Resumo: O presente artigo desenvolve estudo acerca da convivência entre direitos fundamentais e autonomia privada nas relações particulares, aborda os limites e os pressupostos dessa relação e visa estabelecer critérios seguros aptos a conduzirem esse processo habitualmente conflitante. Com fulcro na doutrina mais abalizada e na jurisprudência pertinente ao assunto, a pesquisa intenta desfazer falsas percepções relacionadas ao tema e edificar novos parâmetros, capazes de fortificar o debate e desvendar as nuances estruturais das colisões entre esses dois conceitos. [1]
Palavras-chave: autonomia privada; direitos fundamentais; eficácia horizontal;
Abstract: The present article develops a study about the intimacy between fundamental rights and private autonomy on private relationships, address the limits and assumptions of this relationship and must seek safe criteria to conduct this process usually conflicting. With basis on the best doctrine and jurisprudencies about the subject, the article seeks to undo fake perceptions about the theme and to construct new parameters, able to make stronger the debate and to reveal nuances of the structure of collisions between these two concepts.
Keywords: private autonomy. Fundamental rights. Horizontal efficacy.
Sumário: Introdução 1. Autonomia privada: conceito e evolução histórica 1.1 Liberdade de contratar e liberdade contratual. 2. Direitos fundamentais: prerrogativas da pessoa humana 2.1 Eficácia horizontal dos diretos fundamentais 3. Constitucionalização das relações privadas: convivência entre direitos fundamentais e autonomia privada. 3.1 Natureza principiológica 3.2 Critérios de resolução propostos 3.3 A disponibilidade do bem: um juízo de razoabilidade 4. Casos concretos: limites e pressupostos sob o enfoque dos Tribunais. Conclusão.
Introdução
Com o passar das épocas, o ser humano consagra novos valores e anseios, condizentes com as nuances da realidade em que vive e interage. Deste modo, o que antes foi referência de retidão, hodiernamente pode não ser mais. São as implicações da natureza cambiante e intensa da humanidade.
O Direito não foge à regra. Como produto do homem, incorpora sua mutabilidade. Neste diapasão, Pontes de Miranda aduz que “O Direito não é outra coisa que processo de adaptação”[2]. Sendo assim, institutos jurídicos amoldam-se a concepções teóricas reinantes a seu tempo, assumindo significados e aplicações diferentes a cada ciclo de pensamento.
Neste jaez, desenvolveu-se a teoria dos direitos fundamentais, sujeita às influências de cada nova mudança de paradigmas. A discussão sobre a aplicabilidade de tais direitos deu origem à teoria da eficácia horizontal, ensejando novos olhares sobre a incidência de princípios como a inviolabilidade da intimidade e da honra.
Paralelamente, viu-se eclodir verdadeiro processo de constitucionalização dos ramos do direito, dentre os quais, o Direito Civil e seu caráter privado. Nas palavras de Gustavo Tepedino: “Parece, ao revés, imprescindível e urgente uma releitura do Código Civil e das leis especiais à luz da Constituição”[3]. Desta forma, sacramenta-se a supremacia constitucional na atividade hermenêutica, mecanismo que indica a necessidade de adequação das leis infraconstitucionais ao Texto Maior.
Outrora fortemente marcadas pela atuação ilimitada da autonomia privada, as relações particulares não estão mais fora do campo incidental dos demais direitos fundamentais. Demais direitos, visto ser oportuno e inegável afirmar que a autonomia privada decorre do direito fundamental de liberdade, sob uma ótica pactual. Destarte, urge salientar a amplitude de situações em que esses dois conceitos contrastam, enfrentam-se, sendo de natural valia o estudo de tais embates e a análise dessa convivência, que, por vezes conflituosa, é nascedouro de instigantes debates jurídicos.
São justamente os limites e pressupostos dessa interação entre direitos fundamentais e autonomia privada nas relações particulares que o presente artigo visa debruçar-se, sendo seus fatores e implicações naturalmente adiante expendidos.
1. Autonomia Privada: conceito e evolução histórica
O domínio da vontade dos contratantes foi uma conquista advinda de um lento processo histórico, resultando no chamado “respeito à palavra dada”, herança dos contratos romanos e expressão propulsora da idéia central de contrato como fonte obrigacional[4].
Na definição de Francisco Amaral, a autonomia privada “é o poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações que participam, estabelecendo-lhe o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica.”[5] Ou seja, essencialmente, trata-se da liberdade que possui a pessoa para regular seus próprios interesses, a faculdade que tem de concluir livremente suas avenças.
Nos dizeres de Maria Helena Diniz, “desse princípio decorre, (…), a pacta sunt servanda, pela qual a vontade manifestada no contrato faz lei entre as partes contratantes, a relatividade dos contratos em relação a terceiros e o respeito à vontade das partes, que têm liberdade de contratar se, com quem, o que e como quiserem.”[6]
No Estado liberal clássico, emanado da Revolução Francesa, esse princípio chegou a seu ápice, tornou-se quase absoluto. O Estado liberal entendia que o equilíbrio e a justiça do contrato advinham justamente da liberdade das partes em contratar. Posteriormente, com o avanço de normas de ordem pública, além dos princípios sociais contratuais, a autonomia da pessoa, pouco a pouco, encontrou limitações ao seu campo de atuação, no qual antes reinava soberana.
Na esteira de tais limitações, encontra-se a função social do contrato, a qual, no pensamento de Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, “é, antes de tudo, um princípio jurídico de conteúdo indeterminado, que se compreende na medida em que lhe reconhecemos o precípuo efeito de impor limites à liberdade de contratar, em prol do bem comum”[7]. Entretanto, faz-se mister ressalvar que tal princípio não elimina por completo a autonomia privada, visto que a função social “não é nem pode ser entendida como destrutiva da figura do contrato, dado que, então, aquilo que seria um valor, (…) destruiria o próprio instituto do contrato”[8].
Em sede de bosquejo histórico, no transcurso do século XX, a partir das guerras e revoluções de todo porte, fatos históricos por excelência, o individualismo liberal cedeu espaço ao chamado intervencionismo estatal, mudança ideológica estrutural no espectro geopolítico dos povos. Com isso, eclodiu, como resultado dessa ingerência do Estado, o “dirigismo contratual”. Nesta seara, colhe-se o escólio de Arnoldo Wald, o qual, nos seguintes termos infra transcritos, afirma: “As ideias solidaristas e socialistas e a hipertrofia do Estado levaram, todavia, o Direito ao dirigismo contratual, expandindo-se a área das normas de ordem pública destinadas a proteger os elementos economicamente mais fracos, favorecendo o empregado, pela criação do Direito do Trabalho, o inquilino, com a legislação sobre locações, e o consumidor, por uma legislação específica em seu favor.” [9]
O que se nota, portanto, é que no atual Código Civil, “o contrato não é mais visto pelo prisma individualista de utilidade para os contratantes, mas no sentido social de utilidade para a comunidade”[10]. Entretanto, interessa ressaltar que todas essas limitações impostas ao princípio que dá nome a este tópico não significam o extermínio da autonomia privada, pois, sem esta, as relações de direito privado estagnar-se-iam e a sociedade atual entraria em verdadeiro colapso.[11]
1.1. Liberdade de contratar e liberdade contratual
O direito à contratação é inerente à própria concepção da pessoa humana, decorrendo do seu direito de liberdade. Desta maneira, a autonomia privada pode ser definida, em termos contratuais, como o resultado de dois conceitos advindos de uma clássica diferenciação doutrinária: a liberdade de contratar e a liberdade contratual.
A liberdade de contratar diz respeito à prerrogativa de contratar ou não, com quem contratar e quando contratar. Neste sentido, à primeira vista, ela está relacionada com a escolha da pessoa ou das pessoas com as quais será acordado o negócio, sendo, em regra, plena. Todavia, nos dizeres de Flávio Tartuce, “ em alguns casos, nítidas são as limitações à carga volitiva, eis que não se pode, por exemplo, contratar com o Poder Público se não houver autorização para tanto. Como limitação da liberdade de contratar, pode ser citado o art. 497 do CC, que veda a compra e venda de bens confiados à administração em algumas situações.” [12]
Já a liberdade contratual é a liberdade de se formular as condições do contrato e está relacionada com o conteúdo do negócio jurídico, sofrendo limitações ainda maiores. Conforme exposto anteriormente, o velho modelo individualista encontra-se superado, o que deu azo a maiores restrições a essa liberdade, como é o caso, por exemplo, da atuação dos princípios sociais que atualmente informam o contrato.
1.2. Considerações terminológicas
A esta altura, fazem-se necessárias duas considerações terminológicas pertinentes, quais sejam a preferência pela utilização do termo autonomia privada em contraposição à autonomia da vontade e o entendimento daquela como uma conseqüência lógica do direito fundamental de liberdade.
No primeiro caso, em face da vontade ter perdido a importância que exercia no passado para a formação dos contratos, opta-se, neste trabalho, pelo termo “autonomia privada” em detrimento do termo “autonomia da vontade”.
“O contrato de hoje é constituído por uma soma de fatores, e não mais pela vontade pura dos contratantes. (…) Na formação do contrato, muitas vezes, percebe-se a imposição de cláusulas pela lei ou pelo Estado”[13]. Neste jaez, sobreleva ressaltar a intervenção estatal nos contratos ou dirigismo contratual, o qual, a título exemplificativo, pode ser visto em nosso Código de Defesa do Consumidor e também em nosso atual Código Civil, quando determinam a nulidade absoluta de cláusulas tidas como abusivas.
Partidário da substituição do termo autonomia da vontade por autonomia privada, Francisco Amaral justifica-se ao sentenciar: “Sinônimo de autonomia da vontade para grande parte da doutrina contemporânea, com ela porém não se confunde, existindo entre ambas sensível diferença. A expressão “autonomia da vontade” tem uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o poder da vontade no direito de um modo objetivo, concreto e real.” [14]
Ademais, é de se ressaltar o fato que, atualmente, a prática contratual faz predominar os chamados contratos de adesão ou contratos standard, os quais reduzem, na maioria das vezes, o exercício da vontade à mera expressão de aceitação ou negativa das proposições dispostas no pacto, mitigando e desqualificando a vontade.
Já a segunda consideração terminológica a ser feita diz respeito ao fato de que, mesmo ao se pretender abordar a convivência entre autonomia privada e direitos fundamentais nas relações particulares, reconhecemos a primeira como decorrência lógica de um direito fundamental, o de liberdade. Desta feita, a autonomia privada detém como seu fundamento constitucional justamente os princípios da liberdade e da dignidade humana, este em um plano mediato e aquele em um plano imediato.
2. Direitos fundamentais: prerrogativas da pessoa humana
A afirmação dos direitos fundamentais como núcleo da proteção da dignidade da pessoa humana representeou considerável avanço na sedimentação de nosso Estado Democrático de Direito.
A evolução de tais direitos como normas obrigatórias é resultado de maturação histórica, o que nos indica que seus intentos e características não foram sempre os mesmos, variando as concepções que lhes eram atinentes.
No decurso evolutivo do Direito Constitucional, segundo preleciona Paulo Bonavides, “há quatro gerações sucessivas de direitos fundamentais. (…) buscam elas reconciliar e reformar a relação do indivíduo com o poder, da sociedade com o Estado, da legalidade com a legitimidade, do governante com o governado” [15].
De tal forma é que se projetam as clássicas gerações de direitos fundamentais, desde os direitos civis e políticos de primeira geração, passando pelos direitos sociais de segunda geração e pelos direitos de solidariedade ou de fraternidade de terceira geração. Neste tema, o Prof. Bonavides ainda defende direitos de quarta geração, quais sejam o direito à democracia, o direito à informação e o direito ao pluralismo[16].
2.1. Eficácia horizontal dos diretos fundamentais
Durante um longo período, o pensamento dominante a vigorar na doutrina constitucional referente à eficácia dos direitos fundamentais os via como limites à atuação dos governantes em favor dos governados. Constituíam-se como uma proteção às liberdades individuais e um mecanismo de defesa à ingerência estatal na vida privada, eram os direitos fundamentais de primeira geração. Imperava, portanto, a teoria da eficácia vertical dos direitos fundamentais.
Por meio dessa teoria, os direitos fundamentais são vistos como liberdades e garantias do indivíduo, configurando-se como direitos de defesa perante o Estado. Deste modo, não se discute, por exemplo, a aplicação do princípio da isonomia em um concurso público. Em outro exemplo, figura o habeas corpus como instrumento garantidor da liberdade de locomoção, assegurando o direito fundamental de liberdade e limitando o poder de interferência do Estado nesse aspecto nevrálgico da dignidade humana.
Entretanto, a complexidade das relações sociais atrelada a situações de crescente desigualdade humana fez surgir a percepção de que a opressão das liberdades não advinha somente do Estado, mas também dos homens entre si. Assim, surgiu a necessidade de se estender a eficácia dos direitos fundamentais às relações privadas, a fim de que se protegesse o homem de sua própria prepotência [17].
Nesta toada, surgiram duas teorias referentes à aplicabilidade dos direitos fundamentais nas relações particulares: a teoria da eficácia indireta e mediata e a teoria da eficácia direta e imediata.
A primeira, desenvolvida pelo alemão Günter Dürig, prega a atuação dos direitos fundamentais nas relações privadas, todavia condicionada à ação do legislador infraconstitucional, ao qual incumbe a tarefa de adequar as leis infraconstitucionais reguladoras da vida privada aos ditames constitucionais definidores de direitos.[18]
Para a teoria da eficácia indireta e mediata, os direitos fundamentais não podem ser invocados diretamente da Lex Fundamentalis, sob pena de se ver aniquilada a autonomia privada e desfigurado o direito privado. Logo, caberia ao legislador, por meio de uma regulamentação compatível com os valores constitucionais, mediar a aplicação desses direitos nas relações particulares. Assim sendo, “os direitos fundamentais irradiam seus efeitos por meio de mediação legislativa”. [19]
Já a teoria da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais, defendida originalmente por Nipperdey e Leisner, apregoa a aplicabilidade direta e imediata dos direitos fundamentais sobre as relações privadas, independentemente de prévia atividade legislativa. Sendo assim, não só o Estado como também os atores privados estão vinculados à Constituição.[20] Efeito concreto do acolhimento desta teoria naquele país, a Consituição portuguesa (CRP, art.18°/1) dispõe: “Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas”.
No que diz respeito à realidade brasileira, Luís Roberto Barroso preconiza: “O ponto de vista da aplicabilidade direta e imediata afigura-se mais adequado para a realidade brasileira e tem prevalecido na doutrina. Na ponderação a ser empreendida, como na ponderação em geral, deverão ser levados em conta os elementos do caso concreto.” [21]
Portanto, já é possível afirmar que há, no Brasil, uma tendência tanto na doutrina como na jurisprudência em se adotar a eficácia direta ou imediata nas relações privadas.
3. Constitucionalização das relações privadas: convivência entre Direitos Fundamentais e Autonomia Privada.
A constitucionalização do Direito Civil, processo de singular pertinência jurídica, fundamenta-se na irradiação de valores eminentemente constitucionais para o âmbito das relações privadas, tal como a previsão da função social, não somente no que atine à propriedade, mas também ao contrato e à família.
Retrato desse processo de constitucionalização, a incidência do princípio da igualdade na esfera particular mostrou-se proeminente ao ser considerado o consumidor como parte hipossuficiente na relação de consumo, ou seja, reconhecendo-o como, de fato, a parte mais fraca da situação, estabelecendo, v.g., o Código de Defesa do Consumidor, de acordo com seu art. 6°, VIII, a inversão do ônus probatório [22].
Para Luís Roberto Barroso, a constitucionalização do direito consiste no “efeito expansivo das normas constitucionais, cujo conteúdo material e axiológico se irradia, com força normativa por todo o sistema jurídico”[23]. O autor em comento ainda preceitua que “os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional” [24].
Destarte, o ponto crucial desse processo de verdadeira influência constitucional nas relações particulares consiste na convivência, naturalmente conflitante, entre o pleno exercício da autonomia privada e os direitos fundamentais consolidados em nossa Lei Maior e projetados nessas relações. Neste trilhar, instante consagrado doutrinariamente como o marco inicial do reconhecimento da constitucionalização do direito, a interpretação do caso Lüth, na Alemanha, firmou-se como um momento de importância histórica para o tema ora abordado.
Em breve relato fático, o caso consistiu em uma grande campanha de boicote, por parte de um jornalista, a um filme produzido por um cineasta, acusado pelo primeiro de nazista. Em face do insucesso da produção cinematográfica, o cineasta mobilizou a máquina jurisdicional do Estado, a fim de ver reparados os danos sofridos.
Entretanto, o Tribunal Constitucional Alemão indeferiu o pleito indenizatório por entender que as normas do ordenamento jurídico deveriam ser interpretadas à luz dos valores constitucionais propostos pelos direitos fundamentais.
Desta feita, o dispositivo infraconstitucional a determinar a indenização deveria ser interpretado de acordo com o direito fundamental de liberdade de expressão. Na tradução de Virgílio Afonso da Silva, o pretório germânico pronunciou-se nos seguintes termos: “A Constituição, que não pretende ser uma ordenação axiologicamente neutra, funda, no título dos direitos fundamentais, uma ordem objetiva de valores, por meio da qual se expressa um (…) fortalecimento da validade (…) dos direitos fundamentais. Esse sistema de valores, que tem seu ponto central no livre desenvolvimento da personalidade e na dignidade humana no seio da comunidade social, deve valer como decisão fundamental para todos os ramos do direito; legislação, administração e jurisprudência recebem dele diretrizes e impulsos.” [25].
Portanto, com o avançar do tempo, verificou-se o reconhecimento cada vez mais pleno da eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Todavia, esse reconhecimento não deve assegurar permanente privilégio das situações fáticas advindas da aplicação dos direitos fundamentais nos casos concretos, quando há real colisão entre tais direitos e a autonomia privada.
Vê-se a necessidade de entender ambos conceitos como princípios e, como tais, reger seus embates de acordo com a sua natureza, utilizando-se dos mecanismos que lhes são mais adequados, exercendo um juízo de razoabilidade.
3.1 Natureza principiológica
A esta altura do trabalho, faz-se mister ressaltar o caráter principiológico assumido pelos direitos fundamentais e pela autonomia privada, nos termos aqui propostos. Tal caráter advém de sua fundamentalidade jurídica. São entendidos como mandamentos nucleares que informam todo o sistema.
A fim de explorar o aspecto estrutural dos princípios, colhe-se o escólio do autor português Jorge Miranda, quando afirma: “ Por certo, os princípios, muito mais que os preceitos, admitem ou postulam concretizações, densificações, realizações variáveis. Nem por isso, o operador jurídico pode deixar de os ter em conta, de os tomar como pontos firmes de referência, de os interpretar segundo os critérios próprios da hermenêutica e de, em conseqüência, lhes dar o devido cumprimento.” [26]
Ademais, Robert Alexy caracteriza a natureza dos princípios, ao asseverar que são “normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas.” [27]
Quando se afirma que tanto a autonomia privada como os direitos fundamentais possuem natureza principiológica, está a se assegurar que ambas são normas jurídicas dotadas de normatividade, as quais obrigam e vinculam, possuindo intensa carga axiológica e referindo-se diretamente a valores.
Consequentemente, entendidos de tal maneira, conclui-se que os confrontos suscitados por eles são colisões de princípios, quando um princípio veda o que o outro permite e um deles deve ceder. “Isto, porém, não significa que o princípio do qual se abdica seja declarado nulo, nem que uma cláusula de exceção nele se introduza” [28].
Nas palavras de Dirley da Cunha Júnior, no que diz respeito à convivência conflituosa entre princípios, “vigora a ideia de peso ou valor ou importância, de modo que o princípio de maior peso ou valor ou importância é o que deve preponderar no caso concreto. (…) o conflito entre princípios se resolve na dimensão do valor” [29].
Sendo assim, ocorrendo uma colisão entre princípios, deve-se levar em conta, para a solução do problema erigido no caso concreto, o peso relativo de cada um mediante a ponderação e o balanceamento dos valores e interesses envolvidos, num processo de sopesamento.
3.2 Critérios de resolução propostos
Ao se pretender abordar a temática vertente, importa trazer à baila a relevante contribuição de Daniel Sarmento, o qual, em sua tese de doutorado, propõe-se à indicação de critérios aptos a guiar o processo de resolução dos conflitos surgidos em função da aplicação da autonomia privada e dos direitos fundamentais nas avenças civis. [30]
O autor em comento tratou de estabelecer parâmetros para o processo de sopesamento destes princípios, de modo que o critério principal por ele utilizado baseou-se na dicotomia assimetria/simetria das partes.[31] Sarmento, ao considerar assimetria como a desigualdade fática entre os envolvidos, aduz: “quanto maior for a desigualdade (fática entre os envolvidos), mais intensa será a proteção ao direito fundamental em jogo, e menor a tutela da autonomia privada. Ao inverso, numa situação de tendencial igualdade entre as partes, a autonomia privada vai receber uma proteção mais intensa, abrindo espaço para restrições mais profundas ao direito fundamental com ela em conflito.” [32]
Neste diapasão, fazem-se necessários alguns apontamentos. Apesar de portar coerência, o critério estipulado por Sarmento prende-se a um caráter material que, mesmo sendo fator de relevante influência na relação, não detém a amplitude necessária que se deseja atingir, não sendo razoável a sua aplicação em algumas situações práticas, o que nos faz intentar a construção de bases teóricas mais firmes.
Virgílio Afonso da Silva, rebatendo o que foi proposto por Sarmento, aponta os programas de reality show como exemplos que contradizem o que foi defendido por ele: “aqueles que participam dos chamados reality shows, tão em voga nas emissoras de televisão no Brasil e no mundo, o fazem com base no exercício de sua autonomia da vontade. Esse exercício acarreta, sem dúvida, restrições a direitos fundamentais, especialmente ao de privacidade. A desigualdade material entre, por exemplo, a Rede Globo, uma das maiores empresas de comunicação do mundo, e os participantes de seu reality show é inegável. Isso não significa, contudo, que haja uma necessidade de intervir nessa relação para proteger direitos fundamentais restringidos.” [33]
Nestes casos, apesar da disparidade econômica existente entre as partes, seria desarrazoada uma intervenção jurisdicional no acordo de vontades pautado entre os participantes do programa e a emissora. Seria uma ingerência que ameaçaria a célula mater do contrato, qual seja o exercício da autonomia privada, dando azo a semelhantes intervenções no futuro e abrindo precedentes extremamente perigosos para as relações privadas.
Assim, a desigualdade fática ou material não se afigura como um critério seguro e apto a orientar por completo a colisão principiológica entre direitos fundamentais e autonomia privada.
3.3 A disponibilidade do bem: um juízo de razoabilidade
Neste momento, por força do exposto, urge ressaltar a importância da estrutura do bem objeto da avença e sua disponibilidade. A depender das características do que está a ser pactuado, a incidência tanto da autonomia privada como dos direitos fundamentais pode se revelar merecedora de prevalência no momento das colisões.
Para explicar melhor o que está a se propor, vejamos um exemplo prático e de considerável fama: o caso Shelley v. Kramer. Na ocasião, proprietários de um determinado loteamento nos Estados Unidos comprometeram-se contratualmente a não vender os imóveis a indivíduos de cor negra. Na situação, o objeto do acordo versava sobre clara restrição ao direito fundamental de igualdade, ou seja, limitava a venda dos imóveis a determinados tipos de pessoas em razão de sua cor, em notório ato de descriminação racial.
A Corte Estadual entendeu como legítima a referida cláusula, todavia a decisão foi reformada pela Suprema Corte, sob o fundamento de violação do direito de igualdade pela Corte Estadual ao reconhecer a legalidade da cláusula contratual em análise. Usou-se o argumento de que a violação a um direito fundamental não estava na cláusula, mas sim no reconhecimento de sua legalidade por parte da Corte Estadual, o que, na prática, representou uma forma distorcida de se garantir a eficácia horizontal do direito de igualdade.
Portanto, neste caso, vislumbra-se que a disponibilidade do direito fundamental de igualdade em jogo é menor, ou seja, por tratar-se de preceito constante de uma ordem objetiva de valores de difícil limitação, a autonomia privada é restringida e o direito fundamental em tela privilegiado.
Já no caso do reality show, devido ao direito à intimidade, à privacidade e à imagem serem estruturalmente de maior disponibilidade, natural que, no âmbito privado, o indivíduo possa restringi-lo se assim o quiser, fazendo prevalecer o exercício da autonomia privada. Tal conclusão advém de um juízo de razoabilidade. O mesmo se aplica às atrizes e modelos que aceitam ter sua intimidade revelada ao posarem nuas para revistas destinadas ao público masculino.
Desta forma, quanto maior a disponibilidade do bem objeto do acordo, maior será a tendência à aplicação da autonomia privada. Em contrapartida, quanto menor a disponibilidade do bem, maior será o campo de atuação dos direitos fundamentais, tendo em vista que, sendo de difícil disponibilidade, o objeto do pacto tende a fazer parte de uma ordem objetiva de valores de difícil mitigação.
Todo esse processo de aferição da disponibilidade do conteúdo do acordo consubstancia-se num verdadeiro exercício de razoabilidade, na formação de um juízo do que é ou não razoável se dispor, e, a partir desta conclusão, extraem-se os limites de atuação de cada princípio no caso concreto.
4. Casos concretos: limites e pressupostos sob o enfoque dos Tribunais
A fim de que melhor se ilustre o tema em debate, importa destacar dois entendimentos pretorianos de relevante contribuição jurisprudencial, de modo que se clareiem os argumentos aqui desenvolvidos.
O primeiro deles, ao tratar de uma sociedade civil sem fins lucrativos, versou sobre a exclusão de sócio sem a garantia da ampla defesa e do contraditório.[34] Nesta ocasião, entendeu o Supremo Tribunal Federal que a autonomia privada conferida à sociedade não a isentava de promover o respeito a direitos fundamentais consagrados no texto de nossa Constituição Federal. O decisum deste sodalício reconheceu a eficácia horizontal dos direitos fundamentais e entendeu pela inviolabilidade da ampla defesa e do contraditório, mesmo se tratando de fato oriundo de atividade privada.
O segundo julgado conexo ao assunto vertente foi o do RE 161243/DF, em que foi declarada inconstitucional a vedação da aplicação do Estatuto do Pessoal de uma empresa francesa de aviação aos trabalhadores de nacionalidade distinta da francesa.[35] A determinação referente ao Estatuto apenas aplicar-se aos trabalhadores franceses feria o direito fundamental de igualdade, ainda mais tendo em vista que ele conferia aos trabalhadores uma série de benefícios.
O posicionamento do STF demonstrou que tais direitos fundamentais, por suas implicações, possuem disponibilidade reduzida, o que os faz merecedores de proteção maior, impondo limites à atuação da autonomia privada. Fazem parte, portanto, de uma ordem objetiva de valores de restrição limitada, em face da sua contribuição estrutural para o desenvolvimento profícuo da dignidade humana.
Conclusão
Com a crescente aceitação, tanto por parte da doutrina como da jurisprudência, da teoria da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, faz-se necessário compatibilizar a incidência do conteúdo desses preceitos constitucionais com a face estrutural das relações particulares, momento em que se constata a dificuldade em harmonizá-los com a autonomia privada.
Em face do exposto, para o enfrentamento do tema, é de salutar valia o reconhecimento dos direitos fundamentais e da autonomia privada como princípios, portanto, normas de fundamentalidade jurídica e passíveis de colidirem no caso concreto.
No que se refere aos conflitos oriundos da aplicação de tais conceitos, o estabelecimento de critérios ou parâmetros aptos a orientar o processo de resolução dos embates surgidos apresenta-se como interessante mecanismo de suporte à aplicação do direito, possuindo relevância prática na atividade jurisdicional.
Neste ponto, importa evidenciar o papel da estrutura do bem objeto do acordo, a fim de aferir sua disponibilidade, por meio de um juízo de razoabilidade. Conclui-se que a maior disponibilidade do conteúdo do negócio credencia uma maior atuação da autonomia privada. Em sentido contrário, caso haja menor disponibilidade haverá uma tendência maior à incidência dos direitos fundamentais.
A disponibilidade aqui sustentada refere-se a uma avaliação do conteúdo contratual, devendo-se perquirir as implicações práticas resultantes da efetivação do pacto e analisar se é razoável ou não a eventual restrição de um direito fundamental. A possível restrição desse direito só deve efetuar-se após a percepção de que está compreendida dentro dos limites de exercício da autonomia privada.
A convivência entre direitos fundamentais e autonomia privada nas relações particulares, não obstante ter caráter conflitante e de difícil solução, representa avanço cabal na teoria dos direitos fundamentais, pois pressupõe a sua incidência não somente nas relações do indivíduo com o Estado, mas também nas dele com os demais particulares, meio em que se perpetram inegáveis desrespeitos aos valores constitucionais.
Reconhecer que os direitos fundamentais irradiam seus efeitos também no âmbito privado é promover uma adequação do Direito ao meio em que incide, adaptá-lo a realidade que regula, pois a proteção do homem não deve se realizar apenas face ao Estado, mas também perante a quem constantemente alija a dignidade humana: o próprio homem.
Para que se efetive tal proteção, é de vital importância que a relação dos direitos fundamentais com a autonomia privada seja harmonizada no caso concreto. Não se trata de renegar valia a qualquer deles, mas reconhecer, perante as características das situações fáticas propostas, a prevalência de um ou de outro, a depender da natureza do acordo e dos elementos fáticos primordiais do caso.
Acadêmico de Direito na Universidade Federal do Ceará. Membro do Núcleo de Estudos em Ciências Criminais e do Centro de Estudos em Direito Constitucional da Universidade Federal do Ceará
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