A imprevisibilidade moderna e o detrimento da esfera pública: uma crítica a individualização

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Resumo: pensar a política na esfera pública exige romper com os atuais diagnósticos sociológicos os quais remetem a conformidade do capital como meio único pelo qual se possibilitou o detrimento da participação popular nos processos de continuidade democráticas. Exige mais. Em uma breve análise, pretendemos retomar a questão da colonização da vida privada em relação à esfera pública, brevemente, categorizando e sintetizando algumas das problemáticas encontradas para a continuidade e desenvolvimento da democracia no Brasil, qual seja o individualismo e seu irrompimento.

Palavras-Chave: individualização, modernidade, participação política.

Abstract: to think politics in the public sphere requires breaking away from current sociological diagnoses which point compliance of capital as a means by which only allowed the detriment of popular participation in democratic processes of continuity. Requires more. In a brief analysis, we intend to resume the settlements issue of private life in relation to the public sphere, briefly, categorizing and summarizing some of the problems encountered in the continuity and development of democracy in Brazil, namely individualism and its eruption.

Keywords: individualization, modernity, accountability.

A proposta inicial consiste em uma breve arguição da vida moderna em sua instância política, desenvolvendo uma análise crítica às formas pelas quais a sociedade, em sua atual configuração, tem inviabilizado a participação na esfera pública de modo a corroborar para a continuidade de um modelo previamente estabelecido, através de processos de transformação graduais que incidiram na contemporaneidade em sua precisa conjuntura política.

Sendo assim, para que possamos avançar em nossa breve análise, devemos compreender que o processo brasileiro de abertura política remete a uma (re)construção da liberdade que, por sua vez, compreenderemos a partir da proposição de Berlin (2002) sobre os conceitos de liberdade negativa e liberdade positiva.

Para Berlin, a liberdade negativa tende a ser compreendida enquanto a falta de uma coerção intencional, significando que um indivíduo, para que mantenha tal liberdade, necessite de uma menor interferência de outrem em seus processos decisórios. Contudo, ao percebermos a significância atribuída ao conceito por Berlin (2002) percebemos que o enfoque se dá justamente na concepção de que não hajam interferências nas liberdades, ou seja, de que a liberdade de um determinado indivíduo não incida na de outro, sucessivamente. Tal formulação teórica também pode ser percebida sob o olhar de Tocqueville (2001)[1] em seu estudo a respeito da Democracia na América, onde percebera que a democracia estadunidense possibilitara um crescimento do interesse na vida privada, que incidiria de forma direta nos processos decisórios da esfera pública e da participação nos processos decisórios da política local.

De outro modo, Berlin (2002) irá refletir acerca do conceito de liberdade positiva, tendo esta um ponto nevrálgico a qual seria a incapacidade da liberdade negativa de tornar-se a única forma de liberdade na qual as trajetórias de vida pudessem ser conduzidas, uma vez que esta última incide na ausência de interferência externa. A questão proposta, então, diz respeito às possibilidades de sustentação e continuidade da vida em uma determinada sociedade, cujo resultado apenas seria “positivo” mediante a regulamentação da liberdade, ou seja, com a presença de algum grau de coerção.

Dessa forma, a proposição final de Berlin:

“O pluralismo, com a dose de liberdade negativa que acarreta, parece-me um ideal mais verdadeiro e mais humano do que as metas daqueles que buscam nas grandes estruturas disciplinadas e autoritárias o ideal do autodomínio positivo por parte de classes, povos ou de toda a humanidade. É mais verdadeiro, pois pelo menos reconhece o fato de que as metas humanas são muitas, nem todas comensuráveis, e em perpétua rivalidade umas com as outras. Supor que todos os valores possam ser graduados numa única escala parece-me falsificar nosso conhecimento de que os homens são agentes livres, representar a decisão moral como uma operação que uma régua de cálculo poderia, em princípio, executar. Dizer que em alguma síntese suprema (…) o dever é interesse, ou a liberdade individual é pura democracia ou um Estado autoritário, equivale a lançar um cobertor metafísico sobre o auto-engano ou a hipocrisia deliberada”. (BERLIN, 2002, p.272)

Neste ponto, Berlin (op. cit.) traz a proposição de um pluralismo, o qual remete que a liberdade não se configuraria enquanto um valor maior face às demais necessidades humanas: trabalho, alimentação, habitação, dentre outros. O que salientamos com essa curta exposição aufere maior sentido quando vinculamos tal proposição à formulação das políticas sociais. Para que seja clarificada tal posição, voltemos à constituição do intento liberal, qual seja o de uma liberdade humana voltada a gestão da vida em seu sentido amplo, abordando vários dos aspectos salientados acima e defendidos como sendo valores inerentes para as possibilidades determinantes das trajetórias de vida inseridas na sociedade. Como visto em Friedman (1977):

“Como liberais, consideramos a liberdade do indivíduo, ou talvez a família, como o objetivo último no julgamento das organizações sociais, A liberdade como valor neste sentido está ligada às inter-relações de pessoas; não teria nenhum sentido para um Robinson Crusoé numa ilha deserta (sem o Sexta-Feira). Robinson Crusoé, em sua ilha, está submetido a “restrições”, tem “poder” limitado e tem somente um número limitado de alternativas – mas, não tem problemas de liberdade no sentido relevante para nossa discussão. De modo semelhante, numa sociedade não há nada que dizer sobre o que um indivíduo faz com sua liberdade; não se trata de uma ética geral. De fato, o objetivo mais importante dos liberais é deixar os problemas éticos a cargo do próprio indivíduo. Os problemas “éticos”, realmente importantes, são os que um indivíduo enfrenta numa sociedade livre – o que deve ele fazer com sua liberdade. Existem, portanto, dois conjuntos de valores que o liberal enfatizará – os valores que são relevantes para as relações inter pessoais, que constituem o contexto em que estabelece prioridade à liberdade; e os valores relevantes para o indivíduo no exercício de sua liberdade, que constituem o território da filosofia e da ética individual”. (FRIEDMAN, 1977, p. 21)

 Um dos pontos mais perceptíveis do ideário liberal o qual conseguimos extrair do pensamento de Friedman (op.cit.), exposto acima, alude à liberdade pessoal como um ente universalista: deixemos os problemas éticos dos indivíduos a cargo dos mesmos. Contudo, como exposto por Berlin (2002), os problemas da vida humana se estendem a diversificados setores, não apenas no âmbito “ético” ou mesmo econômico, sendo até mesmo explicitado tal ponto de compreensão em Friedman (op. cit.):

“O problema básico da organização social consiste em descobrir como coordenar as atividades econômicas de um grande número de pessoas (…) o desafio para o que acredita na liberdade consiste em conciliar essa ampla interdependência com a liberdade individual.” (FRIEDMAN, op.cit.)

Essa proposição evidenciada no pensamento de Friedman (op.cit) remete, ainda, ao exposto por Smith (1996) quando refletiu a respeito da liberdade dos indivíduos em realizarem, por si mesmos, a liberdade que os convém e que aos mesmos seria necessária:

“Tentando realizar seu próprio interesse, ele [o indivíduo] frequentemente promove os da sociedade de modo mais efetivo do que quando pretende realmente promove-lo. Não sei de grandes benefícios feitos por aqueles que pretendem estar trabalhando para o bem público”. (SMITH, 1996, p.438)

O Estado, a instituição a qual delibera e regula a vida humana, apressa-se em viabilizar mecanismos tais que permitam um determinado grau de liberdade econômica reverberando nas atuais condições de desenvolvimento da vida – a instância do emprego como sendo de importância maior, à frente de demais necessidades. Tal procedimento adotado recai, justamente, na adequação de uma política a qual permita o crescimento econômico individual e atenda, de certo modo, a necessidades objetivas e subjetivas. Nesse sentido, a formulação de políticas de incentivo econômico permite com que o Estado interfira minimamente na questão posta, o que confere uma subjetividade democrática, excluindo-se dessa a participação política viável para a continuidade do próprio Estado e da vida humana.

Cardoso (1988) explicitou tal ponto, lançando mão de uma indagação pertinente:

“A “teoria do fosso” (entre Estado e sociedade civil) deixa sem solução (…) a questão central: se for verdade que o subproduto do desenvolvimento sócio-econômico é a reivindicação de autonomia do social de representação política das classes e de um credo liberal-democrático, a mudança política marcha para um impasse: ou a cidadela do Estado é conquistada pelo furor das classes reivindicantes de poder democrático e se democratiza, ou, na contra ofensiva, o Estado avança mais ainda na direção de processos autoritários, aproximando-se de uma situação de controle autoritário da sociedade (uma versão do processo político que se aproxima da visão “ditadura ou fascismo”, só que reescrita como “ditadura ou democracia”)”. (CARDOSO, 1988, p.461).

A transição à democracia, no entanto, assinalara uma construção dual que corroborou para a formulação de mecanismos de participação política na esfera pública pela sociedade civil, respondendo à questão levantada por Cardoso (op.cit.) ao amalgamar aquilo que se convencionou a perceber enquanto interesse de Estado e interesse público. Ora, a construção de diretrizes para a criação de dispositivos de participação popular remete, claramente, a uma abertura à democracia que adveio de um processo pertinente de entraves e conflitos sociais, que refletiram nas políticas sociais as quais ganharam efeito na promulgação da Constituição Federal de 1988 e que tomaram forma durante a transitoriedade da antiga ordem econômica, a qual avançou ao neoliberalismo. Entretanto, a pergunta que lançamos remete à seguinte formulação: partindo do processo histórico de lutas sociais e mobilizações, por parte da sociedade civil que organizou-se em torno de demandas refletidas em uma participação popular dos processos de acompanhamento e âmbito decisórios no país, qual são seus efeitos na contemporaneidade, tomando um de seus componentes para ser analisado; qual a participação efetiva e as repercussões desta mesma participação na formulação, implementação e acompanhamento das políticas sociais; qual a qualidade, desse modo, da democracia experimentada a partir desses órgãos.

Tal qual Berlin e mesmo Tocqueville, o sociólogo Zygmunt Bauman (2001) inicia sua incômoda reflexão sobre o sentido da modernidade a partir de uma leitura de Durkheim (1972) no que diz respeito ao processo de emancipação dos sujeitos na atualidade, trazendo luz para um caminho a ser percorrido no decorrer desta analítica. Em Durkheim (1972), a liberdade, assim como em Hobbes (1978), depende inicialmente de construção das relações sociais mediadas por regras/normas de conduta as quais permitiriam a livre condição à vida, evitando, deste modo, a anomia, sendo justificada pela coesão social. Como formulado por Fromm (1983), mesmo no surgimento da dúvida, advinda da condição humana da incerteza, quaisquer fórmulas imediatas de “verdade” se tornam máximas. Em Sennet (1999), “a rotina pode apequenar, mas ela também pode proteger”, ao passo em que encerra em si o mínimo de “conforto“ necessário ao cotidiano moderno, ou seja, fortalece a ausência de indagação, de questionamento da condição posta.

Ora, o que temos a partir desta pequena reflexão teórica subtrai a necessária condição da liberdade frente a configuração de democracia sob a qual preside as trajetórias de vida na contemporaneidade, ou seja, a liberdade política e econômica as quais caminham lado a lado, uma a outra, entretanto sendo a segunda o carrasco da primeira. Esta hipótese ganha corpo quando recorremos ao pensamento sagaz de Beck (2004):

“Até a conversa generalizada sobre uma “ligação de redes em rede” não pode esconder o fato de que a estruitura política cada vez mais fragmentada da sociedade, que se exprime na individualização do comportamento político e no declínio da capacidade das antigas e grandes organizações de integrar e agregar, enfraquece o potencial das sociedades políticas para a direção e a mobilização de propósitos. (…) Fica ainda mais difícil garantir os dois lados da democracia: consenso entre indivíduos e grupos com base no livre acordo e representação de interesses conflitantes”. (BECK, 2004, p.247)

A modernidade não se extingue perante os desdobramentos societários da contemporaneidade, mas além, se (re)inventa, de modo a agregar e (re)significar os sentidos de sua “primeira” forma (refiro-me a modernidade do século XX). Bauman chama a atenção ao termo “destruição criativa” ou “criatividade destrutiva” que determina a liquidez dos tempos atuais, como na “necessária” suplantação do antigo projeto societário para formulação de um novo. Um projeto societário constituído pela suplantação do coletivo pelo indivíduo, pela característica individual que garante, a cada momento, uma maximização da vida privada em contraposição à minimização da vida política na esfera pública.

Sobre essa questão, devemos considerar a leitura de Foucault (1990) na qual, de modo genealógico, decorre uma análise imbricada na proposição de um afastamento do pensamento grego em relação ao “cuidado de si”, sobrepujado pela conduta denominada enquanto “cuidado dos outros”, este último o qual retoma o acontecimento da ascensão do poder pastoral influenciado em grande escala pela governabilidade religiosa a qual baseou o fundamento da atual democracia. Não procuramos, contudo, evidenciar a presença religiosa nos processos políticos neste artigo, mas sim as tecnologias as quais Foucault lança mão para que possamos vislumbrar uma faceta do desenvolvimento societário, sendo elas:

“1) tecnologías de producción, que nos permiten producir, transformar o manipular cosas; 2) tecnologías de sistemas de signos, que nos permiten utilizar signos, sentidos, símbolos o significaciones; 3) tecnologías de poder, que determinan la conducta de lós indivíduos, lós someten a cierto tipo de fines o de dominación, y consisten em una objetivación del sujeto; 4) tecnologías del yo, que permiten a lós individuos efectuar, por cuenta propia o com la ayuda de otros, cierto número de operaciones sobre su cuerpo y su alma, pensamientos, conducta, o cualquier forma de ser, obteniendo así una transformación de sí mismos com el fin de alcanzar cierto estado de felicidad, pureza, sabiduría o inmortalidad”. (FOUCAULT, 1990, p.48)

O que Foucault (1990) traz, no excerto acima, recai sobre algumas das proposições a serem tratadas neste artigo, a saber: a maximização da vida privada, a consequente ascensão da individualidade enquanto categoria primordial para o desenvolvimento da própria vida e a precariedade da situação de participação política na esfera pública. O estágio contemporâneo da modernidade reflete diretamente na participação política em âmbito de processos decisórios, de acompanhamento e de fiscalização das ações realizadas, ferindo a, quiçá, última instância democrática significativa, compreendendo a abertura política para a participação popular como sendo o dispositivo maior de um procedimento de governabilidade que satisfaça ambos os lados da política nacional.

Quando nos referimos a esta dualidade política, devemos salientar a exposição ideal de Bauman no que se refere às duas características do deslocamento entre nossa antiga modernidade para a nova: em primeiro lugar, o colapso natural da crença na sociedade no que se refere a sua potência político-emancipatória, da luta por um mundo diferente (como as crenças políticas “socialistas, “anarquistas”, dentre outras); em segundo lugar, a desregulamentação e privatização das tarefas e deveres modernizantes (individualização) refletindo na “realocação do discurso ético-político do quadro da ‘sociedade justa’ para o dos ‘direitos humanos[2]’” (BAUMAN, 2001, p.37).

A condicionalidade moderna (re)significa a identidade do indivíduo, tornando-a dado, ou seja, liquefazendo sua objetividade social para que seja determinada uma nova forma: sua complexidade está, justamente, nas multiformes capacidades e singularidades, ou seja, não se atém a um conhecimento/pertencimento de grupo comum, mas sim individualizado. Ao nos referirmos à palavra “dado”, sintetizamos o seguinte excerto:

“a individualização consiste em transformar a “identidade” humana de um “dado” em uma “tarefa” e encarregar os atores da responsabilidades de realizar esta tarefa e das consequências de sua realização” (BAUMAN, 2001:40).

Sobre o processo de individualização, temos ainda o desmantelamento da “classe social” que outrora definia um fim último; já que na sociedade individualizada “não há perspectiva de ‘reacomodação’ no final do caminho temido pelos indivíduos (agora cronicamente) desacomodados” (op.cit, p.42). Outro fato interessante se encontra na análise do autor a respeito do motivo de pertencimento de classe o qual, afirma, condiz à situação/posição socioeconômica, sendo que os menos aquinhoados possuíam “privações [que] se somavam (…) e, uma vez somadas, congelavam-se em ‘interesses comuns’ e eram vistas como tratáveis apenas com um remédio coletivo” (op.cit. p.42).

Uma individualização em evidência apenas lança passos para a construção de um projeto pessoal, algo que não viabilizaria um aperfeiçoamento da máquina política no sentido de sua coletividade. Não devemos, nesse sentido, confundir a vida política de um indivíduo e sua mesma expressão à coletividade: pensarmos a política a âmbito individual, nesta análise, seria infligir uma descentralização do poder o qual não permitiria avançar na constituição de projetos cuja incidência pudesse ser auferida e percebida mediante suas alterações e transformações no bojo societário. Permitir uma compreensão como essa apenas garante a continuidade do projeto de construção báratra do plano individualizante, em um contraste com o projeto ético-político para uma sociedade em seu lócus democrático.

A contemporaneidade moderna, egressa de sua protoforma iniciada ainda no século XVIII, multiplica as determinantes maquínicas de investimento no “eu” até mesmo com o surgimento da dita “ciência psicanalítica”, a qual não possui um objeto de pesquisa evidente e cuja repercussão apenas ganha corpo quando inferida em projetos de construção burguesa. Ora, a significância do “eu” propriamente dito ganha corpo e forma na prática clínica e decorre de seu aperfeiçoamento, seja na psicanálise, seja na anti-psicanálise a qual propõe uma metodologia diferenciada para sua continuidade.

Evidenciando tal ponto, temos uma questão a ser elencada que recai diretamente na psicologia e na psicanálise: pensar o indivíduo enquanto ser último de análise é, ao mesmo tempo, limitar o homem (em sentido genérico) em determinantes teóricas e prescrições patológicas, e garantir o desenvolvimento de uma série de aperfeiçoamentos e melhoramentos do projeto individualizante. Para este processo, a individualização ganha maior sentido, pois a sustentação de uma dita “ciência psicológica” apenas faz sentido quando pensado o problema da condição humana e sua interpretação “técnica” que nada mais é que um imbróglio sistemático desenvolvido sob a codificação científica em procedimentos metodológicos cuja compreensão e interpretação carecem de uma significância maior.

O projeto individualizante, então, tem repercutido na esfera pública, de modo a não mais oferecer condições para a participação social nas esferas deliberativas e na construção de uma democracia cuja premissa seja o controle social, ou seja, a intensa participação da sociedade. Esta característica, da maximização do projeto individualizante, fora considerada enquanto êxito pela teoria crítica, que buscava a liberdade do indivíduo à contramão da esfera publica, ou seja, defendia a “autonomia privada contra as tropas avançadas da esfera pública” (BAUMAN, 2001, p.49).

Bauman incita que ser um indivíduo de jure significa “não ter ninguém a quem culpar pela própria miséria”, o que faz com que homens e mulheres sejam “naturalmente tentados a reduzir a complexidade de sua situação a fim de tornarem as causas do sofrimento inteligíveis e, assim, tratáveis” (BAUMAN, 2001, p.48). Reflete, ainda, que uma das características da vida cotidiana na modernidade fluida está no fato da necessidade de “bodes expiatórios”, ou seja, na adequação/alocação da culpa à um determinado indivíduo, seja por sua diferença quanto a administração da política-vida, seja por sua “rebeldia”, dentre outros. O grande deslocamento da vida cotidiana moderna, quiçá, se encontra no:

“abismo que se emergiu e cresceu precisamente por causa do esvaziamento do espaço público, e particularmente da ágora, aquele lugar intermediário público/privado, onde a política-vida encontra a Política com P maiúsculo, onde problemas privados são traduzidos para linguagem das questões públicas e soluções públicas para os problemas privados são buscadas, negociadas e acordadas” (BAUMAN, 2001:49)

 O que o autor infere no excerto acima, diz respeito à individualização da vida em larga escala, da derrocada da vida coletiva, da política-vida amalgamada a política, para a ascensão/surgimento da sociedade de indivíduos, que buscam em suas próprias condições a resolução para a complexidade de suas relações sociais determinadas e em constante processo de transformação. Beck (2004) por sua vez, afirma que:

um novo imediatismo se desenvolve na relação entre o indivíduo e a sociedade, um imediatismo da desordem, tal que as crises sociais parecem individuais e não são mais percebidas (…) em sua dimensão social. (BECK, 2004, p.239)

Assim, a inversão pretendida pela teoria crítica fora alcançada e bem vinda, sendo que o espaço privado (política-vida) tem colonizado o espaço público (Política). Isto no plano da vida cotidiana: o poder está “para além do alcance dos cidadãos, para a extraterritorialidade das redes eletrônicas” (BAUMAN, 2001, p.50). 

Quanto ao objetivo da teoria crítica, o da emancipação humana, se tal teoria possui algum sentido na contemporaneidade, este apenas existe se vislumbrado não o seu contrário, o retorno à sociedade enquanto conjunto político administrado de forma objetiva, mas sim enquanto elo de ligação entre o indivíduo de jure e as perspectivas do indivíduo de facto[3]. Tudo isto implica no que Bauman expõe/explicita enquanto repovoar/redesenhar a ágora, “o lugar de debate e negociação entre o indivíduo e o bem comum, privado e público” (op.cit., p.51).

Bauman (op.cit.) cita Adorno, em resumo de sua dialética negativa: “a necessidade de pensar nos faz pensar”, porém reiterando seu sentido: “pensar nos faz humanos, e é por sermos humanos que pensamos” (op.cit.); deste modo, esclarece o sentido da dialética negativa revisitando a concepção de Adorno a respeito da complexidade do pensamento que, segundo Adorno (1973), não está imune à comunicação, sendo necessário o ato de manter este pensamento tal qual o mesmo se formula, sem objetivações, sem familiaridades, para que o mesmo mantenha sua sobrevivência estando o mais “próximo” dos “padrões da humanidade; quanto menos puder ser justificado (…) tanto maior seu valor humanizante, pois é esta ação, da explicação e familiarização, uma correlata de dominação capitalista do pensamento” (ADORNO, 1973, p.408).

Bauman retoma a discussão de Leo Strauss e Alexandre Kojève, em que buscam estabelecer conceituações a respeito da difusão do conhecimento. Para Leo Strauss, a difusão do conhecimento genuíno (que é universal) deve ser evitado, pois este processo dilui este conhecimento estabelecendo, em seu lugar, opiniões, preconceitos e/ou crenças (estabelecendo ou transformando o conhecimento genuíno). Já para Kovèje, no entanto, no que diz respeito ao papel da filosofia à política, afirma que enquanto houver uma distância entre a verdade da filosofia e a realidade do mundo, no sentrido de organização política do mundo, o Estado continuará Tirânico. Segundo Kojève (cf BAUMAN, 2001:57) a tirania ocorre quando uma parcela indeterminada da população, não importando sua qualidade enquanto maioria ou minoria, “impõe a todos os outros (…) suas ideias e ações, que são guiadas por uma autoridade que esta fração reconhece espontaneamente” (op.cit.).

Para o autor, o termo política-vida parece ganhar significado quando pensamos no sentido dado à palavra “política” referindo-a as próprias relações sociais, mas não de modo a elencá-las como um todo, partindo de uma sociedade, mas como a junção, o amálgama das perspectivas individuais/individualizantes de cada um e seu agrupamento à coletividade “não-coletiva”, ou seja, a maximização da vida e/em suas complexidades e a peremptória exploração e divulgação pública de suas consequências, o que, de certo modo, incide na “sociedade de indivíduos”.

O abismo teórico da escola denominada enquanto Teoria Crítica é iluminado quando refletimos como eles perpetuaram toda uma estrutura de pensamento crítico às instituições de poder (mesmo as não institucionalizadas) procurando a liberdade enquanto fim último, enquanto libertação das amarras ditadas pelos processos institucionalizantes (corpo sem órgãos artaudiano) mas se esqueceram de que, neste processo, o antagonista primordial realizou o feito inesperado da privatização do espaço público, entendendo esta “privatização” não enquanto um processo econômico (dado o sentido generalizado da palavra) mas sim, da gradual e quase imperceptível individualização, determinada por fatores outros, como a aceitação da psicanálise (esta jogada quase omissa da modernidade tardia).

Destarte, o que pretendemos com este artigo é incitar a percepção analítica em torno de um objeto comum à modernidade tardia a qual vivenciamos: uma retomada da esfera pública, sua (re)colonização por parte da sociedade em prol de seus objetivos e em um constante fortalecimento da democracia, a qual apenas fora conquistada mediante esforços coletivos, e não individuais. “A verdadeira libertação requer hoje mais, e não menos, da ‘esfera pública’ e do ‘poder público’” (BAUMAN, 2001:62).

 

Referências bibliográficas
ADORNO, T. Negative Dialectics. Londres: Routledge, 1973.
BAUMAN, Z. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BECK, U. Viver a própria vida num mundo em fuga: individualização, globalização e política. In: GIDDENS, A., HUTTON, W (orgs). No Limite da Racionalidade: convivendo com o capitalismo global. Rio de Janeiro: Record, 2004.
BERLIN, Isaiah. Dois conceitos de liberdade. In:______. Estudos sobre a Humanidade. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
CARDOSO, Fernando Henrique. Desenvolvimento associado-dependente e teoria democrática. In: STEPAN, Alfred (org.). Democratizando o Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
DURKHEIM, É. Émile Durkheim: selected writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1972.
FRIEDMAN, Milton. Capitalismo e liberdade. São Paulo: Arte Nova, 1977.
FROMM, E. O Medo à Liberdade. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1983. 
HOBBES, T. Leviatã . São Paulo: Abril Cultural, 1978.
SENNET, R. A Corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 1999.
SMITH, Adam. A Riqueza das Nações: Investigação sobre a sua Natureza e suas Causas. São Paulo: Nova Cultura, 1996.
TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
 
Notas:
[1] Com vistas a auxiliar na compreensão deste texto, temos que em Tocqueville a significância atribuída a “cidadão” corresponde a uma diferença com a personificação social do “indivíduo”: enquanto o primeiro busca seu próprio bem-estar através do bem-estar da sociedade, o segundo tende a ser cético em relação a causa comum, ao bem comum ou à sociedade “justa”. Para maiores detalhes, vide Tocqueville (2001).

[2] Bauman compreende estes “direitos humanos” enquanto direito dos indivíduos permanecerem diferentes e de escolherem à vontade seus próprios modelos de felicidade e de modo de vida adequado. Nesse sentido, o papel do poder público se resumiria em permitir que cada um siga seu próprio caminho e, também, o de manter a paz neste caminho, ou seja, a segurança (BAUMAN, 2001).

[3] Para Bauman, o indivíduo de jure representa o indivíduo moderno, o qual fora construído enquanto catalisador de todas as expressões de sua condição social, sendo este responsável pela totalidade de causas e efeitos que o cercam; porquanto o indivíduo de jure representaria o conceito ideal de cidadão, tal qual exposto anteriormente. 


Informações Sobre o Autor

Walisson Pereira Fernandes

Assistente Social, Especialista em Política de Saúde, Mestrando do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica PUC/SP


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