Colaboração premiada e utilitarismo

Resumo: O presente artigo tem como objetivo verificar a inspiração utilitarista do instituto da colaboração premiada, especialmente com base na obra “Uma introdução aos princípios da moral e da legislação”, de Jeremy Bentham, uma das principais referências do pensamento filosófico utilitarista.

Palavras-chave: Utilitarismo. Colaboração premiada. Jeremy Bentham.

Sumário: Introdução. 1. Generalidades sobre a colaboração premiada. 2. A colaboração premiada na legislação brasileira. 3. Utilitarismo. 4. Utilitarismo e colaboração premiada. Conclusão.

INTRODUÇÃO

Sobretudo recentemente, muito em função de sua destacada aplicação na famosa “Operação Lava Jato”, a colaboração premiada (delação premiada) tem ocupado espaço quase que diário nos diversos veículos de comunicação nacionais.

Entre aqueles que se predispõem a comentar o uso do instituto da colaboração premiada para a persecução penal há aqueles que a exaltam, mas também os que a depreciam, por diversas razões. A despeito do ganho de notoriedade do instituto, percebe-se que os debates sobre sua aplicação ainda são incipientes e muito ainda há que se estudar sobre.

Considerando esse cenário ainda cinzento, com amplo espaço para novas abordagens, o presente estudo tem o objetivo de verificar a inspiração utilitarista do instituto da colaboração premiada.

Grosso modo, a colaboração premiada consiste na concessão de benefícios (prêmios) aos indivíduos que colaboram com a justiça, apontando demais indivíduos envolvidos na prática delituosa na qual estava envolvido e desvendando detalhes de sua engenharia, de modo que o delator recebe uma sanção estatal mais branda ou até mesmo pode ser isento de responder pela sua prática criminosa.

Ao menos a princípio, a colaboração premiada tem lugar quando os meios ordinários de apuração criminal dificilmente seriam capazes de efetivamente responsabilizar aqueles indivíduos envolvidos em práticas delituosas reiteradas, grandiosas e complexas, visando interromper sua prática.

Trata-se, a toda evidência, de se seguir a lógica do melhor custo benefício, lógica essa que é diretamente vinculada ao pensamento utilitarista. Portanto, buscar conhecer a teoria utilitarista é também buscar conhecer a natureza da delação premiada.

Com isso, o presente estudo pretende entrelaçar delação premiada e utilitarismo, buscado através da teoria utilitarista reflexões que permitam pensar sobre a política criminal por trás da colaboração premiada.

1. GENERALIDADES SOBRE A COLABORAÇÃO PREMIADA

A colaboração premiada é espécie de acordo/contrato entre o Estado e o indivíduo coautor ou partícipe de determinada infração penal no intuito de minimizar as consequências danosas da infração e impedir que novas infrações sejam cometidas, delatando demais coatores e partícipes, bem como fornecendo provas necessárias à apuração da prática delituosa, em troca de benefícios como o perdão judicial e a redução de pena, desde que a colaboração tenha sido de algum modo eficaz, permitindo, por exemplo, a recuperação do produto do crime ou o resgate da vítima sequestrada, quando estes resultados muito dificilmente seriam alcançados com o uso dos meios ordinários de apuração.

Percebe-se, pois, que a colaboração premiada não envolve somente o apontamento de coautores e partícipes, daí falar-se em colaboração e não apenas em delação premiada, embora este último termo seja corriqueiramente utilizado pelos veículos de comunicação e até mesmo por juristas como se fosse sinônimo daquele, quando em verdade é mera espécie do gênero.

Pertinente ressalvar que, embora se tenha dito que a colaboração premiada envolve o indivíduo coautor ou partícipe, alguns estudiosos do assunto vão além e suscitam a possibilidade de colaboração premiada por parte de indivíduo de fora da prática delituosa, mas que estejam em cumprimento de pena, ou sendo investigado, ou processado por outro delito e pretenda os benefícios da colaboração.

Ao tratarem da experiência de outros países com a colaboração premiada, os estudiosos do assunto comumente apontam como referência sua aplicação na Itália, Espanha e Estados Unidos da América.

Sobre a colaboração premiada na Itália, comumente cita-se as fundamentais colaborações prestadas por Tommaso Buscetta (1928-2000) e Mario Chiesa (1944) durante a famosa operação “Mãos Limpas” (Mani pulite) de combate à máfia italiana, que resultou em maxiprocessos, com milhares de mandados de prisão, inclusive envolvendo parlamentares e ministros do governo italiano e a dissolução de grandes partidos políticos.

Na Espanha a delação premiada foi instituída 1988, por meio de Lei Orgânica n. 3, no intuito de combater o terrorismo. Em 1995 o Código Penal espanhol estendeu a delação premiada aos casos de tráfico de drogas. Sobre a forma de delação adotada na Espanha destaca-se que somente se admite a delação se feita espontaneamente, sendo que a delação apenas é admitida quando por iniciativa de indivíduo solto e ele é que proponha às autoridades a colaboração, de modo que não basta a mera voluntariedade da delação por parte de indivíduo que esteja preso ou que aceite proposta das autoridades persecutórias.

Outro ponto digno de nota sobre a forma de colaboração premiada espanhola é que apenas a palavra do colaborador possui força probante capaz de ensejar condenação. No direito espanhol faz-se a dita valoração complexa da palavra do colaborador, de modo que se sua palavra estiver embasada em evidências que lhe confiem credibilidade, apresentando verossimilhança, é possível haver condenação mesmo sem a presença de outras provas independentes/autônomas.

Nos Estados Unidos da América a delação premiada é amplamente utilizada por conta da forte influência da ideia de justiça criminal negociada. Segundo o modelo de colaboração estadunidense a colaboração pode dar-se de modo explícito, sendo a colaboração formalizada através de um contrato, ou de modo implícito, não formalizado, baseando-se apenas na crença na lealdade das autoridades em efetivar os benefícios prometidos.

2. A COLABORAÇÃO PREMIADA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

No Brasil, a colaboração premiada é prevista em diversas leis. A Lei 8.072/90, que trata dos crimes hediondos, estabeleceu que nos crimes de extorsão mediante sequestro, artigo 159 do Código Penal, o coautor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do sequestrado, terá sua pena reduzida de um a dois terços.

A Lei 8.072/90 prevê ainda que nos crimes hediondos de prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo, o participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena reduzida, também de um a dois terços.

A Lei 9.080/95 fez inclusão na Lei dos Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional, Lei nº 7.492/86 (art. 25, §2º), para prevê que nos crimes contra o sistema financeiro nacional, cometidos em quadrilha ou coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida, novamente na proporção de um a dois terços.

A Lei dos Crimes de Lavagem de Capitais, Lei nº 9.613/88, prevê que no crime de ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços e ser cumprida em regime aberto ou semiaberto, facultando-se ao juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la, a qualquer tempo, por pena restritiva de direitos, se o autor, coautor ou partícipe colaborar espontaneamente com as autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais, à identificação dos autores, coautores e partícipes, ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime.

A Lei dos Crimes Contra a Ordem Tributária e Econômica, Lei nº 8.137/90, prevê que nos crimes contra a ordem tributária e econômica, cometidos em quadrilha ou coautoria, o coautor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida, igualmente de um a dois terços.

Diferentemente dessas leis, que estipulam hipóteses específicas de colaboração premiada para determinados crimes, a Lei de Proteção a Vítimas e Testemunhas, Lei 9.807/99 (art. 14), prevê de forma genérica que o indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida, novamente de um a dois terços.

A Nova Lei de Drogas, Lei 11.343/06 (art. 41), prevê que nos crimes de tráfico de drogas o indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais coautores ou partícipes do crime e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida da mesma forma que nas demais hipóteses de colaboração aqui já citadas, de um a dois terços.

A Lei que trata do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, Lei 12.529/2011 (art. 86), prevê que o Cade poderá celebrar acordo de leniência, com a extinção da ação punitiva da administração pública ou a redução de um dois terços da penalidade aplicável com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte a identificação dos demais envolvidos na infração e  a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação.

Mas certamente a espécie de colaboração premiada mais conhecida e comentada é a da Lei do Crime Organizado. A primeira Lei do Crime Organizado, Lei 9.034/05 (art. 6º), previa que nos crimes praticados em organização criminosa, a pena seria reduzida, de um a dois terços, se a colaboração espontânea do agente levasse ao esclarecimento das infrações penais e sua autoria.

A Lei 9.034/05 foi expressamente revogada pela Lei 12.850/13, que ampliou os prêmios concedidos e previu procedimento específico para a aplicação da colaboração premiada. De acordo com a nova Lei: “Art. 4º O juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, desde que dessa colaboração advenha um ou mais dos seguintes resultados: I – a identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas; II – a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa; III – a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa; IV – a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa; V – a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada. § 1º Em qualquer caso, a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração. § 2º Considerando a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, com a manifestação do Ministério Público, poderão requerer ou representar ao juiz pela concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não tenha sido previsto na proposta inicial, aplicando-se, no que couber, o art. 28 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal). § 3º O prazo para oferecimento de denúncia ou o processo, relativos ao colaborador, poderá ser suspenso por até 6 (seis) meses, prorrogáveis por igual período, até que sejam cumpridas as medidas de colaboração, suspendendo-se o respectivo prazo prescricional. § 4º Nas mesmas hipóteses do caput, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se o colaborador: I – não for o líder da organização criminosa; II – for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo. § 5º Se a colaboração for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida até a metade ou será admitida a progressão de regime ainda que ausentes os requisitos objetivos.§ 6º O juiz não participará das negociações realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração, que ocorrerá entre o delegado de polícia, o investigado e o defensor, com a manifestação do Ministério Público, ou, conforme o caso, entre o Ministério Público e o investigado ou acusado e seu defensor.§ 7º Realizado o acordo na forma do § 6º, o respectivo termo, acompanhado das declarações do colaborador e de cópia da investigação, será remetido ao juiz para homologação, o qual deverá verificar sua regularidade, legalidade e voluntariedade, podendo para este fim, sigilosamente, ouvir o colaborador, na presença de seu defensor.§ 8º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais, ou adequá-la ao caso concreto.§ 9º Depois de homologado o acordo, o colaborador poderá, sempre acompanhado pelo seu defensor, ser ouvido pelo membro do Ministério Público ou pelo delegado de polícia responsável pelas investigações. § 10.  As partes podem retratar-se da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias produzidas pelo colaborador não poderão ser utilizadas exclusivamente em seu desfavor. § 11.  A sentença apreciará os termos do acordo homologado e sua eficácia. § 12.  Ainda que beneficiado por perdão judicial ou não denunciado, o colaborador poderá ser ouvido em juízo a requerimento das partes ou por iniciativa da autoridade judicial.§ 13.  Sempre que possível, o registro dos atos de colaboração será feito pelos meios ou recursos de gravação magnética, estenotipia, digital ou técnica similar, inclusive audiovisual, destinados a obter maior fidelidade das informações. § 14.  Nos depoimentos que prestar, o colaborador renunciará, na presença de seu defensor, ao direito ao silêncio e estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade. § 15.  Em todos os atos de negociação, confirmação e execução da colaboração, o colaborador deverá estar assistido por defensor. § 16.  Nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador.”

Tem-se, pois, que a legislação brasileira prevê a possibilidade de se conceder o perdão judicial, redução de pena de um a dois terços, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, além da possibilidade de não apresentação de denúncia, desde que o indivíduo tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal, e desde que a colaboração seja eficaz, ou seja: que permita a identificação dos demais coautores e partícipes; ou a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas; ou a prevenção de novas infrações penais; ou a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais; ou a localização de eventual vítima com a sua integridade física preservada.

Além de todas essas previsões de benefícios ao colaborador, também vale lembrar que o Código Penal prevê no artigo 65, inciso III, alínea “d”, que a confissão da autoria do crime é circunstancia atenuante quando da fixação da pena do condenado.

Com todas essas previsões legais ofertando prêmios aos colaboradores, resta claro que a política criminal brasileira faz concessões a fim de assegurar eficiência, efetividade e eficácia à persecução penal, relativizando o direito-dever de punir do Estado.

3. UTILITARISMO

O utilitarismo é tratado como uma corrente filosófica, como uma escola filosófica, como um modelo de reflexão e como uma das espécies de teorias da justiça.

A visão utilitarista é fundada precipuamente no princípio da utilidade ou da felicidade do maior número, tendo como pressuposto que o indivíduo é regido pela busca do prazer e a fuga da dor. Destarte, a ação/conduta moralmente correta será aquela que resultar em prazer/felicidade para o maior número de pessoas.

Jeremy Bentham na obra “Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação”, de 1789, defende as ideia utilitarista por meio de uma exposição realista empírica própria do iluminismo, prezando pela clareza, precisão, consistência e coerência sistêmica.

O modelo ético utilitarista possui base fundamentalmente pragmática e consequencialista, centrando-se em conhecer para que as coisas servem através do critério da utilidade. Nas palavras de Bentham (1989, p. 4): “[…] Uma determinada ação está em conformidade com o princípio da utilidade, ou, para ser mais breve, à utilidade, quando a tendência que ela tem de aumentar a felicidade for maior do que qualquer tendência que tenha de diminuí-la.”

Para Bentham o termo felicidade possui acepção bastante ampla, vez que o critério utilitarista pretende ser aplicado nas ações individuais e coletivas, notadamente nas decisões políticas, regendo o domínio econômico, social e judiciário. Com efeito, “O termo utilidade designa aquela propriedade existente em qualquer coisa, propriedade em virtude da qual o objeto tende a produzir ou proporcionar benefício, vantagem, prazer, bem ou felicidade (tudo isto, no caso presente, se reduz à mesma coisa), ou (o que novamente equivale à mesma coisa) a impedir que aconteça o dano, a dor, o mal, ou a infelicidade para a parte cujo interesse está em pauta; se esta parte for a comunidade em geral, tratar-se-á da felicidade da comunidade, ao passo que, em se tratando de um indivíduo em particular, estará em jogo a felicidade do mencionado indivíduo” (BENTHAM, 1989, p. 4).

  Pessanha (1989), tratando especificamente da aplicação do utilitarismo no âmbito jurídico, aponta que segundo a visão utilitarista o objetivo último de toda legislação seria a maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas, ideia também defendida por Beccaria (1738-1749), apontado por Bentham como seu mais importante predecessor.

  Com isso, surge a ideia de relatividade da punição, de modo que seguindo o pensamento utilitarista caberia perquirir a necessidade de punição casuisticamente. Bentham (1989, p. 59), em capítulo intitulado de “Casos em que não cabe punir”, anota: “I. – O objetivo geral que caracteriza todas as leis – ou que deveria caracterizá-las – consiste em aumentar a felicidade global da coletividade; portanto, visam elas em primeiro lugar a excluir, na medida do possível, tudo o que tende a diminuir a felicidade, ou seja, tudo o que é pernicioso. II. – Acontece, porém, que toda punição constitui um ato pernicioso; toda punição constitui, em si mesma, um mal. Por conseguinte, com base no princípio da utilidade – se tal princípio tiver que ser admitido -, uma punição só pode ser admitida na medida em que abre chances no sentido de evitar um mal maior. III. – É evidente, portanto, que não se deve infligir punição nos casos a seguir enumerados: (1) Quando não houver motivo para a punição, ou seja, quando não houver, nenhum prejuízo a evitar, pelo fato de o ato em conjunto não ser pernicioso. (2) Quando a punição só pode ser ineficaz, ou seja, quando a mesma não pode agir de maneira a evitar o prejuízo; (3) Quando a punição for inútil ou excessivamente dispendiosa; isto aconteceria em caso de o prejuízo produzir por ela se maior do que o prejuízo que se quer evitar; (4) Quando a punição for supérflua, quando o prejuízo pode ser evitado – ou pode cessar por si mesmo – sem a punição, ou seja, por um preço menor”.

  Com isso, o utilitarismo permite pensar casos em que a legislação deve abster-se de prever punições com base no princípio da utilidade. Com efeito, “Em linguagem atual, pode-se dizer que este exame será aquele em termos de custo e benefício, pois, em muitos casos, a elaboração de legislação e aplicação de punição a determinadas transgressões tendem a gerar custos sociais mais elevados do que o benefício auferido. Em outras palavras, para alguns tipos de transgressão a legislação não deverá ser aplicada, mas apenas as regras da ética” (DIAS, 2006, p. 6).

Percebe-se, portanto, que o utilitarismo é pensamento filosófico segundo o qual uma ação é moralmente correta se tende a promover a felicidade/benefício/vantagem/prazer e condenável se tende a produzir a infelicidade/dano/dor, considerada não apenas o agente da conduta/ação, mas também as repercussões a todos os indivíduos afetados por ela. Assim, o utilitarismo admite que condutas/ações más possam resultar em coisas boas, de modo que a priori não é possível dizer se as condutas/ações são boas ou más, mas apenas tendo em vista suas consequências.

4. UTILITARISMO E COLABORAÇÃO PREMIADA

Embora apenas recentemente o tema colaboração premiada tenha ganhado notoriedade no meio jurídico e repercussão nos veículos de comunicação nacionais, a ideia de se conceder benefícios ao infrator que colabora com a justiça, no intuito de se minorar prejuízos da ação delituosa, não é nova. Beccaria (2001, p. 29), em sua clássica obra Dos Delitos e das Penas, de 1764, já anotava que “Alguns tribunais oferecem a impunidade ao cúmplice de um grande crime que trair os seus companheiros. Esse expediente apresenta certas vantagens; mas, não está isento de perigos, de vez que a sociedade autoriza desse modo a traição, que repugna aos próprios celerados […]. O tribunal que emprega a impunidade para conhecer um crime mostra que se pode encobrir esse crime, pois que ele não o conhece; e as leis descobrem-lhe a fraqueza, implorando o socorro do próprio celerado que as violou. Por outro lado, a esperança da impunidade, para o cúmplice que trai, pode prevenir grandes crimes e reanimar o povo, sempre apavorado quando vê crimes cometidos sem conhecer os culpados. Esse uso mostra ainda aos cidadãos que aquele que infringe as leis, isto é, as convenções públicas, já não é fiel às convenções particulares. Parece-me que uma lei geral, que prometesse a impunidade a todo cúmplice que revela um crime, seria preferível a uma declaração especial num caso particular: preveniria a união dos maus, pelo temor recíproco que inspiraria a cada um de se expor sozinho aos perigos; e os tribunais já não veriam os celerados encorajados pela idéia de que há casos em que se pode ter necessidade deles”.

Percebe-se que Beccaria embora tenha ressalvas quanto à concessão de benefícios ao infrator como moeda de troca, pondera ser mais importante se levar em consideração a eficácia da medida, notadamente por prevenir grandes crimes e satisfazer a vontade da população de conhecer infratores que dificilmente seriam de outro modo identificados. O autor pondera ainda que a admissão da colaboração serve para prevenir a união dos indivíduos para a prática de crimes na medida em que eles temeriam a delação por parte de seus comparsas.

Contudo, há quem sustente a inadmissibilidade da lógica utilitarista na persecução penal por considerá-la contrária a direitos e garantias fundamentais, notadamente o contraditório, a ampla defesa e a proporcionalidade das penas, além de ofender o princípio da indisponibilidade da ação penal. Pavanelli Neto (2009, p. 4) pondera que haveria certa incompatibilidade entre os instrumentos de persecução penal fundados na lógica utilitarista com as garantias individuais fundamentais, in verbis: “As organizações criminosas, em razões de suas características especiais, mostram-se resistentes aos instrumentos de direito penal e processual penal empregados no trato da criminalidade comum, pelo que exigem do legislador de ferramentas próprias, especialmente desenhadas para o trato dessa forma de criminalidade. Ocorre que isso termina por criar um subsistema penal de exceção, de caráter utilitarista, em detrimento dos direitos e garantias fundamentais do indivíduo, próprios do Estado de direito.”

  De fato há certa tensão entre a ideia de direitos e garantias individuais e o pensamento utilitarista. Segundo Pessanha (1989): “Para Bentham, o indivíduo somente possui direitos na medida em que conduz suas ações para o bem da sociedade como um todo, e a proclamação dos direitos humanos, tal como se encontrava nos revolucionários franceses, seria demasiado individualistas e levaria ao egoísmo; assim, o que realmente deve ser procurado é a reconciliação entre o indivíduo e a sociedade, mesmo que seja necessário o sacrifício dos supostos direitos humanos”.

  Contudo, a regulamentação do procedimento da delação premiada, ao menos a princípio, afasta a violação a direitos e garantias fundamentais. Mas é lógico que a assinatura do acordo de delação configura certo afastamento do direito de defesa (quanto à matéria de fato, restando resguardo o direito a defesa técnica), mas não se pode perder de vista que a colaboração deve ser prestada voluntariamente.

  Ademais, os críticos da colaboração premiada apontam sua ofensa ao princípio da indisponibilidade da ação penal, de modo que não haveria que se cogitar a possibilidade de concessão de benefícios como não oferecimento de denúncia, perdão judicial, redução de pena, substituição por pena alternativa, melhor regime de cumprimento de pena, elevando o princípio da indisponibilidade da ação penal ao seu mais alto grau.

Com efeito, decorre do princípio da indisponibilidade da ação penal a vedação ao Ministério Público desistir da ação (CPP, art. 42) e do recurso (CPP, art. 572), além da previsão de que o juiz poderá proferir sentença condenatória mesmo que o Ministério Público manifeste-se pela absolvição (CPP, art. 385) e de que o juiz pode recusar o pedido de arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação e propor ao procurador-geral que reveja a o ato do promotor (CPP, art. 28).

Todavia, nenhum destes argumentos contra a colaboração premiada se sustentam perante a lógica utilitarista, especialmente em função do princípio da agregação. Segundo esse princípio, “O que é levado em conta no cálculo é o saldo líquido (de bem-estar, numa ocorrência) de todos os indivíduos afetados pela ação, independentemente da distribuição deste saldo. O que conta é a quantidade global de bem-estar produzida, qualquer que seja a repartição desta quantidade. Sendo assim, é considerado válido "sacrificar uma minoria", cujo bem-estar será diminuído, a fim de aumentar o bem-estar geral. Esta possibilidade de sacrifício se baseia na ideia de compensação: a desgraça de uns é compensada pelo bem-estar dos outros. Se o saldo de compensação for positivo, a ação é julgada moralmente boa. O aspecto dito sacrificial é um dos mais criticados pelos adversários do utilitarismo” (WIKIPÉDIA, 2016).

Assim, segundo a lógica utilitarista, é admissível institutos como o da colaboração premiada, que muito embora criticáveis sob certos aspectos, por implicar em determinados sacrifícios, possuem o intuito de promover o bem-estar geral.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora a ideia de se conceder benefícios àqueles que colaboram com a justiça não seja nova, apenas recentemente o tema ocupa lugar de destaque nos veículos de comunicação e inclusive no meio jurídico, graças à sua grande aplicação na “Operação Lava Jato” e à recente vigência da nova Lei do Crime Organizado prevendo o procedimento específico para sua aplicação.

Em meio às discussões sobre o tema, tem tido destaque o “condenável” fato de a colaboração premiada incentivar a traição. Alguns chegam a afirmar que a traição faz do instrumento da delação premiada algo antiético, e alguns chegam a dizer que ela ofenderia o ordenamento jurídico, já que este não pode fomentar a traição. Embora isso seja muito debatido, este aspecto do instituto da delação premiada não foi abordado nesse estudo por conta do entendimento deste autor de que toda essa discussão é totalmente absurda. Ora, dizer que o delator deveria respeitar o pacto de silêncios firmado com seus comparsas é o mesmo que dizer que o direito tutela contratos com objetos ilícitos, é o mesmo que dizer que os indivíduos não podem buscar reparar ou ao menos minimizar as consequências danosas de suas infrações penais.

Lado outro, as críticas envolvendo a colaboração premiada no que se refere à violação de direitos e garantias fundamentais e a sua incoerência face ao princípio da indisponibilidade da ação penal merecem atenção. Contudo, resta a impressão de que a recente regulamentação do procedimento da colaboração premiada certamente contribui para que se aplique o instituto com o mínimo de prejuízo possível aos direitos e garantias fundamentais e à indisponibilidade da ação penal, não se olvidando de que nenhum direito é absoluto.

É inquestionável que a colaboração premiada trabalha com a lógica utilitarista, valendo-se da ideia de ponderação entre “prazer” e “dor” originalmente tratada por Bentham, ou seja, do melhor custo benefício. Embora o autor deste estudo conclua pela admissão desse pensamento, não se pode perder de vista que um mal também está sendo cometido quando se aplica o instituto da colaboração premiada, sobretudo por conta de que o infrator colaborador não sofrerá a sanção inicialmente prevista em lei, e com isto o Estado está de certo modo passando a mensagem de que está consentindo com uma violação à lei penal.

Ademais, a força probante da palavra do colaborador deve ser apreciada com máxima cautela, vez que ela, por razões óbvias, é de questionável credibilidade, de modo que andou bem a legislação brasileira ao vedar a possibilidade de sentença condenatória com fundamento apenas nas declarações de colaborador.

É importante explicitar, contudo, que o reconhecimento da admissão da colaboração premiada não implica em afirmar que a lógica utilitarista seria a mais adequada a informar toda a política criminal.

Enfim, fato é que o Estado possui limitações em levantar provas suficientes para que se possa responsabilizar indivíduos envolvidos em práticas delituosa graves e que geram sérios danos à sociedade em geral, permitido a reiterada atuação delituosa. Em casos tais, necessário e legítimo que os órgãos persecutórios se valham de meios extraordinários para apuração das infrações penais, ainda que tais ferramentas impliquem em negociar a sanção aplicável ao infrator, sob pena de a sociedade ter que conviver com reiteração delituosa e alijada dos produtos do crime, além de a total impunidade dos envolvidos encorajar a atuação criminosa, até mesmo por parte de pessoas que se não fosse tal cenário de permissividade não considerariam delinquir.

 

Referências
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Disponível em:< http://www.oab.org.br/editora/revista/revista_08/e-books/dos_delitos_e_das_penas.pdf>. Acesso em: 05 de jan. de 2016.
BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Tradução: Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultura, 1989.
DIAS, Maria Cristina Longo Cardoso. Uma reconstrução racional da concepção utilitarista de Bentham: Os limites entre a ética e a legislação. Dissertação (mestrado), Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de Filosofia, Programa de Pós-Graduação em Filosofia, São Paulo, 2006.
PAVANELLI NETO, João. A efetividade da delação premiada como instrumento de controle do crime organizado transnacional. Dissertação (mestrado), Universidade Católica de Brasília, Centro de Mestrado em Direito Internacional e Econômico, Brasília, 2009.
PESSANHA, José Américo Motta. Vida e obra de Jeremy Bentham. In: BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. Tradução: Luiz João Baraúna. São Paulo: Nova Cultura, 1989.
WIKPEDIA. Utilitarismo. Disponível em:<https://pt.wikipedia.org/wiki/Utilitarismo>. Acesso em: 05 de jan. de 2015.

Informações Sobre o Autor

Ícaro Fellipe Alves Ferreira de Brito

Advogado e Pós-Graduado em Direto Público pela Faculdade Legale


Equipe Âmbito Jurídico

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