O Princípio da Complementaridade no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional: correlacionando fatores que fomentaram sua adoção e verificando a forma de sua disponibilização

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Resumo: O objeto em análise é o princípio da complementaridade no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Primeiramente, e, para compreender os fatores que fomentaram sua adoção, imperiosa é a explanação do deslinde dos precedentes da justiça penal internacional, além da indicação da nova abordagem interpretativa dada ao princípio da soberania dos Estados, principalmente no que se refere à influência que sofreu do desenvolvimento da proteção dos direitos humanos e do próprio direito internacional, estabelecendo-se o princípio da complementaridade como terminantemente adequado ao tratamento da relação entre as jurisdições nacionais e a jurisdição internacional, nos moldes deste novo contexto. Posteriormente, indica-se como efetivamente o princípio da complementaridade restou disponibilizado no Estatuto de Roma do Direito Penal Internacional, abordando os artigos que o tratam e suas vicissitudes. Busca-se, assim, a exposição mesma da temática do princípio da complementaridade no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, avaliando-se os fatores que fomentaram sua adoção e verificando a forma de sua disponibilização.

Palavras-chave: Princípio da Complementaridade. Estatuto de Roma. Tribunal Penal Internacional.

Abstract: The object in question is the principle of complementarity in the Rome Statute of the International Criminal Court. First, and to understand the factors that encouraged its adoption, is the overriding explanation of the demarcation of previous international criminal justice, as well as indication of the new interpretative approach given to the principle of state sovereignty, especially with regard to the influence it has the development of the protection of human rights and international law itself, establishing the principle of complementarity as strictly for addressing the relationship between national jurisdictions and international jurisdiction, under the terms of this new context. Later, we indicate how effectively the principle of complementarity remains available to the Rome Statute of International Criminal Law, addressing the items that deal and its vicissitudes. Search, therefore, exposure of the same theme of the principle of complementarity in the Rome Statute of the International Criminal Court, evaluating the factors that fostered their adoption and how to verify its availability.

Keywords: Principle of Complementarity. Rome Statute. International Criminal Court.

Sumário: Introdução. 1. A ideia de Justiça Penal Internacional: visitando as origens históricas. 2. O relacionamento entra as Jurisdições Nacionais e a Jurisdição Internacional em face do Princípio da Soberania. 3. A adoção do Princípio da Complementaridade no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Conclusão.

Introdução

Trata-se de considerações quanto à adoção do princípio da complementaridade no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional.

De início, discorre-se sobre os precedentes do Tribunal Penal Internacional, principalmente como forma de entender sua imprescindibilidade na atualidade, e, como forma de observar o desenrolar da implantação de uma jurisdição penal internacional permanente, inclusive, diante das escolhas a configurar seu perfil, como a adoção do próprio princípio da complementaridade.

Procura revelar a problemática da adoção do mencionado princípio na jurisdição criminal internacional permanente, sobretudo no que tange à sua compatibilidade em face do princípio da soberania dos Estados e da relação entre as jurisdições nacionais e a jurisdição internacional.

Sendo imperativo ressaltar a importância da nova abordagem interpretativa dada ao princípio da soberania dos Estados, principalmente no que se refere à influência que sofreu do desenvolvimento da proteção dos direitos humanos e do próprio direito internacional, estabelecendo-se o princípio da complementaridade como terminantemente adequado ao tratamento da relação entre as jurisdições nacionais e a jurisdição internacional, nos moldes deste novo contexto.

Posteriormente, indica-se como efetivamente o princípio da complementaridade restou disponibilizado no Estatuto de Roma do Direito Penal Internacional, abordando os artigos que o tratam e suas vicissitudes.

Busca-se, assim, a exposição mesma da temática do princípio da complementaridade no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, avaliando-se os fatores que fomentaram sua adoção e verificando a forma de sua disponibilização.

Sendo imperioso ressaltar a importância do princípio da complementaridade no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, seja devido aos precedentes da justiça penal internacional, seja diante da relação que mantém com o princípio da soberania.

Para tanto, fez-se uso de um material essencialmente bibliográfico, que, primeiramente, aborda os precedentes do Tribunal Penal Internacional, introduz, em algumas cogitações a respeito do princípio da soberania dos Estados, a mudança interpretativa de seu conceito, diante dos avanços da proteção dos direitos humanos e do direito internacional, possibilitando, através da adoção do princípio da complementaridade, o relacionamento entre as jurisdições nacionais e a jurisdição internacional, bem como, também trata das questões relativas à aplicação do princípio da complementaridade no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, intentando-se fazer destas considerações uma modesta abordagem da temática.

1. A ideia de Justiça Penal Internacional: visitando as origens históricas

As barbáries cometidas contra os homens, especialmente ao longo do século XX, terminantemente, não puderam ser ignoradas, eclodindo em um sentimento que vindicava uma mobilização contra a proliferação de novos ultrajes à dignidade humana (BEZELAIRE; CRETIN, 2004, p. 13). Assim, terminada a Primeira Guerra Mundial, a exigência por justiça, atrelada a ímpetos patriotas e políticos, indicava a necessidade de promover na opinião pública a ideia de que tais violações não poderiam ficar sem a devida punição (ibid., p. 13 e 14).

Considerada a gravidade das ofensas então perpetradas, suas consequências humanas e estatais, no que se refere às flagrantes violações ao direito internacional, fomentavam que, a um tratado armistício restava consignada a necessidade do julgamento, da condenação (ibid., p. 14). Neste sentido, já em 15.10.1918, o senado francês votou uma resolução intentando a condenação dos responsáveis por tão graves abusos, asseverando que, a justiça deveria ser a primeira condição da paz, até que, concluindo os sentimentos da época, o Tratado de Versalhes fora assinado entre as potências aliadas e a Alemanha, em 28.06.1919, e, ratificado pela França, em 10.01.1920, trazendo, em seu Art. 227, a previsão do nascimento de uma nova ordem penal internacional (ibid., 14 e 15). Eis a íntegra do Art. 227 do Tratado de Versalhes:

The Allied and Associated Powers publicly arraign William II of Hohenzollern, formerly German Emperor, for a supreme offence against international morality and the sanctity of treaties.

A special tribunal will be constituted to try the accused, thereby assuring him the guarantees essential to the right of defence. It will be composed of five judges, one appointed by each of the following Powers: namely, the United States of America, Great Britain, France, Italy and Japan.

In its decision the tribunal will be guided by the highest motives of international policy, with a view to vindicating the solemn obligations of international undertakings and the validity of international morality. It will be its duty to fix the punishment which it considers should be imposed.

The Allied and Associated Powers will address a request to the Government of the Netherlands for the surrender to them of the ex-Emperor in order that he may be put on trial.” (THE COVENANT OF THE LEAGUE OF NATIONS, 1919).

A estipulação da criação de um tribunal especial, composto por cinco juízes, um de cada nação aliada, para julgar o ex-imperador alemão, trouxe em seu texto, a expressa preocupação com a reparação da moral internacional. Todavia, o Art. 227 do Tratado de Versalhes não chegou a ser aplicado, os aliados abandonaram a ideia de uma corte internacional para julgar o ex-imperador alemão, assim como abandonaram o intento de julgamento dos milhares de suspeitos daquelas bárbaras violações à humanidade, deixando à justiça alemã a preocupação em julgar algumas dezenas de ofensores (BEZELAIRE; CRETIN, 2004, p. 15 e 16).

Posteriormente, em 1927, a Associação Internacional de Direito Penal propôs à Sociedade das Nações a criação de uma câmara criminal da Corte Permanente de Justiça Internacional (ibid., p. 16).

Outrossim, fora diante das revelações da amplitude das ofensas cometidas durante a Segunda Guerra Mundial, particularmente, o genocídio judeu e as agressões japonesas, notadamente ultrapassando o que se conhecia por barbárie, que, a vindicação anteriormente tentada, de instalação de um tribunal penal internacional, materializou-se (ibid., p. 19).

Já durante o próprio conflito da Segunda Guerra Mundial, os aliados e os representantes dos governos da Europa no exílio, encontraram-se diversas vezes para acordar o destino dos nazistas ofensores com fim da guerra, a ideia de submetê-los a julgamento foi amadurecida, e, nas conferências de Moscou e de Teerã, em 1943, de Yalta e de Potsdam, em 1945, os Estados Unidos da América, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a Grã-Bretanha, acordaram quanto à necessidade do julgamento e, decorrente, punição (ibid., p. 20 e 21). Através da Carta de Londres, de 08.08.1945, tendo como signatárias as três grandes potências acima aduzidas e, também, a França, fora criado o Tribunal Militar Internacional, sediado no Palácio de Justiça de Nuremberg, sendo composto por quatro membros, um de cada aliado (ibid., p. 21 e 23). Valendo salientar que, a Carta de Londres veio a definir os crimes contra paz, os crimes de guerra e os crimes contra a humanidade (ibid., p. 21).

Resta imperioso mencionar que, diferentemente do que fora estabelecido no Art. 227 do Tratado de Versalhes, a Carta de Londres, apesar de reservar ao Tribunal Militar Internacional a competência para julgar os maiores infratores, em seu Art. 6º preocupou-se em não prejudicar as jurisdições nacionais, conforme discorreu: “Nothing in this Agreement shall prejudice the jurisdiction or the powers of any national or occupation court established or to be established in any allied territory or in Germany for the trial of war criminals.” (LONDON AGREEMENT, 1945).

O Tribunal Militar Internacional teve como veredictos doze condenações à morte, nove condenações à prisão perpétua ou temporária, e, três absolvições (BEZELAIRE; CRETIN, 2004, p. 24).

Voltando à situação mundial da época, ainda em 01.12.1943, na conferência do Cairo, chineses, britânicos e americanos, em comunhão de desígnios, declararam o intento de findar e punir as agressões japonesas, e, em Potsdam, em 1945, ratificaram a ideia da necessidade de julgamento e, decorrente, punição (ibid., 27 e 28). Com a rendição japonesa, em 1945, a Comissão de Crimes das Nações Unidas recomenda o estabelecimento de um tribunal militar internacional, os Estados Unidos da América notificam os aliados a erguer o tribunal, e, na conferência de Moscou, a China, os Estados Unidos da América, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e a Grã-Bretanha, concordam que Tóquio seja a sede do tribunal (ibid., p. 28). Assim, em 19.01.1946, fora criado o Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, composto por onze juízes, um de cada nação aliada, sendo elas, Austrália, Canadá, China, Estados Unidos da América, França, Grã-Bretanha, Índia, Países Baixos, Nova Zelândia, Filipinas e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (ibid.,p. 28 e 38).

O Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente teve 28 acusações, dois acusados morreram de causas naturais durante o processo, outro acusado fora reconhecido como portador de problema mental sério, os 25 restantes sofreram condenações, sendo sete condenações à morte e 18 condenações à prisão perpétua ou temporária (ibid., p. 31 a 36).

Entretanto, o resultado prático dos tribunais militares internacionais, principalmente do Tribunal Militar Internacional para o Extremo Oriente, deu margem a várias críticas, sendo constatado o peso da influência política a minimizar a amplitude que deveria ter a execução dos trabalhos, além do estigma que lhes fora atribuído, de justiça do vencedor (ibid., p. 37). Além dos tribunais militares internacionais, as atrocidades da Segunda Guerra Mundial ainda foram objeto de decisões de outras organizações, como as comissões militares norte-americanas (ibid., p. 39).

Com a Guerra Fria, cada um dos dois blocos formados parecia não estar propenso a promover a instalação de uma justiça penal internacional, posto que, a mesma seria capaz de reivindicar a prestação de contas também de suas ações (ibid., p.41). Um exemplo a fundamentar esta intencional omissão fora o descaso, na época, diante do genocídio do Camboja, organizado pelos Khmers vermelhos, entre 1975 e 1979 (ibid., p. 41). Entretanto, o relativamente longo espaço de tempo, contado desde a instalação dos tribunais militares internacionais, sem a efetiva atuação de uma justiça penal internacional, não fez esmorecer o sentimento que vindicava por sua necessidade, até porque, o fortalecimento da ideia de recusa da impunidade, atrelado a uma realidade de atrocidades cometidas pelo mundo, não permitia o esmorecer (ibid., p. 41 e 42).

Massacres, expulsões, deslocamentos de população visando uma purificação étnica, atrocidades e mais atrocidades no território da ex-Iugoslávia, novamente fizeram clamar reações internacionais por julgamento e, decorrente punição, sendo, através da Resolução 827 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, de 25.05.1993, criado o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia (ibid., p. 51).

Cabe ressaltar que, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, indica sua primazia sobre as jurisdições nacionais, asseverando a competência concorrente de ambas as jurisdições, tudo em seu Art. 9º, como se segue:

1. The International Tribunal and national courts shall have concurrent jurisdiction to prosecute persons for serious violations of international humanitarian law committed in the territory of the former Yugoslavia since 1 January 1991.

2. The International Tribunal shall have primacy over national courts. At any stage of the procedure, the International Tribunal may formally request national courts to defer to the competence of the International Tribunal in accordance with the present Statute and the Rules of Procedure and Evidence of the International Tribunal.” (STATUTE OF THE INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR THE FORMER YUGOSLAVIA, 1993).

Tribunal ad hoc, fora implantado em Haia, nos Países Baixos, no início desacreditado, seja por conta das críticas que norteavam os exemplos anteriores, seja pelo longo espaço de tempo entre a criação deste e daqueles, o Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia conseguiu até mesmo um rápido sucesso, diante da produção de seus trabalhos, se fazendo impregnar na vida internacional (BEZELAIRE; CRETIN, 2004, p. 53 e 54).

Pelo que, quando em 1994, em Ruanda, o ódio tribal entre as etnias hutu e tutsi fomentou um genocídio de rara intensidade, o Conselho de Segurança das Nações Unidas, já diante do exemplo do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, adotou a Resolução 955, de 08.11.1994, estabelecendo o, ainda mais ad hoc, Tribunal Penal Internacional para Ruanda, com sede em Arusha, na Tanzânia (ibid., p. 57 a 59).

Saliente-se que, o Estatuto do Tribunal Penal Internacional para Ruanda, também indica sua primazia sobre as jurisdições nacionais, asseverando a competência concorrente de ambas as jurisdições, tudo em seu Art. 8º, como se segue:

1. The International Tribunal for Rwanda and national courts shall have concurrent jurisdiction to prosecute persons for serious violations of international humanitarian law committed in the territory of Rwanda and Rwandan citizens for such violations committed in the territory of neighbouring States, between 1 January 1994 and 31 December 1994.

2. The International Tribunal for Rwanda shall have primacy over the national courts of all States. At any stage of the procedure, the International Tribunal for Rwanda may formally request national courts to defer to its competence in accordance with the present Statute and the Rules of Procedure and Evidence of the International Tribunal for Rwanda.” (STATUTE OF THE INTERNATIONAL CRIMINAL TRIBUNAL FOR RWANDA, 1994).

Toda esta experiência, visando a instituição de uma justiça penal internacional, eclodiu na Conferência de Roma, de 15 a 17 de julho de 1998, quando fora aprovado e adotado o Estatuto do Tribunal Penal Internacional (BEZELAIRE; CRETIN, 2004, p. 61). Ressaltando-se que, tal espécie de justiça penal internacional, fora vindicada pelo Art. 6º da Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, de 1948, cujo texto é o seguinte:

Persons charged with genocide or any of the other acts enumerated in article III shall be tried by a competent tribunal of the State in the territory of which the act was committed, or by such international penal tribunal as may have jurisdiction with respect to those Contracting Parties which shall have accepted its jurisdiction.” (CONVENTION ON THE PREVENTION AND PUNISHMENT OF THE CRIME OF GENOCIDE, 1948).

Constam como elementos determinantes à implantação do Tribunal Penal Internacional a ação dos tribunais ad hoc em favor da paz e o fato de sua atividade ser executada em condições capazes de apaziguar a sede de justiça das populações ofendidas (BEZELAIRE; CRETIN, 2004, p. 63).

2. O relacionamento entra as Jurisdições Nacionais e a Jurisdição Internacional em face do Princípio da Soberania

A implantação do sistema permanente de justiça criminal internacional estabeleceu-se, então, a partir de 17 de julho de 1998, quando na Conferência de Roma, fora aprovado e adotado o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, representando um marco na luta contra a impunidade e em favor dos direitos humanos (MAIA, 2001, p. 27). Esta luta tem dimensões éticas, políticas e jurídicas, envolvendo toda comunidade internacional, e necessitando de um posicionamento, tendo em vista que se estar a tratar da preservação de direitos humanos, cuja impunidade das graves violações sofridas possibilita gerarem-se novas atrocidades, logicamente, perturbando a convivência pacífica entre os seres humanos, seja em virtude de conflitos internacionais ou domésticos (ibid., p. 27 e 28).

Como anteriormente visto, antes da adoção do Estatuto de Roma, vários tribunais, ou mesmo comissões de investigação, foram formados, em respostas a graves violações dos direitos humanos, no entanto, os procedimentos eram influenciados por considerações políticas, impossibilitando julgamentos isentos (ibid., p. 28), e não se alcançando a totalidade dos objetivos intentados, mas a experiência serviu para o aprimoramento da jurisdição criminal internacional permanente.

Não há o que se discutir quanto à importância da preservação dos direitos humanos e do combate à impunidade das violações destes direitos, tanto que, para Marrielle Maia, a proteção internacional dos direitos humanos presume, até mesmo em seu conceito, “[…] a existência de um sistema internacional permanente de justiça criminal e o cumprimento internacional das regras desse sistema.” (ibid., p. 29). No entanto, é justamente nesta forma de proteção dos direitos humanos, ou seja, no sistema internacional permanente de justiça criminal, que questionamentos outros surgem, principalmente no que diz respeito ao relacionamento entre as jurisdições nacionais e a jurisdição internacional em face do princípio da soberania.

O conceito de soberania sofreu várias mudanças de interpretação, aplicadas às relações entre os Estados e ao direito internacional (ibid., p. 31). Na Antigüidade e na Idade Média, existia como indicação de posicionamento superior em um sistema hierarquizado (ibid., p. 31 e 32). No final do século XVI, com o Estado moderno, o termo soberania passou a ser entendido como o exercício do poderio estatal, revestido no direito de jurisdição de cada Estado sobre seus territórios e populações, possibilitado o uso da força, assim, a concepção de ordem internacional revelava-se na composição de Estados soberanos que privadamente resolviam seus impasses (ibid., p. 32).

Neste sentido:

1) o mundo é composto por Estados soberanos, que não reconhecem autoridade superior; 2) o processo legislativo de solução de contendas e de aplicação da lei concentram-se na mãos dos Estados individualmente; 3) o Direito Internacional voltava-se para o estabelecimento de regras mínimas de coexistência; 4) a responsabilidade sobre atos cometidos no interior das fronteiras é assunto privado do Estado envolvido; 5) todos os Estados são vistos como iguais perante a lei e regras jurídicas não levam em consideração assimetrias de poder; 6) as diferenças entre os Estados são, em última instância, resolvidas à força; 7) a minimização dos impedimentos à liberdade do Estado é prioridade coletiva.” (PEIXOTO, apud MAIA, 2001, p. 32).

A soberania estatal correspondia à racionalização do poder, o poder de fato era transformado em poder de direito, como condição única da garantia e manutenção da ordem política, legitimando a própria existência estatal, segundo os primeiros teóricos da razão de Estado (MAIA, 2001, p. 33).

Para Hobbes, que entendia o Estado como uma entidade artificial, a soberania estatal era definida como ordem legal impessoal, distinta do poder público, e, no contexto internacional, caracterizava cada Estado como unitário e racional, agindo autonomamente de acordo com sua estrutura política interna, cuja política externa voltava-se, tão somente, como estratégia de maximização de objetivos em relações internacionais, considerando ainda o uso da força como extensão desta política, desta feita, nenhum Estado soberano estaria sujeito a imposições de uma autoridade supra-estatal, dotada do monopólio da força (ibid., p. 33 e 34).

Foi seguindo este posicionamento que, precedendo o Tratado de Versalhes, caiu em completo fracasso a primeira tentativa de instituição de um possível tribunal internacional para julgar as violações resultantes da Primeira Guerra Mundial, possibilidade avultada pelo Reino Unido, França e Rússia com o término da guerra em 1918, na conferência de paz em Paris, intentando a responsabilização da Alemanha, Áustria e Turquia pelas infrações (POWER, 2004, p. 39). Inclusive, naquele momento, os Estados Unidos da América opuseram-se terminantemente a implantação de um tribunal dessa espécie, entendendo que “[…] era inquestionável que o direito de um Estado a ser deixado em paz automaticamente suplantava qualquer direito individual à justiça.” (ibid., p. 39).

Já Locke e Rousseau, diferentemente de Hobbes, que houvera desenvolvido a ideia de soberania estatal, trabalharam a noção de soberania popular, consistente dos conceitos de divisão de poderes, representação e supremacia das leis naturais, visão que veio a impor determinados limites, na medida em que, a formação do Estado visava, agora, a satisfação das necessidades individuais, e por isso, objetivando-se a proteção do indivíduo, abriu-se margem para a comunidade internacional atuar no sentido de supervisionar e assegurar esta proteção (MAIA, 2001, p. 34).

Como já suscitado, mesmo diante das críticas enfrentadas, o Tribunal Militar Internacional, de Nuremberg, e o Tribunal Militar para o Extremo Oriente, de Tóquio, foram impostos pelos vencedores aos vencidos em conflito internacional, buscando julgar os crimes praticados na Segunda Guerra Mundial, e, de uma forma ou de outra, demonstrando a preocupação em não deixar impunes violações a direitos humanos (ibid., p. 55).

De tal forma, e sobretudo a partir da segunda metade do século XX, o conceito de soberania dos Estados sofreu mudanças interpretativas, paralelamente à evolução do direito internacional, e, principalmente, pela fomentação de um repúdio à evocação da soberania como escusa para o não cumprimento de obrigações internacionais, inclusive perante a consideração que passou a ser atribuída aos direitos humanos e sua devida proteção através de diversos instrumentos internacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, os Pactos Internacionais dos Direitos Civis e Políticos e dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (ibid., p. 34 a 36).

Nesta linha, suplantou-se a reciprocidade, consagrada em 1907, nos 13 tratados que constituem o “Direito de Haia”, o direito à guerra foi extinto em 1945 pela Carta das Nações Unidas, a saber, em seu Art. 2º, § 4º, com a proibição internacional da guerra, ressaltando-se que, o recurso à guerra era tido, e ainda o é em alguns casos, como direito propriamente vinculado à definição de soberania (ibid., p. 36 e 37). Também condizente com a evolução dos instrumentos de proteção dos direitos humanos foram os avanços impetrados no âmbito do direito internacional humanitário e do direito internacional dos refugiados (ibid., p. 37). Além de que, a Conferência de Viena, em 1993, consagrou os princípios da indivisibilidade, da interdependência e da universalidade, notadamente, acarretando a confirmação da ideia de que “[…] os direitos humanos extrapolam o domínio reservado dos Estados e invalidam o recurso ao princípio da soberania, por meio do qual os Estados se eximem de sua responsabilidade e colocam em último lugar o benefício do ser humano.” (ibid., p. 39).

Os tribunais ad hoc, Tribunal da ex-Iugoslávia, e Tribunal de Ruanda, já foram instituídos pela comunidade internacional em seu conjunto, apesar da ausência de tratado internacional a respeito (ibid., p. 55).

Outrossim, o desenvolvimento da proteção aos direitos humanos revela a superação da pretensa competência exclusiva da jurisdição nacional, simultaneamente à corroboração da jurisdição internacional, e, o indivíduo passa a ser visto como sujeito do direito internacional (ibid., p. 39 e 40). Não obstante, a coexistência das jurisdições nacionais e da jurisdição internacional pode gerar conflitos, procurando evitá-los ou dirimi-los, os tratados têm adotado dispositivos de compatibilização, buscando uma harmonização, quais sejam, cláusulas de derrogação e de limitações ou restrições ao exercício de certos direitos, reservas permitidas nos próprios tratados, cláusulas facultativas, e, o prévio esgotamento dos recursos internos (ibid., p. 41). Ressalte-se que, tais dispositivos de compatibilização facilitam a ratificação ou adesão dos Estados a tratados internacionais, tendo em vista que, a atuação da jurisdição internacional, com efeito, decorre da obrigação assumida pelos Estados, quando, exercitando a soberania, ratificam tratados internacionais que a possibilitem (ibid., p. 41 e 42).

Assim, a expansão da proteção internacional dos direitos humanos, bem como a superação da alegação do domínio reservado do Estado, em virtude do princípio da soberania, possibilitaram a criação de um sistema internacional permanente de justiça criminal, viabilizado por dispositivos de compatibilização entre as jurisdições nacionais e a jurisdição internacional, dentre eles, o prévio esgotamento dos recursos internos como condição para o acionamento do aparato internacional, consubstanciado no princípio da complementaridade (ibid., p. 43 e 44).

E, desta forma, atualmente a soberania é compreendida como a “[…] crescente participação do Estado na comunidade internacional.” (CHAYES, apud MAIA, 2001, p. 125). Principalmente quando se fomenta um universalismo formador de identidades pós-nacionais, legitimado moralmente e com plausibilidade histórica (HABERMAS, 1998, p. 116 a 118), nesta linha:

Pero ¿qué significa universalismo? Que se relativiza la propia forma de existencia atendiendo a las pretensiones legítimas de las demás formas de vida, que se reconocen iguales derechos a los otros, a los extraños, con todas sus idiosincrasias y todo lo que en ellos nos resulta difícil de entender, que uno no se empecina en la universalización de la propia identidad, que uno no excluye y condena todo cuanto se desvíe de ella, que los ámbitos de tolerancia tienen que hacerse infinitamente mayores de lo que son hoy […].” (ibid., p. 117).

3. A adoção do Princípio da Complementaridade no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional

O Estatuto de Roma, que estabeleceu a implantação do Tribunal Penal Internacional, já em seu Art. 1º, indica seu caráter complementar em relação às jurisdições nacionais (MAIA, 2001 p. 77). E, tal posicionamento, já fora observado desde os primeiros trabalhos preparatórios de formulação do Estatuto de Roma, havendo um acordo no sentido de que, diferentemente do que ocorreu nos tribunais ad hoc, o Tribunal Penal Internacional não teria primazia de jurisdição relativamente às jurisdições nacionais, adotando-se, portanto, o princípio da complementaridade (ibid., p. 78). Eis o que dispõe o Art. 1º do Estatuto de Roma:

É criado, pelo presente instrumento, um Tribunal Penal Internacional (“o Tribunal”). O Tribunal será uma instituição permanente, com jurisdição sobre as pessoas responsáveis pelos crimes de maior gravidade com alcance internacional, de acordo com o presente Estatuto, e será complementar às jurisdições penais nacionais. A competência e o funcionamento do Tribunal reger-se-ão pelo presente Estatuto.” (BRASIL, 2002).

Tratando do caráter complementar da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, o Estatuto de Roma dispõe que o mesmo só atuará nas situações mais graves, em casos que se verifique a incapacidade ou a não disposição dos Estados-parte em processar os responsáveis pelos crimes da competência do Tribunal Penal Internacional, quais sejam, crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão, neste último ainda resta pendente aprovação de dispositivo que defina o crime e as condições de jurisdição (MAIA, 2001, p. 78). Desta feita, cabe aos próprios Estados-parte, internamente, julgar os delitos definidos no Estatuto de Roma, e, em acordo com o princípio da complementaridade, a jurisdição do Tribunal Penal Internacional tem seu acionamento circunscrito a circunstâncias excepcionais (ibid., p. 28 e 29). Ou seja, o Tribunal Penal Internacional atuará sem subtrair a competência da jurisdição interna, pelo contrário, pressupõe sua não incidência, assim, sua operação não antecede ou se sobrepõe à jurisdição nacional, simplesmente a complementa (BECHARA, 2004).

Neste contexto, disponibiliza o Estatuto de Roma, em seu Art. 17, as questões quanto à admissibilidade da jurisdição do Tribunal Penal Internacional diante de seu caráter complementar, primeiramente especificando os casos de inadmissibilidade de atuação, concomitantes com suas ressalvas, onde realmente se delimita o campo de sua incidência, e, depois explicando amplamente algumas situações que venham a configurar a possibilidade de sua incidência. Discorre o Art. 17 do Estatuto de Roma:

1. Tendo em consideração o décimo parágrafo do preâmbulo e o artigo 1°, o Tribunal decidirá sobre a não admissibilidade de um caso se:

a) O caso for objeto de inquérito ou de procedimento criminal por parte de um Estado que tenha jurisdição sobre o mesmo, salvo se este não tiver vontade de levar a cabo o inquérito ou o procedimento ou, não tenha capacidade para o fazer;

b) O caso tiver sido objeto de inquérito por um Estado com jurisdição sobre ele e tal Estado tenha decidido não dar seguimento ao procedimento criminal contra a pessoa em causa, a menos que esta decisão resulte do fato de esse Estado não ter vontade de proceder criminalmente ou da sua incapacidade real para o fazer;

c) A pessoa em causa já tiver sido julgada pela conduta a que se refere a denúncia, e não puder ser julgada pelo Tribunal em virtude do disposto no parágrafo 3° do artigo 20;

d) O caso não for suficientemente grave para justificar a ulterior intervenção do Tribunal.

2. A fim de determinar se há ou não vontade de agir num determinado caso, o Tribunal, tendo em consideração as garantias de um processo eqüitativo reconhecidas pelo direito internacional, verificará a existência de uma ou mais das seguintes circunstâncias:

a) O processo ter sido instaurado ou estar pendente ou a decisão ter sido proferida no Estado com o propósito de subtrair a pessoa em causa à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal, nos termos do disposto no artigo 5°;

b) Ter havido demora injustificada no processamento, a qual, dadas as circunstâncias, se mostra incompatível com a intenção de fazer responder a pessoa em causa perante a justiça;

c) O processo não ter sido ou não estar sendo conduzido de maneira independente ou imparcial, e ter estado ou estar sendo conduzido de uma maneira que, dadas as circunstâncias, seja incompatível com a intenção de levar a pessoa em causa perante a justiça;

3. A fim de determinar se há incapacidade de agir num determinado caso, o Tribunal verificará se o Estado, por colapso total ou substancial da respectiva administração da justiça ou por indisponibilidade desta, não estará em condições de fazer comparecer o acusado, de reunir os meios de prova e depoimentos necessários ou não estará, por outros motivos, em condições de concluir o processo.” (BRASIL, 2002).

De acordo com Fábio Ramazzini Bechara, o Art. 17 do Estatuto de Roma, revela, além do respeito ao princípio da complementaridade, o caráter subsidiário mesmo da atuação do Tribunal Penal Internacional diante da jurisdição nacional, elucidando os critérios delimitadores de sua incidência como sendo a existência ou não de disposição ou capacidade de punir por determinado Estado, de coisa julgada e de gravidade da infração (BECHARA, 2004).

A comprovação da não disposição ou da incapacidade da jurisdição nacional em agir, caberá ao Promotor, o que, em determinados casos, pode demandar mais esforços que a própria comprovação de responsabilidades (BERGSMO, 2000, p. 240). Esta comprovação da não disposição ou da incapacidade da jurisdição nacional em agir, deve ser compreendida como exceção, sem que reste comprometida a legitimidade do sistema criminal nacional, pois, é verdadeiramente “[…] um teste à boa-fé dos Estados.” (ibid., p. 240). Destarte, todo cuidado deve ser empreendido no sentido de evitar malfadadas críticas que rotulem as jurisdições nacionais como inábeis ou não confiáveis acerca de suas eventuais inconsistências (ibid., p. 240).

Regimentando a aplicação do princípio da complementaridade, o Estatuto de Roma dispõe, em seu Art. 18, as considerações quanto às decisões preliminares relativas à admissibilidade da jurisdição do Tribunal Penal Internacional. Diz o Art. 18 do Estatuto de Roma:

1. Se uma situação for denunciada ao Tribunal nos termos do artigo 13, parágrafo a), e o Procurador determinar que existem fundamentos para abrir um inquérito ou der início a um inquérito de acordo com os artigos 13, parágrafo c) e 15, deverá notificar todos os Estados Partes e os Estados que, de acordo com a informação disponível, teriam jurisdição sobre esses crimes. O Procurador poderá proceder à notificação a título confidencial e, sempre que o considere necessário com vista a proteger pessoas, impedir a destruição de provas ou a fuga de pessoas, poderá limitar o âmbito da informação a transmitir aos Estados.

2. No prazo de um mês após a recepção da referida notificação, qualquer Estado poderá informar o Tribunal de que está procedendo, ou já procedeu, a um inquérito sobre nacionais seus ou outras pessoas sob a sua jurisdição, por atos que possam constituir crimes a que se refere o artigo 5° e digam respeito à informação constante na respectiva notificação. A pedido desse Estado, o Procurador transferirá para ele o inquérito sobre essas pessoas, a menos que, a pedido do Procurador, o Juízo de Instrução decida autorizar o inquérito.

3. A transferência do inquérito poderá ser reexaminada pelo Procurador seis meses após a data em que tiver sido decidida ou, a todo o momento, quando tenha ocorrido uma alteração significativa de circunstâncias, decorrente da falta de vontade ou da incapacidade efetiva do Estado de levar a cabo o inquérito.

4. O Estado interessado ou o Procurador poderão interpor recurso para o Juízo de Recursos da decisão proferida por um Juízo de Instrução, tal como previsto no artigo 82. Este recurso poderá seguir uma forma sumária.

5. Se o Procurador transferir o inquérito, nos termos do parágrafo 2°, poderá solicitar ao Estado interessado que o informe periodicamente do andamento do mesmo e de qualquer outro procedimento subsequente. Os Estados Partes responderão a estes pedidos sem atrasos injustificados.

6. O Procurador poderá, enquanto aguardar uma decisão a proferir no Juízo de Instrução, ou a todo o momento se tiver transferido o inquérito nos termos do presente artigo, solicitar ao tribunal de instrução, a título excepcional, que o autorize a efetuar as investigações que considere necessárias para preservar elementos de prova, quando exista uma oportunidade única de obter provas relevantes ou um risco significativo de que essas provas possam não estar disponíveis numa fase ulterior.

7. O Estado que tenha recorrido de uma decisão do Juízo de Instrução nos termos do presente artigo poderá impugnar a admissibilidade de um caso nos termos do artigo 19, invocando fatos novos relevantes ou uma alteração significativa de circunstâncias.” (BRASIL, 2002).

O Estatuto de Roma discorre em seu Art. 19 quanto à possibilidade de impugnação da jurisdição ou da admissibilidade da causa, no Tribunal Penal Internacional, também regulando a aplicação do princípio da complementaridade. Relata o Art. 19 do Estatuto de Roma:

1. O Tribunal deverá certificar-se de que detém jurisdição sobre todos os casos que lhe sejam submetidos. O Tribunal poderá pronunciar-se de ofício sobre a admissibilidade do caso em conformidade com o artigo 17.

2. Poderão impugnar a admissibilidade do caso, por um dos motivos referidos no artigo 17, ou impugnar a jurisdição do Tribunal:

a) O acusado ou a pessoa contra a qual tenha sido emitido um mandado ou ordem de detenção ou de comparecimento, nos termos do artigo 58;

b) Um Estado que detenha o poder de jurisdição sobre um caso, pelo fato de o estar investigando ou julgando, ou por já o ter feito antes; ou

c) Um Estado cuja aceitação da competência do Tribunal seja exigida, de acordo com o artigo 12.

3. O Procurador poderá solicitar ao Tribunal que se pronuncie sobre questões de jurisdição ou admissibilidade. Nas ações relativas a jurisdição ou admissibilidade, aqueles que tiverem denunciado um caso ao abrigo do artigo 13, bem como as vítimas, poderão também apresentar as suas observações ao Tribunal.

4. A admissibilidade de um caso ou a jurisdição do Tribunal só poderão ser impugnadas uma única vez por qualquer pessoa ou Estado a que se faz referência no parágrafo 2°. A impugnação deverá ser feita antes do julgamento ou no seu início. Em circunstâncias excepcionais, o Tribunal poderá autorizar que a impugnação se faça mais de uma vez ou depois do início do julgamento. As impugnações à admissibilidade de um caso feitas no inicio do julgamento, ou posteriormente com a autorização do Tribunal, só poderão fundamentar-se no disposto no parágrafo 1°, alínea c) do artigo 17.

5. Os Estados a que se referem as alíneas b) e c) do parágrafo 2° do presente artigo deverão deduzir impugnação logo que possível.

6. Antes da confirmação da acusação, a impugnação da admissibilidade de um caso ou da jurisdição do Tribunal será submetida ao Juízo de Instrução e, após confirmação, ao Juízo de Julgamento em Primeira Instância. Das decisões relativas à jurisdição ou admissibilidade caberá recurso para o Juízo de Recursos, de acordo com o artigo 82.

7. Se a impugnação for feita pelo Estado referido nas alíneas b) e c) do parágrafo 2°, o Procurador suspenderá o inquérito até que o Tribunal decida em conformidade com o artigo 17.

8. Enquanto aguardar uma decisão, o Procurador poderá solicitar ao Tribunal autorização para:

a) Proceder às investigações necessárias previstas no parágrafo 6° do artigo 18;

b) Recolher declarações ou o depoimento de uma testemunha ou completar o recolhimento e o exame das provas que tenha iniciado antes da impugnação; e

c) Impedir, em colaboração com os Estados interessados, a fuga de pessoas em relação às quais já tenha solicitado um mandado de detenção, nos termos do artigo 58.

9. A impugnação não afetará a validade de nenhum ato realizado pelo Procurador, nem de nenhuma decisão ou mandado anteriormente emitido pelo Tribunal.

10. Se o Tribunal tiver declarado que um caso não é admissível, de acordo com o artigo 17, o Procurador poderá pedir a revisão dessa decisão, após se ter certificado de que surgiram novos fatos que invalidam os motivos pelos quais o caso havia sido considerado inadmissível nos termos do artigo 17.

11. Se o Procurador, tendo em consideração as questões referidas no artigo 17, decidir transferir um inquérito, poderá pedir ao Estado em questão que o mantenha informado do seguimento do processo. Esta informação deverá, se esse Estado o solicitar, ser mantida confidencial. Se o Procurador decidir, posteriormente, abrir um inquérito, comunicará a sua decisão ao Estado para o qual foi transferido o processo.” (BRASIL, 2002).

Outrossim, o princípio da complementaridade alcança a relação entre jurisdições nacionais e jurisdição internacional, e, também abrange, em decorrência desta última, a relação entre lei material nacional e lei material internacional (BECHARA, 2004).

A adoção do princípio da complementaridade, de certa forma, impõe a obrigação não formal de, no plano nacional, se processar violações do direito internacional, apesar de que, ainda são poucos os Estados que em sua legislação disponibilizam dispositivos necessários para processar os crimes previstos no Estatuto de Roma (MAIA, 2001, p. 80). Bem como, preserva os valores da ordem interna, ressalvada a devida prudência e cautela no trato do direito nacional (BECHARA, 2004). Quanto a tanto, cabe observar o que dispõe o Art. 21 e o Art. 80 do Estatuto de Roma, cujos textos, respectivamente, a seguir se expõem:

1. O Tribunal aplicará:

a) Em primeiro lugar, o presente Estatuto, os Elementos Constitutivos do Crime e o Regulamento Processual;

b) Em segundo lugar, se for o caso, os tratados e os princípios e normas de direito internacional aplicáveis, incluindo os princípios estabelecidos no direito internacional dos conflitos armados;

c) Na falta destes, os princípios gerais do direito que o Tribunal retire do direito interno dos diferentes sistemas jurídicos existentes, incluindo, se for o caso, o direito interno dos Estados que exerceriam normalmente a sua jurisdição relativamente ao crime, sempre que esses princípios não sejam incompatíveis com o presente Estatuto, com o direito internacional, nem com as normas e padrões internacionalmente reconhecidos.

2. O Tribunal poderá aplicar princípios e normas de direito tal como já tenham sido por si interpretados em decisões anteriores.

3. A aplicação e interpretação do direito, nos termos do presente artigo, deverá ser compatível com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, sem discriminação alguma baseada em motivos tais como o gênero, definido no parágrafo 3° do artigo 7°, a idade, a raça, a cor, a religião ou o credo, a opinião política ou outra, a origem nacional, étnica ou social, a situação econômica, o nascimento ou outra condição.” (BRASIL, 2002).

Nada no presente Capítulo prejudicará a aplicação, pelos Estados, das penas previstas nos respectivos direitos internos, ou a aplicação da legislação de Estados que não preveja as penas referidas neste capítulo.” (ibid.).

Imprescindível ressaltar que, o requisito prévio do esgotamento dos recursos internos como condição para o acionamento do aparato internacional não pode ser usado em prejuízo das vítimas, pelo menos é o que se pode inferir da jurisprudência recente relativa à proteção internacional dos direitos humanos, para tanto, condicionada está tal flexibilização à análise das circunstâncias do caso concreto (MAIA, 2001, p. 41 e 42). No mais, referida regra já pode não ser “[…] aplicada nos chamados ‘casos gerais’, ou seja, nos casos em que se configuram, na prática estatal, a negligência ou a tolerância por parte de autoridades públicas, e que claramente deixam perceber a inexistência de recursos internos a serem esgotados.” (ibid., p. 42).

Vale ainda salientar que, embora o princípio da complementaridade fosse, desde os primeiros trabalhos preparatórios de formulação do Estatuto de Roma, a forma escolhida para determinar o caráter jurisdicional do Tribunal Penal Internacional, surgiram questionamentos quanto à incidência automática de referida jurisdição, principalmente levantados pelos representantes norte-americanos, segundo os quais as prerrogativas do Tribunal Penal Internacional estariam excessivas, formando uma imaginária jurisdição universal, inclusive com caráter vinculante para os Estados não-parte, e, alegando que a competência automática da jurisdição internacional ameaçaria as prerrogativas soberanas dos Estados, os norte-americanos defenderam a adoção do mecanismo do duplo consentimento (opt out), de acordo com o qual a ratificação do Estatuto de Roma não implicaria aceitação automática da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, felizmente houve um entendimento de que a corroboração de tal mecanismo constituiria um risco para a eficácia da jurisdição internacional, não obstante, e seguindo esta linha, um contestado dispositivo transitório fora incluso no Estatuto de Roma, a saber, seu Art. 124 (ibid., p. 80 e 81). Eis que, relata o Art. 124 do Estatuto de Roma:

Não obstante o disposto nos parágrafos 1° e 2° do artigo 12, um Estado que se torne Parte no presente Estatuto, poderá declarar que, durante um período de sete anos a contar da data da entrada em vigor do Estatuto no seu território, não aceitará a competência do Tribunal relativamente à categoria de crimes referidos no artigo 8°, quando haja indícios de que um crime tenha sido praticado por nacionais seus ou no seu território. A declaração formulada ao abrigo deste artigo poderá ser retirada a qualquer momento. O disposto neste artigo será reexaminado na Conferência de Revisão a convocar em conformidade com o parágrafo 1° do artigo 123.” (BRASIL, 2002).

O Art. 12 do Estatuto de Roma preconiza que, o Estado, ao se tornar parte, aceita a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, segue seu texto:

1. O Estado que se torne Parte no presente Estatuto, aceitará a jurisdição do Tribunal relativamente aos crimes a que se refere o artigo 5°.

2. Nos casos referidos nos parágrafos a) ou c) do artigo 13, o Tribunal poderá exercer a sua jurisdição se um ou mais Estados a seguir identificados forem Partes no presente Estatuto ou aceitarem a competência do Tribunal de acordo com o disposto no parágrafo 3°:

a) Estado em cujo território tenha tido lugar a conduta em causa, ou, se o crime tiver sido cometido a bordo de um navio ou de uma aeronave, o Estado de matrícula do navio ou aeronave;

b) Estado de que seja nacional a pessoa a quem é imputado um crime.

3. Se a aceitação da competência do Tribunal por um Estado que não seja Parte no presente Estatuto for necessária nos termos do parágrafo 2°, pode o referido Estado, mediante declaração depositada junto do Secretário, consentir em que o Tribunal exerça a sua competência em relação ao crime em questão. O Estado que tiver aceito a competência do Tribunal colaborará com este, sem qualquer demora ou exceção, de acordo com o disposto no Capítulo IX.” (ibid.).

Vale salientar que, todavia, a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, nos termos do Art. 12 combinado com o Art. 13 do Estatuto de Roma, foi delimitada (MAIA, 2001, p. 82 e 83). Eis o que dispõe o Art. 13 do Estatuto de Roma:

O Tribunal poderá exercer a sua jurisdição em relação a qualquer um dos crimes a que se refere o artigo 5°, de acordo com o disposto no presente Estatuto, se:

a) Um Estado Parte denunciar ao Procurador, nos termos do artigo 14, qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes;

b) O Conselho de Segurança, agindo nos termos do Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, denunciar ao Procurador qualquer situação em que haja indícios de ter ocorrido a prática de um ou vários desses crimes; ou

c) O Procurador tiver dado início a um inquérito sobre tal crime, nos termos do disposto no artigo 15.” (BRASIL, 2002).

Conclusivamente, a adoção do princípio da complementaridade buscou equacionar a garantia do direito à justiça, o fim da impunidade, a proteção dos direitos humanos e a soberania dos Estados (MAIA, 2001, p. 127).

Conclusão

Tratada a temática do princípio da complementaridade no Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, foram abordos os precedentes da justiça penal internacional, sua compatibilidade com o princípio da soberania, a propiciar a relação entre a jurisdição internacional e as jurisdições nacionais, assim, correlacionando fatores que fomentaram a adoção do acenado princípio, e, ainda, fora verificada a forma como se deu a disponibilização do mesmo.

Seguindo esta linha, notadamente se aventa que, a constante busca pela proteção dos direitos humanos, como forma de exaltar a intangibilidade própria destes direitos, bem como o desenvolvimento do direito internacional, propiciaram, logicamente dentre outros fatores, a mudança interpretativa do conceito de soberania dos Estados, que passaram a procurar legitimar sua razão de ser na proteção mesma de seus indivíduos componentes, fator que corroborou com a incidência de uma jurisdição criminal internacional permanente, amparando efetivamente estes direitos, sem, contudo, conflitar-se com as jurisdições nacionais, uma vez que exasperado o princípio da complementaridade para reger esta relação.

E, tendo o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, adotado o princípio da complementaridade para reger a jurisdição que viabiliza, invocando ainda toda a sua regulamentação aplicativa, enaltece a necessária coibição de práticas atentatórias dos direitos humanos, por legitimar uma jurisdição internacional competente para refrear a impunidade de crimes neste sentido, sem deixar de respeitar o direito nacional e de indicar a obrigação nacional de também atuar nesta direção.

Imprescindível é a garantia de processamento dos crimes concernentes aos direitos humanos até mesmo como forma de corroborar a proteção destes direitos, e, esta é uma questão que envolve a todos, e, a comunidade internacional demonstrou enorme avanço com a adoção do Tribunal Penal Internacional e de sua jurisdição como complementar as jurisdições nacionais, fomentando também a competência e a ação interna. É este o resultado da ação da comunidade internacional enquanto comunidade, e de decisões políticas consubstanciando ideias naturais.

 

Referências
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BECHARA, Fábio Ramazzini. Tribunal Penal Internacional e o Princípio da Complementeriedade. Jus Navigandi, n. 234, ano 9, Teresina, 27 fev. 2004. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/4865>. Acesso em: 27 jun. 2011.
BERGSMO, Morten. O Regime Jurisdicional da Corte Internacional Criminal. In CHOUKR, Fauzi Hassan; AMBOS, Kai. Tribunal Penal Internacional. São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2000.
BRASIL, Decreto n.º 4.388, de 25 de setembro de 2002. Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Diário Oficial da União. Brasília, 25 set. 2002. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/tpi.htm>. Acesso em: 23 mai. 2011.
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Informações Sobre o Autor

Paula Fracinetti Souto Maior

Advogada, graduada em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, pós-graduada do Curso de Especialização Lato Sensu em Ciências Criminais pela Universidade Católica de Pernambuco, pós-graduada do Curso de Especialização Lato Sensu em Direito Público e Privado pela Escola Superior de Advocacia de Pernambuco


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