Os elementos do tempo e da memória na ditadura militar no Brasil: uma abordagem sobre a Lei de Anistia, a Comissão da Verdade e o Direito à Memória

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Resumo: Ao depararmos com todas as indagações e questões ligadas ao período da Ditadura Militar ocorrida no Brasil, indaga-se como é possível resgatar um passado conturbado, de injustiças e violações de Direitos Humanos que ainda continua obscuro? Qual o papel do tempo e da memória nesta trajetória? Como efetivar o direito à memória em bases democráticas a fim de que se possa dar aos fatos a sua veracidade? É preciso analisar os conceitos e elementos de tempo e suas relações com o Direito para responder a estes questionamentos. O presente trabalho visa analisar esses fatos sob o aspecto histórico, legal e crítico no cenário político atual do Brasil, a justiça de transição e os elementos do tempo e da memória usados pelos regimes ditatoriais no passado para criar uma história e identidade nacional a fim de perpetuar as idéias autoritárias.

Palavras-chave: Direito à Memória – Direitos Humanos – Comissão da Verdade – Ditadura Militar

Abstract: When we faced with all the questions and issues related to the period of military dictatorship that took place in Brazil, asks how it is possible to rescue a troubled past, the injustices and human rights violations that still remains unclear? What is the role of time and memory in this matter? How to enforce the right to memory on a democratic basis in order that we can give facts their veracity? We must analyze the concepts and elements of time and its relationship with the law to answer these questions. This study aims to examine these facts in the historic, legal and critical in the current political scene in Brazil, transitional justice and the elements of time and memory used by dictatorial regimes in the past to create a history and national identity in order to perpetuate authoritarian ideas.

Keywords: Right to Memory – Human Rights – Truth Commission – the Military Dictatorship

1 – Kronos e a roda do tempo: a (não) evolução

A mitologia grega narra um fato a respeito da paralisação do tempo por intervenção do Deus Kronos. Inicia-se o mito com a união do Céu e da Terra representados por Urano e Gaia. Eles tiveram muitos filhos e que posteriormente eram enviados para o submundo do Tártaro. Gaia já estava farta das investidas de Urano e da grande quantidade de seus filhos perdidos naquele lugar.

Assim, armou seu filho Kronos de uma foice e este veio a decepar os testículos do seu pai. Esse evento culminou com a separação do Céu e da Terra. Coube, então, a Kronos assumir o reinado do pai, iniciando o seu próprio e que também enviou os seus irmãos ao Tártaro, da mesma forma que seu pai.

Kronos conhecia uma profecia que dizia a respeito de seu destronamento por parte de um de seus filhos. Para evitar isso, devorou todos os seus herdeiros após seus nascimentos. Réia, sua esposa, resolveu salvar o seu filho mais novo, Zeus, que, após chegar à idade adulta, encabeçou uma revolta, destronando seu pai Kronos e assumindo seu lugar[1].

Esta mitologia representa a negação do tempo e ressalta a sua grande tirania: a negação do passado estabelecia quando Kronos cortou os genitais de seu pai e não permitiu o nascimento de mais irmãos e impediu o desenvolvimento do futuro quando ele devorou seus próprios filhos.

Diante esta situação, o presente encontrou-se vazio, ausente de memória e da evolução do próprio tempo. A roda do tempo parou e os eventos do passado nunca alcançaram o presente e o futuro não foi gerado.

A roda do tempo move as correntes do passado e futuro. É o seu movimento que traz a mudança, uma evolução. Parar a roda do tempo produz automaticamente o bloqueio do movimento do passado para o presente e para o futuro. O passado que não passa e o futuro que não chega.

É o caos absoluto e a preponderância das idéias tirânicas, dos períodos de Ditadura que não permitem a evolução de novas idéias e fomentam as idéias negativas dos fatos a fim de atender aos seus objetivos. O historiador François Ost conclui que essa parada do tempo “corta o elo entre passado, presente e futuro; o que ocorreu no passado não existirá o presente e não evoluirá para o futuro”[2].

Tocqueville também ressalta essa idéia ao afirmar que “o passado, quando não mais ilumina o futuro, deixa o espírito andando nas trevas”.[3] Contra essa situação de paralisia, o tempo possui vários elementos a permitir a sua correta evolução e a justiça acompanha esse movimento; pois é no tempo que ela encontra a sua afirmação, a sua perseverança e o desenvolvimento das teses jurídicas a fim de que os indivíduos possam conhecê-las e absorvê-las, concluindo, assim que a temperança corresponde à sabedoria do tempo e a justiça pode ser interpretada como a sabedoria do Direito.

É função do Direito instituir mecanismos na regulamentação da vida em sociedade visando o alcance da paz social e possibilitando haver justiça em todas as situações.

A união positiva entre tempo e justiça no âmbito da temporalização do tempo vai possibilitar a instituição jurídica da sociedade onde essa interação proporciona o equilíbrio do tempo pelo direito. Só é possível o auxílio da passagem do tempo para que as teses jurídicas sejam conhecidas, aplicadas e desenvolvidas para a proteção e criação de novos direitos e garantias.

2 – A destemporalização como forma de paralisação do tempo

Existem patologias temporais, elementos que não permitem o movimento da roda do tempo, elementos esses auxiliadores de Estados de Exceção. A destemporalização é uma dessas patologias traduzida pela não perpetuação do tempo. É a figura atuante de Kronos, o grande inimigo do tempo que o força a permanecer sempre inerte e imutável.

Esta recusa do tempo como forma de evolução provocada pela  destemporalização permite a existência de governos ditatoriais que impõem suas ideologias, autoritárias e violentas, impedindo um novo futuro, o surgimento de novos pensamentos e novas lutas para alterar um situação irregular no cenário nacional. Essa recusa do tempo possibilita a produção do fenômeno denominado Nostalgia da Eternidade como forma de sempre cultuar o passado, enaltecer as idéias pretéritas e manter as justificativas de poder de um regime ditatorial, é o refúgio seguro no ontem[4].

Essa nostalgia obriga aquele fato a sempre permanecer no passado na contínua valorização de um acontecimento que não pode evoluir fora dos objetivos que o originaram. Não podem existir mecanismos a fim de provocar a mudanças daqueles fatos em um novo futuro e diferente dos padrões estabelecidos por um governo ditatorial.

Estes riscos da ocorrência de destemporalização facilita a permanência das ideologias totalitárias, como as muitas ocorridas no Século XX. O passado dentro do contexto da destemporalização só é definitivamente fixado quando não se permite mais ter um futuro.

Mas contra a destemporalização está o movimento da roda do tempo na figura da temporalização, o justo equilíbrio do tempo, a sabedoria do tempo como medida para a evolução de ideologias inovadoras e da justiça. A destemperança como patologia do tempo e a temperança como seu antídoto.

Se aplicarmos a idéia de que as teses jurídicas necessitam do tempo para que elas possam se desenvolver, é certo concluir que o tempo é aliado do Direito, pois é justamente no tempo que o Direito encontra uma forma positiva de progredir e evoluir junto com a sociedade. .

3- Memória e perdão como elementos da retemporalização do tempo

Pelo ato de se fazer a memória temos a exata noção de que “algo importante ocorreu no passado e ainda hoje ele o é”, assim, a memória é a capacidade de adquirir, armazenar e recuperar informações, seja de forma interna (usando dos recursos mentais) ou de forma externa (com a interferência do grupo social), a dar-lhes um registro e uma devida transmissão.

Nos valemos das lembranças para que possamos recordar algo e completar o liame que possuímos entre o que vivemos em determinado tempo.  Maurice Halbwarchs foi o primeiro a dizer, em sua obra Memória Coletiva, que não nos lembramos sozinhos, a memória está diretamente ligada a uma entidade coletiva, a um grupo social, pois, segundo ele, ninguém se lembra sem a ajuda dos outros[5]. Os testemunhos somente serão válidos desde que transmitidos aos membros do grupo social em que vivemos.

Nossas lembranças somente conseguiriam se exteriorizar se tomadas de empréstimos das lembranças dos outros membros do grupo onde estamos inseridos, passando a internalizar os relatos dos fatos a nós narrados[6].

Na concepção de Halbwarchs, as recordações dos eventos ocorridos em um grupo de indivíduos somente fazem memória se estamos em contrato com esse grupo, e se desligarmos dele, as nossas lembranças se perderão das memórias nascidas naquele centro humano onde os fatos que conhecemos de forma coletiva acabam atingindo nossa memória internalizada, como, por exemplo, os relatos de uma guerra por quem a vivenciou.

Conclui o autor, então, que só temos a capacidade de nos lembrar de algo quando nos colocamos em contato com o ponto de vista de uma ou mais pessoas. As lembranças aparecem porque nos são recordados por outras pessoas. Por isso, não nos lembramos sozinhos.

Não havendo memória não haverá lembrança e não haverá passado e aquilo que é importante ser lembrado ficará esquecido, correndo o risco de se tornar uma lenda, um mito. Não havendo memória haverá a parada da roda do tempo, haverá a nostalgia da eternidade, haverá a destemporalização.

A justa narrativa da memória visa impedir o prosseguimento e o surgimento dos desregramentos do tempo no enaltecimento dos fatos negativos do passado.

A memória também pode sofrer abusos quando ganha um sentido negativo, quando a sua narrativa é distorcida para falsear a história e proteger interesses que, muitas das vezes, podem ser de uso útil aos governos autoritários.

Nestas formas negativas de se fazer uso da memória, o grande pensador Paul Ricoeur fez distinção entre três situações: a memória enferma (correspondente a uma memória de traumas e que tende a ser esquecida para controlar essa situação de dor provocada por um fato), a memória manipulada (levada a alterar a identidade de um povo, dar um sentido unilateral à produção da memória) e a memória obrigada (a memória imposta, forçada, sobretudo por um governo à sua população)[7].

Uma sociedade sem memória ou com uma memória produzida através de narrativas negativas a fim de valorizar idéias, como nas ditaduras, favorece a permanência de uma sociedade amputada em suas raízes, órfã de história e barrada no acesso ao futuro construído em bases igualitárias e verdadeiras.

Mas a memória é o grande elemento que faz reativar o movimento do tempo, fazendo surgir as figuras de retemporalização como o perdão e a promessa que ligam aquilo que se arrisca separar, afastar aquilo que possibilita ainda estar oculto, sem resposta, sem apuração. A memória liberta a história de suas nostalgias eternas.

O ato negativo do passado nos causa choque, um luto com o condão de unir toda a sociedade afetada por aquele ato como torturas, guerras, violações de direitos fundamentais e fazer memória destes atos e lutos serviria para fortalecer a nossa identidade onde o Direito criaria espaços para democratizar instituições, efetivar garantias aos direitos violados, instituir limites legais para a atuação do Poder Público contra o indivíduo.

Ao fazermos memória das repressões e da completa ausência de garantias individuais ocorridos no período da Ditadura nos proporcionará a construção de valores sobre os quais a nação brasileira se assenta e materializados no texto constitucional, como a vasta garantia de direitos contida no artigo 5º da Carta Magna.

Nesta idéia, Paul Ricoeur menciona que “no esquecimento há o problema de memória da fidelidade ao passado[8]. No perdão há a reconciliação com o passado, assim, contra o esquecimento é necessário fazer uso da memória e do perdão.

Da mesma forma, esquecer também é vital para que tal armazenamento seja eficaz. Diariamente temos a experiência do fenômeno da “erosão da memória”, a “morte anunciada das lembranças”[9] justamente devido ao nosso envelhecimento, conseqüência da face objetiva do tempo, mas Ricoeur afirma que nos lembramos mito mais do que esquecemos.

Se a memória nos liga ao passado, o perdão, por sua vez nos desliga dele. O perdão é a capacidade da sociedade de “se libertar do passado”, rompendo com o ciclo de vingança, do luto, sendo este o discurso de muitos governos, de muitas comissões da verdade instituídas. Quando a sociedade usa o perdão, segundo aquelas idéias, estará dando um futuro ao passado.

Quando a sociedade escolhe usar o perdão na forma de anistia correta (por haver culpados entre vítimas e autores), estará dando um futuro ao passado, por mais polêmica que ela seja. O perdão liberta o passado e a promessa orienta o futuro, indicando-lhe uma justa direção.

A ditadura em um primeiro momento justificou a tomada do poder para “impedir um golpe comunista no país”, não permitindo a ascensão destas ideologias no território nacional e da grave crise financeira em que o país atravessava e a não rigidez do governo de João Goulart frente a tais eventos. A sociedade que vinha de um governo fracassado com contestar os problemas sociais, inflação, pobreza, apoiou o golpe em 64.

Inúmeros atos institucionais foram expedidos pelo governo para solidificar ainda mais o golpe. Era um governo onde não havia alternativa democrática para qualquer tipo de diálogo e tudo era imposto. O “Milagre Econômico” era a bandeira usada pelo governo para apresentar à sociedade o progresso que vinha pelas mãos dos militares.

A morte do primeiro estudante pelo regime, Edson Luiz, foi o estopim para que várias manifestações ocorressem, incluindo a marcha dos 100 mil no Rio de Janeiro[10]. A morte de estudantes e população civil nas diversas passeatas e revoltas posteriores foi resultado de repressões ainda mais violentas do governo ditatorial e fortalecendo a existência de grupos cujo objetivo era libertar a sociedade.

Para conter as revoltas, foi expedido o AI-5 no fim de 1968, retirando as garantias do habeas corpus, decretou o recesso por tempo indeterminado do Congresso Nacional entre outros atos. Não havia mais garantias contra as intervenções do governo contra os indivíduos.

A população estava sem um mínimo de proteção legal e a qualquer hora podiam ser abordadas e interrogadas por tempo indeterminado, estando ou não ligadas aos movimentos revolucionários, passando meses ou anos nos “porões”.

Dentro deste cenário de caos, as idéias do “poder do povo e para o povo” dos socialistas liderados por Carlos Marighella, o engajamento de juventude contra a repressão, o idealismo e lutas presentes em militantes como Lamarca, Iara Iavelberg, Frei Betto, Frei Tito e tantos outros para derrubar o Estado de Exceção, conseguiram apresentar à sociedade seus ideais de liberdade.

Mas depois de um período de lutas, as forças militares conseguiram desmantelar estas organizações e contribuindo com o fim de várias delas e prendendo e torturando centenas de seus participantes. Muitos deles foram mortos e enterrados com identidades diversas e cujo paradeiro até hoje é desconhecido. Para suas famílias, é como se eles morressem todos os dias, é como se esse evento se renovasse a cada dia e sem sofrer descontinuidade.

E para quebrar a resistência daquelas pessoas, a tortura era usada. Mas essa prática era insistentemente negada pelos militares que, segundo eles, era algo que nunca existiu e se existiu foi praticada por subalternos sem o conhecimento do regime.

A descoberta da tortura podia anular as confissões forjadas a que eram obrigados os presos, incriminando-os na prática de crimes que não haviam praticado. Nestes inquéritos jamais era mencionada a tortura e, muito menos, seus torturadores que tinham suas identidades protegidas.

A Ditadura tinha o auxílio de médicos, hospitais e legistas dispostos a forjarem laudos de corpo de delito e autópsias das vítimas torturadas[11].

Com a edição da Lei de Anistia em 1979, o resgate da memória daquele período pôde ganhar um sentido real quando os exilados e presos libertos, de volta ao país ou mesmo alguns permanecendo no exterior, iniciaram a produção de várias obras literárias e denunciando todos os abusos e eventos, sob o ponto de vista de quem sofreu as repressões, a verdadeira história sobre as torturas, a fraude nos julgamentos perante o Tribunal Militar, entre outras revelações.

Dentre estas obras publicadas incluem “Batismo de Sangue”, “Ditadura Escancarada”, “Iara”, “Os Carbonários” e “Brasil Nunca Mais”.

4 – Memória como formação da identidade de um país e a Justiça de Transição

Em países da Europa ou os Estados Unidos, a memória é sempre resgatada na transformação em valores nacionais, em legados e lutas que construíram a base sob a qual estão esses Estados e sua exteriorização através de monumentos e museus por ruas e cidades, indicando à população a origem de suas raízes e criando uma identidade nacional.

Os acontecimentos que possibilitaram a grave violação de direitos humanos, a derrubada de instituições, a imposição de medidas que desmantelam uma sociedade por idéias ditatoriais quando devidamente resgatados pela memória são capazes de unir uma sociedade e a produzir novos valores na construção de sua identidade, pois as violações ocorridas no passado vão possibilitar as garantias a e justiça do hoje.

No artigo 5º da nossa Constituição Federal estão solidificados direitos fundamentais sistematicamente violados na época da ditadura militar onde hoje os direitos humanos gozam de maior proteção nacional e internacional contra as violações que ainda persistem, traduzido em uma nova ideologia de proteção sistemática dos direitos humanos no país.

A memória é um direito fundamental do indivíduo. É função do Direito atuar neste campo como o grande produtor de normas e garantias de prerrogativas individuais, de também evoluir com a sociedade na instituição de espaços próprios a possibilitar debates e a existência de mecanismos hábeis a sempre preservar a memória e oferecer à sociedade atual e do futuro as bases para que sua história tenha um sentido positivo e impossibilitar novas transgressões.

A figura da tradição que, juntamente com a memória e o Direito, cria da mesma forma um espaço hábil para que as idéias e os fatos ganhem evolução no futuro constatando que o Direito é uma ciência de memória e também um discurso de tradição.

Na atuação do Direito como forma de instituir, encontra-se a figura da Justiça de Transição entre um regime ditatorial para um democrático, traduzida no conjunto de abordagens, medidas e estratégias que possibilitam enfrentar o legado da violência existente no passado para gerar uma responsabilidade, exigir efetividade do direito à memória e à verdade, fortalecer as instituições com valores democráticos, a punição dos culpados, a criação de Comissões da Verdade, a reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas.

O conceito e as regras para a Justiça de Transição foram criados no âmbito das Nações Unidas através do Conselho de Segurança em 2004, como uma medida fornecida aos governos dos países saídos dos regimes ditatoriais que pudessem adotar aqueles direcionamentos para se chegar a um regime democrático e livre[12].

Não existe um modelo ou regra únicos para o processo de transição e cada país deve encontrar um meio para se ligar com seu passado e implementar os mecanismos para isso. Cada país adotará o meio mais adequado a fim de conter a existência de novos distúrbios.

 O modelo de transição adotado pelo Brasil na época do fim do período ditatorial foi da não punição dos responsáveis, afastando o modelo penal e punitivo dos autores dos crimes, de acordo com os preceitos da Lei de Anistia.

Na Justiça de Transição o direito à memória encontra as bases para a sua adequada efetivação, principalmente com o surgimento das comissões da verdade.

Dentro das regras e objetivos da Justiça de Transição, pode-se dizer que o Brasil ainda está em fase de construção, em fase de continuidade uma vez que a sociedade ainda carece de revelação de inúmeros fatos obscuros, ocultos em sua história política a partir da década de 40, sobretudo no período da Ditadura Militar, e a existência da Comissão de Verdade pode reverter esse processo.

5 – Anistia, Comissão da Verdade e o Direito à Memória

O Direito à Memória corresponde ao conhecimento sobre o que ocorreu no passado, quais os direitos violados, quais os fatos ocultos, para que esses eventos negativos possam ser reconstruídos em bases legais positivas e proporcionando-lhes um efetivo grau de garantia e proteção e na imposição de limites legais, tornando o que antes era lícito, em ilícito.

A Lei de Anistia nº 6.683, foi promulgada no Brasil em 28/08/1979 pelo então Presidente João Figueiredo, cujo objetivo da lei está em seu artigo 1º:

“Art. 1º  É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).

§ 1º Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política’.

Os benefícios dados conforme o artigo 1º não incluíam aqueles condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentados pessoais.

A anistia beneficiou milhares de pessoas, mais de cinqüenta presos onde muitos deles foram libertados imediatamente após a edição da lei.

 A anistia pode ser caracterizada como figura de um perdão social (e não individual) e revestindo-se dos elementos da retemporalização. Mas muitos doutrinadores atribuem a ela um caráter político, e não legal.

O grande questionamento surge: é justo perdoar? Alguns pensadores, incluindo François Ost vão considerar a anistia como forma de esquecimento forçado, de conspirar com o silêncio ao direito à memória; outros vão concordar em atribuir à anistia a figura de um gesto de misericórdia da sociedade que opta em perdoar e olhar para um futuro reconciliador.

François Ost atribui à punição a verdadeira figura do perdão, pois quando há o julgamento de crimes o condenado cumpre a pena e “purga” seus desvios perante si mesmo e perante a sociedade, pagando sua dívida para com o grupo social que sofreu aquele ato.[13]

A temática dessa afirmação reside na idéia de que a punição gera uma redenção perante o próprio infrator que se vê livre de suas ações ilícitas e pronto a recomeçar. 

Ost ainda vai mencionar que o Direito existe como regra igualitária e deixar de punir um indivíduo é não agir com igualdade a todos. O justo esquecimento provido pelo Direito seria a prescrição, a decadência, revestindo essas regras de bilateralidade e devidamente positivadas, significando que o Estado perdeu o crime de vista e a punição perdeu o seu sentido.

Na África do Sul, a Comissão Verdade e Reconciliação conseguiu produzir uma anistia sem amnésia e sem punição que, fazendo funcionar a memória, abriu caminho para um futuro sem revanches. Foi uma escolha daquele país em fazer uma Justiça de Transição sem punição para acabar com revanchismos.

Desmond Tutu, Presidente da Comissão Africana Verdade e Reconciliação, em 1996 disse que “era possível olhar a verdade de frente e exorcizar o passado e seria possível “perdoar sem esquecer”, fazendo menção à figura da memória + perdão, na perfeita tradução de uma anistia sem esquecimento.

No Brasil, depois de anos de silêncio sobre as questões ainda ocultas do período da Ditadura e, principalmente sobre o paradeiro das vítimas desaparecidas, a Presidente Dilma Rouseff sancionou a Lei nº 12.528 de 18/11/2011 que instituiu a Comissão da Verdade cujo objetivo se apresenta na seguinte forma:

 “Art. 1o É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias[14], a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.

A comissão irá analisar as violações dos diretos humanos ocorridos entre o período entre 1946 a 1988, mas, na prática, a atenção se voltará ao regime militar compreendido entre os anos de 1964 até 1985.

A função da comissão é clara: esclarecer as violações de direitos, efetivar o Direito à Memória e à Verdade e promover a reconciliação nacional, ou seja, reafirmar a justiça de transição sem punições, perdoar mas sem esquecer, proporcionar um futuro reconciliado e livre do revanchismo.

A figura da memória enferma idealizada por Ricoeur vai de encontro à atuação da Comissão da Verdade, pois os elementos traumáticos contidos nela virão à tona com a comissão. Os traumas das torturas, os traumas dos assassinatos, os traumas das violações serão um resgate de uma memória que precisa ser revisitada e expurgar os lutos ali contidos[15].

Instituir o passado, certificar os fatos ocorridos, originar regras: eis a mais antiga e mais permanente das funções do Direito. Pelo ato da memória a sociedade busca responder todas as dúvidas sobre o que ocorreu e os juristas seguem essas indagações na produção de futuras regras jurídicas.

Pela primeira vez o Direito à Memória encontra um espaço público no país para sua correta efetivação e a Justiça de Transição no país pode seguir seu rumo na desobstrução de fatos obscuros e dados sigilosos e que ainda geram revolta e questionamentos. Mas a sociedade deve estar preparada para lidar com as verdades que serão descobertas.

Dentro ainda dessa questão, há um ponto polêmico onde a comissão irá efetivar o direito à memória mas não à justiça da memória, pois não terá o caráter punitivo em condenações dos envolvidos com as violações de direitos como o seu próprio texto legal diz.

De acordo com a Presidente, a sanção da lei se traduz na submissão do Estado Brasileiro na sujeição aos direitos humanos. Este discurso reflete a existência de  inúmeros choques entre tradições jurídicas antigas com as novas tradições surgidas no cenário nacional e internacional na proteção dos direitos humanos.

A Comissão da Verdade vai desempenhar esse papel inovador na tradição jurídica cultural e enquadrar as regras jurídicas brasileiras diante da realidade e da garantia da preservação dos direitos humanos.

O Brasil não será cúmplice com o silêncio. Agora se cria um espaço público para que as últimas verdades venham à tona. É preciso desmitificar as histórias contadas pelo Regime de Exceção que primava pela censura e repressão. É preciso que as gerações de hoje e de amanhã saibam o que ocorreu.

Esta iniciativa é comemorada pela Comissão Interamericana dos Direitos Humanos que assim se expressa: “A CIDH considera essa decisão um passo fundamental para avançar no esclarecimento dos fatos do passado. O direito internacional dos direitos humanos reconhece que toda pessoa tem direito a conhecer a verdade. No caso das vítimas de violações dos direitos humanos e seus familiares, ter acesso à verdade dos fatos constitui uma forma de reparação. Neste sentido, a formação da Comissão da Verdade no Brasil desempenhará um papel fundamental para tornar efetivo o direito à verdade das vítimas de violações dos direitos humanos cometidas no passado, bem como de todas as pessoas e da sociedade em seu conjunto”.[16]

A polêmica contra a não punição dos crimes ainda persiste dentre os grupos e organismos internacionais de proteção aos direitos humanos que embora apóiem as comissões da verdade, desejam a efetivação da justiça à memória: “o Brasil tem a obrigação perante o direito internacional de investigar, processar e punir os responsáveis por sérias violações aos direitos humanos. Comissões da verdade e outros mecanismos extrajudiciais não substituem a investigação e o julgamento de atrocidades. No entanto, podem ser valiosas ferramentas complementares para a preservação da memória histórica, esclarecimento dos fatos e a atribuição de responsabilidades políticas e institucionais”.[17]

A citada comissão terá prazo de dois anos a partir de sua nomeação e apresentar um relatório no final e com suas recomendações sobre quarenta anos de história do país, de 1946, após o fim do Estado Novo, até a promulgação da Constituição Federal, em 1988. A comissão será composta por sete integrantes[18] que desempenharão cargos em comissão e terão membros ecléticos entre políticos, familiares das vítimas entre outros.

Diante disso, pode se dizer que não é a passagem do tempo que mede a época exata para se discutir qualquer fato negativo no passado de um país, mas é a existência de vítimas não ouvidas, de fatos não esclarecidos que tornam esses questionamentos sempre presentes, atuais e obrigatórios. Esse será o papel da referida comissão.

6– A ADPF 153 no questionamento da Lei de Anistia e a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos

Existe o entendimento de que o direito pode ser alterado, dentro da idéia do pós-positivismo com vistas à moral e à justiça e desconsiderando seu conteúdo material. Esse entendimento também se liga ao conteúdo da Lei de Anistia, onde as regras do direito positivo protegidas pela segurança jurídica poderiam ser mutáveis.

Dentro deste contexto, ocorreu a reformulação do Direito com relação à Lei de Anistia da Argentina.

Naquele país, em 2003, por iniciativa do então Presidente Nestor Kirchner, foi decretada a inconstitucionalidade da Lei de Anistia possibilitando a condenação dos militares envolvidos na tortura e homicídios na época da ditadura naquele país.

Em outubro de 2011, o Judiciário argentino condenou dezesseis militares por crimes contra a humanidade[19], responsabilizações por torturas e homicídios ocorridos na ESMA – Escola Superior da Marinha, em Buenos Aires, um dos maiores centros de detenção clandestina e de extermínio nos períodos da ditadura argentina no período de 1976 e 1983.

Alguns foram condenados à prisão inclusive à perpétua, e dois foram absolvidos. O veredito foi transmitido ao vivo pela TV. A justiça argentina estima que cinco mil pessoas passaram pela ESMA. Uma dessas vítimas está Azucena Villflor, uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio que denunciou a repressão e iniciou as buscas pelo filho desaparecido.

Houve a reprogramação do Direito onde a Lei de Anistia foi extinta para punir uma violação maior de crimes não só contra indivíduos mas contra a humanidade, afastando a segurança jurídica que impedia a punição dos autores dos crimes. Esse foi o enfoque dado à continuidade da Justiça de Transição na nação argentina.

Ronald Dworkin enfatiza as deficiências interpretativas do positivismo e, se a lei não é justa há que se lhe atribuir essa justiça, mesmo se seu conteúdo dispõe do contrário. A lei escrita demonstra uma realidade do que ela é e não do que ela deveria ser.[20]

A questão do perdão de crimes trazida pela Lei de Anistia sempre foi debatida por estudiosos e envolvidos com o assunto, principalmente vítimas e suas famílias, uma reivindicação nada mais justa àqueles que vivenciaram os horrores das repressões da Ditadura.

A Lei de Anistia brasileira pode corresponder à posição da sociedade da época que fez escolha por uma transição pacífica a fim de evitar maiores conflitos.

No contexto destas discussões, a OAB propôs a ADPF 153 junto ao STF objetivando a não ampliação, pela Constituição Federal, do disposto do §1º do artigo 1º da Lei de Anistia que diz respeito aos crimes conexos com os crimes políticos, retirando-lhes a anistia para que os mesmos fossem objeto de julgamentos, e que a lei serviu de base para encobrir os delitos dos envolvidos onde a dignidade das pessoas e do povo foi usada como moeda de troca em um acordo político.

Várias associações fizeram parte do processo na qualidade de amicus curiae, como as Associações dos Militares e Anistiados Políticos. De acordo com os que pedem a não ampliação do parágrafo único do artigo 1º da lei de anistia, a norma se apresenta obscura pois procurou esconder o que se quer procurar. 

O Ministro Relator, Eros Grau em sua manifestação mencionou que todo texto normativo é obscuro até que venha a sua interpretação, onde o direito é inserido na realidade e a interpretação vem do universo particular de cada um. A Lei de Anistia possui cunho objetivo e não subjetivo, ou seja, ela visa anistiar um ou mais delitos e não anistiar a determinadas pessoas”.[21]

 “Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a democracia política ter sido uma transição conciliada, suave em razão de certos compromissos. Isso porque foram todos absolvi dos, uns absolvendo-se a si mesmos. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia ( em alguns casos, nem mesmo vi ver) . Quando se deseja negar o acordo político que efetivamente existiu resultam fustigados os que se manifestaram politicamente em nome dos subversivos”.

As argumentações apresentam justificativas na impossibilidade de retroagir no tempo para punir pois retroagir até a data dos fatos para punir será o mesmo que desconsiderar a lei e abrir precedentes. Ainda na manifestação do Ministro Relator sobre os argumentos da OAB:

 “A Lei n. 6.683/79, segunda a Arguente, impediu que as vítimas dos agentes da repressão e o povo brasileiro tomassem conheci mento da “identidade dos responsáveis pelos  horrores perpetrados, durante dois decênios, pelos que haviam empalmado o poder”. Diz ela que a lei , “[ a] o conceder anistia a pessoas indeterminadas, ocultas sob a expressão indefinida ‘crimes conexos com crimes políticos’, ( . . . ) impediu que as vítimas de torturas, praticadas nas masmorras policiais ou militares, ou os familiares de pessoas assassinadas por agentes das forças policiais e militares, pudessem  identificar os algozes, os quais, em regra, operavam nas prisões sob codinomes”.

Mais uma vez, o Ministro Relator se posicionou que o objetivo da anistia é para perdoar mas sem esquecimento e suas regras foram concedidas às pessoas indeterminadas, pois ela não poderia conter limitações em se ater a anistiar somente a um determinado grupo de indivíduos. Era da vontade da população brasileira no fim da década de 70 que a anistia tivesse o caráter geral, ampla e irrestrita:

“Ocorre que o quê caracteriza a anistia é a sua objetividade, o que importa em que esteja referida a um ou mais delitos, não a determinadas pessoas. Liga-se a fatos, não estando direcionada a pessoas determinadas. A anistia é mesmo para ser concedida a pessoas indeterminadas.(…) Romper com a boa-f é dos atores sociais e os anseios das diversas classes e instituições políticas do final dos anos 70, que em conjunto pugnaram – como j á demonstrado – por uma Lei de Anistia ampla, geral e irrestrita, significaria também prejudicar o acesso à verdade histórica. (…)O que se propõe, ao invés, é o desembaraço dos mecanismos existentes que ainda dificultam o conheci mento do ocorri do naquelas décadas”.

O Procurador Geral da República em seu voto disse “que reconhecer a legitimidade da Lei de Anistia não significa apagar o passado, a anistia não impede a reconstituição histórica daqueles tempos e é um imperativo da dignidade nacional, para propiciar essa verdade à geração de hoje e de amanha é preciso descobrir e escancarar os arquivos onde quer que estejam”.

Em se falando que a Lei de Anistia impediu o acesso às informações dos acontecimentos obscuros do regime ditatorial no país, esses fatos compõem os atos operacionais da Comissão da Verdade para justamente desmantelar o embaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do que ocorreu naquela época, dos fatos ainda ocultos da população.

Para muitos, a frustração de haver impedido as investigações das graves violações de direitos humanos pela existência da referida lei geram proteção aos crimes praticados em Estados de Exceção onde a impunidade gera descrença de seus governos.

Por outro lado, com vistas às regras normativas internacionais, estes Estados, vinculados aos Tratados de Direitos Humanos, teriam de adequar sua legislação interna para se adequarem à proteção daqueles direitos e impedir a aprovação de leis de anistia para justamente não punir aquelas violações.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos menciona que a anistia foi obstáculo alegado por alguns países para investigar e punir os responsáveis por graves violações de direitos humanos. A Corte, a Convenção Interamericana, as Nações Unidas e outros organismos de proteção aos direitos humanos já se pronunciaram sobre a incompatibilidade das leis de anistia com relação ao direito internacional e as obrigações internacionais assumidas pelos Estados.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos concluiu que as anistias e outras medidas análogas contribuem para a impunidade e constituem um obstáculo para o direito à verdade ao opor-se a uma investigação aprofundada sobre as graves violações de direitos ocorridas.[22]

Dentro dessa sistemática, no Caso Lund e outros vs. Brasil, a Corte Interamericana proferiu decisão contra o Brasil. O processo originou-se em 1995, movido pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional e pela Human Rights Watch/América, em nome de pessoas desaparecidas na Guerrilha do Araguaia.

Eis que surge outro problema: pelo direito interno, a Lei de Anistia, como retratou a ADPF junto ao STF, possuiu o entendimento do Ministro Relator de que aquela não poderá ser reformulada sob pena de invalidar as lutas dos brasileiros na época do regime militar em proporcionar a liberdade e a democracia do país, “(…) era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia (…)”.

7– Conclusão

Pelo direito internacional, o Brasil está vinculado às regras contidas nos Tratados Internacionais de Proteção de Direitos Humanos e perante a Convenção Interamericana de Proteção aos Direitos Humanos, pelo princípio do pacta sunta servanda (art. 26 da Convenção de Viena sobre os Tratados), e está impossibilitado de usar o direito interno para descumprir essa obrigação assumida por ele. Daí surge este paradoxo não admitido pela regra internacional (art. 27 da mesma Convenção).

Desta maneira, o Brasil poderá ser responsabilizado internacionalmente pela não punição dos crimes cometidos no período da Ditadura Militar na edição da Lei de Anistia, descumprimento com base em um direito interno contra seus compromissos internacionais assumidos por tratados internacionais.

Apesar da polêmica existente em relação à lei de Anistia e os vínculos do Governo Brasileiro frente aos compromissos com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, o passo primordial foi dado com a criação da Comissão da Verdade, como uma das medidas primordias contida na Justiça de Transição.

É preciso, insistentemente, combater as patologias do tempo que impedem a sua evolução, combater as formas de destemporalização, combater as formas negativas de fazer memória e impedir que a figura de Kronos possa parar a roda do tempo na forma de governos autoritários e ditatoriais.

 É preciso evoluir

O Brasil terá de estar preparado para lidar com as verdades surgidas pela apuração dos fatos pela Comissão da Verdade e suprir a lacuna não punitiva deixada pela Lei de Anistia. Terá de encontrar uma maneira de avançar em um futuro edificado nas bases do Direito à Memória. 

Uma Nação ausente e desconhecida de sua história não é uma Nação. Um país sem memória é um país sem futuro.

 

Referências:
ADPF Nº 153. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf. Acesso no dia 15/05/2012.
COMISSÃO INTERAMERICANA DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em http://cidh.oas.org/Comunicados/Port/48-12.htm. Acesso em 17/05/2012.
CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS. UN Security Council – The rules of Law and transitional justice in conflict and post conflict societies. S/2004/616. Disponível em http://www.un.org/Docs/sc/sgrep04.html. Acesso em 17/052/2012.
DWORKIN, Ronald. O império do direito; tradução Jefferson L. Camargo. 2ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007.
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. — São Paulo: Companhia das Letras,2002.
HALBWARCHS, Maurice. A memória coletiva. 1950, traduzido por Laurent León Schaffter, Paris: Presses Universitaires de France, 1968.
OST, François. O tempo do direito, 1999; tradução Élcio Fernandes; Bauru, São Paulo: Edusc, 2005.
RICOEUR, Paul. 1913. A Memória, a História, o Esquecimento. Tradução: Alain François – Campinas, São Paulo:Editora da Unicamp, 2007.
SIRKIS, Alfredo. Os Carbonários: memória da guerrilha perdida, 10ª Ed., São Paulo, Global, 1988.
TOCQUEVILLE, A., de. La Démocratie em Amérique. Paris: Garnier: Flammarion, 1951, t. II, cap. VIII.
 
Notas:
[1] Ost, François. O tempo do direito, 1999; tradução Élcio Fernandes; Bauru, São Paulo: Edusc, 2005, p. 9.

[2] Ost, François, op. cit., p. 10.

[3] Tocqueville, A., de. La Démocratie em Amérique. Paris: Garnier: Flammarion, 1951, t. II, cap. VIII, p. 336.

[4] Ost, François, op. cit., p. 25.

[5] Ricoeur, Paul. 1913. . A Memória, a História, o Esquecimento. Tradução: Alain François – Campinas, São Paulo:Editora da Unicamp, 2007, p. 130.

[6] Halbwarchs, Maurice. A memória coletiva. 1950, traduzido  por Laurent León Schaffter, Paris: Presses Universitaires de France, 1968, p. 24.

[7] Ricoeur, Paul. op. cit., p.82-104.

[8] Ricoeur, Paul, op. cit., p. 423.

[9] idem,  p. 448.

[10] SIRKIS, Alfredo. Os Carbonários: memória da guerrilha perdida, 10ª Ed., São Paulo, Global, 1988, p. 61-68.

[11] Gaspari, Elio. A ditadura escancarada. — São Paulo: Companhia das Letras,2002 p. 26.

[12] UN Security Council – The rules of Law and transitional justice in conflict and post conflict societies. Report  Secretary General S/2004/616. Disponível em http://www.un.org/Docs/sc/sgrep04.html. Acesso em 17/052/2012.

[13] Ost, François, op. cit., p.176.

[14]  A Lei nº 10.559 de 13/11/2002 que regulamentou o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias fixou em seu artigo 2º declarou como anistiados aqueles entre o período de 1946 até 1988.

[15]  Essa revisitação dos traumas pelas pessoas que haviam sofrido as torturas poderá causar diversas reações. Os traumas ficavam ali guardados no íntimo, esquecidos até como questão de sobrevivência. Mas o passar do tempo fazia esses fantasmas reaparecerem e a causar os danos já prometidos como foi o caso do Frei Tito (nos relatos contidos no livro “Batismo de Sangue”) que não conseguiu se livrar de todas as atrocidades a ele cometidas através da tortura. Sua mente não conseguiu se libertar daqueles algozes que lhe aplicaram a tortura, vindo o mesmo a cometer suicídio na França.

[16]  Disponível em http://cidh.oas.org/Comunicados/Port/48-12.htm, acesso em 17/05/2012.

[17] Human Rights Watch, disponível em http://www.hrw.org/news/2012/05/16/brazil-letter-president-rousseff-truth-commission, acesso em 17/05/2012.

[18]  Serão integrantes da Comissão: José Carlos Dias (Ministro da Justiça no governo Fernando Henrique), Gilson Dipp (Ministro do Superior Tribunal de Justiça), Rosa Maria Cardoso da Cunha (advogada de presos políticos e da Presidente Dilma Rousseff), Cláudio Fontelles (Procurador-Geral da República no governo Fernando Henrique Cardoso), Paulo Sérgio Pinheiro (Diplomata), Maria Rita Kehl (psicanalista) e José Cavalcante Filho (jurista)

[19] O crime contra a humanidade é termo de direito internacional que descreve atos de perseguição, agressão ou assassinato contra um grupo de indivíduos, regulado pelo artigo 7º do Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal Internacional

[20] Dworkin, Ronald. O império do direito; tradução Jefferson L. Camargo. 2ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 261-262.

[22] Cf. Relatório do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. UN, Doc. A/HRC/5/7, de 07 de junho de 2007, p. 20.


Informações Sobre o Autor

Wiliander França Salomão

Advogado formado em Direito pela Universidade de Itáuna MG em 1997. Foi Conselheiro da 34a Subseção da OAB de ItaúnaMG entre 2004 e 2006. Foi Vice-Presidente da 145a Subseção da OAB de Mateus LemeMG entre 2006 e 2009. Atualmente é Secretário-Geral da 145a Subseção da OAB. É pós graduado em Direito Administrativo pelo CEAJUFE em 2008 e pós graduado em Direito Internacional pelo CEDIN – Centro de Direito Internacional de MG em 2009. É mestrando em Direito Internacional pela PUC-MG


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Os elementos do tempo e da memória na ditadura militar no Brasil: uma abordagem sobre a Lei de Anistia, a Comissão da Verdade e o Direito à Memória

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Resumo: Ao depararmos com todas as indagações e questões ligadas ao período da Ditadura Militar ocorrida no Brasil, indaga-se como é possível resgatar um passado conturbado, de injustiças e violações de Direitos Humanos que ainda continua obscuro? Qual o papel do tempo e da memória nesta trajetória? Como efetivar o direito à memória em bases democráticas a fim de que se possa dar aos fatos a sua veracidade? É preciso analisar os conceitos e elementos de tempo e suas relações com o Direito para responder a estes questionamentos. O presente trabalho visa analisar esses fatos sob o aspecto histórico, legal e crítico no cenário político atual do Brasil, a justiça de transição e os elementos do tempo e da memória usados pelos regimes ditatoriais no passado para criar uma história e identidade nacional a fim de perpetuar as idéias autoritárias.

Palavras-chave: Direito à Memória – Direitos Humanos – Comissão da Verdade – Ditadura Militar

Abstract: When we faced with all the questions and issues related to the period of military dictatorship that took place in Brazil, asks how it is possible to rescue a troubled past, the injustices and human rights violations that still remains unclear? What is the role of time and memory in this matter? How to enforce the right to memory on a democratic basis in order that we can give facts their veracity? We must analyze the concepts and elements of time and its relationship with the law to answer these questions. This study aims to examine these facts in the historic, legal and critical in the current political scene in Brazil, transitional justice and the elements of time and memory used by dictatorial regimes in the past to create a history and national identity in order to perpetuate authoritarian ideas.

Keywords: Right to Memory – Human Rights – Truth Commission – the Military Dictatorship

1 – Kronos e a roda do tempo: a (não) evolução

A mitologia grega narra um fato a respeito da paralisação do tempo por intervenção do Deus Kronos. Inicia-se o mito com a união do Céu e da Terra representados por Urano e Gaia. Eles tiveram muitos filhos e que posteriormente eram enviados para o submundo do Tártaro. Gaia já estava farta das investidas de Urano e da grande quantidade de seus filhos perdidos naquele lugar.

Assim, armou seu filho Kronos de uma foice e este veio a decepar os testículos do seu pai. Esse evento culminou com a separação do Céu e da Terra. Coube, então, a Kronos assumir o reinado do pai, iniciando o seu próprio e que também enviou os seus irmãos ao Tártaro, da mesma forma que seu pai.

Kronos conhecia uma profecia que dizia a respeito de seu destronamento por parte de um de seus filhos. Para evitar isso, devorou todos os seus herdeiros após seus nascimentos. Réia, sua esposa, resolveu salvar o seu filho mais novo, Zeus, que, após chegar à idade adulta, encabeçou uma revolta, destronando seu pai Kronos e assumindo seu lugar[1].

Esta mitologia representa a negação do tempo e ressalta a sua grande tirania: a negação do passado estabelecia quando Kronos cortou os genitais de seu pai e não permitiu o nascimento de mais irmãos e impediu o desenvolvimento do futuro quando ele devorou seus próprios filhos.

Diante esta situação, o presente encontrou-se vazio, ausente de memória e da evolução do próprio tempo. A roda do tempo parou e os eventos do passado nunca alcançaram o presente e o futuro não foi gerado.

A roda do tempo move as correntes do passado e futuro. É o seu movimento que traz a mudança, uma evolução. Parar a roda do tempo produz automaticamente o bloqueio do movimento do passado para o presente e para o futuro. O passado que não passa e o futuro que não chega.

É o caos absoluto e a preponderância das idéias tirânicas, dos períodos de Ditadura que não permitem a evolução de novas idéias e fomentam as idéias negativas dos fatos a fim de atender aos seus objetivos. O historiador François Ost conclui que essa parada do tempo “corta o elo entre passado, presente e futuro; o que ocorreu no passado não existirá o presente e não evoluirá para o futuro”[2].

Tocqueville também ressalta essa idéia ao afirmar que “o passado, quando não mais ilumina o futuro, deixa o espírito andando nas trevas”.[3] Contra essa situação de paralisia, o tempo possui vários elementos a permitir a sua correta evolução e a justiça acompanha esse movimento; pois é no tempo que ela encontra a sua afirmação, a sua perseverança e o desenvolvimento das teses jurídicas a fim de que os indivíduos possam conhecê-las e absorvê-las, concluindo, assim que a temperança corresponde à sabedoria do tempo e a justiça pode ser interpretada como a sabedoria do Direito.

É função do Direito instituir mecanismos na regulamentação da vida em sociedade visando o alcance da paz social e possibilitando haver justiça em todas as situações.

A união positiva entre tempo e justiça no âmbito da temporalização do tempo vai possibilitar a instituição jurídica da sociedade onde essa interação proporciona o equilíbrio do tempo pelo direito. Só é possível o auxílio da passagem do tempo para que as teses jurídicas sejam conhecidas, aplicadas e desenvolvidas para a proteção e criação de novos direitos e garantias.

2 – A destemporalização como forma de paralisação do tempo

Existem patologias temporais, elementos que não permitem o movimento da roda do tempo, elementos esses auxiliadores de Estados de Exceção. A destemporalização é uma dessas patologias traduzida pela não perpetuação do tempo. É a figura atuante de Kronos, o grande inimigo do tempo que o força a permanecer sempre inerte e imutável.

Esta recusa do tempo como forma de evolução provocada pela  destemporalização permite a existência de governos ditatoriais que impõem suas ideologias, autoritárias e violentas, impedindo um novo futuro, o surgimento de novos pensamentos e novas lutas para alterar um situação irregular no cenário nacional. Essa recusa do tempo possibilita a produção do fenômeno denominado Nostalgia da Eternidade como forma de sempre cultuar o passado, enaltecer as idéias pretéritas e manter as justificativas de poder de um regime ditatorial, é o refúgio seguro no ontem[4].

Essa nostalgia obriga aquele fato a sempre permanecer no passado na contínua valorização de um acontecimento que não pode evoluir fora dos objetivos que o originaram. Não podem existir mecanismos a fim de provocar a mudanças daqueles fatos em um novo futuro e diferente dos padrões estabelecidos por um governo ditatorial.

Estes riscos da ocorrência de destemporalização facilita a permanência das ideologias totalitárias, como as muitas ocorridas no Século XX. O passado dentro do contexto da destemporalização só é definitivamente fixado quando não se permite mais ter um futuro.

Mas contra a destemporalização está o movimento da roda do tempo na figura da temporalização, o justo equilíbrio do tempo, a sabedoria do tempo como medida para a evolução de ideologias inovadoras e da justiça. A destemperança como patologia do tempo e a temperança como seu antídoto.

Se aplicarmos a idéia de que as teses jurídicas necessitam do tempo para que elas possam se desenvolver, é certo concluir que o tempo é aliado do Direito, pois é justamente no tempo que o Direito encontra uma forma positiva de progredir e evoluir junto com a sociedade. .

3- Memória e perdão como elementos da retemporalização do tempo

Pelo ato de se fazer a memória temos a exata noção de que “algo importante ocorreu no passado e ainda hoje ele o é”, assim, a memória é a capacidade de adquirir, armazenar e recuperar informações, seja de forma interna (usando dos recursos mentais) ou de forma externa (com a interferência do grupo social), a dar-lhes um registro e uma devida transmissão.

Valemos-nos das lembranças para que possamos recordar algo e completar o liame que possuímos entre o que vivemos em determinado tempo.  Maurice Halbwarchs foi o primeiro a dizer, em sua obra Memória Coletiva, que não nos lembramos sozinhos, a memória está diretamente ligada a uma entidade coletiva, a um grupo social, pois, segundo ele, ninguém se lembra sem a ajuda dos outros[5]. Os testemunhos somente serão válidos desde que transmitidos aos membros do grupo social em que vivemos.

Nossas lembranças somente conseguiriam se exteriorizar se tomadas de empréstimos das lembranças dos outros membros do grupo onde estamos inseridos, passando a internalizar os relatos dos fatos a nós narrados[6].

Na concepção de Halbwarchs, as recordações dos eventos ocorridos em um grupo de indivíduos somente fazem memória se estamos em contrato com esse grupo, e se desligarmos dele, as nossas lembranças se perderão das memórias nascidas naquele centro humano onde os fatos que conhecemos de forma coletiva acabam atingindo nossa memória internalizada, como, por exemplo, os relatos de uma guerra por quem a vivenciou.

Conclui o autor, então, que só temos a capacidade de nos lembrar de algo quando nos colocamos em contato com o ponto de vista de uma ou mais pessoas. As lembranças aparecem porque nos são recordados por outras pessoas. Por isso, não nos lembramos sozinhos.

Não havendo memória não haverá lembrança e não haverá passado e aquilo que é importante ser lembrado ficará esquecido, correndo o risco de se tornar uma lenda, um mito. Não havendo memória haverá a parada da roda do tempo, haverá a nostalgia da eternidade, haverá a destemporalização.

A justa narrativa da memória visa impedir o prosseguimento e o surgimento dos desregramentos do tempo no enaltecimento dos fatos negativos do passado.

A memória também pode sofrer abusos quando ganha um sentido negativo, quando a sua narrativa é distorcida para falsear a história e proteger interesses que, muitas das vezes, podem ser de uso útil aos governos autoritários.

Nestas formas negativas de se fazer uso da memória, o grande pensador Paul Ricoeur fez distinção entre três situações: a memória enferma (correspondente a uma memória de traumas e que tende a ser esquecida para controlar essa situação de dor provocada por um fato), a memória manipulada (levada a alterar a identidade de um povo, dar um sentido unilateral à produção da memória) e a memória obrigada (a memória imposta, forçada, sobretudo por um governo à sua população)[7].

Uma sociedade sem memória ou com uma memória produzida através de narrativas negativas a fim de valorizar idéias, como nas ditaduras, favorece a permanência de uma sociedade amputada em suas raízes, órfã de história e barrada no acesso ao futuro construído em bases igualitárias e verdadeiras.

Mas a memória é o grande elemento que faz reativar o movimento do tempo, fazendo surgir as figuras de retemporalização como o perdão e a promessa que ligam aquilo que se arrisca separar, afastar aquilo que possibilita ainda estar oculto, sem resposta, sem apuração. A memória liberta a história de suas nostalgias eternas.

O ato negativo do passado nos causa choque, um luto com o condão de unir toda a sociedade afetada por aquele ato como torturas, guerras, violações de direitos fundamentais e fazer memória destes atos e lutos serviria para fortalecer a nossa identidade onde o Direito criaria espaços para democratizar instituições, efetivar garantias aos direitos violados, instituir limites legais para a atuação do Poder Público contra o indivíduo.

Ao fazermos memória das repressões e da completa ausência de garantias individuais ocorridos no período da Ditadura nos proporcionará a construção de valores sobre os quais a nação brasileira se assenta e materializados no texto constitucional, como a vasta garantia de direitos contida no artigo 5º da Carta Magna.

Nesta idéia, Paul Ricoeur menciona que “no esquecimento há o problema de memória da fidelidade ao passado[8]. No perdão há a reconciliação com o passado, assim, contra o esquecimento é necessário fazer uso da memória e do perdão.

Da mesma forma, esquecer também é vital para que tal armazenamento seja eficaz. Diariamente temos a experiência do fenômeno da “erosão da memória”, a “morte anunciada das lembranças”[9] justamente devido ao nosso envelhecimento, conseqüência da face objetiva do tempo, mas Ricoeur afirma que nos lembramos mito mais do que esquecemos.

Se a memória nos liga ao passado, o perdão, por sua vez nos desliga dele. O perdão é a capacidade da sociedade de “se libertar do passado”, rompendo com o ciclo de vingança, do luto, sendo este o discurso de muitos governos, de muitas comissões da verdade instituídas. Quando a sociedade usa o perdão, segundo aquelas idéias, estará dando um futuro ao passado.

Quando a sociedade escolhe usar o perdão na forma de anistia correta (por haver culpados entre vítimas e autores), estará dando um futuro ao passado, por mais polêmica que ela seja. O perdão liberta o passado e a promessa orienta o futuro, indicando-lhe uma justa direção.

A ditadura em um primeiro momento justificou a tomada do poder para “impedir um golpe comunista no país”, não permitindo a ascensão destas ideologias no território nacional e da grave crise financeira em que o país atravessava e a não rigidez do governo de João Goulart frente a tais eventos. A sociedade que vinha de um governo fracassado com contestar os problemas sociais, inflação, pobreza, apoiou o golpe em 64.

Inúmeros atos institucionais foram expedidos pelo governo para solidificar ainda mais o golpe. Era um governo onde não havia alternativa democrática para qualquer tipo de diálogo e tudo era imposto. O “Milagre Econômico” era a bandeira usada pelo governo para apresentar à sociedade o progresso que vinha pelas mãos dos militares.

A morte do primeiro estudante pelo regime, Edson Luiz, foi o estopim para que várias manifestações ocorressem, incluindo a marcha dos 100 mil no Rio de Janeiro[10]. A morte de estudantes e população civil nas diversas passeatas e revoltas posteriores foi resultado de repressões ainda mais violentas do governo ditatorial e fortalecendo a existência de grupos cujo objetivo era libertar a sociedade.

Para conter as revoltas, foi expedido o AI-5 no fim de 1968, retirando as garantias do habeas corpus, decretou o recesso por tempo indeterminado do Congresso Nacional entre outros atos. Não havia mais garantias contra as intervenções do governo contra os indivíduos.

A população estava sem um mínimo de proteção legal e a qualquer hora podiam ser abordadas e interrogadas por tempo indeterminado, estando ou não ligadas aos movimentos revolucionários, passando meses ou anos nos “porões”.

Dentro deste cenário de caos, as idéias do “poder do povo e para o povo” dos socialistas liderados por Carlos Marighella, o engajamento de juventude contra a repressão, o idealismo e lutas presentes em militantes como Lamarca, Iara Iavelberg, Frei Betto, Frei Tito e tantos outros para derrubar o Estado de Exceção, conseguiram apresentar à sociedade seus ideais de liberdade.

Mas depois de um período de lutas, as forças militares conseguiram desmantelar estas organizações e contribuindo com o fim de várias delas e prendendo e torturando centenas de seus participantes. Muitos deles foram mortos e enterrados com identidades diversas e cujo paradeiro até hoje é desconhecido. Para suas famílias, é como se eles morressem todos os dias, é como se esse evento se renovasse a cada dia e sem sofrer descontinuidade.

E para quebrar a resistência daquelas pessoas, a tortura era usada. Mas essa prática era insistentemente negada pelos militares que, segundo eles, era algo que nunca existiu e se existiu foi praticada por subalternos sem o conhecimento do regime.

A descoberta da tortura podia anular as confissões forjadas a que eram obrigados os presos, incriminando-os na prática de crimes que não haviam praticado. Nestes inquéritos jamais era mencionada a tortura e, muito menos, seus torturadores que tinham suas identidades protegidas.

A Ditadura tinha o auxílio de médicos, hospitais e legistas dispostos a forjarem laudos de corpo de delito e autópsias das vítimas torturadas[11].

Com a edição da Lei de Anistia em 1979, o resgate da memória daquele período pôde ganhar um sentido real quando os exilados e presos libertos, de volta ao país ou mesmo alguns permanecendo no exterior, iniciaram a produção de várias obras literárias e denunciando todos os abusos e eventos, sob o ponto de vista de quem sofreu as repressões, a verdadeira história sobre as torturas, a fraude nos julgamentos perante o Tribunal Militar, entre outras revelações.

Dentre estas obras publicadas incluem “Batismo de Sangue”, “Ditadura Escancarada”, “Iara”, “Os Carbonários” e “Brasil Nunca Mais”.

4 – Memória como formação da identidade de um país e a Justiça de Transição

Em países da Europa ou os Estados Unidos, a memória é sempre resgatada na transformação em valores nacionais, em legados e lutas que construíram a base sob a qual estão esses Estados e sua exteriorização através de monumentos e museus por ruas e cidades, indicando à população a origem de suas raízes e criando uma identidade nacional.

Os acontecimentos que possibilitaram a grave violação de direitos humanos, a derrubada de instituições, a imposição de medidas que desmantelam uma sociedade por idéias ditatoriais quando devidamente resgatados pela memória são capazes de unir uma sociedade e a produzir novos valores na construção de sua identidade, pois as violações ocorridas no passado vão possibilitar as garantias a e justiça do hoje.

No artigo 5º da nossa Constituição Federal estão solidificados direitos fundamentais sistematicamente violados na época da ditadura militar onde hoje os direitos humanos gozam de maior proteção nacional e internacional contra as violações que ainda persistem, traduzido em uma nova ideologia de proteção sistemática dos direitos humanos no país.

A memória é um direito fundamental do indivíduo. É função do Direito atuar neste campo como o grande produtor de normas e garantias de prerrogativas individuais, de também evoluir com a sociedade na instituição de espaços próprios a possibilitar debates e a existência de mecanismos hábeis a sempre preservar a memória e oferecer à sociedade atual e do futuro as bases para que sua história tenha um sentido positivo e impossibilitar novas transgressões.

A figura da tradição que, juntamente com a memória e o Direito, cria da mesma forma um espaço hábil para que as idéias e os fatos ganhem evolução no futuro constatando que o Direito é uma ciência de memória e também um discurso de tradição.

Na atuação do Direito como forma de instituir, encontra-se a figura da Justiça de Transição entre um regime ditatorial para um democrático, traduzida no conjunto de abordagens, medidas e estratégias que possibilitam enfrentar o legado da violência existente no passado para gerar uma responsabilidade, exigir efetividade do direito à memória e à verdade, fortalecer as instituições com valores democráticos, a punição dos culpados, a criação de Comissões da Verdade, a reparação dos prejuízos sofridos pelas vítimas.

O conceito e as regras para a Justiça de Transição foram criados no âmbito das Nações Unidas através do Conselho de Segurança em 2004, como uma medida fornecida aos governos dos países saídos dos regimes ditatoriais que pudessem adotar aqueles direcionamentos para se chegar a um regime democrático e livre[12].

Não existe um modelo ou regra únicos para o processo de transição e cada país deve encontrar um meio para se ligar com seu passado e implementar os mecanismos para isso. Cada país adotará o meio mais adequado a fim de conter a existência de novos distúrbios.

O modelo de transição adotado pelo Brasil na época do fim do período ditatorial foi da não punição dos responsáveis, afastando o modelo penal e punitivo dos autores dos crimes, de acordo com os preceitos da Lei de Anistia.

Na Justiça de Transição o direito à memória encontra as bases para a sua adequada efetivação, principalmente com o surgimento das comissões da verdade.

Dentro das regras e objetivos da Justiça de Transição, pode-se dizer que o Brasil ainda está em fase de construção, em fase de continuidade uma vez que a sociedade ainda carece de revelação de inúmeros fatos obscuros, ocultos em sua história política a partir da década de 40, sobretudo no período da Ditadura Militar, e a existência da Comissão de Verdade pode reverter esse processo.

5 – Anistia, Comissão da Verdade e o Direito à Memória

O Direito à Memória corresponde ao conhecimento sobre o que ocorreu no passado, quais os direitos violados, quais os fatos ocultos, para que esses eventos negativos possam ser reconstruídos em bases legais positivas e proporcionando-lhes um efetivo grau de garantia e proteção e na imposição de limites legais, tornando o que antes era lícito, em ilícito.

A Lei de Anistia nº 6.683, foi promulgada no Brasil em 28/08/1979 pelo então Presidente João Figueiredo, cujo objetivo da lei está em seu artigo 1º:

“Art. 1º  É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado).

§ 1º Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política’.

Os benefícios dados conforme o artigo 1º não incluíam aqueles condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentados pessoais.

A anistia beneficiou milhares de pessoas, mais de cinqüenta presos onde muitos deles foram libertados imediatamente após a edição da lei.

 A anistia pode ser caracterizada como figura de um perdão social (e não individual) e revestindo-se dos elementos da retemporalização. Mas muitos doutrinadores atribuem a ela um caráter político, e não legal.

O grande questionamento surge: é justo perdoar? Alguns pensadores, incluindo François Ost vão considerar a anistia como forma de esquecimento forçado, de conspirar com o silêncio ao direito à memória; outros vão concordar em atribuir à anistia a figura de um gesto de misericórdia da sociedade que opta em perdoar e olhar para um futuro reconciliador.

François Ost atribui à punição a verdadeira figura do perdão, pois quando há o julgamento de crimes o condenado cumpre a pena e “purga” seus desvios perante si mesmo e perante a sociedade, pagando sua dívida para com o grupo social que sofreu aquele ato.[13]

A temática dessa afirmação reside na idéia de que a punição gera uma redenção perante o próprio infrator que se vê livre de suas ações ilícitas e pronto a recomeçar. 

Ost ainda vai mencionar que o Direito existe como regra igualitária e deixar de punir um indivíduo é não agir com igualdade a todos. O justo esquecimento provido pelo Direito seria a prescrição, a decadência, revestindo essas regras de bilateralidade e devidamente positivadas, significando que o Estado perdeu o crime de vista e a punição perdeu o seu sentido.

Na África do Sul, a Comissão Verdade e Reconciliação conseguiu produzir uma anistia sem amnésia e sem punição que, fazendo funcionar a memória, abriu caminho para um futuro sem revanches. Foi uma escolha daquele país em fazer uma Justiça de Transição sem punição para acabar com revanchismos.

Desmond Tutu, Presidente da Comissão Africana Verdade e Reconciliação, em 1996 disse que “era possível olhar a verdade de frente e exorcizar o passado e seria possível “perdoar sem esquecer”, fazendo menção à figura da memória + perdão, na perfeita tradução de uma anistia sem esquecimento.

No Brasil, depois de anos de silêncio sobre as questões ainda ocultas do período da Ditadura e, principalmente sobre o paradeiro das vítimas desaparecidas, a Presidente Dilma Rouseff sancionou a Lei nº 12.528 de 18/11/2011 que instituiu a Comissão da Verdade cujo objetivo se apresenta na seguinte forma:

 “Art. 1o É criada, no âmbito da Casa Civil da Presidência da República, a Comissão Nacional da Verdade, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos praticadas no período fixado no art. 8o do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias[14], a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.

A comissão irá analisar as violações dos diretos humanos ocorridos entre o período entre 1946 a 1988, mas, na prática, a atenção se voltará ao regime militar compreendido entre os anos de 1964 até 1985.

A função da comissão é clara: esclarecer as violações de direitos, efetivar o Direito à Memória e à Verdade e promover a reconciliação nacional, ou seja, reafirmar a justiça de transição sem punições, perdoar mas sem esquecer, proporcionar um futuro reconciliado e livre do revanchismo.

A figura da memória enferma idealizada por Ricoeur vai de encontro à atuação da Comissão da Verdade, pois os elementos traumáticos contidos nela virão à tona com a comissão. Os traumas das torturas, os traumas dos assassinatos, os traumas das violações serão um resgate de uma memória que precisa ser revisitada e expurgar os lutos ali contidos[15].

Instituir o passado, certificar os fatos ocorridos, originar regras: eis a mais antiga e mais permanente das funções do Direito. Pelo ato da memória a sociedade busca responder todas as dúvidas sobre o que ocorreu e os juristas seguem essas indagações na produção de futuras regras jurídicas.

Pela primeira vez o Direito à Memória encontra um espaço público no país para sua correta efetivação e a Justiça de Transição no país pode seguir seu rumo na desobstrução de fatos obscuros e dados sigilosos e que ainda geram revolta e questionamentos. Mas a sociedade deve estar preparada para lidar com as verdades que serão descobertas.

Dentro ainda dessa questão, há um ponto polêmico onde a comissão irá efetivar o direito à memória mas não à justiça da memória, pois não terá o caráter punitivo em condenações dos envolvidos com as violações de direitos como o seu próprio texto legal diz.

De acordo com a Presidente, a sanção da lei se traduz na submissão do Estado Brasileiro na sujeição aos direitos humanos. Este discurso reflete a existência de  inúmeros choques entre tradições jurídicas antigas com as novas tradições surgidas no cenário nacional e internacional na proteção dos direitos humanos.

A Comissão da Verdade vai desempenhar esse papel inovador na tradição jurídica cultural e enquadrar as regras jurídicas brasileiras diante da realidade e da garantia da preservação dos direitos humanos.

O Brasil não será cúmplice com o silêncio. Agora se cria um espaço público para que as últimas verdades venham à tona. É preciso desmitificar as histórias contadas pelo Regime de Exceção que primava pela censura e repressão. É preciso que as gerações de hoje e de amanhã saibam o que ocorreu.

Esta iniciativa é comemorada pela Comissão Interamericana dos Direitos Humanos que assim se expressa: “A CIDH considera essa decisão um passo fundamental para avançar no esclarecimento dos fatos do passado. O direito internacional dos direitos humanos reconhece que toda pessoa tem direito a conhecer a verdade. No caso das vítimas de violações dos direitos humanos e seus familiares, ter acesso à verdade dos fatos constitui uma forma de reparação. Neste sentido, a formação da Comissão da Verdade no Brasil desempenhará um papel fundamental para tornar efetivo o direito à verdade das vítimas de violações dos direitos humanos cometidas no passado, bem como de todas as pessoas e da sociedade em seu conjunto”.[16]

A polêmica contra a não punição dos crimes ainda persiste dentre os grupos e organismos internacionais de proteção aos direitos humanos que embora apóiem as comissões da verdade, desejam a efetivação da justiça à memória: “o Brasil tem a obrigação perante o direito internacional de investigar, processar e punir os responsáveis por sérias violações aos direitos humanos. Comissões da verdade e outros mecanismos extrajudiciais não substituem a investigação e o julgamento de atrocidades. No entanto, podem ser valiosas ferramentas complementares para a preservação da memória histórica, esclarecimento dos fatos e a atribuição de responsabilidades políticas e institucionais”.[17]

A citada comissão terá prazo de dois anos a partir de sua nomeação e apresentar um relatório no final e com suas recomendações sobre quarenta anos de história do país, de 1946, após o fim do Estado Novo, até a promulgação da Constituição Federal, em 1988. A comissão será composta por sete integrantes[18] que desempenharão cargos em comissão e terão membros ecléticos entre políticos, familiares das vítimas entre outros.

Diante disso, pode se dizer que não é a passagem do tempo que mede a época exata para se discutir qualquer fato negativo no passado de um país, mas é a existência de vítimas não ouvidas, de fatos não esclarecidos que tornam esses questionamentos sempre presentes, atuais e obrigatórios. Esse será o papel da referida comissão.

6– A ADPF 153 no questionamento da Lei de Anistia e a condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos

Existe o entendimento de que o direito pode ser alterado, dentro da idéia do pós-positivismo com vistas à moral e à justiça e desconsiderando seu conteúdo material. Esse entendimento também se liga ao conteúdo da Lei de Anistia, onde as regras do direito positivo protegidas pela segurança jurídica poderiam ser mutáveis.

Dentro deste contexto, ocorreu a reformulação do Direito com relação à Lei de Anistia da Argentina.

Naquele país, em 2003, por iniciativa do então Presidente Nestor Kirchner, foi decretada a inconstitucionalidade da Lei de Anistia possibilitando a condenação dos militares envolvidos na tortura e homicídios na época da ditadura naquele país.

Em outubro de 2011, o Judiciário argentino condenou dezesseis militares por crimes contra a humanidade[19], responsabilizações por torturas e homicídios ocorridos na ESMA – Escola Superior da Marinha, em Buenos Aires, um dos maiores centros de detenção clandestina e de extermínio nos períodos da ditadura argentina no período de 1976 e 1983.

Alguns foram condenados à prisão inclusive à perpétua, e dois foram absolvidos. O veredito foi transmitido ao vivo pela TV. A justiça argentina estima que cinco mil pessoas passaram pela ESMA. Uma dessas vítimas está Azucena Villflor, uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio que denunciou a repressão e iniciou as buscas pelo filho desaparecido.

Houve a reprogramação do Direito onde a Lei de Anistia foi extinta para punir uma violação maior de crimes não só contra indivíduos mas contra a humanidade, afastando a segurança jurídica que impedia a punição dos autores dos crimes. Esse foi o enfoque dado à continuidade da Justiça de Transição na nação argentina.

Ronald Dworkin enfatiza as deficiências interpretativas do positivismo e, se a lei não é justa há que se lhe atribuir essa justiça, mesmo se seu conteúdo dispõe do contrário. A lei escrita demonstra uma realidade do que ela é e não do que ela deveria ser.[20]

A questão do perdão de crimes trazida pela Lei de Anistia sempre foi debatida por estudiosos e envolvidos com o assunto, principalmente vítimas e suas famílias, uma reivindicação nada mais justa àqueles que vivenciaram os horrores das repressões da Ditadura.

A Lei de Anistia brasileira pode corresponder à posição da sociedade da época que fez escolha por uma transição pacífica a fim de evitar maiores conflitos.

No contexto destas discussões, a OAB propôs a ADPF 153 junto ao STF objetivando a não ampliação, pela Constituição Federal, do disposto do §1º do artigo 1º da Lei de Anistia que diz respeito aos crimes conexos com os crimes políticos, retirando-lhes a anistia para que os mesmos fossem objeto de julgamentos, e que a lei serviu de base para encobrir os delitos dos envolvidos onde a dignidade das pessoas e do povo foi usada como moeda de troca em um acordo político.

Várias associações fizeram parte do processo na qualidade de amicus curiae, como as Associações dos Militares e Anistiados Políticos. De acordo com os que pedem a não ampliação do parágrafo único do artigo 1º da lei de anistia, a norma se apresenta obscura pois procurou esconder o que se quer procurar. 

O Ministro Relator, Eros Grau em sua manifestação mencionou que todo texto normativo é obscuro até que venha a sua interpretação, onde o direito é inserido na realidade e a interpretação vem do universo particular de cada um. A Lei de Anistia possui cunho objetivo e não subjetivo, ou seja, ela visa anistiar um ou mais delitos e não anistiar a determinadas pessoas”.[21]

“Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a democracia política ter sido uma transição conciliada, suave em razão de certos compromissos. Isso porque foram todos absolvi dos, uns absolvendo-se a si mesmos. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia ( em alguns casos, nem mesmo vi ver) . Quando se deseja negar o acordo político que efetivamente existiu resultam fustigados os que se manifestaram politicamente em nome dos subversivos”.

As argumentações apresentam justificativas na impossibilidade de retroagir no tempo para punir pois retroagir até a data dos fatos para punir será o mesmo que desconsiderar a lei e abrir precedentes. Ainda na manifestação do Ministro Relator sobre os argumentos da OAB:

 “A Lei n. 6.683/79, segunda a Arguente, impediu que as vítimas dos agentes da repressão e o povo brasileiro tomassem conheci mento da “identidade dos responsáveis pelos  horrores perpetrados, durante dois decênios, pelos que haviam empalmado o poder”. Diz ela que a lei , “[ a] o conceder anistia a pessoas indeterminadas, ocultas sob a expressão indefinida ‘crimes conexos com crimes políticos’, ( . . . ) impediu que as vítimas de torturas, praticadas nas masmorras policiais ou militares, ou os familiares de pessoas assassinadas por agentes das forças policiais e militares, pudessem  identificar os algozes, os quais, em regra, operavam nas prisões sob codinomes”.

Mais uma vez, o Ministro Relator se posicionou que o objetivo da anistia é para perdoar mas sem esquecimento e suas regras foram concedidas às pessoas indeterminadas, pois ela não poderia conter limitações em se ater a anistiar somente a um determinado grupo de indivíduos. Era da vontade da população brasileira no fim da década de 70 que a anistia tivesse o caráter geral, ampla e irrestrita:

 “Ocorre que o quê caracteriza a anistia é a sua objetividade, o que importa em que esteja referida a um ou mais delitos, não a determinadas pessoas. Liga-se a fatos, não estando direcionada a pessoas determinadas. A anistia é mesmo para ser concedida a pessoas indeterminadas.(…) Romper com a boa-f é dos atores sociais e os anseios das diversas classes e instituições políticas do final dos anos 70, que em conjunto pugnaram – como j á demonstrado – por uma Lei de Anistia ampla, geral e irrestrita, significaria também prejudicar o acesso à verdade histórica. (…)O que se propõe, ao invés, é o desembaraço dos mecanismos existentes que ainda dificultam o conheci mento do ocorri do naquelas décadas”.

O Procurador Geral da República em seu voto disse “que reconhecer a legitimidade da Lei de Anistia não significa apagar o passado, a anistia não impede a reconstituição histórica daqueles tempos e é um imperativo da dignidade nacional, para propiciar essa verdade à geração de hoje e de amanha é preciso descobrir e escancarar os arquivos onde quer que estejam”.

Em se falando que a Lei de Anistia impediu o acesso às informações dos acontecimentos obscuros do regime ditatorial no país, esses fatos compõem os atos operacionais da Comissão da Verdade para justamente desmantelar o embaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do que ocorreu naquela época, dos fatos ainda ocultos da população.

Para muitos, a frustração de haver impedido as investigações das graves violações de direitos humanos pela existência da referida lei geram proteção aos crimes praticados em Estados de Exceção onde a impunidade gera descrença de seus governos.

Por outro lado, com vistas às regras normativas internacionais, estes Estados, vinculados aos Tratados de Direitos Humanos, teriam de adequar sua legislação interna para se adequarem à proteção daqueles direitos e impedir a aprovação de leis de anistia para justamente não punir aquelas violações.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos menciona que a anistia foi obstáculo alegado por alguns países para investigar e punir os responsáveis por graves violações de direitos humanos. A Corte, a Convenção Interamericana, as Nações Unidas e outros organismos de proteção aos direitos humanos já se pronunciaram sobre a incompatibilidade das leis de anistia com relação ao direito internacional e as obrigações internacionais assumidas pelos Estados.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos concluiu que as anistias e outras medidas análogas contribuem para a impunidade e constituem um obstáculo para o direito à verdade ao opor-se a uma investigação aprofundada sobre as graves violações de direitos ocorridas.[22]

Dentro dessa sistemática, no Caso Lund e outros vs. Brasil, a Corte Interamericana proferiu decisão contra o Brasil. O processo originou-se em 1995, movido pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional e pela Human Rights Watch/América, em nome de pessoas desaparecidas na Guerrilha do Araguaia.

Eis que surge outro problema: pelo direito interno, a Lei de Anistia, como retratou a ADPF junto ao STF, possuiu o entendimento do Ministro Relator de que aquela não poderá ser reformulada sob pena de invalidar as lutas dos brasileiros na época do regime militar em proporcionar a liberdade e a democracia do país, “(…) era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia (…)”.

7– Conclusão

Pelo direito internacional, o Brasil está vinculado às regras contidas nos Tratados Internacionais de Proteção de Direitos Humanos e perante a Convenção Interamericana de Proteção aos Direitos Humanos, pelo princípio do pacta sunta servanda (art. 26 da Convenção de Viena sobre os Tratados), e está impossibilitado de usar o direito interno para descumprir essa obrigação assumida por ele. Daí surge este paradoxo não admitido pela regra internacional (art. 27 da mesma Convenção).

Desta maneira, o Brasil poderá ser responsabilizado internacionalmente pela não punição dos crimes cometidos no período da Ditadura Militar na edição da Lei de Anistia, descumprimento com base em um direito interno contra seus compromissos internacionais assumidos por tratados internacionais.

Apesar da polêmica existente em relação à lei de Anistia e os vínculos do Governo Brasileiro frente aos compromissos com a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, o passo primordial foi dado com a criação da Comissão da Verdade, como uma das medidas primordias contida na Justiça de Transição.

É preciso, insistentemente, combater as patologias do tempo que impedem a sua evolução, combater as formas de destemporalização, combater as formas negativas de fazer memória e impedir que a figura de Kronos possa parar a roda do tempo na forma de governos autoritários e ditatoriais.

É preciso evoluir

O Brasil terá de estar preparado para lidar com as verdades surgidas pela apuração dos fatos pela Comissão da Verdade e suprir a lacuna não punitiva deixada pela Lei de Anistia. Terá de encontrar uma maneira de avançar em um futuro edificado nas bases do Direito à Memória. 

Uma Nação ausente e desconhecida de sua história não é uma Nação. Um país sem memória é um país sem futuro.

 

Referências:
ADPF Nº 153. Disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf. Acesso no dia 15/05/2012.
COMISSÃO INTERAMERICANA DOS DIREITOS HUMANOS. Disponível em http://cidh.oas.org/Comunicados/Port/48-12.htm. Acesso em 17/05/2012.
CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS. UN Security Council – The rules of Law and transitional justice in conflict and post conflict societies. S/2004/616. Disponível em http://www.un.org/Docs/sc/sgrep04.html. Acesso em 17/052/2012.
DWORKIN, Ronald. O império do direito; tradução Jefferson L. Camargo. 2ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007.
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. — São Paulo: Companhia das Letras,2002.
HALBWARCHS, Maurice. A memória coletiva. 1950, traduzido por Laurent León Schaffter, Paris: Presses Universitaires de France, 1968.
OST, François. O tempo do direito, 1999; tradução Élcio Fernandes; Bauru, São Paulo: Edusc, 2005.
RICOEUR, Paul. 1913. A Memória, a História, o Esquecimento. Tradução: Alain François – Campinas, São Paulo:Editora da Unicamp, 2007.
SIRKIS, Alfredo. Os Carbonários: memória da guerrilha perdida, 10ª Ed., São Paulo, Global, 1988.
TOCQUEVILLE, A., de. La Démocratie em Amérique. Paris: Garnier: Flammarion, 1951, t. II, cap. VIII.
 
Notas:
 
[1] Ost, François. O tempo do direito, 1999; tradução Élcio Fernandes; Bauru, São Paulo: Edusc, 2005, p. 9.

[2] Ost, François, op. cit., p. 10.

[3] Tocqueville, A., de. La Démocratie em Amérique. Paris: Garnier: Flammarion, 1951, t. II, cap. VIII, p. 336.

[4] Ost, François, op. cit., p. 25. 

[5] Ricoeur, Paul. 1913. . A Memória, a História, o Esquecimento. Tradução: Alain François – Campinas, São Paulo:Editora da Unicamp, 2007, p. 130.

[6] Halbwarchs, Maurice. A memória coletiva. 1950, traduzido  por Laurent León Schaffter, Paris: Presses Universitaires de France, 1968, p. 24.

[7] Ricoeur, Paul. op. cit., p.82-104. 

[8] Ricoeur, Paul, op. cit., p. 423.

[9] idem,  p. 448.

[10] SIRKIS, Alfredo. Os Carbonários: memória da guerrilha perdida, 10ª Ed., São Paulo, Global, 1988, p. 61-68.

[11] Gaspari, Elio. A ditadura escancarada. — São Paulo: Companhia das Letras,2002 p. 26. 

[12] UN Security Council – The rules of Law and transitional justice in conflict and post conflict societies. Report  Secretary General S/2004/616. Disponível em http://www.un.org/Docs/sc/sgrep04.html. Acesso em 17/052/2012.

[13] Ost, François, op. cit., p.176.

[14]  A Lei nº 10.559 de 13/11/2002 que regulamentou o artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias fixou em seu artigo 2º declarou como anistiados aqueles entre o período de 1946 até 1988.

[15]  Essa revisitação dos traumas pelas pessoas que haviam sofrido as torturas poderá causar diversas reações. Os traumas ficavam ali guardados no íntimo, esquecidos até como questão de sobrevivência. Mas o passar do tempo fazia esses fantasmas reaparecerem e a causar os danos já prometidos como foi o caso do Frei Tito (nos relatos contidos no livro “Batismo de Sangue”) que não conseguiu se livrar de todas as atrocidades a ele cometidas através da tortura. Sua mente não conseguiu se libertar daqueles algozes que lhe aplicaram a tortura, vindo o mesmo a cometer suicídio na França.

[16]  Disponível em http://cidh.oas.org/Comunicados/Port/48-12.htm, acesso em 17/05/2012. 

[17] Human Rights Watch, disponível em http://www.hrw.org/news/2012/05/16/brazil-letter-president-rousseff-truth-commission, acesso em 17/05/2012.

[18]  Serão integrantes da Comissão: José Carlos Dias (Ministro da Justiça no governo Fernando Henrique), Gilson Dipp (Ministro do Superior Tribunal de Justiça), Rosa Maria Cardoso da Cunha (advogada de presos políticos e da Presidente Dilma Rousseff), Cláudio Fontelles (Procurador-Geral da República no governo Fernando Henrique Cardoso), Paulo Sérgio Pinheiro (Diplomata), Maria Rita Kehl (psicanalista) e José Cavalcante Filho (jurista)

[19] O crime contra a humanidade é termo de direito internacional que descreve atos de perseguição, agressão ou assassinato contra um grupo de indivíduos, regulado pelo artigo 7º do Estatuto de Roma que criou o Tribunal Penal Internacional

[20] Dworkin, Ronald. O império do direito; tradução Jefferson L. Camargo. 2ª Ed., São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 261-262.

[22] Cf. Relatório do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos. UN, Doc. A/HRC/5/7, de 07 de junho de 2007, p. 20.


Informações Sobre o Autor

Wiliander França Salomão

Advogado formado em Direito pela Universidade de Itáuna MG em 1997. Foi Conselheiro da 34a Subseção da OAB de ItaúnaMG entre 2004 e 2006. Foi Vice-Presidente da 145a Subseção da OAB de Mateus LemeMG entre 2006 e 2009. Atualmente é Secretário-Geral da 145a Subseção da OAB. É pós graduado em Direito Administrativo pelo CEAJUFE em 2008 e pós graduado em Direito Internacional pelo CEDIN – Centro de Direito Internacional de MG em 2009. É mestrando em Direito Internacional pela PUC-MG


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