo alemão……Desconsiderar a coisa julgada é ofender-se a Carta Magna, deixando de dar aplicação ao princípio fundamental do estado democrático de direito(CF 1º caput). De nada adianta a doutrina que defende essa tese pregar que seria de aplicação excepcional, pois, uma vez aceita, a cultura jurídica brasileira vai, seguramente, alargar os seus espectros….de sorte que amanhã poderemos ter como regra a não existência da coisa julgada e como exceção, para poucos e não poderosos, a intangibilidade da coisa julgada. A inversão dos valores, em detrimento do estado democrático de direito, não é providência que se deva prestigiar.”[5]

Prefiro pensar como Cândido Dinamarco: “o princípios existem para servir a justiça e ao homem, não para serem servidos como fetiches da ordem processual”[6]. Em sua festejada obra ‘Nova era do processo civil’ o mestre dedica um capítulo inteiro a matéria, citando inclusive o direito americano que não tem tanto apego a res judicata e também posições de ministros do STJ e do STF sobre o tema. Apesar de considerar “indesejável legislar a respeito” conclui que: “Onde quer que se tenha uma decisão aberrante de valores, princípios, garantias ou normas superiores, ali ter-se-ão efeitos juridicamente impossíveis e, portanto, não incidirá a autoridade da coisa julgada material – porque, como sempre, não se concebe imunizar efeitos cuja efetivação agrida a ordem jurídico-constitucional.”[7]

Concluindo, devo reconhecer que não é tarefa das mais fáceis aplicar a relativização da coisa julgada e também acredito que ela deve ser reservada para situações excepcionais em que o rigorismo e a formalidade estariam prejudicando a própria justiça e a harmonização do sistema. A sociedade tem e sempre deve preservar valores como dignidade, moralidade e justiça. É por tudo isso que defendo a relativização da coisa julgada, tornando o processo civil um pouco mais efetivo e justo.

 

Notas
[1] DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil . volume III. 4ed.. Malheiros, pag. 303.
[2] REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19 edição 3ªtiragem, Ed Saraiva. Pág 505.
[3] WAMBIER, Luiz Rodrigues; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de; TALAMINI, Eduardo.  Curso avançado de processo civil, 5.ed. RT. 2002. v. 1, p. 36
[4] WAMBIER, Tereza Arruda Alvim; MEDINA, José Miguel Garcia. O dogma da coisa julgada. Ed RT , 2003 Pag 49
[5] NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria Andrade. Código de processo civil e legislação processual civil extravagante em vigor.  7ºedição. ed. Revista do Tribunais p. 792.
[6] DINAMARCO, Candido Rangel. Instituições de direito processual civil . volume I.Malheiros, pag. 249.
[7] DINAMARCO, Candido Rangel. Nova Era do Processo Civil; 1ºedição. Malheiros, pág 257

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Braulio Bata Simões

 

Advogado em São Paulo e aluno do curso de especialização em Processo Civil da PUC-SP

 


 

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