A retroatividade benigna da lei tributária e o ato não definitivamente julgado

A IRRETROATIVIDADE DA LEI TRIBUTÁRIA

A regra geral, é que a lei tributária deve reger o futuro, sem se estender a fatos ou circunstâncias ocorridas anteriormente ao início de sua entrada em vigor. Só há legitimidade na norma se o contribuinte conhece de antemão a sua obrigação tributária e todos os elementos de mensuração. A certeza jurídica só é assegurada se os sujeitos sabem que todos os atos que praticarem durante a vigência  de uma lei, serão regulados por esta, que foi a levada em conta, quando do planejamento e da realização desses atos. Não faz sentido o sujeito levar a efeito um empreendimento, planificando todos os custos e despesas do mesmo, incluindo os reflexos tributários, se no futuro, lei poderá fazer incidir sobre o mesmo, tributo não incidente quando de sua implementação, tornando-o desvantajoso ao empreendedor. Ocorrido o fato gerador, adquire o contribuinte o direito de se submeter ao regime fiscal vigente quando da ocorrência deste.

A Constituição Federal, estabelece como norma geral, que a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (inciso XXXVI, art. 5o.), estabelecendo que em matéria penal a lei não retroagirá, salvo para beneficiar o réu (inciso XL, art. 5o). O Código Tributário Nacional, por seu turno, em seu art. 144, esclarece que o lançamento reporta-se à data da ocorrência do fato gerador da obrigação e rege-se pela lei então vigente, ainda que posteriormente modificada ou revogada.  Ao tratar do Sistema Tributário Nacional, o constituinte originário alçou o princípio da irretroatividade da lei tributária  como direito fundamental do contribuinte (alínea a, do inciso III, do art. 150), estando ao abrigo das chamadas cláusulas pétreas (inciso IV, do parágrafo 4o., do art. 60) e como tal resguardado de qualquer tentativa de supressão (mesmo parcial) pelo poder constituinte derivado. O princípio não impede lei que conceda uma vantagem ao contribuinte tenha incidência retroativa, já que como direito individual seu, só opera como regra protetiva, isto é, quando a lei cria ou aumenta um tributo.[1]

RETROATIVIDADE BENIGNA

O Código Tributário Nacional, em seu art. 106, II, estipula três casos de retroatividade da lei mais benigna aos contribuintes e responsáveis, tratando-se de ato não definitivamente julgado. O que deve ser compreendido como ato não definitivamente julgado veremos adiante. Este tópico, portanto, se preocupa com as três hipóteses em que a lei aplica-se a ato ou fato pretérito: a) quando deixe de defini-lo como infração; b) quando deixe de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo; c) quando lhe comine penalidade menos severa que a prevista na lei vigente ao tempo de sua prática.

As três hipóteses de retroatividade estampadas pela lei, acabam por beneficiar o contribuinte, sem empecilhos do ordenamento constitucional, que só proíbe a retroação de lei que  agrave sua situação. Manifestando-se sobre o assunto, é a doutrina abalizada de Héctor Belisario Villegas, para quem la retroactividad es exigencia constitucional sólo en cuanto representa una tutela para los imputados. Si después de cometido el hecho, el legislador modifica favorablemente las consecuencias de la imputación, es objetivamente justo que no se niegue el beneficio a quien esté en condiciones de ampararse en la mayor benignidad. [2]

Como observa com razão Hugo de Brito Machado, não se há de confundir aplicação “retroativa” nos termos do art. 106, II, com anistia, regulada nos arts. 180 a 182 do Código. Embora em ambas as hipóteses ocorra a aplicação da lei nova que elide efeitos da incidência de lei anterior, na anistia não se opera alteração ou revogação da lei antiga. Não ocorre mudança na qualificação jurídica do ilícito. O que era infração continua como tal. Apenas fica extinta a punibilidade relativamente a certos fatos. A anistia, portanto, não é questão pertinente ao direito intertemporal.[3]

As hipóteses das alíneas a e b, do inciso II, do art. 106, do CTN, autorizam a aplicação retroativa em casos de lei posterior deixar de definir um ato como infração (alínea a) ou deixar de tratá-lo contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, desde que não tenha sido fraudulento e não tenha implicado em falta de pagamento de tributo (alínea b).  Na hipótese da alínea a, não há condições exigidas para a aplicação retroativa da lei, basta o desaparecimento da infração no texto novo. Na hipótese da alínea b, por sua vez, há exigência de que não tenha ocorrido fraude, nem omissão de pagamento de tributo. Apesar da semelhança das duas situações, afinal quando a lei deixa de definir um ato como infração também está deixando de tratá-lo como contrário a qualquer exigência de ação ou omissão, a hipótese da alínea a, só pode ter aplicação, quando não se caracterizar a hipótese da alínea b, ou seja, a lei nova poderá ser utilizada pelo contribuinte sempre que a mesma deixar de definir um ato como infração, mas desde que a infração não resulte de fraude, nem omissão de pagamento de tributo devido. Caracterizado fraude ou omissão de pagamento de tributo, advindo da infração praticada, aplica-se a lei tributária vigente na data da ocorrência do fato gerador, sem prejuízo de aplicação retroativa da lei penal (inciso XL, art. 5o, CF). A alínea b, trata-se de norma específica que excepciona a regra geral da alínea a.

A hipótese da alínea c, do citado dispositivo, a lei nova continua prevendo penalidade para o ato levado a efeito pelo contribuinte, mas comina a este ato uma pena menos severa. A penalidade mais severa decorrente da lei vigente na data da ocorrência do fato gerador, é substituída por uma menos severa, advinda da lei nova.

No passado, a jurisprudência vinha distinguindo entre multa moratória e multa punitiva, para autorizar a retroatividade benigna apenas para a última. Hodiernamente, no entanto, a distinção apresenta-se superada na doutrina e na jurisprudência que entende que uma vez assegurada  correção monetária e juros moratórios, as sanções fiscais são sempre punitivas. É que se já exigidos correção monetária e juros de mora, qualquer acréscimo pecuniário implicará em penalidade, pouco importando a denominação utilizada. Se já não há dúvidas que a multa moratória constitui pena administrativa (Súmula 565, STF), como sanção fiscal punitiva, não há razoes jurídicas para se afastar a aplicação de lei nova mais benéfica, nos termos do inciso II, do art. 106, do CTN. [4]

ATO NÃO DEFINITIVAMENTE JULGADO

Apesar de ainda perdurar em parte da jurisprudência pátria, o entendimento de que ato não definitivamente julgado é aquele que não foi solucionado de forma definitiva em razão de impugnação ou recurso administrativo pendente de julgamento e que não havendo feito judicial pendente sobre a matéria, há ato administrativo perfeito e acabado, que já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou, está protegido contra a interferência da nova legislação pelo inciso XXXVI, do art. 5o, da CF (ato jurídico perfeito), tal posicionamento é minoritário. Mesmo aqueles que defendem este posicionamento, aceitam que a interpretação de ato não definitivamente julgado compreende tanto o julgamento administrativo, como o judicial. Entendem, no entanto, que tendo sido solucionado o feito na esfera administrativa e não tendo o contribuinte aforado ação judicial com o objetivo de questionar o débito, restará impedido de se beneficiar de lei nova. É óbvio que não é esta a interpretação que reclama o inciso II, do art. 106, já que não há qualquer exigência de que o contribuinte, após resolvido o feito administrativamente, tenha que, em seguida, procurar o Poder Judiciário. É perfeitamente possível e inclusive é o caminho normalmente escolhido pelo contribuinte, o de esperar que o Fisco inscreva o título em dívida ativa e promova a cobrança via executivo fiscal. Afinal, se a exegese que se extrai do dispositivo legal é a de que prevalece não só para a autoridade administrativa como para a judiciária, não há de se ter o ato como definitivamente julgado. Ou como já se pronunciou o Pretório Excelso: se ainda comporte o ato recurso ao judiciário não há como dizer-se estar ele definitivamente julgado. [5]

Estando o crédito tributário impugnado judicialmente via ação anulatória de débito fiscal ou qualquer ação aonde o contribuinte demonstre seu inconformismo pela exigência, a retroatividade benigna prevista pelo Código Tributário poderá ser implementada até a extinção do feito. E na execução fiscal, quando é que o ato torna-se definitivamente julgado, impedindo a retroatividade benéfica da lei nova?

A matéria comporta duas correntes e ambas possuem defensores junto ao Egrégio Superior Tribunal de Justiça. Uma das correntes, entende que o momento processual limite para a retroação é até decorrer o prazo assinalado para os embargos, eis que após prossegue a execução somente com a prática de atos materiais, não dando mais lugar para incidentes próprios do processo de conhecimento.

Neste sentido o posicionamento da Segunda Turma, relatado pelo Eminente Ministro Ari Pargendler, nos autos do Recurso Especial n. 184.642/SP, verbis:

TRIBUTÁRIO. MULTA. REDUÇÃO. LEI MAIS BENIGNA. Constitui ato não definitivamente julgado o lançamento fiscal impugnado por meio de embargos do devedor em execução fiscal  (CTN, art.106, II, c), mas o lançamento fiscal que já não pode sofrer ataque por meio de embargos de devedor, porque decorrido o prazo destes, é ato definitivamente julgado, que não pode ser revisto por petição atravessada nos autos da execução fiscal. Recurso Especial conhecido e provido.[6]

A Primeira Turma, por sua vez, entende que o ato definitivamente julgado deve ser entendido como ato consumado por decisão judicial, não necessariamente por sentença. Na execução fiscal, o processo só se finda com sua extinção na forma do art. 794, do CPC, ou com a arrematação, adjudicação ou remição definitivamente realizados, mesmo que transitada em julgado eventual sentença prolatada em embargos da executada.

A ementa do julgado, relatado pelo Eminente Ministro Demócrito Reinaldo Recurso Especial n. 94.511/PR,  porta a seguinte redação, literis:

EXECUÇÃO FISCAL. REDUÇÃO DE MULTA EM FACE DO DECRETO – LEI N° 2.471/88. ART. 106, II, C, DO CTN. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENIGNA AO CONTRIBUINTE. POSSIBILIDADE.

O art. 106 do Código Tributário Nacional admite a retroatividade, em favor do contribuinte, da lei  mais benigna, nos casos não definitivamente julgados.

Sobrevindo, no curso da Execução Fiscal, o Decreto-Lei n° 2.471/88, que reduziu a multa moratória de 100% para 20% e, sendo possível a aplicação da lei mais benigna, sem ofensa aos princípios gerais do direito tributário.

Na execução fiscal, as decisões finais correspondem às fases da arrematação, da adjudicação ou remição, ainda não oportunizadas, ou, de outra feita, com a extinção do processo, nos termos do art. 794 do Código de Processo Civil. Recurso improvido. Decisão unânime. [7]

Restando incontroverso nas duas correntes que a retroação do art. 106 pode atingir penalidades já em fase de cobrança executiva e levando-se em conta que os embargos previstos no artigo 16, da Lei 6.830/80 têm a natureza de ação e como opção do devedor podem não serem opostos, o que não impediria a retroação ser enfrentada na própria peça executiva e levando-se em conta ainda que na execução fiscal não há sentença, o limite temporal há que ser efetivamente as decisões finais promovidas na execução, que corresponde às fases da arrematação, da adjudicação ou da remição, ou com a extinção do processo, na forma do art. 794, do CPC.

É que enquanto não extinto o crédito tributário o ato não pode ser tido como definitivamente julgado, sendo irrelevante se já houve ou não a apresentação de embargos ou se estes já foram julgados, já que ainda pendente aquele.

Sobrevindo lei nova que beneficie o contribuinte pela caracterização de qualquer hipótese prevista em uma das alíneas do inciso II, do citado artigo, o interessado, em qualquer grau de jurisdição, enquanto não extinto o crédito, poderá apresentar petição demonstrando os fatos, cuja matéria há de se sobrepor à análise do mérito do crédito (em caso de anteceder o julgamento – sentença ou acórdão – em sede de embargos ou ação ordinária) ou, no caso da apreciação se implementar em executivo fiscal, ser a manifestação conhecida como exceção de pré-executividade e anulado o débito fiscal excutido, já que há muito sepultado o posicionamento de inadmitir tal defesa em sede de execução fiscal. Afinal, mesmo líquido e certo, o título tornou-se inexigível (art. 618, I, CPC) por apresentar-se indevido em decorrência de expressa previsão legal que determina a retroatividade benigna. E mais: Sempre que a lei nova não ressalve os efeitos da lei anterior, verificado uma das hipóteses do art. 106, o juiz, de ofício, pode anular o débito fiscal (alínea a e b, do inciso II) ou reduzir a penalidade (alínea c, do inciso II), sem impingir máculas aos princípios gerais do direito tributário.

 

Notas:
[1] Valdés COSTA apresenta bem elaborado panorama luso-hispano-americano a respeito da irretroatividade: La Constitución de Bolivia  dispone en general la irrretroactividad, excepto “en materia social cuando la ley expresamente lo determine y en materia penal cuando beneficie al delincuente”. Brasil, en su Constitución de 1988, establece como norma general, que la ley não perjudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; en materia penal, que “não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”(art. 5º, nums. XXXVI y XL); en materia tributaria, como limitación al poder de tributar, prohíbe establecer tributos sobre hechos generadores ocurridos con anterioridad a la ley, o en el mismo ejercicio financiero en que esta haya sido publicada, en este último caso, con excepciones taxativamente enumeradas relativas a impuestos indirectos (art. 150). Colombia, en su Constitución de 1991, en materia penal establece que “nadie podrá ser juzgado sino conforme a leyes preexistentes…” y que “la ley permisiva a favorable, aun cuando fuere posterior, se aplicará de preferencia a la restrictiva o desfavorable”(art. 29). En materia tributaria dispone que las leyes “no se aplicarán con retroactividad”(art. 363) con especificación de la aplicación de este criterio a las normas “que graven hechos generadores periódicos (art. 338). Chile admite expresamente la retroactividad de la ley que favorezca al afectado”(Constitución de 1980, art. 19). Ecuador, en su Constitución de 1978, dispone que “no se dictarán leyes tributarias en perjuicio de los contribuyentes”. La Constitución de España garantiza la irretroactividad de las disposiciones “sancionadoras no favorables o restrictivas de derechos individuales”, debiendo anotarse la supresión de la referencia que el proyecto hacía a las disposiciones “fiscales”. México, en una disposición que ha provocado discrepancias sobre su alcance, dispone que “a ninguna ley se dará efecto retroactivo en perjuicio de persona alguna”(art. 14 de la Constitución). Paraguay, en su Constitución de 1992, en el capítulo que regula la liberdad, dispone que “ninguna ley tendrá efecto retroactivo, salvo que sea más favorable al encausado o al condenado”(art. 14), texto que se diferencia del anterior por suprimir la mención de “leyes penales” en la segunda parte de la disposición. Perú, como ya se anotó, modificó el régimen suprimiendo la referencia a la retroactividad de las leyes laborales y tributarias más favorables a los trabajadores y contribuyentes, manteniéndola solo para la “materia penal cuando favorece al reo”(art. 103). Igual solución rige em Portugal. Venezuela, en una solución similar a la de México, há establecido en su Constitución, en forma general, que “ninguna disposición legislativa tendrá efecto  retroactivo”, com la única excepción de la que “imponga menor pena” (art. 44). Argentina y Uruguay no tienen normas constitucionales expresas sobre retroactividad, pero en sus códigos civiles se consagra el criterio de la irretroactividad como regla, que obviamente puede ser alterada por otras leyes, como há sucedido con los códigos penales y el C.T.U. Curso de Derecho Tributario. Buenos Aires: Edicionés Depalma,  p. 244/245,1992.
[2] VILLEGAS, Héctor Belisario. Curso de Finanzas, derecho financiero e tributário, 8a. ed., Buenos Aires: Astrea, p. 243,2002.
[3] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 13a ed.  São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 71.
[4] O Pretório Excelso em sessão plena já referendou a tese de inexistir base jurídica para a distinção, como se verifica, p. ex. no julgamento do RE 79.625 in RTJ 80/104.
[5] STF – RE 95.900-9, DJU 08.03.85, P. 2602.
[6] Resp. 184.642/SP. Julgada pelo STJ, em data de 27 de outubro de 1998, Rel. Min. Ari Pargendler. DJU 07/12/1998, p. 78.
[7] Recurso Especial n° 94.511-96/PR. Julgado pelo STJ em 21 de outubro de 1996. Rel. Min. Demócrito Reinaldo, DJU 25/11/96, p. 46.154.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Célio Armando Janczeski

 

Advogado em Santa Catarina, Professor de Direito Tributário de Faculdade Mater Dei e Professor da Escola Superior da Advocacia da OAB.

 


 

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