Os efeitos devastadores do tsunami tributário

Presentear o indefeso contribuinte no final do ano, com medidas legislativas opressoras, já se incorporou definitivamente na rotina da atividade legislativa a cargo, tanto dos parlamentares, como também do legislador palaciano.

Independentemente da reforma tributária em andamento há décadas, com uma parte dela já aprovada, resultando na brutal elevação da carga tributária, os “pacotes tributários” vêm sendo despejados ao longo desses vinte anos, sob os mais diferentes pretextos: crise mexicana; crise asiática; crise russa, crise da Tailândia, crise da bolsa etc. A pressão da sociedade para corrigir a tabela do IR foi utilizada, pela segunda vez, para aumentar os tributos. A primeira foi em 2001. Agora, novamente repetiu-se o filme de 2001.

Só que, desta vez, precedida, para efeitos de mídia, de bombásticos pronunciamentos das autoridades fazendárias dando conta da “perda” de milhões e milhões de reais, uma verdadeira sangria nos cofres da União.

Na época pensei: quanto maior o choro, maior a apunhalada que virá depois. Eticamente, não se poderia falar em “perdas”, mas, em diminuição do aumento indireto e ilegal do imposto, por conta de um processo inflacionário, sempre sob controle na exata medida desejada pelo governo. Por isso, inflação é sinônimo de imposto inominado.

Pois bem, fez-se uma ridícula correção na tabela do IR, que repõe apenas uma parte dos índices inflacionários dos últimos anos e, em troca, o legislador palaciano editou um “pacote” que eleva a carga tributária de forma truculenta, o que, certamente, fará bater novo recorde de arrecadação de fazer inveja aos países do primeiro mundo. Se a sociedade não tivesse exercido a legítima pressão para forçar o governo a corrigir a tabela do IR, certamente outro pretexto seria invocado para atingir o sempre castigado setor de prestação de serviços com um efeito devastador, o efeito “tsunami tributário”.

Enquanto não se colocar um ponto final no processo de expansão gradual da estrutura paquidérmica do Estado, mais e mais receitas serão necessárias para azeitar os instrumentos, quase sempre enferrujados, pouco ou quase nada sobrando para atingimento dos fins do Estado. Parodiando Ataliba Nogueira eu diria: “O Estado é meio, o fim não existe”. A sociedade, o povo é mero instrumento de transferência de riquezas para o Estado. E aqui é oportuno transcrever trecho do artigo do jurista Ives Gandra da Silva Martins, quando ele afirma: “A primeira vaca sagrada é: ‘O Estado, via tributos, é um bom redistribuidor de riquezas’. Mentira. O Estado tem sido um bom repassador de riquezas para os detentores do poder, que se auto-outorgaram fantásticos privilégios, principalmente nos vencimentos e subsídios e na multiplicação desmedida de cargos e funções a permitir, cada vez mais, que os amigos do poder tenha seu futuro assegurado. Conclusão: o Estado se auto-distribuiu as riquezas, tirando-as da sociedade, através da elevação da carga tributária de 26 para 37% do PIB”. (Vacas sagradas tributárias, Valor Econômico, B2, 24-04-2003). Nada mais é preciso dizer.

Análise do “pacote” – Os benefícios dos arts. 1º a 3º da MP nº 232/04, que corrige timidamente a tabela do IR e os valores a serem deduzidos, são anulados pelas disposições seguintes que representam uma elevação da carga tributária infinitamente maior do que a propalada “perda” de arrecadação do IR, decorrente da pífia atualização monetária de valores.

I – O artigo 5º, mediante alteração sub-reptícia do artigo 30 da Lei nº 10.833/03, expandiu o elenco de pessoas jurídicas sujeitas à retenção na fonte da CSLL, da Cofins e da contribuição ao PIS/Pasep, excetuando da retenção as empresas estrangeiras de transporte. As empresas nacionais somente se livram da retenção da Cofins e do PIS/Pasep (não da CSLL) nas hipóteses de transporte internacional, o que violenta duplamente o princípio da isonomia.

II – O art. 6º, mediante remissão às pessoas jurídicas que produzem mercadorias relacionadas nos artigos 8º e 15 da Lei nº 10.925/04 (mercadorias de origem vegetal e animal), submete à retenção do IR na fonte, à alíquota de 1,5%, todos os pagamentos por elas feitos a fornecedores de insumos, que geram direito a crédito presumido. Se o fornecedor for pessoa jurídica impõe-se, também, a retenção da CSLL à base de 1%.

O regime de retenção na fonte aplica-se, também, às demais hipóteses de pagamentos efetuados por pessoa jurídica à pessoa física ou à pessoa jurídica que dêem direito a crédito presumido na forma dos parágrafos 19 e 20 da Lei nº 10.833/03. Os valores retidos na quinzena, devem ser recolhidos até o último dia útil da semana subseqüente, contrastando com a extrema morosidade do poder público no pagamento de suas dívidas passivas. A retenção é dispensada para pagamento de valor igual ou inferior a R$ 5 mil em se tratando de pessoa jurídica e, em se tratando de pessoa física, até o valor equivalente ao limite de isenção previsto na tabela progressiva do IR.

III – O art. 7º instituiu outras hipóteses de retenção do IRPF, à alíquota de 1,5%, relativamente às importâncias pagas por pessoas jurídicas a outras pessoas jurídicas de direito privado, inovando a legislação do imposto de renda mediante inclusão de prestação de serviços antes não alcançados pela tributação na fonte. O valor retido deverá ser recolhido até o terceiro dia útil da semana subseqüente, pois o Leão tem sede e não pode esperar a virada do mês ou da quinzena. O que acarreta maiores providências burocráticas ao contribuinte.

IV – O art. 8º eleva de 1% para 1,5% a retenção na fonte pelos pagamentos feitos por pessoas jurídicas a prestadores de serviços de limpeza, conservação, segurança, vigilância e locação de mão-de-obra de que trata o art. 3º do Decreto Lei nº 2.462/88.

V – O art. 9º prescreveu que a variação cambial dos investimentos no exterior avaliados pelo método de equivalência patrimonial é considerada receita ou despesa financeira, devendo compor o lucro real e a base de cálculo da CSLL do período de apuração.

Trata-se de reedição do artigo 46 da Lei nº 10.833/03, vetado pelo Executivo, porque no ano calendário de 2003 registrou-se variação cambial negativa a propiciar possibilidade de dedução de despesas para as pessoas jurídicas controladas ou coligadas no exterior, com conseqüente queda de arrecadação no exercício de 2004.

Ora, a incorporação de mera variação cambial, sem alteração do valor nominal da moeda forte, no lucro real, pode implicar superação da renda efetivamente auferida pela empresa, passando a tributar o patrimônio, e não a renda, em desconformidade com o fato gerador do imposto, previsto no art. 43 do Código Tributário Nacional (CTN). A variação cambial positiva, por si só, não representa lucro ou renda para o investidor. Quase sempre, a taxa cambial do dia da efetiva liquidação da operação não coincide com aquela vigente à época do encerramento do período de apuração. Por isso, só se pode falar em lucro ou prejuízo, gerando receita financeira ou prejuízo financeiro, ao final do investimento, por meio de venda ou recebimento de lucros. O STF já se manifestou no sentido de que o fato gerador previsto no art. 43 do CTN exige efetiva disponibilidade do lucro como se verifica na ementa seguinte:

Imposto de Renda – Retenção na Fonte – Acionista. O artigo 35 da Lei nº 7.713/88 é inconstitucional ao revelar como fato gerador do imposto de renda na modalidade ‘desconto na fonte’, relativamente aos acionistas, a simples apuração, pela sociedade e na data do encerramento do período-base, do lucro líquido, já que o fenômeno não implica qualquer das espécies de disponibilidade versadas no artigo 43 do CTN, isto diante da Lei nº 6.404/76 (RE 172058/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 13-10-95, p. 34282).

VI – O art. 10 introduz algumas alterações positivas ao prever a possibilidade de informatização do processo administrativo tributário da União (Decreto nº 70.235/72), permitindo a prática de atos e termos processuais por meios eletrônicos ou apresentados em meio magnético ou equivalente. Permite, também, a unificação dos autos de infração em um único processo, quando a comprovação dos ilícitos depender dos mesmos elementos probatórios.

Porém, esse artigo introduziu também a parte negativa. Mediante alteração do art. 25 do Decreto nº 70.235/72 suprimiu-se o recurso aos Conselhos de Contribuintes para as hipóteses enumeradas na letra “A” do inciso I do art. 25 do estatuto básico, com a redação dada pelo art. 10 sob comento. Dentre elas, processos relativos a penalidades por descumprimento de obrigações acessórias, a restituição, a compensação, a exigência de crédito tributário de valor inferior a R$ 50 mil etc. Em todas essas hipóteses, o processo é submetido à instância única, a ser julgado por um órgão monocrático da Receita Federal, sem possibilidade de acesso ao colegiado, composto de representantes das partes litigantes.

Ora, a expressão “ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”, contida no inciso LV do art. 5º da CF, que cuida das garantias asseguradas aos litigantes de processo judicial ou administrativo, está a exigir a manutenção de instância recursal em todas as hipóteses. O legislador constituinte não deixou nenhuma margem de manobra ao legislador ordinário, para flexibilizar o princípio incerto no citado inciso LV.

Os ataques aos Conselhos de Contribuintes, criados no governo Getúlio Vargas, pelo Decreto nº 20.350/31, são freqüentes em razão de sua agilidade, rapidez, eficiência e imparcialidade. Parece verdadeiro o velho ditado: “É proibido dar certo”. Os membros dos Conselhos têm uma vantagem em relação aos membros do Judiciário, porque são especialistas que cuidam tão só de questões tributárias e não estão sujeitos à rotatividade que caracteriza os juízes de direito, os quais, são obrigados a se deslocar de um lugar para outro, lidando com os mais variados assuntos, que são despejados aos montes diariamente. Já houve tentativa legislativa de subordinar os Conselhos de Contribuintes à estrutura da Secretaria da Receita Federal. Fracassada essa tentativa, o ministro da Fazenda baixou a Portaria nº 110/95 delegando ao secretário da Receita Federal a competência para exonerar e nomear os titulares e substitutos dos 1º, 2º e 3º Conselho de Contribuintes, que são órgãos do mesmo grau de hierarquia da Secretaria da Receita Federal. A chicana não deu certo em razão do vigoroso posicionamento da classe jurídica, em sentido contrário. Mais recentemente, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional editou o Parecer nº 1.087/04 possibilitando a propositura de ação judicial contra decisões do Conselho, contrárias à Fazenda, ignorando os princípios da separação dos Poderes e da vinculação da Administração a seus próprios atos. Agora, surge esse entulho autoritário que faz tabula rasa ao princípio constitucional da ampla defesa com os recursos a elas inerentes. Executivo e Legislativo revezam-se, periodicamente, na tarefa de destruição do que existe de melhor em termos de administração da justiça tributária.

VII – O art. 11, mediante alterações dos artigos 15 e 20 da Lei nº 9.249/95 elevou a base de cálculo do IR das pessoas jurídicas e da CSLL de 32% para 40% em relação às seguintes atividades: prestação de serviços em geral, exceto a de serviços hospitalares; intermediação de negócios; administração, locação e cessão de bens imóveis, móveis e direitos de qualquer natureza; e prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia, mercadológica, gestão de crédito, seleção de riscos, administração de contas a pagar e a receber, compra de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços (factoring).

Mais uma vez, o setor de prestação de serviços foi escolhido para patrocinar o festival de gastança governamental, contemplado que foi com brutal aumento de 25% de IR e da CSLL.

E aqui é oportuno esclarecer o equívoco em que incorrem alguns articulistas, no sentido de que esse aumento de 32% para 40% aplica-se exclusivamente para os optantes do regime de lucro presumido. Não, aplica-se também para a hipótese de apuração do imposto pelo lucro real anual, quando o recolhimento mensal por estimativa deverá levar em conta a base de cálculo de 40%. Igualmente, oportuno lembrar que esse aumento só surtirá efeito a partir de 1º de janeiro de 2006, por força do parágrafo 2º do art. 62 da CF, acrescido pela EC nº 32/01.

VIII – O art. 12 criou mais uma hipótese de IRPF, à alíquota de 15%, por ocasião do pagamento de benefícios ou resgate de valores acumulados, na forma do art. 1º da Lei nº 11.053/04, para os participantes dos planos de benefícios de caráter previdenciário, estruturados nas modalidades de contribuição definida ou contribuição variável das entidades de previdência complementar, relativamente àqueles que não tenham optado pelo regime de tributação definitiva.

IX – O art. 13 prorroga até 31 de dezembro de 2006 as subvenções econômicas para cobrir os déficits da Companhia de Navegação do São Francisco – Franave. Verifica-se que o dinheiro do contribuinte não serve apenas para socorrer instituições financeiras quebradas (Proer), mas para subvencionar também empresas de navegação aérea e agora, de navegação marítima.

X – O art. 15 revogou dois benefícios tributários:

a) suspensão da exigibilidade do PIS/Pasep importação e da Cofins importação prevista nos artigos 14, parágrafo 1º e 14-A da Lei nº 10.865/04 (artigo 5º da Lei nº 10.996/04);

b) a exclusão da base de cálculo do lucro real e da base de cálculo da Cofins de pessoa jurídica, da parcela correspondente à diferença entre o valor de integralização de capital, resultante de incorporação do patrimônio de outra pessoa jurídica que efetuar a subscrição e integralização, e o valor dessa participação societária registrado na escrituração contábil dessa mesma pessoa jurídica (art. 36 da Lei nº 10.637/02).

Do conteúdo dos artigos 13 e 15 verifica-se que o esperto legislador palaciano vestiu um santo e despiu dois.

XI – Finalmente, o art. 14 fixa a vigência na data da publicação da MP produzindo efeitos nas seguintes datas:

(a) a tributação de variação cambial (art. 9º) e a elevação da base de cálculo da CSLL de 32% para 40% (art. 11), a partir de 1º de abril de 2005.

(b) elevação da base de cálculo do imposto de renda das pessoas jurídicas de 32% para 40% (art. 11), a partir de 1º de janeiro de 2006.

(c) retenção do IR na fonte por ocasião de pagamentos efetuados pelas pessoas jurídicas, nas hipóteses previstas nos artigos 6º e 7º, a partir de 1º de fevereiro de 2005.

(d) novo elenco de prestadores de serviços sujeitos à retenção do imposto na fonte (artigo 5º), a partir de 1º de fevereiro de 2005;

(e) elevação da alíquota do IRPF de 1% para 1,5% para determinados prestadores de serviços (art. 8º), a partir de 1º de fevereiro de 2005;

(f) os demais dispositivos surtem efeitos a partir de 1º de janeiro de 2005.

Conclusões – O pacote tributário ilegitimamente baixado pelo legislador palaciano, no apagar das luzes de 2004, é nebuloso e extremamente prolixo exigindo para sua interpretação o exame de inúmeras leis referidas que, por sua vez, fazem referência a inúmeras disposições de outras leis. É a velha técnica de camuflagem dos aumentos tributários.

Porém, é certo que a MP nº 232/04 causa efeitos devastadores como os do tsunami que até hoje perduram. O combalido setor de prestação de serviço foi novamente tungado, desta vez, com monumental aumento de 25% em seus tributos. Majorações diretas e indiretas estão embutidas no tsunami tributário: a tributação da variação cambial; novas hipóteses de retenção na fonte; encurtamento do prazo de recolhimento do tributo retido. A competência dos Conselhos de Contribuintes foi castrada como que investindo na morosidade do Judiciário, onde o pequeno contribuinte não terá acesso em razão de custas, honorários, além da inexistência de suspensão da exigibilidade do crédito tributário a não ser na remota hipótese de uma liminar.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Kiyoshi Harada

 

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 


 

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