Evolução histórica do conceito de cidadania e a Declaração Universal dos Direitos do Homem

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Resumo: O presente trabalho visa demonstrar o conceito jurídico de cidadania e sua transformação histórica no decorrer dos tempos. Demonstrará, também, o link existente da cidadania dentro da Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada em 1948. Como a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trata do assunto, ao impor destaque desde o início do texto constitucional, ou seja o artigo 1º.

Palavra-chave: Cidadania, Constituição; Declaração Universal dos Direitos Humanos

Sumário: 1- Introdução. 2- Evolução Histórica do Conceito de Cidadania 3- A Inter-Relação entre Cidadania e Direitos Humanos. 4- Cidadania no Direito Brasileiro; 5- Conclusão; 6- Referências Bibliográficas;

1 INTRODUÇÃO

O conceito de cidadania, assim como o Direito, se renova constantemente diante das transformações sociais, do contexto histórico vivenciado e principalmente diante da mudança de paradigmas ideológicos. Por tal razão é possível afirmar que cidadania não é uma idéia estática, mas dinâmica. Neste sentido, destaca-se:

“O conceito contemporâneo de cidadania se estendeu em direção a uma perspectiva na qual cidadão não é apenas aquele que vota, mas aquela pessoa que tem meios para exercer o voto de forma consciente e participativa. Portanto, cidadania é a condição de acesso aos direitos sociais (educação, saúde, segurança, previdência) e econômicos (salário justo, emprego) que permite que o cidadão possa desenvolver todas as suas potencialidades, incluindo a de participar de forma ativa, organizada e consciente, da construção da vida coletiva no Estado democrático[1]”.

A cidadania conhecida na antiguidade clássica não é a mesma cidadania por que lutamos hodiernamente e a que almejamos concretizada nas gerações futuras.

De há muito cidadania deixou de ser simplesmente o direito de votar e ser votado. Cidadania é muito mais que isto. É ter educação de qualidade, saúde, informação, poder de participação na condução das políticas públicas e igualdade de oportunidades.

Neste sentido, ao longo dos tempos restou claro que a cidadania apresenta forte interligação com a conquista dos direitos humanos, sendo que o estudo de ambos deve ser feito de forma conjunta a possibilitar melhor compreensão do tema.

Cabe, portanto, aos estudiosos do direito conhecer o passado para entender o presente e encontrar instrumentos para melhorar o futuro. É essa viagem que se pretende e a que se convida o leitor.

2 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO CONCEITO DE CIDADANIA

A palavra “cidadania” provém do latim civitatem que significa cidade. Isto nos remete a expressão grega polis, cidades-estados antigas; tipo de organização a que é atribuído, pela maioria dos historiadores, o conceito tradicional de cidadania. Nesta fase cidadania se restringia à participação política de determinadas classes sociais. Cidadão era o que morava na cidade e participava de seus negócios.[2]

Não é incorreto afirmar que na Grécia antiga, cidadania era confundida com o próprio conceito de naturalidade, visto que cidadãos eram somente os nascidos em solo Grego e só esses podiam exercer e usufruir dos direitos políticos. E assim era devido ao regime aristocrático dominante.

O mesmo ocorria em Roma, onde se via claramente a exclusão dos romanos não nobres e de estrangeiros, que não detinham nenhuma espécie de direitos.

Nota-se, portanto, que tanto na Grécia quanto em Roma a cidadania mostrava-se como um direito de poucos, havendo uma discrepância entre o discurso teórico e a aplicação prática na sociedade.

Na Idade Média, com o advento das mudanças trazidas pelo feudalismo logo no primeiro período, isto é, o que sucedeu à queda do Império Romano, a preocupação política cedeu espaço à questão religiosa e a idéia de cidadania foi relegada a segundo plano. A sociedade de estamentos apresentava uma organização que incluía a nobreza, o clero e os camponeses, tendo referidas classes direitos e privilégios distintos.

Tal situação só se modificou com o surgimento dos estados nacionais. Neste período denominado historicamente como Baixa Idade Média, reaparece a noção de estado centralizado e com ele a clássica visão da cidadania, ligada aos direitos políticos.

Contudo, as mudanças sociais advindas das novas necessidades materiais aliada ao fenômeno da cristianização passou a exigir uma reformulação do conceito de cidadania que já não atendida às demandas, surgindo daí a semente do ideal de igualdade.

Com o iluminismo vivenciamos um período de transição e de transformações políticas, econômicas, artísticas, contribuindo também para o despertar do ideal de liberdade.

Movidos por esta chama filósofos como Locke e Rousseau defenderam a democracia liberal, distante do direito divino e que tinha por base a razão. Merece destaque as idéias de Rousseau que preconizava ainda um caráter universal para os direitos. Muito influenciaram essas idéias nas lutas políticas da época, sendo alicerce para os movimentos de independência de colônias americanas e de revoluções tais como a Francesa e a Inglesa. Entretanto, neste período, diante do fato de que a sociedade ideal apontava desigualdades sociais, a cidadania também foi tolhida, de certa forma, de seu sentido mais amplo.

Os séculos XIX e XX foram responsáveis por progressos significativos que repercutiram no conceito de cidadania.

A Revolução Francesa e a Revolução Americana inseriram no contexto mundial um novo tipo de Estado, carregando consigo os ideais de liberdade e igualdade e embora tivessem uma origem burguesa auxiliaram na busca pela inclusão social. Aliado a tudo isto despontavam as lutas sociais. A cidadania passa, por fim, a manter íntima vinculação com o relacionamento entre a sociedade política e seus membros.

As duas guerras mundiais foram decisivas para a mudança de ideologia sobre a cidadania e o medo advindo das atrocidades praticadas e alicerçadas pela legalidade fez com que órgãos internacionais e a própria sociedade civil passassem a entender cidadania como algo indissociável dos direitos humanos.

O conceito de cidadania passou a ser vinculado não apenas à participação política, representando um direito do indivíduo, mas também o dever do Estado em ofertar condições mínimas para o exercício desse direito, incluindo, portanto, a proteção ao direito à vida, à educação, à informação, à participação nas decisões públicas.

Mesmo diante de todos estes avanços ainda hoje se percebe as inúmeras violações aos direitos humanos e a ausência de cidadania plena a considerável parcela da população que se diz excluída, em especial, nos países subdesenvolvidos e emergentes.

Podemos assim, abeberando-nos da lição de Norberto Bobbio[3], assegurar que a cidadania é uma luta diária, e que hoje não basta apenas elencar e fundamentar direitos é preciso efetivá-los. Este é o desafio de nosso tempo.

Para tanto, a informação é instrumento indispensável nesta empreitada, porque somente conhecendo seus direitos é que o cidadão terá condições para reivindicá-los. Daí o papel fundamental da educação, a mais fecunda de todas as todas as medidas financeiras, nas palavras de Rui Barbosa[4].

Cidadania no conceito moderno deixa de ser apenas o direito destinado ao indivíduo de participar ativa e passivamente do processo político. É mais que isto, é também o dever do Estado para com cidadão, dever de ofertar o mínimo existencial para garantir-lhe a dignidade.

3-A Inter-relação entre Cidadania e Direitos Humanos

Vimos ao longo da história que cidadania e direitos humanos se interligaram de tal maneira que hoje é incabível dissociá-los.

A noção de cidadania sempre esteve voltada para um agir, para uma conduta positiva de participação. Já os direitos humanos, considerados como direitos básicos, direitos fundamentais internacionalizados, foram vistos em determinadas épocas apenas como direitos negativos (função de defesa), outras como direitos positivos (função de prestação) e atualmente como direitos que exigem do Estado condutas positivas e negativas (direito de participação).

A partir do momento que a cidadania deixou de ser vista restritivamente passando a garantir ao cidadão o direito de exigir do Estado condutas negativas e positivas, isto é, a implementação dos direitos fundamentais individuais e sociais, tornou-se intimamente ligada aos direitos humanos.

É cediço que ambos são direitos a serem conquistados, são frutos de um processo histórico, de conquistas, avanços e mudança de comportamento, não podendo ser entendidos como direitos subjetivos inerentes aos indivíduos.

Os direitos humanos nada mais são que os direitos fundamentais da pessoa humana. São necessários como forma de garantir a participação plena na vida social. Aí se encontra o elo que liga os conceitos de cidadania aos direitos humanos. Se considerarmos que cidadania é o direito de participação na sociedade e que para seu efetivo exercício deve o cidadão ser resguardado de direitos básicos, tais como a vida, a moradia, a educação, a informação, dentre outros e considerando que estes direitos são direitos básicos de qualquer ser humano, logo podemos concluir que a violação de direitos humanos redunda em prejuízo ao pleno exercício da cidadania.

Registra-se que, surgindo na Grécia antiga, a concepção do direito natural como aquele direito eterno, imutável, universal, anterior a qualquer outro, foi este o grande precursor dos direitos humanos.

Assim como a cidadania, os direitos humanos também foram se consolidando no decorrer da história, envolto nas concepções ideológicas do Estado Liberal, do Estado Social ou da providência e mais recentemente no Estado Democrático de Direito.

Após a 2ª Guerra Mundial, e diante dos horrores provocados pelo holocausto, grande marco de desrespeito ao valor dignidade da pessoa humana, os direitos humanos ganharam força. Isto culminou na criação da Organização das Nações Unidas e em seqüentes tratados de Direitos Humanos a destacar a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Referida declaração foi proclamada pela ONU em 10 de dezembro de 1948 e representa uma tentativa de convergência de todos os valores que já foram buscados pelas outras exposições de prerrogativas que a precederam.[5]

Embora não seja um documento que apresente força obrigatória serviu de base a outros tratados que também foram responsáveis por avanços significativos: o Tratado Internacional dos Direitos Civis e Políticos e o Tratado Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

Seu preâmbulo nos demonstra de forma clara o sentimento que predominava no contexto histórico da época, reconhecendo dignidade a todas as pessoas. Assim, verifica-se o resgate do valor dignidade humana, sendo este o sentido maior da referida Declaração.

Ao mencionar no artigo 1º que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade, faz ressurgir os ideais presentes na Revolução Francesa: liberdade- igualdade- fraternidade.

Nota-se que a Declaração dos Direitos do Homem de 1948 açambarcou os direitos das três dimensões- 1ª dimensão (direitos civis e políticos) 2ª dimensão( direitos sociais, econômicos e culturais) e 3ª dimensão ( direitos difusos).

Menciona Flávia Piovesan[6] que ao conjugar o valor liberdade com o valor igualdade, a declaração demarca a concepção contemporânea de direitos humanos, pela qual esses direitos passam a ser concebidos como uma unidade interdependente e indivisível.

Quanto à natureza jurídica desta declaração é possível afirmar que trata-se de mera recomendação, o que significa dizer não criar direitos subjetivos aos cidadãos ou obrigações internacionais aos Estados. Novamente nos valemos da lição de Flávia Piovesan[7] quando esclarece que: a Declaração Universal não é um tratado. Foi adotada pela assembléia geral das Nações Unidas, sob a forma de resolução, que por sua vez, não apresenta força de lei.

Entretanto, seu valor é inegável, fato mencionado com maestria por Dalmo de Abreu Dallari[8]:

“O exame dos artigos da declaração revela que ela consagrou três objetivos fundamentais: a certeza dos direitos, exigindo que haja uma fixação prévia e clara dos direitos e deveres, para que os indivíduos possam gozar dos direitos ou sofrer imposições; a segurança dos direitos, impondo uma série de normas tendentes a garantir que, em qualquer circunstância, os direitos fundamentais sejam respeitados; a possibilidade dos direitos, exigindo que se procure assegurar a todos os indivíduos os meios necessários à fruição dos direitos, não se permanecendo no formalismo cínico e mentiroso da afirmação de igualdade de direitos onde grande parte do povo vive em condições sub-humanas”.

Portanto, não podemos ignorar que cidadania e direitos humanos caminham lado a lado, deixando-nos a certeza de que apesar das valiosas vitórias obtidas com o sacrifício e luta de muitos e com os Diplomas Legais internacionais a conquista e efetivação de direitos não é um processo findo. O progresso, o desenvolvimento científico e tecnológico, as novas demandas e aspirações do homem moderno vão sendo incrementadas exigindo constante renovação e luta destemida para que sejam garantidas de forma eficaz as prerrogativas para o exercício da cidadania plena.

4- A Cidadania no Direito Brasileiro

Ao processo evolutivo pelo qual passou o conceito de cidadania não ficou indiferente o Brasil, sendo a cidadania plena um objetivo a ser alcançado.

Entretanto, não se pode negar os avanços obtidos através dos movimentos sociais e das lutas de classe. Desde a abolição da escravatura, da conquista do voto feminino, passando pelo período de redemocratização do país, do movimento das “diretas já”, do impeachment do Collor até a efetivação paulatina de direitos sociais, temos conquistado espaços de maior presença dos cidadãos na condução do destino de nosso país.

A Constituição da República de 1988 foi, sem dúvida, um dos marcos deste avanço. Apelidada de Constituição Cidadã, cuida do tema em vários de seus artigos.

A expressão cidadania aparece logo no art. 1º da CR/88 que preconiza:

“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito federal, constituiu-se em estado democrático de Direito e tem como fundamentos:

I- A soberania;

II- A cidadania;

III- A dignidade da pessoa humana;

IV- Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V- O pluralismo político;

Parágrafo único-Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.”

Colocada ao patamar de fundamento da República Federativa do Brasil, a cidadania ganhou no ordenamento constitucional brasileiro uma conotação ampla, tendo por característica a universalidade e a indivisibilidade. Isto pode ser facilmente percebido quando nos referimos às crianças. Elas não são cidadãos no sentido restrito da palavra, isto é, não votam. No entanto, a elas são garantidos os direitos inerentes à cidadania. O direito a ter um registro de nascimento, o direito a ter saúde, educação, moradia. O direito de ser respeitada em sua individualidade.

O art. 5º da CR/88, por seu turno, apresenta-se como um quadro de direitos básicos e fundamentais, uma gama de garantias ao pleno exercício da cidadania. Neste diapasão, o legislador constituinte não só manteve garantias já conquistadas como o habeas Corpus[9] e a ação popular, como acrescentou outras, podendo ser citado o  habeas Data[10].

Em seu sentido original e restrito a cidadania tem espaço no artigo 14 da Constituição, que aduz:

“A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direito e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante:

I- Plebiscito;

II- Referendo;

III- Iniciativa popular;”

Ao consagrar a soberania popular conferiu-se o sufrágio universal exercido pelo voto direto e secreto. Não há que se confundir sufrágio com voto. Sufrágio é o direito, o voto é o exercício desse direito de participação política.

Tem o voto por características ser secreto, direto, universal e com valor igual para todos. No Brasil diferente de épocas remotas, abolimos o sufrágio restrito (censitário ou capacitário). Ao consagrar a universalidade do sufrágio reconheceu-se a todos os nacionais, independente do grupo ou classe a que pertence ou da sua qualificação, ou do sexo, o direito de participar ativamente da vida política.

Ao estipular que o voto é direto, consagra-se o princípio da imediaticidade do voto, o que impõe que o eleitor vote sem que haja mediação por terceiros, como colégios eleitorais. O voto direto também pressupõe ter caráter personalíssimo, isto implica na impossibilidade de ser exercido por procuração. Única exceção é a prevista no art. 81 § 1º da CR/88 que preconiza:

“Vagando os cargos de Presidente da República e Vice- Presidente da República, far-se-á eleição noventa dias depois de aberta a última vaga.

§ 1º- ocorrendo a vacância nos últimos dois anos do período presidencial a eleição para ambos os cargos será feita trinta dias depois da última vaga, pelo Congresso Nacional, na forma da Lei.

§ 2º – Em qualquer dos casos, os eleitos deverão completar o período de seus antecessores;”

O voto secreto, por seu turno, vincula-se à idéia do voto livre, impedindo que o eleitor sinta-se pressionado a votar em um ou outro candidato. Necessário se faz o respeito às escolhas do cidadão.

A igualdade de voto não admite qualquer tratamento discriminatório, e abrange não só a igualdade de valor numérico (Zahlwertgleichheit), mas também a igualdade de valor quanto ao resultado (Erfolgswertgleichheit)[11]. Consagra-se a máxima one man, one vote.

Inquestionável que a periodicidade do voto também é uma de suas características, diante da forma republicana e do regime democrático por nós adotados. Tanto é assim que o art. 60 § 4º da CR/88 consagrou esta característica como cláusula pétrea. Ademais, não há como admitir o direito de escolha ao cidadão, se este não possuir alternativas.

Prevê ainda a Constituição de 1988 instrumentos da democracia participativa tais como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular.

Segundo dispõe o art. 49 da CR/88 a realização de plebiscito ou referendo dependerá de autorização do Congresso Nacional, à exceção de algumas hipóteses previstas também constitucionalmente como, por exemplo, a que se vislumbra no art. 18 § 3º e 4º.

Distingue-se o plebiscito do referendo pelo momento da consulta realizada junto ao cidadão, sobre determinado ato ou decisão governamental. Se prévia temos o plebiscito, se posterior o referendo. Já a iniciativa popular vem regulamentada no art. 61 § 2º da CR/88 e pode ser exercida acaso se obtenha a subscrição de no mínimo 1% do eleitorado nacional, distribuído em pelo menos cinco Estados da federação e com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles. O projeto de iniciativa popular terá início na Câmara dos Deputados que, no caso, funcionará como casa iniciadora.

No âmbito do município a matéria vem regulada no art. 29, XIII, exigindo-se 5% do eleitorado e no âmbito estadual, segundo se observa do art. 27 § 4º a imposição das exigências numéricas foi deixada a cargo do legislador infraconstitucional.

Nota-se como é importante aliarmos a cidadania aos direitos fundamentais, posto que esses instrumentos exigem, para melhor resultado, certo grau de politização da população.

A Constituição neste ponto foi tímida. O constituinte originário não outorgou ao cidadão brasileiro instrumentos importantes, como o Recall, o veto popular e ainda a possibilidade de ajuizamento de ADI pelo cidadão.

Registre-se ainda no tocante aos direitos políticos que no Brasil o alistamento eleitoral e o voto são obrigatórios para os maiores de dezoito anos e facultativos para os analfabetos, os maiores de setenta e os maiores de dezesseis[12] e menores de dezoito anos, sendo elencadas como condições de elegibilidade a nacionalidade brasileira, o pleno exercício dos direitos políticos, o alistamento eleitoral, o domicílio eleitoral na circunscrição e a filiação partidária.

Gilmar Ferreira Mendes[13] levanta a polêmica referente à obrigatoriedade do voto aos portadores de deficiência grave, que em virtude de suas limitações têm por demais oneroso o cumprimento deste dever. Para solucionar a questão traz à baila comentário sobre o Código Eleitoral, Diploma anterior à Constituição de 1988 e que desobrigava o alistamento do inválido (art. 6º, I.)

Ainda segundo o Ministro Gilmar Ferreira Mendes:

“(…) o TSE, respondendo a uma consulta formulada pelo TRE/ES observou a ausência de qualquer disciplina constitucional sobre a matéria tão relevante o que sugeria não um silêncio eloqüente, mas uma clara lacuna de regulação suscetível de ser colmatada mediante interpretação que reconhecesse também o caráter facultativo do alistamento e do voto no caso de portadores de deficiência grave. Assinalou-se que o legislador constitucional, ao facultar o voto aos maiores de 70 anos, atentou, certamente, para as prováveis limitações físicas decorrentes da sua idade, de modo a não transformar o exercício do voto em transtorno ao seu bem-estar. Diante de tais fundamentações expediu-se a resolução n 21.920 publicada no DJ de 1-10-2004 que eximiu de sanção a pessoa portadora de deficiência física que torne impossível ou demasiadamente oneroso o cumprimento das obrigações eleitorais, relativas ao alistamento e ao exercício do voto.

Adotando assim o chamado “o pensamento do possível” (Peter Häberle) o TSE identificou uma incompletude constitucional, no caso em apreço e determinou que a superação se desse com a aplicação aos portadores de deficiência grave, da norma que reconhece a facultatividade do voto aos maiores de 70 anos.”

No tocante à inelegibilidade ressalta-se que foram apontados pelo legislador constituinte originário como inelegíveis, isto é, aqueles que não podem ser votados, os inalistáveis (estrangeiros e os conscritos) e os analfabetos[14], não significando que tais limitações firam o princípio do sufrágio universal. Ademais, diplomas internacionais como o Pacto de San Jose da Costa Rica [15] (art. 23), admitem regulamentação do exercício do voto.

Estas hipóteses configuram o que a doutrina pátria chama de inelegibilidade absoluta, que significa dizer a ausência de capacidade eleitoral passiva para todo e qualquer cargo.

Contamos ainda no ordenamento jurídico-constitucional brasileiro com hipóteses de inelegibilidade relativa. A relativa se destina apenas a determinados cargos eletivos com possibilidade de deixar de existir caso o cidadão cumpra o requisito legal imposto. Pode decorrer: de motivos funcionais (Por exemplo: vedação de terceiro mandato sucessivo aos chefes do Poder Executivo), de motivos de casamento ou parentesco, da condição de militar ou de previsões em lei complementar.

Segundo o § 7º do art. 14 são também inelegíveis no território da jurisdição do titular, o cônjuge e os parentes consangüíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, do Presidente da República, de Governador de Estado ou Território, do Distrito Federal, de Prefeito ou de quem os haja substituído dentro de seis meses anteriores ao pleito, salvo se já titular de mandato eletivo e candidato à reeleição. Trata-se, aqui, da inelegibilidade reflexa cuja finalidade é impedir o monopólio do poder político por grupos hegemônicos ligados por laços familiares.[16]

Merece lembrada a Súmula nº 6 do TSE que estendeu a hipótese também a do companheiro ou companheira, a do irmão e da concubina.

No tocante aos militares a matéria é tratada no § 8º do art. 14 da CR/88 dispondo que se o militar contar com menos de dez anos de serviço deverá afastar-se da atividade e caso conte com mais de dez anos será agregado pela autoridade superior e, se eleito, passará automaticamente, no ato da diplomação para a inatividade.

Outros casos de inelegibilidade relativa poderão estar presentes na LC 64/90, segundo menciona o § 9º do art. 14 da CR/88. Exemplo recente e que merece destaque foi a alteração trazida pela Lei Complementar nº 135 de 04 de junho de 2010 (Lei da Ficha Limpa), oriunda de projeto de iniciativa popular que acrescentou outras hipóteses de inelegibilidade.

Por derradeiro, lembremos que o cidadão pode, em algumas situações peculiares, ser privado dos direitos políticos de forma definitiva ou provisória. À privação definitiva dá-se o nome de perda dos direitos políticos e à temporária de suspensão dos direitos políticos. Nota-se que a CR/88 não admite a cassação dos direitos políticos.

Preconiza o art.15:

“É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão  só se dará nos casos de:

I- Cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado;

II- Incapacidade civil absoluta;

III- Condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;

IV- Recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, VIII;

V- Improbidade administrativa, nos termos do art. 37 § 4º;”

Na perspectiva dos direitos políticos não se pode olvidar do art. 16 da Carta Magna, com redação alterada pela Emenda Constitucional nº 4/1993 dispondo que: a lei que alterar o processo eleitoral entrará em vigor na data de sua publicação, não se aplicando à eleição que ocorra até 1 ( um ) ano da data de sua vigência. Consagra-se, portanto, o princípio da anterioridade eleitoral, tido como cláusula pétrea já que representa uma garantia individual do cidadão eleitor que necessita e tem direito à segurança jurídica.

Após a análise desses direitos políticos é imprescindível que apontemos que a cidadania é tema recorrente em vários outros dispositivos constitucionais, haja vista que no capítulo que trata da Administração Pública, art. 37, I restou assegurado o acesso aos cargos, empregos e funções públicas. Tudo isto sem falar da obrigatoriedade de participação popular na composição dos conselhos municipais, estaduais e federais voltados à fiscalização da saúde, da educação, dos direitos da criança e do adolescente, da obrigatoriedade das audiências públicas, demonstrando a preocupação do legislador constituinte em oportunizar ao cidadão o direito de participar da condução das políticas públicas.

Leciona Kildare Gonçalves Carvalho[17]:

“A Constituição considera, desta forma, o estágio atual de evolução da vida dos povos, para admitir que a idéia de cidadania não se acha restrita ao cidadão eleitor, mas se projeta em vários instrumentos jurídico-político imprescindíveis para viabilizá-la. Cidadania significa, nessa perspectiva, participação no Estado Democrático de Direito.”

Verifica-se, pois, que o voto é apenas uma etapa do processo de cidadania. Todas as vezes que um cidadão se posiciona frente à atuação estatal seja criticando, seja apoiando, seja sugerindo determinada medida está aprimorando a idéia de democracia e realizando um exercício de cidadania, já que com esta se vincula.

A cidadania é, pois, um exercício que se conquista com pequenos gestos e se aprimora com a educação e o respeito ao próximo.

Façamos valer a exortação do professor Paulo Freire:

“De nada adianta colocar nos estacionamentos placas com vagas reservadas para idosos e deficientes, de nada adiantam placas para não pisar a grama, de nada adiantam cestos de lixos nas ruas,  escolas  etc.  É  hora  de  ensinarmos  aos  nossos  jovens  e crianças  noções  de  cidadania  que  não  se  aprendem  em  livros, mas  pelos exemplos,  e  isso  cabe  a  nós  professores,  pais  e  familiares.  É hora de mostrar-lhes que a  limpeza das ruas e das   escolas não é responsabilidade apenas  do  poder  público  ou  de  seus  diretores,    porém  de  todos  nós.  Exemplos ensinam muito mais que palavras e discursos. Ninguém caminha sem aprender a caminhar, sem  aprender  a  fazer  o  caminho  (PAULO FREIRE).”

5- Conclusão

A cidadania é uma conquista diária. Não há como compreendermos o conceito de cidadania sem buscarmos uma hermenêutica zetética, isto é, considerando  seus vários aspectos e relacionando-a com os direitos humanos, com a democracia e coma a ética.

 Cidadania implica em vivência na sociedade, na construção de relações, na mudança de mentalidade, na consciência e reivindicação dos direitos, mas também no cumprimento dos deveres. Isto não se aprende com teorias, mas na luta diária, nos exemplos e principalmente com a educação de qualidade, grande propulsora para que o indivíduo possa desenvolver suas potencialidades e conscientizar-se de seu papel social que pode e deve fazer a diferença na construção de uma sociedade mais justa, livre e solidária.

 

Referências
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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6ª Ed. Coimbra: Liv. Almedina, 1993.
CARVALHO, kildare Gonçalves. Direito Constitucional- Teoria do Estado e da Constituição. Direito Constitucional Positiva– 12ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
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OLIVEIRA, Pérsio Santos de. Introdução á Sociologia. Série Brasil.25ª Ed. São Paulo: editora Ática, 2006.
PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo.  Direito Constitucional Descomplicado. 6ª ed. São Paulo: Editora Método, 2010.
PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Max Limond. 2000.
 
Notas:
[1] BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura. Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2009. p. 7. Texto de José Luis Quadros de Magalhães.

[2] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Teoria geral da cidadania, a plenitude da cidadania e as garantias constitucionais e processuais. Saraiva. 1994, p.1.

[3] BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Editora Campus,1999.

[4] Todas as leis protetoras são ineficazes para gerar a grandeza econômica do País; todos os melhoramentos materiais são incapazes de determinar a riqueza, se não partirem da Educação Popular; a mais criadora de todas as forças econômicas, a mais fecunda de todas as medidas financeiras. (Parecer sobre educação- X, I, 143).

[5] AGRA, Walber de Moura. Curso de Direito Constitucional. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense,2010.p.151.

[6] PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional. Max Limond. 2000.p.146.

[7] PIOVESAN, Flávia. Op.cit.p.48.

[8] DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 16ª ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p.179.

[9] Ação constitucional de natureza penal que visa proteger o direito de locomoção, tendo sido constitucionalizado no Brasil em 1981.

[10] Ação constitucional de natureza civil, que visa garantir em favor da pessoa interessada o direito ao acesso aos registros relativos à pessoa do impetrante; o direito de retificar dados destes registros e o direito de complementação dos registros, com anotações de contestação ou explicação sobre dado verdadeiro, mas justificável e que esteja sob pendência judicial ou amigável ( esta última finalidade expressa apenas em norma infraconstitucional). Regulamentado pela Lei 9507/97.

[11] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008, p.734.

[12] Segundo o TSE tem direito de votar  aquele que até a data da eleição tenha completado a idade mínima de 16 anos.( resolução TSE n. 14.371, de 26-5-1994, Rel. Marco Aurélio)

[13] MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2008. p.731.

[14] Entende-se por analfabeto aquele que não sabe ler nem escrever. Explicita que o texto constitucional não exige como condição de elegibilidade a alfabetização: basta que o candidato não seja analfabeto, e nesta situação se encontra o semi-alfabetizado. (CARVALHO, kildare Gonçalves. Direito Constitucional. Teoria do Estado e da Constituição. Direito Constitucional Positivo. 12ª Ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2006.p. 608.

[15] Artigo 23 – Direitos políticos
1. Todos os cidadãos devem gozar dos seguintes direitos e oportunidades:
a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente eleitos;
b) de votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a livre expressão da vontade dos eleitores; e
c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país.
A lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades, a que se refere o inciso anterior, exclusivamente por motivo de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal.

[16] STF- 2ª T-Rextr. Nº 446.999/PE, rel. Min, Ellen Gracie, decisão: 28-6-2005- Informativo STF nº 394, p. 3. Informativo 392, p.2.

[17] CARVALHO, kildare Gonçalves. Direito Constitucional- Teoria do Estado e da Constituição. Direito Constitucional Positiva– 12ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.p.462.


Informações Sobre o Autor

Getúlio Costa Melo

Advogado. Mestrando em Educação e Tecnologias Digitais pelo Instituto de Educação da Universidade de Lisboa Portugal. Pós-graduado em Direito Tributário pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Pós-graduado em Docência no Ensino Superior pelo Centro Universitário Senac. Bacharel em Direito pelo Centro de Estudos Superiores Aprendiz – CESA


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