A discussão envolvendo a questão da efetividade dos direitos sociais, especialmente aquelas afetas ao direito à saúde, tem atingido grandes proporções entre os estudiosos do Direito.
Autores, como LUIZ ROBERTO BARROSO, tem tratado do assunto com algumas reservas, defendendo, em suma, que o Judiciário, por exemplo, em relação ao fornecimento de medicamentos, somente deve determinar o fornecimento daqueles constantes das listas elaboradas pelo Poder Público; a inclusão de novos medicamentos nas referidas listas somente deve se dar excepcionalmente e, mesmo assim, levando-se em conta as competentes avaliações técnicas, de ordens médica, administrativa e orçamentária, observadas as competências dos Poderes Legislativo e Executivo, devendo o Judiciário, ainda, se atentar para o fornecimento apenas de medicamentos de eficácia comprovada, excluídos, portanto, aqueles ainda em fase experimental e os alternativos, sempre optando por substâncias disponíveis no Brasil, fornecidas por agentes situados em território nacional, e privilegiando os de menor custo, como os genéricos.
Tais ponderações, como aponta o insigne jurista supra mencionado, se justificam em razão da “proliferação de decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade -, bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas.”[1]
Argumenta-se, também, que o ativismo judicial arrojado coloca em risco a exequibilidade das políticas de saúde pública, redundando na desorganização da atividade administrativa, comprometendo, assim, a própria realização das diretrizes constitucionais relativas à garantia a saúde como direito fundamental, tendo em vista a universalidade desse tipo de prestação estatal e dos princípios relacionados ao orçamento e à reserva do possível, esta entendida, segundo lição de KILDARE GONÇALVES CARVALHO, como sendo “aquilo que o indivíduo poderia esperar razoavelmente da sociedade e garantidos na medida do possível e do adequado”[2]. Além disso, a atuação judicial estaria a se sobrepor às ponderações já previa e abstratamente realizadas pelo legislador quando da criação da norma.
Posto o intróito, passamos a colacionar algumas ponderações em prol da atuação irrestrita do Poder Judiciário quando defronte a casos envolvendo a garantia do direito à saúde como direito humano fundamental, tendo em vista as excessivas omissões dos poderes Legislativo e Executivo no trato da questão envolvendo o cumprimento das normas constitucionais afetas à saúde.
Permito-me abrir um breve parêntesis, que entendo seja necessário ao reforço da idéia defendida neste texto, e com vistas a engrossar o coro dos críticos da política brasileira, basta que liguemos nossos televisores nos noticiários diários ou acessemos outras mídias para que percebamos, sem dificuldades, em que passos anda nossa política.
Só pra citar fatos mais atuais, parece que os elementos que congregam os organismos responsáveis pela consecução das políticas necessárias à afirmação dos direitos expressos na Constituição tem levado ao “pé da meia”, digo, ao pé da letra, se me permitem o trocadilho, a questão relativa a formação de um “pé-de-meia” para garantir o futuro. Outros, como se sabe, recorrem a peças mais íntimas para guardar o dinheiro público desviado. Somado a isso, recentemente o presidente Lula concedeu empréstimo de dinheiro ao FMI. Então, com vistas nestes fatos amplamente divulgados na mídia, não há alicerces suficientemente robustos para afirmar que o orçamento brasileiro é deficitário. O dinheiro sobra!
Dentro dessa ótica, então, não subsistem argumentos favoráveis à tese de que o ativismo judicial compromete a realização das políticas públicas necessárias à garantia dos direitos constitucionais referentes à saúde. O dinheiro existe. O Estado, nas esferas legislativa e executiva é desorganizado por excelência, afigurando-se até mesmo hilária a pretensa tese que atribui ao Judiciário, através de decisões que visam garantir irrestritamente o direito à saúde, a culpa (ou parcela dela) pelo emperramento das políticas em tela.
Entretanto, deixando de lado as conjecturas políticas, e passando aos aspectos jurídicos da questão, que é o que de fato interessa neste trabalho, é imperioso registrar, inicialmente, que a saúde é atributo indissociável do direito à vida, que por sua vez integra o rol dos direitos humanos. Isto é, nascem com o ser humano e lhes são inerentes, independentemente de positivação pelo Direito, nada obstante a importância de assim o ser hodiernamente em âmbito mundial. São, na dicção de PAULO HENRIQUE GONÇALVES PORTELA, “direitos essenciais para que o ser humano seja tratado com a dignidade que lhe é inerente e aos quais fazem jus todos os membros da espécie humana, sem distinção de qualquer espécie.”[3]
São, portanto, direitos que pertencem a todos os indivíduos indistintamente, encontrando-se, neste argumento, a primeira justificativa para o ativismo judicial arrojado nas questões envolvendo a garantia do direito à saúde, uma vez que, nesse aspecto, um indivíduo brasileiro em nada difere de japoneses, russos, americanos, australianos, enfim, de indivíduos de qualquer parte do mundo, dado este traço comum que une a humanidade.
Sendo assim, não há razão para a prevalência do argumento político, no sentido de que garantir a vida ou a saúde de um único indivíduo, via tutela jurisdicional, implica no comprometimento das políticas que visam à universalização do acesso à saúde.
Na Constituição Federal, o direito à saúde encontra-se disciplinado no art. 6º, arrolado dentre os direitos sociais. Estes, segundo a doutrina que divide os direitos fundamentais em gerações (o termo mais apropriado seria dimensões), são classificados como pertencentes aos direitos de segunda geração (direitos de igualdade), e derivam dos reflexos negativos oriundos da Revolução Industrial e do liberalismo. Geralmente, tais direitos vem enunciados em normas classificadas como programáticas, cuja efetivação é tradicionalmente viabilizada através de prestações positivas do Estado, e de ações dos poderes Legislativo e Executivo, demandando, portanto, investimento de recursos públicos, e observado o princípio da reserva do possível.
PAULO HENRIQUE GONÇALVES PORTELA leciona que “inicialmente, a maior parte da doutrina entendia que os direitos de segunda geração tinham eficácia jurídica duvidosa, porque, por exigirem ações estatais e a disponibilidade de recursos para tal, não teriam aplicabilidade imediata e seriam de concretização mais progressiva. Posteriormente, passaram a ser vistos como de caráter programático. Na atualidade, a doutrina também atribui a estes direitos aplicabilidade imediata e justiciabilidade”[4].
Na mesma toada, KILDADE GONÇALVES CARVALHO assim sinaliza:
“É preciso ponderar, no entanto, que o princípio da reserva do possível não se reveste do caráter absoluto que alguns juristas pretendem atribuir-lhe, à consideração principal de que, sendo a saúde um direito que se relaciona com a garantia da vida e da dignidade humana, pertence ao Judiciário, no âmbito do controle do devido processo legal, de cunho substantivo, impedir que seja violado por meio de qualquer processo, por mais razoável que seja, e que fique à mercê dos poderes Legislativo e Executivo. Caso contrário, a reserva do possível significaria: a) a total desvinculação jurídica do legislador quanto à dinamização dos direitos sociais constitucionalmente consagrados; b) a ‘tendência para o zero’ da eficácia jurídica das normas constitucionais consagradoras dos direitos sociais; c) a gradualidade com dimensão lógica e necessária da concretização dos direitos sociais, tendo sobretudo em conta os limites financeiros; d) a insindicabilidade jurisdicional das opções legislativas quanto à densificação legislativa das norma constitucionais reconhecedoras de direitos sociais.”[5]
Quanto ao modo do exercício dos direitos sociais, e obviamente do direito à saúde, o mesmo autor prossegue afirmando:
“De qualquer modo, os direitos sociais podem ser submetidos à coerção pela via judicial, quer na sua titularidade individual, quer como interesses difusos e coletivos, com a utilização dos meios processuais adequados, dentre eles o mandado de segurança.
A garantia da justiciabilidade dos direitos sociais passa necessariamente pela garantia do direito à jurisdição, pelo qual o Estado tutela as pessoas em situação social vulnerável e cria condições para a redução das desigualdades. A negativa do Estado, sobretudo por opção do administrador público, em não cumprir obrigação social, de natureza e divisibilidade definidas, autoriza que o direito seja demandado junto ao Poder Judiciário para que se ordene ao Estado a realização da atividade social. Nada obstante, este tema passa pela análise da natureza e eficácia das normas constitucionais, em especial as denominadas programáticas (…)”[6]
Sobre a utilização do Mandado de Segurança como remédio adequado à garantia do direito à saúde, o STJ, na caneta do Min. João Otávio de Noronha, já havia se pronunciado, em 2003, em caso envolvendo criança portadora de Mielomeningocelite Infantil, doença congênita grave, e cujo tratamento adequado se encontrava disponível nos EUA.
Em seu pronunciamento, o eminente ministro asseverou que “não se pode generalizar a aplicação da norma que veda ao Estado a concessão de auxílio financeiro para tratamento fora do País, a ponto de abandonar, à sua própria sorte, aqueles que, comprovadamente, não podem obter, dentro de nossas fronteiras, tratamento que garanta condições mínimas de sobrevivência digna”, consignando, ainda, que “não havendo no País equipamento terapêutico apropriado ao tratamento da enfermidade, justifica-se que o Estado disponibilize recursos para a sua aquisição no exterior.”[7]
Sustenta-se, ainda, que é imprópria a intervenção judicial em assuntos reservados aos poderes legitimados pelo voto popular (Legislativo e Executivo), de modo a determinar como os recursos públicos destinados à saúde devem ser gastos, cabendo ao povo dispor sobre o modo como estes recursos devem ser empregados. Todavia, mister lembrar que o Poder Judiciário está previsto na própria Constituição Federal, que foi elaborada, pelo menos em tese, em observância à vontade popular, sendo que já no preâmbulo da Carta Maior, que é dotado de juridicidade, possuindo, portanto, força normativa, institui um Estado Democrático, destinado a assegurar, dentre outros, o exercício dos direitos sociais (grifei).
A Constituição, então, fala expressamente em exercício dos direitos sociais, idéia que, dentro da atuação judicial, é incompatível com a morosidade da garantia de tais direitos por meio da atuação legislativa e executiva. Ademais, há de se levar em conta a posição topográfica do preâmbulo constitucional e dos direitos fundamentais em relação aos dispositivos subseqüentes, revelando que a atuação das instituições estatais é condicionada à observância daqueles direitos.
Em relação à questão envolvendo o fornecimento de medicamentos e tratamentos experimentais, cuja atuação judicial, neste particular, é veementemente combatida, pensamos seja indispensável tecer algumas considerações acerca da autonomia de cada indivíduo em relação ao gozo da própria saúde.
Não cabe ao Estado determinar que tais garantias sejam excluídas de seu âmbito de atuação, sob a alegação de onerosidade excessiva ou falta de essencialidade do medicamento ou tratamento, pois assim estaria a dispor sobre direito personalíssimo. Como disposto na Declaração de Viena de 1993, “os direitos humanos e as liberdades fundamentais são direitos naturais de todos os seres humanos: sua proteção e promoção são responsabilidades primordiais dos Governos”.
Um dos propósitos da medicina é sempre trabalhar em busca de métodos eficazes de cura, e de forma a amenizar ao máximo o sofrimento do paciente. Se eventualmente um tratamento ou medicamento experimental desenvolvido para o combate de determinada doença demonstra resultados em determinado país, ou até mesmo no Brasil, cabe somente ao doente decidir se deseja se submeter ao mesmo. A essencialidade do medicamento ou tratamento varia de acordo com a enfermidade e o sofrimento de cada indivíduo.
A vida gozada com plena saúde é essencial por si só!
A título exemplificativo, cite-se a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, que regula as pesquisas envolvendo seres humanos, e cujo preâmbulo diz, in fine: “esta Resolução incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, os quatro referenciais básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, entre outros, e visa assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da pesquisa e ao Estado.”
Mais adiante, o citado diploma estabelece:
“III.1 – A eticidade da pesquisa implica em:
a) consentimento livre e esclarecido dos indivíduos-alvo e a proteção a grupos vulneráveis e aos legalmente incapazes (autonomia). Neste sentido, a pesquisa envolvendo seres humanos deverá sempre tratá-los em sua dignidade, respeitá-los em sua autonomia e defendê-los em sua vulnerabilidade;
b) ponderação entre riscos e benefícios, tanto atuais como potenciais, individuais ou coletivos (beneficência), comprometendo-se com o máximo de benefícios e o mínimo de danos e riscos;
c) garantia de que danos previsíveis serão evitados (não maleficência);
d) relevância social da pesquisa com vantagens significativas para os sujeitos da pesquisa e minimização do ônus para os sujeitos vulneráveis, o que garante a igual consideração dos interesses envolvidos, não perdendo o sentido de sua destinação sócio-humanitária (justiça e eqüidade).”
Como se vê, o próprio Estado fomenta a pesquisa com seres humanos, revelando-se verdadeiro contrassenso a pretensa limitação do acesso à saúde por meios experimentais.
Uma última observação: o direito à saúde, no Brasil, encontra-se em vias de se tornar disciplina obrigatória nos concursos para a magistratura, consoante recomendação do grupo de trabalho sobre demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde da Comissão de Relacionamento Institucional e Comunicação do Conselho Nacional de Justiça[8]. Tal recomendação levou em conta o grande número de demandas judiciais envolvendo o direito à saúde, e, além do âmbito jurídico, incentivara o oferecimento de cursos de aperfeiçoamento nesta área pelas escolas.
A medida, como podemos concluir, revela a dimensão que a questão assumiu em nosso direito.
De todo o exposto, concluímos que o Poder Judiciário deve garantir a quem dele se socorrer, o pleno acesso à saúde, seja pelos meios já reconhecidos pela medicina como eficazes, e disponibilizados pelo Estado, seja através de submissão a medicamentos e tratamentos experimentais, em solo brasileiro ou no exterior, sendo que os argumentos em contrário, por mais robustos que sejam, não possuem o condão de suprimir a atuação judicial, a qual muitas vezes é que, de fato, viabiliza o exercício dos direitos constitucionalmente garantidos, ante a inércia dos demais poderes.
Negar legitimidade e efetividade às decisões judiciais que tutelam os direitos fundamentais é o mesmo que dizer a cada cidadão brasileiro que o mesmo deve se resignar com o azar de ter nascido em um país que, infelizmente, ainda não possui condições de tratá-lo como sujeito de direitos.
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