Sociologia no âmbito da decisão de caso concreto: uma perspectiva de Luhmann, Foucault e Beck

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Resumo: O presente trabalho tem por objetivo analisar a decisão da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que reformou, em parte, sentença proferida pela comarca de Timóteo, a respeito de violência contra a mulher. Busca-se a partir dessa resolução refletir sobre como os direitos femininos ainda são postos em segundo plano para o direito. A partir da decisão, pode-se perceber que o conceito de família, bem como o crescimento do papel da mulher nesse contexto, necessita de uma reformulação para acompanhar uma maior complexidade da sociedade. O processo em análise e decisão do caso será abordado sob as perspectivas de Michel Foucault, no que diz respeito a sociedade disciplinar e a maneira de como as forças são submissas umas com as outras; Niklas Luhman e sua formulação de complexidade e contingência, bem como sua ideia de expectativas; E, por fim, Ulrick Beck e a sociedade de risco, trazendo o risco como pré existente na produção de decisões. [1]

Palavras-chave: Poder disciplinar. Sistema do direito. Sociedade de risco. Decisão judicial.

Abstract: This research aims to study the decision of Criminal Chamber of the Court of Minas Gerais, who reformed in part by the judgment of the district Timóteo regarding violence against women. Search up from that resolution reflect on how women's rights are still put in the background to the right. From the decision, it can be noticed that the concept of family as well as the growth of women's role in this context, needs a makeover to accompany a more complex society. The process analysis and decision of the case will be approached from the perspectives of Michel Foucault, in respect of disciplinary society and the way of how the forces are submissive to each other; Niklas Luhmann and his formulation of complexity and contingency, as well as its idea of ​​expectations; and finally, Ulrick Beck and risk society, bringing the risk as pre existing in production of decisions.

Keywords: Disciplinary power. Law system.  Risk society. Case decision.

Sumário: Introdução. 1. Descrição do caso 2. Aplicação da teoria de Luhmann ao caso 3. Aplicação da teoria de Foucault ao caso 4. Aplicação da teoria de Beck ao caso. Conclusão.

Introdução

O Direito sempre esteve intimamente ligado à Sociologia. Busca-se entender quais as relações entre sociologia e direito, especialmente, como a sociologia vê o direito. Muitos autores clássicos da sociologia discorreram sobre as perspectivas de abordagem do direito pelas suas teorias sociológicas, tais como Marx, Weber, Durkheim, Luhmann, Foucault e Beck.

Usando das visões dos três últimos sociólogos, fez-se a análise de um caso julgado pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais. O caso trata-se de um incêndio provocado por A.V.S., carpinteiro e ex-companheiro de dona G.M.F., na residência dela. O incêndio, causado pelo carpinteiro após um desentendimento com a ex-mulher, além de ter destruído a propriedade pôs em risco a vida dos vizinhos de G.M.F., pelo fato de as casas serem geminadas.

Sob a visão de Foucault (2005) pode-se destacar a disciplina como um conjunto das minúsculas invenções técnicas que tem como objetivo dominar o sujeito, organizar espaços e fazer do ser humano um indivíduo alvo do poder disciplinar, já que é através dela que ele se torna de fácil manipulação e domínio a fim de ser utilizado de forma mais prática. Desse modo, a forma jurídica geral que garante um sistema de direitos em princípio igualitários é sustentada por esses mecanismos miúdos, cotidianos e físicos, por todos esses sistemas de micropoder essencialmente inigualitários e assimétricos que constituem as disciplinas. Fazendo, assim, com que a disciplina seja aquela responsável por garantir a submissão das forças e dos corpos das minorias perante as maiorias, no caso sob análise, a minoria é a mulher e maioria o homem. Foucault tem uma visão crítica em relação aos positivistas, entre eles está Niklas Luhmann, já que para ele o direito não é algo que garante as expectativas da sociedade, e sim o contrário, o direito para ele é algo que torna os indivíduos mais repulsivos, numa visão social.

Luhmann (1983) vê o direito numa perspectiva sistêmica, sendo o sistema caracterizado como autopoiético, auto-referencial e operacionalmente fechado, além de ser um ambiente complexo e contingente. Apesar dessas características, não é possível afirmar que os sistemas propostos por Luhmann não se comunicam um com os outros; muito pelo contrário, Luhmann assume que há uma relação cognitiva entre eles, mas que nunca um deverá operar determinados procedimentos adotados pelo outro na organização da complexidade que lhes cabe. Dessa maneira, apresenta-se a teoria sistêmica aplicada ao Direito, onde, segundo Luhmann, os procedimentos são seguidos como o proposto (não há a opção de seguir ou não), ou seja, quando somente ocorrem dentro do sistema, há a garantia da manutenção das expectativas normativas. No entanto, isto não é verificado no caso dado, onde há uma clara frustração da expectativa cognitiva (que não pode ser reparada pelo direito), já que ela esperaria, moralmente falando, uma sociedade onde o homem não se sentisse ‘superior’ à mulher, bem como frustração da expectativa normativa da autora do processo pelo magistrado, pois a punição foi abrandada por ele, devido à sua atuação fora do sistema do Direito.

Para Luhmann (1983), a estrutura do processo judicial é como um sistema social temporário de interação, que pode ser especificado temporariamente e os procedimentos são sistemas orientados em curto prazo, tendo em vista um fim, com função especial de elaboração de decisão vinculativa, com possibilidades e incertezas e uma historia própria que absorve a incerteza. Ou seja, ele afirma que o juiz é autônomo e que ele produz uma decisão vinculativa, não deixando de levar em conta a incerteza, ou o risco, na visão de Ulrick Beck.

Por fim, pode-se enfatizar a teoria de Ulrick Beck (1997) no que diz respeito ao risco, que é para ele considerado ubíquo, ou seja, está presente em todas as dimensões da vida, e não apenas nas mentes humanas, trazendo uma série de consequências para a sociedade, já que é criado um mundo com um elemento constituinte, a incerteza. A atuação do direito, nesse contexto, traz como uma característica pré-existente o risco do erro humano na produção da decisão, bem como o risco do erro técnico de especialistas absorvidos pelos próprios procedimentos adotados judicialmente. Porém o magistrado, nesse caso, não utilizou dessa teoria, fazendo com a que a decisão fosse revogada posteriormente.

 Este artigo, portanto, irá retratar desses três sociólogos no âmbito jurídico, visando à análise da decisão judicial baseada nos pensamentos dos mesmos.

1. Descrição do caso

O caso decorre da seguinte situação: o senhor A., companheiro de dona G., ateou fogo na casa dela, após uma discussão dos dois. A companheira não estava em casa no momento do delito. A conduta do acusado expôs a risco a vida dos vizinhos, que residem em casas geminadas com as de dona G., além de expor a perigo e a destruir o patrimônio da companheira.

Segundo se infere dos autos, o denunciado retirou o botijão de gás da válvula do fogão, levou-o para o quarto do casal e ateou fogo no local, dando causa ao incêndio. Consta, ainda, que o incêndio criminoso causou vários danos à senhora G., destruindo, dentre outros móveis, duas beliches, uma cama de casal, uma mesa de passar roupa, roupas pessoais, fogão, geladeira, além de causar trincas nas paredes da casa e quebrar todos os vidros das janelas e portas.

Diante desta situação, dona G. buscou o poder judiciário acusando o companheiro de delito de incêndio, com o agravante de ter sido em local habitado, previsto no artigo 250, §1°, inciso II, “a”, do Código Penal. Ficou comprovado, por meio de perícia do local, o nível de destruição do imóvel e dos bens após o incêndio, consonante com os depoimentos.

 O autor do crime foi preso em flagrante delito, no entanto, ele negou a autoria do crime. Em sede inquisitorial, no seu depoimento, ele alega não lembrar dos fatos. Disse que estava fora de si, pois faz uso de remédio controlado e havia ingerido bebida alcoólica, e que por isso não se recorda muito bem do que porventura tenha feito no dia do acontecido, apesar de confirmar que estava tendo desavenças com a companheira, e que às vezes chegava às vias de fato com ela, ameaçando-a.

Quando ouvido sob o crivo do contraditório, senhor A. afirmou que chegou à residência fumando, e que assim que surgiu a fumaça saiu correndo, foi para o meio da rua e gritou pelo corpo de bombeiros. Adicionou que nunca havia ameaçado atear fogo na residência, que não havia ninguém em casa e que não sabe quem colocou o botijão de gás no quarto do casal. Tentando buscar uma causa para o ocorrido, ele afirma que o cigarro poderia ter causado o incêndio.

Já a filha de dona G. afirmou ter visto o padrasto ateando fogo na casa, e complementou seu depoimento asseverando que o acusado era uma pessoa de personalidade violenta, e que ele agredia fisicamente a companheira. Outra testemunha, dona M., vizinha da residência onde se deu o crime, afirmou que já havia presenciado momentos onde o senhor A. ameaçava atear fogo na residência, e que a própria já havia pedido para ele não fazer isso. Sobre o crime ela afirmou que dona G. não estava em casa, pois ela temia o acusado, e que o ocorrido foi por volta da meia noite, horário em que ela já estava dormindo, mas que acordou no momento do incêndio. Afirmou não saber como o acusado iniciou o incêndio, mas que viu que tudo que havia na casa havia sido destruído e que, por consequência, a prefeitura teve que demoli-la, de modo a não comprometer as casas vizinhas.

 A cunhada do acusado não testemunhou na fase processual, apenas no inquérito policial, mas é importante ressaltá-la porque ela trouxe à tona elementos que servem de respaldo para a tese de que foi o próprio senhor A. que deu início ao incêndio na propriedade de dona G. A cunhada afirma que já havia visto o carpinteiro ameaçando a companheira e que muitas pessoas da redondeza já tinham ouvido o senhor A. afirmando que iria matar toda sua família queimada. A cunhada afirmou que um pouco antes do fato o carpinteiro havia dito com bastante excitação que iria incendiar a casa da senhora G.

Na primeira instância o juiz condenou o acusado a 5 anos e 4 meses de reclusão em regime fechado, mais o pagamento de 90 dias-multa. O senhor A, no entanto, recorreu da decisão judicial, alegando que o delito não deveria ser considerado crime de incêndio, visto que não foi comprovado que o caso havia exposto a vida de outras pessoas a risco, e que ele deveria, dessa maneira, ser visto como apenas crime de dano, retirando também o agravante de que o local incendiado era destinado para habitação. Além disso ele pediu a fixação do regime aberto e a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos.

Após o recurso, o magistrado de segunda instância avaliou que o caso ainda deveria ser considerado como crime de incêndio, pois ao utilizar um botijão de gás para dar procedimento ao delito o autor do crime usou de método bastante eficaz, de modo a garantir que o incêndio ocorreria de fato, e em proporções que pudessem destruir a casa. Por isso, considerando a proximidade das casas e a eficiência do método utilizado para proceder ao incêndio ficou comprovado o risco para outras pessoas. Além disso, a casa era obviamente destinada à habitação, sendo que tanto o próprio autor do crime, como dona G. e sua filha especificaram em seus depoimentos.  O magistrado, no entanto, concedeu recurso para a redução da pena do acusado, visto que ele não possui qualquer condenação com trânsito em julgando anteriormente ao crime dos autos, motivo pelo qual não há se falar em acusado reincidente. Adiciona ainda que o caso desfavoreceu o acusado, levando em consideração sua personalidade, as circunstâncias e as consequências do delito, mas que ele considerará em sua decisão apenas as consequências dele. O juiz, então, sela a sentença de 4 anos e 4 meses de reclusão em regime semiaberto, e o pagamento de 16 dias multa.

2. A teoria de Luhmann aplicada ao caso

Para Luhmann (1983), a sociedade do modo como é estruturada está organizada pela função social em sistemas. A complexidade destes sistemas nasce do surgimento de variedades, quanto mais possibilidades o sistema oferece, mais complexo ele será. No entanto, o sistema é capaz de absorver somente algumas dessas possibilidades, ele não consegue controlar todas as relações que podem surgir dentro dele. As possibilidades são tantas que se torna necessário selecionar apenas algumas para que o sistema continue funcionando perfeitamente. Quem regula a esta seleção é a estrutura do próprio sistema.

Para Luhmann há, ainda, que considerar as contingências, que são:

“as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas; ou seja, que essa indicação pode ser enganosa por referir-se a algo inexistente, inatingível, ou algo que após tomadas as medidas necessárias para a experiência concreta (…) não mais está lá (LUHMANN, 1983).”

As contingências devem então ser vistas como um risco, algo que não pôde ser previsto, mas que acaba por vir à tona. A sociedade é, então, formada por sistemas, capazes de absorver essas contingências e complexidades, organizando-as, de modo a não se entregarem ao caos gerado por elas.

Os sistemas propostos por Luhmann (1983) são identificáveis a partir de sua especificidade em relação ao ambiente. Cada um deles tem sua forma exclusiva de comunicação interna, que só tem sentindo dentro do próprio sistema. A comunicação seria, portanto, o elemento diferencial em relação aos outros sistemas existentes.

 Segundo a teoria de Luhmann (1983), o surgimento de sistemas se dá através da diferenciação funcional de um aspecto que o ambiente comum a todos os sistemas não é capaz de gerir. Dessa forma, os sistemas serviriam para a gestão de complexidades com as quais o ambiente não poderia mais lidar, ou seja, os sistemas seriam fechados no sentido operacional, gerariam suas próprias formar para funcionar, seriam autopoiéticos, construiriam seu sistema de gestão própria, segundo seus elementos. No entanto, não se pode considerar tais sistemas como hermeticamente encerrados em si mesmos, visto que, se assim fosse, não haveria nenhum tipo de relação ou influência entre os mais diversos sistemas sociais (tais como direito, política, religião, moral), e não é isso que se verifica na realidade.

Apesar de terem suas peculiaridades, os sistemas não são isolados. Há, sim, um relacionamento entre sistemas, no entanto ele se caracteriza apenas como um tipo comunicativo. A sociedade em que eles se posicionam é formada por comunicações sociais, transmissões de sentido entre cada sistema. Com isso, nota-se que apesar de haver influências intersistêmicas, nenhum deles está autorizado a gerir a matéria de outro.

Para Luhmann (1983), o sistema do Direito nasce através da geração de variedade (no momento produção das normas), da superprodução de possibilidades (a diferenciação dos processos), seguida pela seleção das possibilidades aproveitáveis e manutenção das selecionadas (que seria a abstração). Todo esse procedimento gerado pelo próprio sistema se encarregaria de criar respostas paras as complexidades e contingências que surgem. Dessa maneira, na concepção de Luhmann, se o magistrado incorresse deste arsenal procedimental, ele conseguiria garantir a manutenção da expectativa da maioria da população.

O que seriam essas expectativas? O sistema do Direito tem por objetivo facilitar a convivência com o outro dentro da sociedade através da fixação de expectativas comportamentais – a lei põe em vista as condutas autorizadas e não autorizadas. Todas as expectativas que podem ser mantidas através do Direito são as chamadas expectativas normativas; as que não encontram resposta neste sistema são chamadas expectativas cognitivas.  É neste ponto que Luhmann se põe como um positivista: o conteúdo jurídico deve ser materializado de forma que todos possam ter acesso a ele, e, dessa forma, possam assentar suas atitudes conforme o que lhes é ou não autorizado. Quando a senhora G. busca o judiciário, ela já teve sua expectativa frustrada (teve sua propriedade destruída por um incêndio), não há como evitar a frustração, mas ela busca uma forma de sancionar aquele sujeito que foi o responsável por ela.

No entanto, na decisão judicial em segunda instância, a expectativa de ter seu marido devidamente punido, visto que havia evidências comprovadas da conduta de má fé do senhor A., fora frustrada por uma redução da pena do marido, além do abrandamento do tipo de regime sob o qual ele seria mantido.

Em primeira instância, o juiz considerou que a personalidade do senhor A., assim como a circunstância e consequência do delito foram caracteres que o desfavoreceram no momento do julgamento. Já o juiz de alega que a personalidade do acusado não pode ser considerada como algo que o desfavoreça, visto que não foi realizado nenhum estudo técnico acerca da personalidade do réu; além disso, as circunstâncias deveriam ser consideradas como típicas do crime praticado, o que não poderia ser analisado de forma desfavorável ao carpinteiro.

De acordo com o exposto, fica claro que o juiz atuou fora do sistema do Direito. Toda a sua argumentação está embasada em aspectos que não fazem parte do sistema. O Direito só pode dar duas respostas quando posto diante de um caso concreto: “este caso é lícito” ou “este caso é ilícito”. É dessa maneira que ele reduz a complexidade. No caso analisado, como se vê, fica claro que ao buscar justificativas para que se atenue a pena dada para o autor do crime, o que configuraria uma atuação de outros aspectos na decisão, advindos de outro sistema. O juiz não disse se o caso era lícito ou ilícito, não buscou amparo normativo para justificar sua decisão, e sim de aspectos da moral. Ou seja, o juiz prolatou a sua sentença fora do sistema do Direito, e sim dentro do sistema da moral.

Com isso, vê-se que a atuação sistêmica proposta por Luhmann nem sempre será capaz de responder às expectativas normativas dos indivíduos, visto que ao lidar com o caso concreto, às vezes a questão é posta para outro sistema, o que gera, portanto, outro tipo de resposta, que não é a garantia da sanção do ato ilícito.

 É nessa questão que Foucault mostra que o Direito, que se propõe a oferecer garantias, como foi dito, através de práticas minuciosas e discretas, como essas justificativas dadas pelo juiz, faz com que, aos poucos, essas garantias fornecidas se desgastem, e isso acaba por negar direitos para o lado mais fraco, no caso, a mulher.

A partir do exposto, é possível dizer que a positivação do Direito e a atuação sistêmica, propostas por Luhmann, nada garantirão para as minorias enquanto as relações de poder ainda se manifestarem tão fortemente na sociedade. A teoria de Foucault, que será em seguida exposta, se opõe à teoria de Luhmann neste aspecto. É esta crença no Direito, proposta pelo alemão, que cega as pessoas e não as deixa perceber os mecanismos disciplinares que tiram de suas mãos os direitos que lhes são concedidos pelo direito positivado.

3. A teoria de Foucault aplicada ao caso

Foucault (2005) retrata sobre o avanço da sociedade, trazendo, de forma crítica e inovadora, o nascimento de uma nova forma de poder coercitivo, o chamado poder disciplinar, que surgiu no Ocidente em pleno século XVIII como forma de poder que nasce a partir de uma nova concepção da sociedade a partir da queda do chamado poder soberano predominante nos regimes absolutistas da Europa.

Para Foucault (2005), o poder não emana unicamente do sujeito, mas de uma rede de relações de poder, não nascendo por si só, mas sim de relações sociais que forma o sujeito, entre elas está o discurso, tornando- se algo muitas vezes de caráter positivo, inerente à natureza humana e manifestado em pequenas coisas através de pequenos dispositivos. Ou seja, esse poder que está sendo retratado não é um poder estático e sim as relações de poder. No entender de Foucault, o poder é uma realidade dinâmica que ajuda o ser humano a manifestar sua liberdade com responsabilidade.  A ideia tradicional de um poder estático, que habita em um lugar determinado, de um poder piramidal, exercido de cima para baixo, em Foucault é modificada. Ele acredita em um poder que funciona como um instrumento de diálogo entre os indivíduos de uma sociedade. A noção de poder onisciente, onipotente e onipresente não tem sentido na nova versão, pois tal visão somente servia para alimentar uma concepção negativa do poder. Assim, o conceito de poder nos dias atuais é considerado como uma falsa ideia.

“O poder, isto não existe. Eu quero dizer isto: a ideia que há, um lugar qualquer, ou emanando de um ponto qualquer, algo que é um poder, (Tal ideia) parece-me descansar sobre uma análise falsificada, e que, em todo caso, não se dar conta de um número considerável de fenômenos” (FOUCAULT, 2005).

Desse modo, percebe-se que Foucault é o contrario dos positivistas, como Luhmann, pois estes afirmam que todo o conhecimento é científico, objetivo, enquanto que Foucault defende a tese de que o conhecimento é originado da cultura, da relação entre os indivíduos, englobando nesse conhecimento a justiça.

Uma das formas de garantir esse poder que existe na sociedade é através da disciplina. Disciplina é o conjunto das minúsculas invenções técnicas que permitiram fazer crescer a extensão útil das multiplicidades fazendo diminuir os inconvenientes do poder que deve regê-las para torna-las úteis. A sociedade disciplinar, portanto, nasce em meados do século XVIII, e nela passa a existir as chamadas instituições disciplinares com suas técnicas para o adestramento dos indivíduos. Essas técnicas, que são as disciplinas, têm de fazer funcionar as relações de poder não acima, mas na própria trama da multiplicidade, da maneira mais discreta possível, articulada do melhor modo sobre as outras funções dessas multiplicidades, e também o menos dispendiosamente possível.

Os sistemas jurídicos qualificam os sujeitos de direito, segundo normas universais. As disciplinas, no entanto, caracterizam, classificam, especializam; distribuem ao longo de uma escala, repartem em torno de uma norma, hierarquizam os indivíduos em relação uns aos outros, e, levando ao limite, desqualificam e invalidam, efetuando, assim, uma suspensão, nunca total, mas também nunca anulada, do direito: “O que generaliza, então, o poder de punir não é a consciência universal da lei em cada um dos sujeitos de direito, é a extensão regular, é a trama infinitamente cerrada dos processos panópticos” (FOUCAULT, 2005).

Esses processos panópticos são aqueles que visam à criação de um sistema de vigilância e controle exercido sobre os submissos à classe dominante, como os presos e operários.

Além disso, Foucault (2005) considera que o controle da criminalidade faz parte das estratégias de manutenção do poder no horizonte político das lutas sociais. Para ele, a lei penal é definida como um instrumento de classe, produzida por uma classe dominante para aplicar às classes dominadas; a justiça penal seria um instrumento de dominação de classes, caracterizado pela gestão diferencial das ilegalidades; e a prisão seria o centro de uma estratégia para dissociar a política da criminalidade, marcada pela repressão da criminalidade das classes inferiores, que constitui a delinquência convencional como ilegalidade fechada, separada e útil, e o delinquente comum como sujeito patologizado, por um lado, e pela imunização da criminalidade das elites de poder econômico e político, por outro lado. Ou seja, o sistema penal é instrumento de gestão diferencial da criminalidade pela posição social do autor, que concentra a repressão nas camadas sociais subalternas e garante a imunidade das elites de poder econômico e político.

Como na decisão final o Desembargador diminuiu a pena do réu, senhor A. devido à alegação de falta de provas, já que o mesmo alegou que não se lembrava de ter cometido tal delito, percebe-se, portanto, que os direitos femininos não foram garantidos em total parte, já que quem sofreu o dano foi ela, então ela deveria ser a principal reparada, porém, a mulher, senhora G., foi tratada como uma classe subalterna. A partir da analise de Foucault, quando ele afirma que a posição social do autor interfere na decisão judicial, percebe-se que, nesse caso, é o gênero o responsável por influenciar no julgamento. Em segunda instância, a decisão traz a mulher como um indivíduo submisso ao homem. A justiça, portanto seria uma forma de dominação, porém não vista às claras pela sociedade, parecendo ser algo cauteloso e ponderado, porém, ao analisar seu papel a finco, percebe-se uma justiça cheia de favorecimentos, uns com mais direitos do que outros, e o papel da mulher como submissa seria um exemplo desse favorecimento.

Conclui-se, portanto, que é através de um quadro jurídico explícito, codificado, formalmente igualitário, e através da organização de um regime de tipo parlamentar e representativo que abriga, atrás de si, a classe dominante. Ou seja, a forma de dominação ocorre de forma implícita, porém totalmente válida em relação ao direito, os indivíduos muitas vezes não percebem já que a disciplina já é uma coisa imposta pela sociedade e absorvida pelos seres, sem questionamentos, os fatos apenas infiltram na mente humana, tornando a sociedade com seres cada vez mais submissos à outras classes.

4. Aplicação da teoria de Beck ao caso

Ulrick Beck é um sociólogo alemão e em uma de suas obras, chamada ‘Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna’ ele descreve uma teoria na qual afirma que a sociedade enfrenta um momento de mudanças, modernização, surgindo uma nova configuração. Esta é analisada como uma sociedade de risco, na qual os riscos, que são vistos como aquilo que não é possível controlar na sociedade, que podem ser sociais, políticos, econômicos e até mesmo individuais, tendem a cada vez mais escapar das instituições, vindo a afetar a coletividade. Na sociedade moderna, esses riscos já não são tão fáceis de identificar como antes, já que há coisas fora do sistema que escapam do controle, tornando-o mais complexo.

No âmbito jurídico, Beck (1997) afirma que esse risco também existe, sendo ele de duas formas, o primeiro é o risco de erro técnico, podendo o juiz aplicar uma norma indevida para aquele caso, o outro é o risco da parcialidade, ou seja, na decisão pode o juiz querer levar em conta seus interesses pessoais, e, assim, não julgando da melhor forma possível e mais adequada. Desse modo, a decisão judicial, apesar de ser considerada uma certeza, tem a possibilidade de erro, então o juiz deve se esforçar para produzir uma única resposta correta para o caso, considerando o risco algo preexistente, ou seja, no procedimento para realizar o juízo, ele já conta com esse fator.

De acordo com a decisão jurídica em questão, pode-se relacionar que o juiz, ao elaborar sua sentença em segunda instância, correu o risco de parcialidade, já que ele revogou a decisão em primeira instância que era favorável à senhora G., sendo que ele usou de argumentos que inclinaram seu juízo a favorecer o réu A. Como o risco é algo que não pode ser controlado, o juiz ao tomar essa atitude, pode não ter percebido a parcialidade que estava incrustada nos seus argumentos.

Conclusão

Analisando o caso concreto sob as vistas desses três sociólogos, pôde-se ter perspectivas diferentes, e por vezes, contrastantes, tais como as de Foucault e Luhmann. Enquanto o primeiro ressalta que o Direito é um instrumento que dá uma ilusão de garantias, através dos processos disciplinares, o segundo garante que a aplicação sistêmica do Direito trará uma manutenção de expectativas, contanto que estas estejam fixadas em uma positivação normativa.

A contradição entre Foucault e Luhmann foi observada na decisão judicial do caso estudado, onde se pôde perceber a superposição da teoria do primeiro em contrapartida com a do segundo, visto que, enquanto as expectativas da senhora G. não foram atendidas, a decisão baseou-se nas garantias da teoria de Foucault, na qual a classe desfavorecida, no caso a das mulheres, que é a da vítima, foi negligenciada, colocando o réu em uma posição superior.

Quando Luhmann afirma que o direito está na sociedade como um instrumento que garanta a expectativa do sujeito em relação ao comportamento de outros, de maneira igual para todos, Foucault destrói essa teoria a partir do momento em que afirma que isso é uma ideologia, que esconde em sua estrutura mecanismos que garantem, em sua base, a submissão das forças e dos corpos, criando uma sociedade essencialmente desigual, porém de forma legítima diante dos olhos dos seus integrantes.

Enquanto isso, Beck, na sua teoria, afirma que o direito pode garantir a expectativa dos indivíduos, porém, o juiz deve ter a consciência de que ao realizar o procedimento para proferir a sentença, ele deve lidar com o risco, assim como, já o garantindo como preexistente, chegando a uma decisão judicial correta e como uma única resposta ao caso.

Com isso, pode-se ressaltar que os três sociólogos, apesar de se oporem (nesse caso, mais precisamente Luhmann e Foucault) servem de fundamentação aos casos concretos, onde suas teorias podem ser, além de verificadas, aplicadas, e, por vezes, servem de justificação para as decisões judiciais.

 

Referências
BECK, Ulrich. A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva. In: Beck, U.; Giddens, A. e Scott, L. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1997, pp. 11-72.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir – nascimento da prisão. Petrópolis, Vozes, 2005.
LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro, 1983.
 
Notas:
 
[1] Artigo exigência para a avaliação da disciplina Sociologia Jurídica – UFPI – 2012.2, orientado pela Profª Drª Maria Sueli Rodrigues de Sousa ([email protected]/[email protected])


Informações Sobre os Autores

Ana Beatriz Lopes Freire

Acadêmica de Direito na Universidade Federal do Piauí

Ana Clara Carvalho Rodrigues

Acadêmica de Direito na Universidade Federal do Piauí


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