Desconstrução no Estado Democrático de Direito: Os fundamentos da proibição do lon liquet e a improcedência liminar do pedido no ordenamento jurídico brasileiro

Resumo: O presente artigo tem como objetivo demonstrar a inadequação de dispositivos vigentes no ordenamento jurídico brasileiro com o Estado Democrático de Direito, bem como analisar alguns dispositivos do Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil que também violam os direitos fundamentais. Para proporcionar melhor compreensão do tema em foco, serão analisadas brevemente algumas teorias do processo, entendendo-se ser a Teoria Neoinstitucionalista do Processo – de autoria do ilustre professor Rosemiro Pereira Leal – adequada ao Estado Democrático de Direito.

Palavras-chave: Estado Democrático de Direito. Teoria Neoinstitucionalista do Processo. Lei n. 12.376/2010. Código de Processo Civil. Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil.

Abstract: This article aims to demonstrate the inadequacy of existing devices in the Brazilian legal system with the democratic rule of law and to examine some provisions of the New Law Project Civil Procedure Code which also violate fundamental rights. To provide better understanding of the subject in focus, will be briefly analyzed some theories of the process, the understanding being the Neoinstitutionalist Theory Process – authored by distinguished professor Rosemiro Pereira Leal – appropriate to the democratic rule of law.

Keywords: Democratic State. Neoinstitutionalist Theory Process. Law n. 12,376 / 2010. Code of Civil Procedure. Bill of the new Civil Procedure Code.

Sumário: Introdução. 1. Brasil: Estado Democrático de Direito.    2. Processo e Estado Democrático de Direito. 2.1. Breve análise das teorias do processo. 2.2. Teoria Neoinstitucionalista do Processo. 3. Proibição do non liquet e improcedência liminar do pedido: decisões tiranas no Estado Democrático de Direito. Conclusão

Introdução

Este trabalho pretende examinar a construção e a aplicação das decisões jurídicas no âmbito do Estado Democrático de Direito. Sob essa perspectiva, ele explorará o conceito de Estado Democrático de Direito instituído no Brasil com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CR/88, e suas características, valendo-se da leitura e da compreensão do texto constitucional, bem como dos ensinamentos de eminentes doutrinadores.

A pesquisa buscará também demonstrar a teoria do processo apta a reger a construção normativa em congruência com os direitos fundamentais democráticos, mediante estudo sobre a Teoria Neoinstitucionalista do Processo, entendendo ser esta adequada por permitir uma discursividade mediante o exercício da ampla defesa, do contraditório e da isonomia, que garante a participação dos sujeitos do processo no provimento final, do qual eles são também destinatários. Serão analisadas também, de forma breve, outras teorias do processo, destacando-se as características que constatam a inadequação dessas teorias ao Estado Democrático de Direito em razão de não permitirem o efetivo exercício da soberania popular.

Por fim, será feita uma avalição crítica de dispositivos infraconstitucionais – notadamente os arts. 4º e 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Lei n. 12.376, de 30 de dezembro de 2010, e os arts. 126, 131 e 285-A do Código de Processo Civil – CPC – brasileiro – Lei n. 5.869, de 11 de janeiro e 1973, considerando-se serem eles incompatíveis com a democracia; e serão apontados criticamente os dispositivos do Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil, aprovado na Câmara dos Deputados em 26 de março de 2015, os quais, segundo argumentos apontados, também não se coadunam paradigmaticamente com o Estado Democrático de Direito.

1. Brasil: estado democrático de direito

Para uma compreensão ideal do presente trabalho faz-se necessário, primeiramente, o entendimento do que é Estado Democrático de Direito. É tal percepção que possibilitará o entendimento dos futuros pontos a serem abordados neste estudo. Acerca do tema em análise, a CR/88 assim preceitua:

“Art. 1º – A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I – a soberania;

II – a cidadania;[…]

Parágrafo único – Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 2014.)

Art. 5º- Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: […]

LV – aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;” (BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 2014.)

No Estado Democrático de Direito, parte-se da premissa de que os destinatários das normas se reconheçam como seus autores. Trata-se o Estado de uma instância jurídica de produção e de aplicação do direito, não sendo produtor do direito; o Estado é instrumento jurídico de atuação das funções públicas institucionalizadas e criadas constitucionalmente pelo povo. Nesse sentido, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias e Rosemiro Pereira Leal ilustram, respectivamente:

“A teoria do Estado de Direito surgiu em oposição à idéia do que, comumente, de forma aproximada, se traduz por Estado de Polícia (Obrikeitsstaat ou Polizeistaat), também chamado de Estado Iluminista ou de Estado-providência, cujas características gerais eram o predomínio da idéia de soberania centrada no monarca, a extensão do poder soberano no âmbito religioso, assim exercendo autoridade eclesiástica, a assunção pelo Estado, no plano teórico, da promoção do bem estar e da felicidade dos súditos, missão confiada ao soberano, e a configuração do Estado desvinculada do moderno constitucionalismo, […] (DIAS. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 2010, p. 48)

[…] identificar o “Estado Democrático de Direito” como aquele paradigmatizado e gerado por uma ciência não dogmática do direito como traço teórico-distintivo de outros paradigmas de Estado que seriam “Estados Dogmáticos de Direito”. (LEAL. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. 2013, p. 9)

     Confere-se, então, a imprescindibilidade da participação incessante do povo (legitimado), entendendo-se como povo “a comunidade política do Estado, composta de pessoas livres, dotadas de direitos subjetivos umas em face de outras e perante o próprio Estado, fazendo parte do povo tanto os governados como os governantes” (DIAS, 2010) na elaboração, aplicação e fiscalização das normas, mediante um processo visto como “necessária instituição constitucionalizada (conforme se afirmará na teoria neoinstitucionalista do processo), que, pela principiologia constitucional do devido processo legal – que compreende os princípios da reserva legal, da ampla defesa, da isonomia, do contraditório, converte-se em direito-garantia impostergável e representativo de conquistas teóricas da humanidade no empreendimento secular contra a tirania, como referente constitucional lógico-jurídico, de interferência expansiva e fecunda, na regência axial das estruturas procedimentais nos segmentos da administração, legislação e jurisdição.”. (LEAL, 2012).

No Estado Democrático de Direito, a função do Estado é de operador processual, com o intuito de garantir uma ordem jurídica constitucional, de proteção dos direitos processuais, a ser concretizada com base nos princípios da democracia e do discurso por meio do processo legiferante. Sobre essa questão, assim explica Aroldo Plínio Gonçalves:

“A instrumentalidade técnica do processo está em que ele se constitua na melhor, mais ágil e mais democrática estrutura para que a sentença que dele resulta se forme, seja gerada, com a garantia da participação igual, paritária, simétrica, daqueles que receberão os seus efeitos”. (GONÇALVES. Técnica Processual e Teoria do Processo. 1992, p. 171)

É por entender o Estado Democrático de Direito “como coinstituição jurídica protossignificativa e espácio-instrumental da operacionalidade do direito processualmente constituído” (LEAL, 2013) que o presente trabalho pretende firmar a Teoria Neoinstitucionalista do processo como teoria geral do direito a ser aplicada no Brasil, pois ela busca distanciar a ideia de Estado como protetor da sociedade e a do juiz como um intérprete expert e ideal do ordenamento jurídico, mediante a oportunidade de participação de todos no espaço processual, garantida pelos princípios do contraditório, da ampla defesa e da isonomia. De forma complementar, Ronaldo Brêtas de Carvalho Dias elucida:

O Estado Democrático de Direito tem sua dimensão e se estrutura constitucionalmente na legitimidade do domínio político e na legitimação do exercício do poder pelo Estado assentadas unicamente na soberania e na vontade do povo. (DIAS. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 2010, p. 63)

Todo o explanado só faz sentido se concebermos democracia como “um princípio consagrado nos modernos ordenamentos constitucionais como fonte de legitimação do exercício do poder, que tem origem no povo; daí o protótipo constitucional dos Estados Democráticos ao se declarar que todo o poder emana do povo” (DIAS, 2010) e não caracterizar uma sociedade como democrática porque nesta se encontram afirmados os direitos de voto, de liberdade de expressão e de ir e vir.

2. Processo e estado democrático de direito

Conforme exposto em tópico anterior, o postulado do Estado Democrático de Direito consiste na participação efetiva dos sujeitos do processo na elaboração do provimento final, do qual serão também destinatários. Para aplicação desse paradigma, necessária é uma teoria do processo que se coadune com tal entendimento de soberania popular, do povo como legitimador constitucional ante o exercício dos direitos fundamentais da ampla defesa, do contraditório e da isonomia. Em consonância com tal entendimento, Rosemiro Pereira Leal salienta que

“O postulado de Habermas de que a força do direito nas democracias se expressa na circunstancialidade de os destinatários das normas se reconhecerem como seus próprios autores só é acolhível num espaço-jurídico processualizado (em conotações fazzalarianas e neo-institucionalistas) em que as decisões não seriam atos jurisdicionais de algum protetor ou mero provedor dos procedimentos democraticamente constitucionalizados (devido processo legal), mas atos processualmente preparados na estrutura procedimental aberta a todos os sujeitos (partes: pessoas físicas, jurídicas, coletivas; órgãos judiciais; juízes; instituições estatais, Ministério Público e órgãos técnicos) figurativos e operadores dessa instrumentalidade jurídico-discursiva na movimentação efetivadora, correicional e recriativa dos direitos constitucionalizados por uma comunidade que se candidate a se constituir, a cada dia, em sociedade jurídico-política democrática no Estado constitucionalizado”. (LEAL. Teoria processual da decisão jurídica. 2002, p. 131)

2.1. Breve análise das teorias do processo

Para melhor compreender a adequação da Teoria Neoinstitucionalista do processo ao Estado Democrático de Direito, é preciso ter uma ideia sucinta sobre algumas outras teorias e suas características, a começar pela Teoria do Processo como Contrato (Século XVIII e XIX), de Porthier, que apresenta caráter privatístico, sendo o processo uma espécie de contrato entre os litigantes, que, espontaneamente, compareciam em juízo com um acordo prévio de submissão à decisão do juiz. Posteriormente, veio a Teoria do Processo como Quase Contrato (1850), de Friedrich Carl von Savigny, segundo a qual o processo, apesar de semelhante a um contrato, não o era, pois tinha força coercitiva de obrigar as partes a comparecer em juízo e a acatar a decisão proferida.

Em 1868, o alemão Oscar Von Bulow apresenta a Teoria do Processo como Relação Jurídica, primeira teoria em que o processo aparecia como ciência jurídica autônoma, distinguindo Direito Material e Direito Processual. Bullow propôs uma teoria do processo em que, para a existência desse, era imprescindível o comparecimento de 3 partes, quais sejam: o autor, o réu e o juiz, tratando-se de uma relação intersubjetiva entre essas e dando origem à representação gráfica da relação processual. A Teoria Linear, de Josef Kohler, entendia o processo como uma relação entre as partes autor e réu, excluindo o juiz, que tinha o papel de observar as regras preestabelecidas pelas partes a fim de torná-las eficazes à resolução do conflito. Diferentemente, na Teoria Triangular, de Adolph Wach, a relação jurídica ocorria entre as partes e entre o juiz e cada uma das partes, sendo uma relação de Direito Privado e outra de Direito Público, respectivamente. Por último, na Teoria Angular, de Juliu Wilhelm Planck (1887) e Johann Christian Ludwig Hellwig (1903), a relação jurídica processual era exclusivamente entre o juiz e cada uma das partes; todas as atividades processuais eram direcionadas ao juiz, e essa intervenção estatal suprimia qualquer ligação entre as partes, inexistindo direitos e obrigações recíprocos entre elas.

André Cordeiro Leal faz importante observação sobre a teoria bulowiana:

“O que se tem, assim, em Bullow, é, sob o rótulo de “ciência”, uma proposta técnica de sustentação do decisionismo judicial, ou de uma jurisdição como atividade estatal salvacionista pelo juiz que, a pretexto de permitir operacionalidade, se auto-imuniza da indagação sobre a legitimidade democrática dessa atuação.” (LEAL. Instrumentalidade do processo em crise. 2008, p. 134.)

A Escola Instrumentalista do Processo como Relação Jurídica, teoria dominante até os dias de hoje, buscou uma otimização do processo, acrescendo fins metajurídicos, de valores sociais e políticos, e reduzindo as exigências formais à interpretação das normas, a fim de alcançar uma suposta efetividade jurisdicional calcada na celeridade na produção de resultados. Para alcançar esse fim, a escola instrumentalista caracteriza o juiz (representante do Estado) como um expert que melhor sabe interpretar as normas, pois conheceria e entenderia os sentimentos sociais de justiça e os anseios da sociedade em que atua, escolhendo, portanto, a decisão que melhor serviria a essa sociedade, pois os fundamentos do provimento representariam os desejos e as expectativas dessa mesma sociedade. Tal teoria, embora dominante, jamais deveria ser implementada num Estado Democrático de Direito, visto que usurpa do povo a autoria das decisões, em clara desobediência ao devido processo legal. Criticando o uso dessa teoria, assim se manifesta Rosemiro Pereira Leal:

“Os juristas do séc. XX, em sua quase unanimidade, máxime os processualistas, até Liebman e os atuais instrumentalistas que colocam o processo como instrumento de uma jurisdição salvadora do direito por uma relação jurídica hierárquica entre juiz, autor e réu, são os mais explícitos herdeiros das engenhosas nuanças teóricas da sacralidade ética da traditio, que trabalha uma razão prescritiva incompatível, como veremos, com o direito democrático.” (LEAL. Teoria processual da decisão jurídica. 2002, p. 18)

Por outro lado, a Teoria Institucionalista do Processo (1948), de Guasp, entende o processo como uma instituição jurídica, sendo instituição um conjunto de regras inter-relacionadas por um conceito comum objetivo a partir do qual se originariam as sobreditas regras. Assim sendo, o processo jamais poderia ser extinto, por se tratar de uma instituição. Curioso para a compreensão dessa teoria é observar uma das críticas a ela feitas, acusando-a de servir ao Fascismo Mussolianino; isto porque o conceito de instituição não ficou esclarecido, sendo adotado pelos seguidores do regime totalitário italiano como meio de usar processo com presteza a serviço do direito, entendido como as finalidades do chefe militar. Interessante a comparação que Charley Teixeira Chaves faz em sua obra, ao citar os dizeres de Jeziel Rodrigues Cruz Júnior:

“A crítica apostada à teoria de Guasp, a qual justificaria os regimes totalitários, maleáveis segundo a vontade e interesse dominante, se reproduz e “[…] pode ser transportada hoje à doutrina instrumentalista do processo, posto que coloca a jurisdição no centro do processo, buscando sua legitimidade em escopos metajurídicos, volúveis como o éter (líquido incolor, volátil, com cheiro característico e inflamável).”. (CRUZ JUNIOR; ROCHA, 2005, p. 129). (CHAVES. Curso: Teoria Geral do Processo. 2014, p. 55)

Em 1978, Elio Fazzalari criou a Teoria do Processo como procedimento em contraditório, segundo a qual o que distingue o processo do procedimento é a existência do “contraditório entre as partes, em simétrica paridade, na preparação do provimento jurisdicional.”. (LEAL, 2012). Para essa teoria, inexiste vínculo de sujeição entre as partes, visto que lhes é assegurada harmoniosa participação, e uma suposta posição de vantagem de um sujeito advém da norma, efetivando-se através do provimento jurisdicional final. Por outro lado, o papel do juiz (representante do Estado) é de autor do ato decisório a ser acatado pelas partes, que, por meio do contraditório, entendido como igualdade de oportunidade no procedimento, participam da preparação do provimento, característica que mais distingue essa teoria da escola da relação jurídica. Em consonância com tal explanação, registram-se os comentários de Aroldo Plínio Gonçalves:

“Perante o contraditório, não se pode falar em relação de sujeição ou de subordinação; as partes se sujeitam ao provimento, ao ato final do processo, de cuja preparação participaram, e não ao juiz.” (GONÇALVES. Técnica Processual e Teoria do Processo. 1992, p.193)

A Teoria Constitucionalista do Processo (1979), de Couture, Baracho e Andolina, entre outros doutrinadores, entende a Constituição como fundamento de todo o ordenamento jurídico; desta forma, o processo estaria garantido na Constituição como “instrumento da jurisdição constitucional; e esta, como atividade judicatória dos juízes em face dos conteúdos da lei constitucional.”. (LEAL, 2012). Três importantes características do modelo constitucional do processo civil na Itália auxiliam na compreensão de tal teoria: a expansividade, correspondente à soberania da Constituição e à expansividade de sua vinculação a todas as normas infraconstitucionais; a variabilidade, que possibilita a mutação do processo, desde que não se afaste dos preceitos constitucionais, a fim de atender à necessidade do Direito protegido; e a perfectibilidade, que diz respeito ao ajuste de todo o ordenamento jurídico à Constituição.

 Em crítica a essa teoria, merecem destaque as palavras de Rosemiro Pereira Leal:

“A Teoria Constitucionalista do Processo pode servir os paradigmas do Estado de Direito (Liberal) e do Estado Social, porque o “modelo constitucional” do processo ainda se vincula às concepções de Bullow e Dinamarco, que entendem o processo como instrumento da jurisdição dos juízes orientada por uma hermenêutica de bases axiologizantes a serem preservadas ou resgatadas pela consciência do julgador.” (LEAL. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 2012, p. 270)

2.2. Teoria Neoinstitucionalista do Processo

Essa teoria, de autoria de Rosemiro Pereira Leal, entende o processo como instituição constitucionalizada do Estado Democrático de Direito, fundamentada na teoria do discurso democrático, por meio da qual essa instituição possibilita a construção da estrutura do procedimento, estabelecendo os direitos fundamentais – contraditório, ampla defesa, isonomia, direito ao advogado e à gratuidade judicial – como principiologia jurídica regente da procedimentalidade democrática. Nas palavras de seu autor, o Estado Democrático de Direito é uma “instituição constitucionalizada e juridicamente delimitadora de um espaço condicionante discursivo (status) de validação e de eficacização decisória, a ser mantido pelo DEVIDO PROCESSO CONSTITUCIONAL como referente lógico-jurídico de fiscalização irrestrita, popular e incessante, de execução dos direitos fundamentais (juízos discursivo-normativos analíticos: direitos indivisíveis) positivamente pré-articulados e já decididos pela comunidade jurídica.” (LEAL, 2002). Para melhor compreensão, é necessário saber que Rosemiro Leal revisita o significado de instituição, entendendo-o como

“[…] conjunto de princípios e (institutos) jurídicos reunidos ou aproximados pelo texto constitucional com a denominação jurídica de devido processo, cuja característica é assegurar, pelos institutos do contraditório, ampla defesa, isonomia, direito ao advogado e livre acesso à jurisdicionalidade, o exercício dos direitos criados e expressos no ordenamento constitucional e infraconstitucional por via de procedimentos estabelecidos em modelos legais (devido processo legal) como instrumentalidade manejável pelos juridicamente legitimados.” (LEAL. Teoria geral do processo: primeiros estudos. 2002, p. 89)

“[…] porque instituir, na procedimentalidade democrática, é um decidir advindo de uma teoria processual de abertura ampla, isonômica e discursiva na formação da opinião e da vontade como fonte jurídica legitimadora do exercício da normatividade daí resultante.” (LEAL. Teoria processual da decisão jurídica. 2002, p. 189)

Analisando-se esse significado apresentado por Rosemiro Pereira Leal, é possível uma perfeita compreensão do processo em sua Teoria Neoinstitucionalista e, consequemente, pode-se concluir por sua adequação ao contexto do Brasil, Estado Democrático de Direito. Primeiramente, é de grande importância compreender que, nessa teoria, o autor remete a uma concepção de “principiologia do processo”, na qual os direitos fundamentais acima citados – à ampla defesa, ao contraditório e à isonomia – são correspondentes, respectivamente, aos direitos à liberdade, à vida e à igualdade-dignidade.

Conforme tal concepção, isonomia corresponde ao direito à liberdade-dignidade, entendido como direito igual de interpretação normativa, afastando-se de um direito que guardasse relações com a formação metafísico-cultural do homem, descontruindo-se a “presunçosa autocracia (tirania) de “eus” solipsistas, inatos e pressupostamente contextualizados em seus absolutos e estratégicos saberes deontológicos e corretivos na justificação e aplicação do Direito” (LEAL, 2013), como proposto por outras teorias (v.g., Processo como Relação Jurídica e Escola Instrumentalista do Processo). O autor, então, conjectura o exercício de uma “hermenêutica-isomênica”, que possibilitaria a todos o exercício da isonomia mediante determinações semiológicas que vinculassem os argumentos normativos, relacionados à direitos fundamentais, nos níveis instituintes e constituintes do ordenamento jurídico, por meio da subdivisão de isonomia em seus conteúdos isegóricos (conteúdos processuais dialógicos) da isotopia, igualdade de todos perante a lei; da isomenia, igualdade de todos de interpretar a lei; e da isocrítica, igualdade de todos de fazer, de alterar ou de substituir a lei.

O contraditório, como componente de uma estrutura jurídica, princípio instituto do processo, encontra-se assentado na isonomia; e, para estabelecer a igualdade de todos perante a lei ante a prática da “hermenêutica-isonômica” pelo discurso argumentativo dos sujeitos do processo, deve, primeiramente, possibilitar a capacitação técnica e científica de tais sujeitos, para que exista, efetivamente, a simétrica paridade entre eles. Senão, veja-se a definição de contraditório nas palavras de Aroldo Plínio Gonçalves:

“O contraditório não é o “dizer” e o “contradizer” sobre matéria controvertida, não é a discussão que se trava no processo sobre a relação de direito material, não é a polêmica que se desenvolve em torno dos interesses divergentes sobre o conteúdo do ato final. Essa será a sua matéria, o seu conteúdo possível.

O contraditório é a igualdade de oportunidade no processo, é a igual oportunidade de igual tratamento, que se funda na liberdade de todos perante a lei.

É essa igualdade de oportunidade que compõe a essência do contraditório enquanto garantia de simétrica paridade de participação no processo.” (GONÇALVES. Técnica Processual e Teoria do Processo. 1992, p.127)

A ideia de ampla defesa deve ser extraída a partir da compreensão de “igualdade de oportunidade” acima citada, ao possibilitar uma igualdade de entendimento e debate dos conteúdos da norma no espaço procedimental. Todavia, conforme adverte Rosemiro Pereira Leal, para que exista essa “igualdade de oportunidade” é necessário conhecimento científico acerca do conteúdo a ser debatido, bem como acesso à jurisdição; por isso, ele ressalta a imprescindibilidade do advogado e a do livre acesso à jurisdicionalidade. Esse acesso à jurisdição a partir da compreensão acima destacada de isonomia deve ser entendido como acesso à atuação dos conteúdos da lei, e não pela atuação pessoal dos juízos, visto que a função jurisdicional “somente se concretiza por meio de processo instaurado e desenvolvido em forma obediente aos princípios e regras constitucionais […]” (DIAS, 2010), sendo o dever de dizer o que foi estabelecido pela norma e de não criar a norma conforme o caso concreto; função a ser exercida pelo Estado, cabendo ao juiz, tão somente, aplicar a lei.

 Por outro lado, faz-se mister o direito ao advogado para o controle da jurisdição por meio de sua atuação, uma vez que, como dispõe a CR/88, é indispensável a administração da Justiça, devendo-se conceber Justiça como atividade jurisdicional. Confira-se do texto constitucional a seguinte disposição:

“Art. 133 – O advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei.” (BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, 2014.)

Nas teorias anteriormente apresentadas, apesar de mudança na nomenclatura, havia nítida concordância com a teoria do processo como relação jurídica, afirmando-se ser a jurisdição ora atividade do Estado para demonstrar seu poder, ora a atividade do juiz. Nenhuma das teorias anteriores à Teoria Neoinstitucionalista do processo afastou a ideia de “poder” do juiz e do Estado nas relações processuais, permitindo uma interpretação, por esses, de todo o ordenamento jurídico, inclusive no que diz respeito às normas de direitos fundamentais processualmente criados e assegurados; remetendo-se a uma ideia de Estado Liberal ou Social, fundado na concepção iluminista, ideia essa incompatível com o Estado Democrático de Direito, que determina sua base legitimante na soberania popular, como demonstrado em tópicos anteriores. São de extrema relevância as observações feitas pelo autor em sua recente obra:

“Essa aquisição simbólico-autoritária aduzida por consciências ainda iluministas ou crédulas numa ordem de fundamentos primeiros e últimos de racionalidade natural ou advinda da natureza humana ainda impede o projeto de o homem instalar um pacto processualizado (devido processo) que produza signos jurídicos de argüição do absolutismo dos significados normatizantes desde sua concepção à atuação e aplicação.

Assim, à medida que se ponham direitos fundamentais de liberdade, vida e dignidade, como direitos humanos por uma garantia que não seja a de um direito prévio constitucionalizado ao exercício irrestrito e incessante de compreensibilidade e de atuação de pressupostos lingüísticos (devido processo) que criasse, recriasse e testificassem tais direitos fundamentais (processo jurídico-procedimental), consolida-se um esquecimento mitologizado das rotas de formação de sentido construtivas dos saberes e direitos ao longo da interação humana.” (LEAL. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. 2013, p. 74)

Conforme explica Rosemiro Pereira Leal, os direitos fundamentais de liberdade, de vida e de dignidade – remetendo-se à correlação feita anteriormente, com ampla defesa, contraditório e isonomia, respectivamente, são direitos previamente constitucionalizados, dotados de certeza e de liquidez, uma vez que foram produzidos de forma processualmente legítima (mediante o exercício da soberania popular, pelo devido processo, por meio de sua base discursiva); sendo portanto desnecessária, para sua aplicação, qualquer tipo de judicância cognitiva. São normas de aplicação imediata, insuscetíveis de novas reconfigurações provimentais. Isto porque, para o autor, no Estado Democrático de Direito, “o devido da norma é posto no devir de seus enunciados criativos (principiologia do processo) como direitos fundamentais de conjectura e refutação sobre as causas, os efeitos e os riscos dos atos a serem juridicamente criados quanto à preservação continuada da discursividade jurídico-processual de vida, liberdade e dignidade humanas.”. (LEAL, 2013).

 A autoexecutividade e a infungibilidade que são conferidas ao devido processo, por meio da discursividade constituinte como direito fundante da oportunidade de fiscalização do sistema constitucional, é que conferem coercitividade e legitimidade aos direitos fundamentais segurados.

É justamente nessa construção do processo e, consequentemente, do provimento final, a partir da participação das partes que, por meio do discurso, exporiam seus argumentos e ideias para propiciar a escolha do melhor deles para a aplicação do texto normativo, enxergando-se, assim, como autores desse texto, que a Teoria Neoinstitucionalista do processo mostra-se adequada ao Estado Democrático de Direito e demonstra, simultaneamente, a inadequação das teorias que foram apresentadas em tópico anterior. O modelo de processo proposto pela Teoria Neoinstitucionalista liga o processo à própria legitimidade das decisões judiciais do Estado Democrático de Direito pois, se não observados seus institutos, tais decisões seriam nulas, já que não advindas da participação do povo em sua elaboração e fiscalização. Nesse sentido, importante salientar as palavras de seu autor:

“Torna-se óbvio que, nesse horizonte de cogitações, as teorias do processo como contrato (Porthier) e quase-contrato (Savigny), como relação jurídica (Bullow, 1868), como situação jurídica (Godschmidt, 1910), como instituição de cunho histórico-sociológico (Guasp, 1950), como procedimento em contraditório não democraticamente constitucionalizado (Fazzalari, 1975), como modelo constitucional e garantido por uma Assembléia de Especialistas em Parlamentos ou Tribunais (Andolina, 1980) e outras teorias similares não atendem a implementação da teoria habermaseana do discurso democrático que visaria a institucionalizar o princípio do discurso para sua estabilização em princípio jurídico da democracia que, a seu turno, iria garantir a revisibilidade processual incessante do direito do Estado democrático constitucionalmente criado.” (LEAL. Teoria processual da decisão jurídica. 2002, p. 168)

Do exposto, percebe-se que a intenção do autor ao criar a Teoria Neoinstitucionalista foi afastar a sistemática jurídica da dogmática analítica que, infelizmente, cerca o exercício do direito em todos os seus âmbitos, desde a construção da norma até sua aplicação, buscando construir uma teoria do processo que possibilitasse o asseguramento dos direitos fundamentais do contraditório, da ampla defesa e da isonomia mediante a construção normativa por linhas argumentativas, propondo uma teoria discursiva da democracia em congruência com o paradigma do Estado Democrático de Direito. Nesses termos, o autor esclarece:

“Nessas vertentes, dogmaticamente aclamadas pelos doutrinadores a serviço dos julgadores, legisladores e administradores públicos e privados, não me restou senão correr o risco proibitivo de me defrontar com a convicção fatalista do positivista que categoricamente afirma que “nenhuma lei regula sua própria aplicação”, necessitando, portanto, do talento da autoridade dotada de saberes especiais (experts) em sua recôndita sensibilidade para dizer que é a “vontade concreta da lei”, para aqui lembrarmos Chiovenda – o gigante da Ciência Dogmática do Direito Processual do século XX. “(LEAL. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. 2013, p. 8)

3. Proibição do non liquet e improcedência liminar do pedido: decisões tiranas no estado democrático de direito

Visto que a validade das decisões proferidas dentro de um Estado Democrático de Direito consiste na participação de seus destinatários na construção do provimento jurisdicional – elaboração e aplicação da norma, é anômala a existência de normas que proíbam o non liquet com fundamento em analogia e em costumes, pois, visivelmente, afrontam os direitos fundamentais da ampla defesa, do contraditório e da isonomia. Ignoram a soberania popular na produção das decisões ao colocarem à mercê da interpretação de um dito expert, conforme suas convicções principiológicas, o provimento final que será vinculado aos cidadãos que não participaram da construção desse e, muito menos, dessas convicções. A existência de lacunas deve ser encarada como oportunidade de criação de normas para seu preenchimento mediante a participação direta do povo, legitimado constitucionalmente mediante o devido processo legal. Confira-se, nesse contexto, a explicação de Rosemiro Pereira Leal sobre a questão:

Uma democracia radicalmente desamparada da physis, da ágora, da lexis e do bio-polytikos, há de se conjecturar na pós-modernidade por um salto epistemológico de uma linguisticidade escritural (contribuição jurídica) que possa ofertar o contraditório no âmbito (lacunas) da hubris (hybris) pela permissão de um non liquet como lugar de criação de sentido pela instituição teórica do devido processo (concepção neoinstitucionalista). Uma “situação ideal de fala”, como quer Habermas, não se adquire por melhores argumentos produzidos nos Juízos de Direito ou nos espaços públicos, mas por um direito constitucionalmente processualizado aos moldes neoinstitucionalistas com o apoio na falibilidade discursiva, conforme Popper.” (LEAL. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. 2013, p. 71)

Infelizmente, o que se vê na prática do Judiciário, ante a existência de lacunas, são decisões pautadas nos “melhores” argumentos apresentados pelas partes – conforme entendimento do juiz, em convicções pessoais do magistrado, em analogias ou costumes – por ele decididos, como mais adequadas ao caso concreto. Absurdo é saber que essas decisões tiranas, contrárias ao Estado Democrático de Direito, são asseguradas por normas infraconstitucionais. Confira-se, a propósito, o disposto nos arts. 4º e 5º da Lei n. 12.376/10 e nos arts. 126 e 131 do Código de Processo Civil brasileiro, nesses termos:

“Art. 4º – Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e princípios gerais de direito.

Art. 5º – Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. (BRASIL, Lei n. 12.376, 2014)

Art. 126 – O juiz não se exime de sentenciar ou despachar alegando lacuna ou obscuridade da lei. No julgamento da lide caber-lhe-á aplicar as normas legais; não as havendo, recorrerá à analogia, aos costumes e aos princípios gerais do direito. (BRASIL, Código de Processo Civil, 2014.)

Art. 131 – O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstancias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento.” (BRASIL, Código de Processo Civil, 2014.)

A Lei n. 12.376/10 nada mais é do que a transcrição do texto do Decreto-Lei n. 4.657, de 4 de setembro de 1942, da ditadura de Getúlio Vargas. Promulgada em 30 de dezembro de 2010, essa lei manteve em sua integralidade o texto do Decreto-Lei n. 4.567/42, em total desrespeito à Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, que estabeleceu no País o Estado Democrático de Direito, com todas as suas atribuições.

De forma semelhante, o texto do Código de Processo Civil brasileiro, apesar de ter sido foi formulado em época ditatorial, é tão inescrupuloso quanto a Lei n. 12.376/10, visto que se encontra em vigor até hoje, 26 anos após a promulgação da CR/88. Ao deixar aos juízes o poder de decisão conforme fontes não normatizadas no ordenamento jurídico brasileiro, o texto atropelou o Princípio da Reserva Legal e os direitos fundamentais da ampla defesa, do contraditório e da isonomia, corolários da democracia. Da leitura de seus dispositivos conclui-se que “aos juízes continua entregue o privilégio da livre interpretação do direito escrito e a atribuição de produção do direito na hipótese de ausência de normas ao enfretamento dos conflitos jurídicos.”. (LEAL, 2013).

Superada a decepção com os congressistas por deixarem incólume o texto do supracitado decreto-lei nos arts. 4º e 5º da Lei n. 12.376/10, esperava-se que, com o Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil, aprovado na Câmara dos Deputados em 26 de março de 2015, fossem retiradas do Código as normas de proibição do non liquet com resolução contrária aos princípios do Estado Democrático de Direito. Todavia, não é isso que se confere da redação aprovada, conforme se pode observar:

“Art. 8º – Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência. (http://www.direitoprocessual.org.br/download.php?f=5e513900c9435148931ae6646f9455fa)

Art. 10 – Em qualquer grau de jurisdição, o órgão jurisdicional não pode decidir com base em fundamento a respeito do qual não se tenha oportunizado manifestação das partes, ainda que se trate de matéria apreciável de ofício. (http://www.direitoprocessual.org.br/download.php?f=5e513900c9435148931ae6646f9455fa)

Art. 140 – O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico”. (http://www.direitoprocessual.org.br/download.php?f=5e513900c9435148931ae6646f9455fa)

O que se confere da leitura dos dispositivos acima transcritos é, em suma, uma releitura dos arts. 4º e 5º da Lei n.12.376/10, visto que se determina como atribuição do juiz atender aos fins sociais e às exigências do bem comum, não podendo o magistrado prolatar decisão fundamentada em motivos que não tenham sido expostos às partes, a fim de que essas, conhecendo esses motivos, possam manifestar-se sobre eles. Contudo, não se fala em exercício do contraditório, da ampla defesa e da isonomia na construção dessa decisão, já que não se vislumbra uma participação simétrica efetiva dos cidadãos – legitimados – na construção do provimento.

Ademais, percebe-se da leitura do art. 140 do Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil que os termos “analogia” e “costumes”, presentes na redação do art. 126 do CPC vigente, foram retiradas, mas, simultaneamente, não foram desautorizadas; logo, numa interpretação sistemática desses dispositivos com os demais dispositivos do novo Código de Processo Civil e os arts. 4º e 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Lei n. 12.376/10, conclui-se que os mencionados termos estariam disponíveis para aplicação ante a omissão da lei ou a existência de lacunas. Assim sendo, no que diz respeito ao emprego do devido processo legal para criação, a interpretação e a aplicação do Direito no Brasil, a última reforma do Código de Processo Civil não se sujeitou aos paradigmas do Estado Democrático de Direito e às normas constitucionais, pois impede uma construção discursiva mediante uma participação efetiva dos cidadãos como legitimados, conforme evidencia Rosemiro Pereira Leal:

“Não há indagar se o que não é proibido é permitido, se o sistema é aberto ou fechado, mas, no direito democrático, o que não é provido pelo devido processo legislativo fiscalizável processualmente por todos (devido processo legal) não é juridicamente existente.” (LEAL. Teoria processual da decisão jurídica. 2002, p. 39)

E esse autor complementa:

“É certo que o caráter oculto do sentido normativo é preservado pelo Judiciário nos Estados Liberal e Social de Direito como forma de reafirmar um saber interpretar que, extrapolando o sujeito da enunciação da norma (o legislador), só adquire inelegibilidade fora do próprio discurso normativo (LEI) que é o lugar extraceptivo (estado textual de exceção) no qual a auctoritas interdita o sentido da lei por consentimento da própria lei. Esse é o artifício (simulacro) acolhido pela Ciência Dogmática do Direito que, ao tempo em que coloca o princípio da reserva legal como garantia de uma interpretação democrática (pressuposto do embuste), dele simultaneamente se utiliza para, por lei, dispensar a existência de lei nas hipóteses em que não haja normas escritas específicas à compulsória resolução judicial dos conflitos.” (LEAL. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. 2013, p. 19)

Tão preocupante quanto os supracitados dispositivos é a forma como a jurisprudência vem sendo, muitas vezes, equivocadamente empregada no provimento final, como único fundamento deste, a exemplo das ditas “sentenças clonadas” no julgamento antecipadíssimo da lide com fulcro na redação do caput do art. 285-A do CPC vigente, nesses termos:

“Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.” (BRASIL, Código de Processo Civil, 2014.)

Tal artigo, introduzido no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei n. 11.277/06, afronta os princípios democráticos e o devido processo legislativo ao não permitir a participação dos interessados na construção do provimento final, visto que dispensa a citação e profere decisões iguais em casos que, conforme entende monocraticamente o magistrado, seriam idênticos ao “caso paradigma”, mesmo que diferentes seus sujeitos processuais.

Surpreendentemente ou não, a redação do Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil, aprovado pela Câmara dos Deputados em 26/3/2014, em vários de seus dispositivos, afronta ainda mais o Estado Democrático de Direito. Confira-se:

“Art. 333 – Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar:

I – súmula do Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça;

II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;

III – entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

IV – frontalmente norma jurídica extraída de dispositivo expresso de ato normativo;

V – enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local.

[…].(http://www.direitoprocessual.org.br/download.php?f=5e513900c9435148931ae6646f9455fa)

Art. 521 – Para dar efetividade ao disposto no art. 520 e aos princípios da legalidade, da segurança jurídica, da duração razoável do processo, da proteção da confiança e da isonomia, as disposições seguintes devem ser observadas:

I – os juízes e tribunais seguirão as decisões e os precedentes do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II – os juízes e tribunais seguirão os enunciados de súmula vinculante, os acórdãos e os precedentes de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinários e especial repetitivos;

III – os juízes e tribunais seguirão os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; […].” (http://www.direitoprocessual.org.br/download.php?f=5e513900c9435148931ae6646f9455fa)

Da leitura dos dispositivos supracitados, concebe-se um real engessamento das decisões judicacionais, impedindo-se a discursividade jurídica e, consequentemente, a adequação das decisões ao caso concreto, pois, não havendo discussão técnica e argumentativa na elaboração do provimento em completa ignorância das necessidades das partes em litígio, não há como construir uma decisão adequada das quais os destinatários tenham participado. Ou seja, há uma completa transgressão aos direitos fundamentais da ampla defesa, do contraditório e da isonomia, nos sentidos estudados em tópico ulterior e congruentes com o Estado Democrático de Direito. Em nome de uma suposta celeridade, infringem-se as garantias das partes – asseguradas pela CR/88 ao conferir soberania e legitimidade ao povo.

Em concordância com o explanado, Rosemiro Pereira Leal expõe que

“Ter a jurisprudência como ciência é outro arcaísmo que tem deveras contribuído para piorar a compreensão das novas perspectivas da producao e aplicação do direito na atualidade. Aceitar o direito como objeto reificado da ciência do Direito é uma tautologia bem própria dos realistas, que inferem pelo seu talento uma ciência de sua própria realidade processual para lidar com o direito culturalizado por uma jurisprudência de conceito ou de valores. (LEAL. Teoria processual da decisão jurídica. 2002, p. 123)

Ora, o Processo, como instituição constitucionalizante e constitucionalizada e fundadora do status democrático não paideico, não se desenvolve por relações métrico-temporais e espaciais (duração fatal), uma vez que, em sendo paradigma lingüístico-discursivo por princípios autocríticos (teoria neoinstitucionalista), é interpretante que atua ao longo da validade e legitimidade do sistema jurídico sempre aberto a um devir di-alógico (crítico) procedimental construtivo, reconstrutivo, desconstrutivo, afirmativo ou extintivo dos conteúdos de legalidade que possam ameaçá-lo ou lesá-lo (contrapor-se ao Processo).” (LEAL. A teoria neoinstitucionalista do processo: uma trajetória conjectural. 2013, p. 49)

Por isso se fala em tirania quando da criação, da prolação e da reiteração dessas decisões já que, na interpretação sistemática desses dispositivos com os arts. 8º, 10 e 140 do Projeto de Lei do Novo Código Civil e com os arts. 4º e 5º da Lei n. 12.376/10, estaria eternizada uma decisão fundamentada em princípios axiológicos e/ou costumes de seu prolator (Estado-juiz).

Conclusâo

Em sede de conclusão, com fulcro nos argumentos apresentados neste trabalho, sustenta-se a ideia de que a Teoria Neoinstitucionalista do Processo, de Rosemiro Pereira Leal, é adequada aos paradigmas do Estado Democrático de Direito, pois possibilita a construção, a atuação e a aplicação do direito na efetiva participação dos cidadãos (legitimados) pelo devido processo, no âmbito do espaço discursivo aberto à toda a sociedade (integrantes da comunidade jurídica), mediante o exercício da ampla defesa, do contraditório e da isonomia, pela possibilidade de uma constante recriação e fiscalização desses direitos como “condição discursiva e jurídico-espacial de validade e eficácia das decisões.”. (LEAL, 2002). Afasta-se a ideia do juiz como expert intérprete do direito e como titular de uma ideal percepção dos anseios da sociedade, que pode embasar suas decisões em fundamentos metajurídicos.

Ademais, por todo o exposto, conclui-se que, mesmo após 1988, quando instituído o Estado Democrático de Direito no Brasil com o advento da Constituição da República Federativa do Brasil, é a “Ciência Dogmática do Direito” que continua a ditar o processo em todos os âmbitos. Com apoio na dogmática analítica, normas como as que foram mencionadas neste trabalho – os arts. 4º e 5º da Lei n.12.376/10, os arts. 126, 131 e 285-A do CPC vigente e os arts. 8º, 10, 140, 333 e 521 do Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil – são inseridas no ordenamento jurídico brasileiro, em clara violação aos direitos fundamentais da ampla defesa, do contraditório e da isonomia, a ponto de causar estranheza, haja vista que os mesmos apoiadores de tais redações afirmam estar em uma democracia.

Sendo assim, com fulcro nesses argumentos, este estudo procurou demonstrar que a proibição do non liquet e a improcedência liminar do pedido, previsões expressas na Lei n. 2.372/10 – Código de Processo Civil vigente – e no Projeto de Lei do Novo Código de Processo Civil (aprovado na Câmara dos Deputados em 26/3/2014) são incongruentes com os paradigmas do Estado Democrático de Direito.

Referências
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LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do Processo em Crise. Belo Horizonte: Mandamentos, 2008.
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MACHADO, Antônio Cláudio da Costa. Código de Processo Civil interpretado: artigo por artigo, parágrafo por parágrafo, 9. ed. rev. e atual. Barueri, SP: Manole, 2010.
MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado artigo por artigo, 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
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Novo Código de Processo Civil – Relatório Deputado Paulo Teixeira, aprovado por unanimidade em 26/3/2014. Jus Podivm, em:
http://www.direitoprocessual.org.br/download.php?f=5e513900c9435148931ae6646f9455fa

Informações Sobre o Autor

Daniella Carvalho Perim

Especialista pela Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Processual do Instituto de Educação Continuada na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais — IEC PUC Minas. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – PUC Minas. Advogada.


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