Introdução
Desde a divulgação da produção, com pleno sucesso, do primeiro clone de mamífero, mais especificamente a conhecida ovelha “Dolly”, muito se tem especulado, tanto no ambiente acadêmico quanto na imprensa leiga e, inclusive em debates informais, sobre a possibilidade, ou propriedade, da clonagem humana. Tal tema, entretanto, não é inteiramente novo. Já na década de 30 o vencedor do Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina de 1935, o zoólogo alemão Hans Spemann, premiado por sua obra relativa aos processos organizacionais do desenvolvimento embrionário, aventou a possibilidade teórica da clonagem. Na verdade, seu trabalho pode ser considerado como basilar para o processo da clonagem denominado de “embrionária”, que veremos brevemente mais adiante. No meio não acadêmico o tema tornou-se mais conhecido a partir do romance de Ira Levin “Os Meninos do Brasil”, na qual clones de Hitler eram produzidos, no Brasil, a partir de células sangüíneas que haviam sido preservadas. O indiscutível e irremediável avanço das ciências biológicas, particularmente da popularmente denominada engenharia genética, torna perfeitamente viável hoje o que antes era mera ficção. As restrições à produção de clones humanos são antes éticas, morais e legais do que técnico-científicas. É nossa opinião que, se é verdade que isto ainda não tenha sido efetivamente realizado, muito em breve o será. É, portanto, indispensável que estejamos prontos, todos os operadores do Direito, para lidar com esta nova realidade, em suas múltiplas facetas.
Nosso objetivo é apresentar e discutir alguns aspectos envolvidos nesta questão, fornecendo embasamento para o futuro desenvolvimento instrumentos legais adequados relativos a este processo, bem como de suas possíveis aplicações.
O que é Clonagem?
Clonagem é simplesmente a produção de um ou mais seres vivos (animais, por exemplo) genéticamente idênticos a outro ser vivo (outro animal, por exemplo). Existem dois procedimentos básicos de clonagem, a saber:
1.Clonagem embrionária – Consiste em remover uma ou mais células de um embrião e provocar seu desenvolvimento completo, formando um novo embrião com a mesma carga genética daquele que lhe deu origem. Tal técnica já é a muito conhecida e aplicada com sucesso em um grande número de espécies. Eventos similares tem também ocorrência natural. Quando o ovo (ou zigoto) logo após as primeiras divisões celulares, tem uma ou mais de suas células separadas naturalmente produzem-se os conhecidos gêmeos univitelinos (clones naturais). Tal procedimento pode, e já o foi, repetido com sucesso em laboratório, inclusive em seres humanos.
2. Clonagem de DNA do Adulto – Envolve a remoção do DNA de uma célula embrionária e sua substituição pelo DNA de outro indivíduo. Esta foi a técnica básica utilizada na produção da ovelha “Dolly”.
A clonagem de mamíferos tem sido utilizada na produção animal desde o final da década de 80, tendo sido os primeiros sucessos obtidos com camundongos na década de 70. O procedimento utilizado era, e ainda é, o da clonagem embrionária, ou seja, dividir um único ovo, logo após suas primeiras divisões mitóticas, em um ou mais clones que são então implantados no útero da mesma ou de diferentes fêmeas. O primeiro anuncio do emprego desta técnica para produção de clones humanos foi feito por Robert J. Stillman e seus colaboradores (George Washington Medical Center) em 1994. Eles utilizaram 17 zigotos (ovos) humanos que haviam sido produzidos a partir de um óvulo fertilizado por dois espermatozóides, o que resultou em um número excessivo de cromossomas, permitindo prever a morte certa dos mesmos (nenhum seria capaz de transformar-se em feto). Cada um destes zigotos produziu um ou mais clones. O motivo principal do experimento foi trazer a público o debate sobre a clonagem humana, algo que ainda não cessou e nem deverá cessar a curto ou médio prazos. Face a estes debates que se seguiram foram aprovadas pelo “National Institutes of Health”, nos Estados Unidos, uma série de orientações sobre as pesquisas com clones humanos, que atualmente deve limitar-se ao cultivo por 14 dias após a concepção (excepcionalmente 18 dias), sendo vedadas práticas tais como o implante de embriões humanos, a transferência do núcleo de um embrião em outro, ou o uso de embriões para seleção sexual. A nosso conhecimento, não existem em nosso pais regras claras que abordem aspectos similares.
Acreditava-se que a denominada “clonagem de DNA do adulto” fosse inviável em mamíferos, isto até o anuncio do sucesso obtido pelo Dr. Ian Wilmut do “Roslin Institute” na Escócia. Em 1996 o DNA de células de tecido mamário de uma ovelha de 6 anos de idade foi implantado no óvulo de uma ovelha da qual o núcleo havia sido retirado. Em 277 tentativas, 29 iniciaram o processo de divisão, tendo sido implantados em “ovelhas de aluguel”. Destas, 13 ficaram prenhes e uma ovelha nasceu, a ovelha “Dolly”, que foi apresentada ao mundo em 1997. Clonagens similares foram, logo a seguir, anunciadas em camundongos (Universidade do Havai) e gado bovino (Universidade de Tóquio).
Em 1993, na Universidade George Washington (EUA), produziram embriões humanos por clonagem embrionária. Para este experimento foram utilizados embriões produzidos para fertilização “in vitro” que haviam sido identificados como portadores de mal-formações genéticas. Foram obtidos 48 embriões a partir de 17 embriões originais. Todos foram destruídos ao atingirem 32 células.
Em 1998 pesquisadores da Clinica de Infertilidade da Universidade Kyeonghee na Coréia também anunciaram a clonagem de um ser humano. O objetivo não era clonar indivíduos específicos, mas gerar órgãos genéticamente idênticos para transplantes. A mórula obtida não foi implantada em nenhum útero por questões éticas, tendo sido destruída.
Todavia, cabe mencionar David Rorvik, escritor de divulgação científica, em 1978, no seu livro intitulado “In His Image: The Clonning of Man”, afirma ter certeza da clonagem de seres humanos. Segundo seu relato um milionário solteiro teria financiado a produção de um clone em um pais do sudeste asiático. Tal clone teria sido implantado em uma “mãe de aluguel” que teria gerado o bebe. Tal relato é visto com grandes reservas no meio acadêmico.
Aspectos Éticos, Morais e Legais da Clonagem
A clonagem de animais parece ter, evidentemente, tanto aspectos positivos quanto negativos. Pesquisadores, por exemplo, tem produzido uma série de organismos trangênicos, isto é, genéticamente alterados, dentre os quais porcos com genes humanos. Os órgãos destes animais poderiam ser utilizados em transplantes, salvando milhares de vidas humanas a cada ano. Tais animais poderiam então ser clonados e servir como fonte renovável destes órgãos. Animais transgênicos capazes de produzir hormônios ou determinadas proteínas no leite, inclusive de uso medicamentoso, poderiam também ser produzidos por clonagem, com fantásticas aplicações em medicina e, indubitavelmente capazes de melhorar a saúde das populações humanas. Parece haver um certo consenso na comunidade científica, e na população em gera,l de que este tipo de experimentação não sofre restrições éticas/morais significativas (não há entretanto unanimidade).
No que se refere a clonagem humana, vários cientistas acreditam ser a mesma ética e moralmente adequada, tendo vários aspectos positivos. Pode, por exemplo, ajudar a compreender mecanismos responsáveis por abortos naturais, bem como auxiliar no desenvolvimento de métodos anti-concepcionais mais eficientes e menos prejudiciais à saúde da mulher. Danos no tecido nervoso são de reparo extremamente difícil, podendo células germinativas com alto potencial reprodutivo serem utilizadas para estes reparos. O crescimento veloz das células embrionárias pode também fornecer subsídios para compreensão dos mecanismos envolvidos no crescimento de tumores malignos. Há, também outros aspectos que são, por alguns, considerados positivos. Uma mulher poderia, por exemplo, optar por ter 2 filhos, gêmeos univitelinos, em uma única gravidez, ao invés de ter 2 filhos em momentos distintos. Zigotos poderiam ser guardados e utilizados no futuro para produção de tecidos para transplante, que seriam virtualmente isentos de rejeição, um dos maiores problemas do transplante de órgãos. Um casal no qual o marido fosse estéril poderia utilizar a técnica de clonagem para produção de um filho com seu DNA. Numa situação um pouco mais discutível, um casal de lésbicas poderia ter um filho legítimo, utilizando o óvulo de uma e o núcleo de uma célula do corpo da outra. Enfim, as possibilidades são inúmeras.
Apesar dos vários aspectos potencialmente positivos da clonagem humana, há quem possua graves restrições éticas e morais, sendo favoráveis a proibição legal das mesmas. A clonagem poderia vira a ser realizada apenas em indivíduos com “perfil mais adequado” ou preferido, reduzindo-se gradualmente a diversidade genética das populações humanas. Também não há qualquer garantia de que os primeiros clones humanos sejam normais, nem se conhece a real expectativa de vida dos clones de mamíferos. Supõe-se que a mesma seja significativamente reduzida. Poderia-se chegar a produção de indivíduos com características definidas para certos tipos de atividades, tais como soldados, trabalhadores braçais, mineiros, etc, criando-se sub-raças que serviriam as raças “mais puras”. Há expeculações inclusive no campo religioso, tais como afirmações de que a alma entra no corpo no momento em que o espermatozóide o óvulo se unem. Na clonagem de DNA isto jamais ocorreria, gerando indivíduos sem alma.
Do ponto de vista religioso, praticamente todas as igrejas tem se manifestado contrárias a clonagem humana. Jeremy Rifkin, Presidente da “Foundation on Economic Trends”, uma associação que congrega mais de 300 organizações éticas e religiosas, propõe que a clonagem humana seja banida mundialmente, devendo ser punida de forma similar ao estupro, abuso de crianças e homicídio.
Embora no Brasil tal prática seja, a princípio, proibida, ou ao menos bastante restrita, uma vez que a Lei 8947/95 veta, em seu art. 8o, a “produção, armazenamento ou manipulação de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível”, este é um debate que, mais cedo ou mais tarde, deverá se realizar seriamente no seio da comunidade brasileira. Mesmo porque, como evidenciado anteriormente, a produção e/ou manipulação de embriões humanos pode ter destinos bastante variáveis que não a utilização como “material biológico disponível”, como previsto em lei. Esta lei, aliás, segundo alguns autores, apresenta sérias dificuldades de interpretação, especialmente pelo fato de utilizar uma terminologia eminentemente biológica e usualmente estranha ao meio jurídico. O mesmo pode-se dizer da Instrução Normativa 08/97, da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), vinculada ao Ministério de Ciência e Tecnologia. Tal instrução veta a manipulação de células germinativas totipontentes humanas, assim como a clonagem de seres humanos. Segundo José Roberto Goldin, é possível que a CTNBio tenha inclusive extrapolado sua competência.
De qualquer forma, a maioria dos cientistas acredita, como mencionamos, que a clonagem humana é uma realidade irreversível. É fundamental que nos preparemos para enfrenta-lo da melhor maneira possível, tanto em seus aspectos éticos e morais, quanto legais.
Bibliografia:
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Graduação em Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Santa Catarina (Florianópolis/Brasil) (1978), graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande (Rio Grande/Brasil) (2004), especialização em Fisiologia de Animais Marinhos pela Pontificia Universidad Católica de Chile (Talcahuano/Chile) (1985), diploma de Direito do Mar (United Nations Convention on the Law of the Sea) (Rhodes Academy Scholar) pela Rhodes Academy of Oceans Law and Policy (Rodes/Grécia) (2008), doutorado em Ciências (Fisiologia Geral) pela Universidade de São Paulo (1984) e pós-doutorado pela Rheinische Friedrich-Wilhelms-Universität (Bonn/Alemanha) (1993). Atualmente é Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande atuando nas áreas de Ciências Biológicas e de Oceanografia. Tem experiência em pesquisa em Biologia Marinha, sobretudo em Fisiologia Comparada. Mais recentemente vem se dedicando aos estudos de Bioética e Biodireito, assim como Direito do Mar. Representa o Brasil no âmbito da Convênção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar com vistas a organização de Tribunais Arbitrais Especiais (Anexo VIII da Convenção) na área de pesquisa em Ciências do Mar
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