As faces do Positivismo Criminológico: O criminoso nato de Lombroso e a sua correlação com o conto “O Alienista” de Machado de Assis

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Resumo: Este ensaio apresenta o conceito de Positivismo Criminológico, com análise de seu contexto histórico e menção a um de seus personagens principais, o médico italiano Cesare Lombroso. Trata-se de um estudo sobre criminologia positivista correlacionando as teorias de Cesare Lombroso, descrita em sua obra “O Homem Deliquente”, com o conto “O Alienista” do escritor brasileiro Machado de Assis. O estudo consiste de uma análise da literatura como um saber que também se indaga sobre o seu tempo e questiona a verdade e o poder estabelecidos. Contará com apontamentos de escritores, e de estudiosos do tema, seja na área criminal, médica ou literária com ênfase à realidade do Brasil e do mundo na virada do século XIX para o XX.

Palavras Chaves: Machado de Assis, positivismo, criminoso, loucura

Abstract: This paper introduces the concept of criminological positivism, with analysis of their historical context and mention one of its main characters, the Italian physician Cesare Lombroso. This is a study correlating positivist criminology theories of Cesare Lombroso, described in his book "The Man delinquent", with the story "The Alienist" by Brazilian writer Machado de Assis. The study consists of an analysis of literature as a knowledge that also inquires about your time and questions the truth and power set. Will feature notes of writers and scholars of the subject, whether in criminal or medical literature with emphasis on the reality of Brazil and the world at the turn of the nineteenth to the twentieth.

Keywords: Machado de Assis, positivism, criminal, madness

INTRODUÇÃO

O presente trabalho aborda o contexto histórico do positivismo criminológico e a realidade social do Brasil e do mundo na virada do século XIX ao XX. Analisa o despontar da criminologia como ciência além de correlacionar a teoria do criminoso nato do médico italiano Cesare Lombroso, baseada no livro “O Homem Deliquente” com o conto “O Alienista” do escritor brasileiro Machado de Assis.

Em “O Alienista”, originalmente publicado entre 1881 e 1882, como parte da coletânea “Papéis Avulsos”, Machado expressa a crítica ao cientificismo do século XIX e, por extensão, ao positivismo, sendo que tal posicionamento era de notória presença em suas obras. A narrativa permite a reflexão sobre a literatura enquanto um saber que também se indaga sobre o seu tempo e questiona a verdade e o poder estabelecidos. Trata-se de outro saber, que não se pretende científico, mas que é tão legítimo quanto aquele.

O estudo pretende ainda destacar noções históricas do pensamento penal e o despontar da criminologia no tocante as ideias de Lombroso no universo do positivismo criminológico.

Para a consecução deste raciocínio utilizou-se de um método indutivo, ilustrando, por meio da temática principal do enredo machadiano, algumas noções de positivismo criminológico, além de trazer à baila dados históricos do despontar da criminologia no Brasil.

1 – DO POSITIVISMO CRIMINOLÓGICO

Para entender melhor o que vem a ser “Positivismo” verificamos que o mesmo possui distintos significados, englobando tanto perspectivas filosóficas e científicas do século XIX quanto outras do século XX. Desde o seu início, com Augusto Comte[1] (1798-1857) na primeira metade do século XIX, até o presente século XXI, o sentido da palavra mudou radicalmente, incorporando diferentes sentidos, muito deles opostos ou contraditórios entre si.

No tocante ao positivismo no campo do direito penal tem-se que a “Escola Positiva pode ser dividida em três fases distintas, com três autores símbolos em cada uma delas: fase antropológica: Cesare Lombroso (L’Uomo Delinqüente); fase jurídica: Rafael Garofalo (Criminologia); e fase sociológica: Enrico Ferri (Sociologia Criminale)[2]”.

A relação histórica que abarca o surgimento das idéias positivistas se deve ao desenvolvimento sociológico do Iluminismo, bem como das crises sociais e morais do fim da Idade Média e do nascimento da sociedade industrial – processos que tiveram como grande marco a Revolução Francesa (1789-1799), pois a razão é estimulada, deixando de lado os valores da monarquia e do clero. A nova classe dominante, a burguesia, precisava legitimar-se.

Em linhas gerais, ele propõe à existência humana valores completamente humanos, afastando radicalmente a teologia e a metafísica (embora as incorporando em uma filosofia da história). Assim, o Positivismo associa uma interpretação das ciências e uma classificação do conhecimento a uma ética humana radical, desenvolvida na segunda fase da carreira de Comte.

Nesse contexto, cujo desenvolvimento de ciências sociais como a Antropologia e a Sociologia eram notórios, a Escola surge buscando proteger a sociedade de forma mais efetiva contra a ação dos delinqüentes, dando-se prevalência aos direitos sociais em relação aos individuais. Trata-se aqui de um confronto de idéias “Escola Clássica versus Escola Positiva”: a primeira exalta o princípio individualista, em detrimento da sociedade; já a segunda dizia-se socialista.

Para Noronha (2003) a concepção de direito era outro fator de divergência entre ambas as escolas. Para a Clássica, ele preexistia ao homem, isto é, era transcendental, dado pelo Criador. Para os Positivistas, ele é o resultante da vida em sociedade e sujeito as variações no tempo e no espaço, consoante a lei da evolução.

Sem sombra de dúvida este fora o marco histórico e científico o qual reuniu todas as condições indispensáveis para que a criminologia começasse a se despontar como ciência e a explicar os mistérios do delito e do delinqüente como patologias individuais e sociais dentro e fora do campo do direito penal.

Como parte importante nesta constituição tem o advento da obra do inglês Charles Darwin (1809-1882) denominada “A origem das espécies” [3], a qual descreve o processo de seleção natural, afirmando que a humanidade não resultou de um processo criativo repentino e sim de uma evolução biológica natural, espontânea e complexa em constante interação e transformação, diferente das teorias que explicavam o universo estático de Deus.

Neste sentido, acentua o professor argentino Ricardo D.Rabinovich Berkman, vejamos:

“El auge del positivismo se potencia por el clima de optimismo científico y tecnológico que viven Europa y América en la segunda mitad del siglo XIX. Sin embargo, a fines de la centúria,ya se alzan voces de alerta, que buscan prevenir al mundo contra los eventuales peligros que podrían derivarse de una aplicación al derecho de ciertos positivismos,en especial, del biológico, que había cobrado um auge sin precedentes a partir de las obras del inglés Charles Darwin (1890-1882), especialmente, el Origen de las espécies por médio de la selección natural (1859)”. (RABINOVICH, 2007,p208)

Um dos grandes representantes da Escola Positiva da Criminologia e pioneiro da Criminologia Clínica na América Latina foi o argentino José Ingenieros[4], cuja obra "Criminologia" (1907) foi o primeiro tratado do ramo publicado no continente. Os ideais positivistas sociológicos na área penal foram apropriados então pela Medicina Legal, que, encabeçada por Raimundo Nina Rodrigues[5] no Brasil, defendia os ideais de pureza da raça e combatia a miscigenação, tratando-a como motivo de degeneração. O médico Nina Rodrigues, realizava pesquisas sociais com traços diretos da antropologia criminal do médico italiano Cesare Lombroso.

As ideias positivistas chegaram ao Brasil, trazidas por brasileiros que foram completar seus estudos na França, tendo mesmo alguns sidos alunos de Auguste Comte[6].

Esta "cultura intelectual" era mais literária que científica, e as classes dirigentes procuravam em geral as profissões jurídicas. Somente os militares do exército e da marinha, por um lado, e por outro lado, os engenheiros e médicos, dedicavam-se a estudos científicos.

Naquela época o Brasil passava por problemas da escravidão africana, e dentro deste contexto, não possuía uma filosofia definida que aspirasse por ideias que lhes desse uma nova concepção de valores e orientasse seus atos, e assim, o positivismo se instalou trazendo respostas válidas para a época cientificista e mesmo materialista do século XIX.

Os representantes da geração 1870 deram início a uma reação à ordem imperial, porém não representaram uma ruptura completa com seus valores. Sendo assim, os intelectuais-bacharéis lutavam por maior participação política, e foi justamente a constituição de meios e instituições paralelas para sua expressão o que mais os caracterizou. De qualquer forma, o movimento reformista mantinha, e até mesmo aprofundava, o culto da ciência iniciado com o Segundo Império. Voltava-se contra a idealização romântica do indianismo oficial, mas apenas para afirmar uma nova concepção da nacionalidade baseada nas teorias científicas naturalistas, portanto, só estendendo a influência da ciência às artes e, além disso, mesmo que seus membros fossem abolicionistas, e muitos, republicanos, tendiam a manter intocada a hierarquia racial que caracterizava a estrutura social brasileira[7].

Neste ínterim, mais precisamente no ano de 1881, Machado publica sua obra-prima Memórias Póstumas de Brás Cubas, que dentre os marcantes personagens se destaca Quincas Borba, que de louco e ex-mendigo, se torna o criador da hilária teoria do humanitismo, uma verdadeira paródia da corrente positivista. Importante lembrar que Auguste Comte, o principal nome do positivismo, morreu provavelmente ensandecido.

No ano seguinte, Machado, já consagrado um grande escritor, publica então a coletânea de contos “Papéis Avulsos”, encabeçado pelo conto “O Alienista”. Sua colaboração é solicitada nos melhores jornais, onde escreve contos que acompanham também a extraordinária evolução expressa nas Memórias Póstumas.

Em 15 de dezembro de 1896, Machado de Assis inaugura a Academia Brasileira de Letras, recebendo o título de patrono e presidente. No ano seguinte, assiste à publicação do libelo de Silvio Romero, Machado de Assis: estudo comparativo de literatura brasileira, em que esse crítico – adepto ferrenho da Escola do Recife – procura desqualificar o mérito do escritor, a partir de justificativas pseudocientíficas, embalado na retórica positivista.

Veremos adiante a relação deste conto com o criminoso nato de Lombroso na perspectiva de Machado de Assis, no tocante a condição humana nos limites da sanidade e da loucura.

2 – DO CRIMINOSO NATO

Cesare Lombroso (1835-1909), antropólogo e médico-psiquiatra italiano, veio abrir novos horizontes aos estudos sobre o criminoso e a pena, atentando-se à figura do homem delinqüente, observando-o antes mesmo de observar o crime. Lombroso parte da ideia básica da existência de um criminoso nato, cujas anomalias constituiriam um tipo antropológico específico.

Como bem recorda Zaffaroni (2011), Cesare Lombroso, da Escola Positiva Italiana, teorizou uma verdadeira "estética do mal", sustentando que a própria fisionomia do sujeito poderia nos indicar a sua "tendência delitiva".

Segundo ele, o delinquente descrito por Lombroso era um ser atávico, um europeu que não culminava seu desenvolvimento embriofetal, ou seja, um europeu que nascia mal terminado e por isto se parecia a um selvagem colonizado. Não tinha moral, se parecia fisicamente ao índio ou ao negro, era insensível a dor, infantil e perverso, etc. O estado de guerra hobbesianno se havia cientificado e era o dos colonizados e dos delinquentes. A estes delinqüentes caracterizados como atávicos ou selvagens, por sugestão de Ferri, o chamou “delinqüente nato”, expressão plagiada a um frenólogo espanhol: Cubi e Soler[8].

Lombroso fora influenciado por Charles Darwin e com base no estudo de um criminoso famoso de sua época, cujo crânio mostrou algumas anomalias, que eram comuns na antiguidade, chegou a uma conclusão em que o agressor é o elo perdido na evolução das espécies, pois, o macaco se torna um homem, deixando um espaço pequeno onde entra o ofensor do sexo masculino, este é um ser que não chegou a se desenvolver adequadamente, de modo que foi deixado em um estágio intermediário entre o macaco e o homem.

A priori, Lombroso não buscava uma teoria crimino-genética, senão um critério diferencial entre o enfermo mental e o criminoso, mas ao deparar-se com este descobrimento, começa a elaborar o que denominaria Antropologia Criminal.

Em 1872, Lombroso publica um livro denominado Memória sobre os Manicômios Criminais, o qual diz que há necessidade de que existam manicômios para criminosos e a necessidade de que os loucos não estejam nas prisões senão que entrem em instituições especiais.

Neste mesmo ano, escreve um livro denominado “O Gênio e a Loucura” onde expõe que na realidade todos os gênios estão loucos e que o gênio é um anormal e expõe como o Gênio e a Loucura e a Loucura e o Gênio na realidade não existem mas que a um passos.

Para Calhau (2003), Lombroso apontava as seguintes características corporais do homem delinqüente: “protuberância occipital, óbitas grandes, testa fugida, arcos superciliares excessivos, zigomas salientes, prognatismo inferior, nariz torcido, lábios grossos, arcada dentária defeituosa, braços excessivamente longos, mãos grandes, anomalias dos órgãos sexuais, orelhas grandes e separadas, polidactia. As características anímicas, segundo o autor, são: insensibilidade à dor, tendência a tatuagem, cinismo, vaidade, crueldade, falta de senso moral, preguiça excessiva, caráter impulsivo.

Conforme seu pensamento foi evoluindo, Lombroso passou a considerar novas tipologias de delinqüentes, bem como a influência de fatores exógenos. São tipos de delinqüentes: nato, por paixão, louco, de ocasião e o epilético[9]. Apesar de pretender provar suas idéias, experimentalmente Lombroso não obteve sucesso. No entanto, seus estudos sobre as causas biopsíquicas do crime serviram de grande influência para a evolução da sociologia criminal.

Segundo Molina (2002), a contribuição principal de Lombroso para a Criminologia não reside tanto em sua famosa tipologia (onde destaca a categoria do "delinqüente nato") ou em sua teoria criminológica, senão no método que utilizou em suas investigações: o método empírico. Sua teoria do delinqüente nato foi formulada com base em resultados de mais de quatrocentas autópsias de delinqüentes e seis mil análises de delinqüentes vivos; e o atavismo que, conforme o seu ponto de vista, caracteriza o tipo criminoso – ao que parece – contou com o estudo minucioso de vinte e cinco mil reclusos de prisões européias

Se, naturalmente, com a sucessiva especificação das ciências, estas ideias revelaram-se passíveis de complementação – especialmente pela ciência sociológica, então em franca ascensão – Lombroso exerceu ainda por muito tempo, após as críticas que lhe foram feitas, importante influência no Direito Penal do mundo, sendo dos primeiros a defender a implantação de medidas preventivas ao crime, tais como a educação, a iluminação pública, o policiamento ostensivo – além de outras tantas ideias inovadoras referentes à aplicação das penas. Especialmente na América Latina, encontramos até os anos 1930 seguidores da Escola antropológica italiana.

3 – DO CONTO “O ALIENISTA”

O Alienista[10] é um conto do escritor brasileiro Machado de Assis, dotado de humor e ironia. Para alguns especialistas, trata-se de novela, outros o consideram um romance. A maioria dos críticos, porém, considera a obra um conto mais longo, por causa da sua estrutura narrativa. Verifica-se nela, elementos típicos da produção realista de Machado de Assis, principalmente a análise psicológica e a crítica social.

Machado nos propõe o problema da fixação de fronteiras entre o normal e o anormal da mente humana e faz neste livro a crítica da importação indiscriminada de teorias deterministas e positivistas no Brasil, por meio do personagem, o médico Dr.Simão Bacamarte, demonstrando sua obsessão científica e de suas consequencias para a vida na cidade de Itaguaí.

Como mesmo diz Fernando Tola de Habich, prologuista de uma recente edição mexicana de “El Alienista[11]:

“El alienista muestra en sus pocas páginas un resumen de las principales preocupaciones no exteriorizadas de Machado de Assis. La identidad, la separación entre lo normal y lo anormal, la lucha y los trasfondos políticos, la relación matrimonial, la amistad, las preocupaciones sociales, el dinero, el status.”

Simão Bacamarte é o protagonista, médico conceituado em Portugal e, na Espanha, decide enveredar-se pelo campo da psiquiatria e inicia um estudo sobre a loucura e seus graus, classificando-os. Instalou-se em Itaguaí, onde funda a Casa Verde, um hospício, e abastece-o de cobaias humanas para as suas pesquisas. Passa a internar todas as pessoas da cidade que ele julgue loucas; o vaidoso, o bajulador, a supersticiosa, a indecisa, etc. Costa, rapaz pródigo que dissipou seus bens em empréstimos infelizes, foi preso por mentecapto. A prima de Costa que intercedeu pelo sobrinho também foi trancafiada. O mesmo acontece com o poeta Martim Brito, amante das metáforas, internado por que se referiu ao Marquês de Pombal como o dragão aspérrimo do Nada. Nem D. Evarista, esposa do Alienista escapou: indecisa entre ir a uma festa com o colar de granada ou o de safira. O boticário, os inocentes aficionados em enigmas e charadas, todos eram loucos. No começo a vila de Itaguaí aplaudiu a atuação do Alienista, mas os exageros de Simão Bacamarte ocasionaram um motim popular, a rebelião das canjicas, liderados pelo ambicioso barbeiro Porfírio. Porfírio acaba vitorioso, mas em seguida compreende a necessidade da Casa Verde e alia-se a Simão Bacamarte. Há uma intervenção militar e os revoltosos são trancafiados no hospício e o alienista recupera seu prestígio. Entretanto Simão Bacamarte chega à conclusão de que quatro quintos da população internada eram casos a repensar. Inverte o critério de reclusão psiquiátrico e recolhe a minoria: os simples, os leais, os desprendidos e os sinceros. O alienista, contudo, imbuído de seu rigor científico percebe que os germes do desequilíbrio prosperam porque já estavam latentes em todos. Analisando bem, Bacamarte verifica que ele próprio é o único sadio e reto. Por isso o sábio internou-se no casarão da Casa Verde, onde morreu dezessete meses depois. Apesar do boato de que ele seria o único louco de Itaguaí, recebeu honras póstumas.

José Maria Boutckosky da Silva destaca algumas simbologias dos personagens do livro “O Alienista” a começar por Simão Bacamarte, protagonista do conto. Segundo ele, o personagem central, Simão Bacamarte, representa uma clara sátira ao homem de ciência do positivismo, pois, no primeiro parágrafo da história, o médico é descrito de forma hiperbólica, como autoridade das autoridades científicas. No decorrer da leitura do conto, percebe-se que as entranhas do “Alienista” são descritas como egrégias. Pois onde já se viu entranhas que sejam admiráveis? Bacamarte é o retrato satírico do cientista que, dentro do mundo racional, está fora do mundo real; do homem que chega a escolher a esposa não pelo caráter, mas por "prendas" estritamente biológicas. Um dos pontos que confere humor ao texto é o fato de que, mesmo o médico sendo extremamente sagaz e genuinamente inteligente, isso não o impede de recair em erro.

José Maria Boutckosky da Silva afirma, sob a égide de sua perspectiva que os personagens Dona Evarista e Crispim Soares poderiam ser vistos como os seguidores cegos do Alienista, que em momento algum colocam em xeque suas ideias insanas, já que a autoridade atribuída ao médico não deve ser posta em dúvida. Portanto, ele afirma o seguinte:

“Eles representam aqueles que se dobram diante de uma doutrina sem antes analisá-la friamente, alvos perfeitos da ideologia: os que a aceitam sem refletir acerca dela. O boticário, inclusive, é a clássica figura do puxa-saco, sempre presente na obra de Machado, e um farmacêutico que poderia ser visto como um "médico menor". Daí que ele siga o Alienista e lhe repita todas as sentenças, hiperbolizando-as.

Do lado dos antagonistas de Bacamarte, temos o padre Lopes. Sempre querendo deixar as coisas exatamente como estão, à moda da Igreja, e sempre alerta para o exagero do estudo. Como símbolo da Igreja no conto, ele deve afastar tudo o que constituir perigo para a fé. O conflito de Simão com o padre Lopes pode ser visto como uma representação das dissidências havidas entre Igreja e Império durante o Segundo Reinado. Há um delicado equilíbrio: o intelectual tem do seu lado a razão, mas teme o poder da Igreja que, por sua vez, é poderosa, mas, cega de fé, se torna tola. Entretanto, é o padre quem dá a sentença final do encarceramento do Alienista em seu próprio manicômio. Temos, assim, a vitória da teologia sobre a ciência.

Por fim, há Porfírio, o barbeiro, que lidera os cidadãos na revolução contra a opressão da Casa Verde. Assim que um pouco de poder lhe cai nas mãos, ele passa a ansiar por mais e acaba conseguindo dissolver a Câmara. Só que quando ele consegue chegar ao Alienista, prefere entrar num acordo do que assassiná-lo, como a multidão ordena a altos brados. O barbeiro é a representação do velho ditado que diz que o poder corrompe” (Silva [2012]).

O enredo tem como tema principal a “loucura” fazendo com que o personagem principal se entregasse de corpo e alma ao estudo da ciência, alternando as curas com as leituras, e demonstrando os teoremas com cataplasmas.

A grande questão da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a escandalosa noção de periculosidade, cuja ideia significa que “o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de suas virtualidades” [12]. E isso dialoga com a questão mesma da construção do rótulo de desviante e com toda crítica dirigida ao positivismo criminológico como legitimador de essências, tais como maldades e feiúras.

Se o positivismo criminológico é caracterizado por uma “racionalização que consiste em querer prender a realidade num sistema coerente, e tudo o que, na realidade, contradiz este sistema coerente é afastado, esquecido, posto de lado, visto como ilusão ou aparência” [13].

Para Moacyr Scliar, médico, escritor e membro da Academia Brasileira de Letras, Machado foi um intérprete agudo e sensível da realidade brasileira, funcionando como um sismógrafo do Brasil na virada do século XIX para o XX. A maior contribuição de Machado à Ciência talvez tenha sido os estudos e observações acerca da sociedade brasileira no fim do Império, e que perduram pertinentes até os dias de hoje, por sinal.

Nos estudos sobre o criminoso nato, Cesare Lombroso elabora uma teoria de que também seleciona o enfermo mental e o criminoso, utilizando do método empírico. Já no enredo “O Alienista”, o personagem Simão Bacamarte, realiza um estudo sobre a loucura e para tanto coloca dentro da Casa Verde várias pessoas as quais diz serem acometidas por patologias psíquicas e a cada caso investigado vai elaborando novas teorias, numa verdadeira crítica ao positivismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O positivismo propõe que todas as questões filosóficas, sociológicas e políticas fossem analisadas por meio de uma ótica humana, colocando-se de lado tudo o que fosse metafísico ou teológico. A doutrina positivista vai de encontro à idealista, pois prioriza a experiência sensível (ou dados positivos) à experiência extra-sensorial (dados subjetivos). Em outras palavras, o positivismo tem por base tudo àquilo que pode ser observado e deixa de lado o que só pode ser intuído.

E na ânsia de estudar o crime e suas causas, Lombroso ficou bastante conhecido pelas suas teorias sobre o “delinquente nato”, ou seja, aquelas ideias de que as características físicas, fisiológicas e mentais dos indivíduos demonstravam se a pessoa era predisposta ao crime ou não. Em uma palavra: um criminoso poderia ser diagnosticado pelas condições anatômicas de seus corpos. Sua teoria embora naquela época fosse muito importante para o direito, sofreu severas críticas quanto a sua comprovabilidade, vez que prejudicava as classes menos favorecidas.

Para Recacho (2009) o cientificismo biológico foi um capacete ideal para o pensamento de Lombroso. Fazendo uso de levantamentos quantitativos dos defeitos físicos dos presos, ele elaborou um esquema de normatização do anormal. Lombroso atuava dentro do esquema de habitus específico dos discursos científicos de então – os discursos normativos do que seria a verdade garantida pela ciência.

Em contrapartida, o personagem Simão Bacamarte, estudou na Europa e ao regressar ao Brasil, com trinta e quatro anos de idade, instalou-se em Itaguaí, onde criou a Casa Verde, asilo para recolher os loucos e estudar as patologias cerebrais a partir de sua primeira formulação da loucura: "Suponho o espírito humano uma vasta concha; o meu fim é ver se posso extrair a pérola, que é a razão; por outros termos, demarquemos definitivamente os limites da razão e da loucura. A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia” [14].

Sendo assim, na concepção naturalista, a verdade só é obtida através do conhecimento científico. O desfecho do conto focaliza exatamente nesse ponto, quando Simão Bacamarte se isola na Casa Verde, à procura de uma teoria científica consolidada, tomando a si mesmo como objeto tanto da teoria quanto da prática.

Não é à toa a aproximação foucaultiana entre criminoso e louco, no cerne daquela ânsia lógica que caracteriza a vontade de verdade. Ora, “Desgraçado do tempo em que os loucos guiam os cegos”, afirmou Shakespeare pela boca de Glaucester, que, cego, não sabia explicar as causas de sua suposta e estranha queda e, por isso, agarrou-se a uma enganadora lógica[15].

O Alienista trabalha incisivamente a questão da loucura, pode ser lido de forma a fornecer uma crítica dupla “contra as fantasias de onipotência da ciência, ávida de fatos chamados positivos, e como uma demonstração fatal da cegueira individual causada por uma idéia fixa”.[16] No dizer de Frosh, somente depois que a Casa Verde foi construída é que a loucura foi inventada e consubstanciada como problema social – ou seja, é “a existência do asilo que provoca a loucura generalizada”.

 

Referências bibliográficas
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BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2009
ELBERT, Carlos Alberto.Manual básico de criminologia. 1ªEd.Buenos Aires: Editorial Universitaria de Buenos Aires, 1998.
FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado et. al. RJ: NAU Editora. 2005
FROSCH.O Tenebroso Problema da Patologia Cerebral: algumas considerações acerca d’O Alienista machadiano.
LARRAURI Elena. La herencia de la criminología crítica.2ª Ed. Siglo XXI de España editores, S.A.Madrid, 2000.
MAGALHÃES NORONHA, Edgard. Direito Penal, V.1 ao 4. São Paulo: Saraiva. 2003
MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia, 4a edição, São Paulo, RT, 2002
PRADO, Luiz Regis. BITENCOURT, Cezar Roberto; Elementos de Direito Penal, Parte Geral. São Paulo: RT, 2005.
RABINOVICH-BERKMAN, Ricardo David. Un viaje por la historia del derecho. 1ª Ed. Buenos Aires: Editorial Quorun, 2007.
RODRIGUES, Raymundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1938.
SHAKESPEARE, Willian, Rei Lear.Trad,Millôr Fernandes.Porto Alegre:L&PM, 1997.
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SILVA, José Maria Boutckosky da. O humor machadiano em O Alienista.Disponível em:< http://literatura.uol.com.br/literatura/figuras-linguagem/26/artigo159392-2.asp>. Acesso em 08 de abril de 2012. 
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Manual de Derecho Penal, 2ª Ed. Buenos Aires, 2011.
 
Notas:
 
[1] Isidore Auguste Marie François Xavier Comte (Montpellier
, 19 de janeiro de 1798 — Paris, 5 de setembro de 1857) foi um filósofo francês, fundador da Sociologia e do Positivismo.No conto “O Alienista”, Machado faz uma crítica às ideias positivas e assim como o personagem principal da narrativa, Augusto Comte morreu ensandecido: da ficção para a realidade. 

[2]Ver Régis, Luiz e Cezar Roberto Bitencourt, Elementos de Direito Penal, cit., v. 1, p. 32.)

[3] Esta obra foi publicada em 1859, causando uma revolução científica paradigmática, caindo por terra tudo que a ciência havia construído naquele momento no campo das ideias biológicas e antropológicas e mesmo sem contar com publicidade especial e recurso de comunicação, esta obra resultou também em recorde editorial para aquela época, vez que em menos de uma hora, dos 1200 (um mil e duzentos) exemplares dela já haviam se esgotado, tornando Darwin em celebridade nacional. 

[4] Era médico, sociólogo e psiquiatra. Nasceu em Palermo, Itália em 1877 e faleceu em 1925 em Buenos Aires. Publicou diversos trabalhos no campo da psiquiatria e da criminologia. Foi um dos maiores intelectuais da Argentina e América Latina, tendo defendido as posições dos positivistas à época.

[5] Ver RODRIGUES, Raymundo Nina. As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1938.

[6] Naquela época o Brasil contava com senhores de engenho ou de fazendas de café cujo seus filhos ou herdeiros faziam curso de humanidade em colégios jesuítas e complementavam seus estudos inicialmente na Universidade de Coimbra e depois retornavam ao Brasil e iam estudar nas faculdades de Direito Brasileiras (Recife e São Paulo). Cada bacharel era o "doutor" de um determinado setor da realidade que era visto como um corpo autônomo.

[7] Ver artigo Machado de Assis, o Outsider Estabelecido: Um estudo sobre as relações entre ciências, literatura e nação no Brasil finissecular, do autor Richard Miskolci, apresentado no XI Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado nos dias 1 a 5 de setembro de 2003, UNICAMP, Campinas, SP .

[8]Ver Zaffaroni, Eugênio Raul. Manual de Derecho Penal, 2ªEd. Buenos Aires, 2011, Ed.Ediar pg.240.

[9] Ver Cezar Roberto Bittencourt, Tratado de Direito Penal, vol.1, p. 56

[10]Fora publicada em 1882, quando aparece incorporado ao volume Papéis Avulsos, havia sido publicado previamente em A Estação (Rio de Janeiro), de 15 de outubro de 1881 a 15 de março de 1882. É a base para o tipo de conto brasileiro que viria a seguir, assim como peça fundamental do Realismo. Para muitos, é considerado como o primeiro romance brasileiro do movimento realista.

[11]Ver a tradução em espanhol do livro “ O Alienista” disponível em: http://www.ciudadseva.com/textos/cuentos/por/machado/alienis.htm > .Acesso em jun.2012. 

[12] FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Trad. Roberto Machado et. al. RJ: NAU Editora. 2005, p. 85. 

[13] Ver MORIN. Introdução ao Pensamento Complexo. p. 70.

[14] Entre Livros, nº 20, pp. 34-35. São Paulo. Dezembro 2006.

[15] SHAKESPEARE, Willian, Rei Lear.Trad,Millôr Fernandes.Porto Alegre:L&PM, 1997,PP 97 e 110.

[16] FROSCH.O Tenebroso Problema da Patologia Cerebral: algumas considerações acerca d’O Alienista machadiano. p. 291.


Informações Sobre o Autor

Renata Rodrigues

Advogada Bel.em Direito pela Universidade do Estado de Minas Gerais.Pós Graduada em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes; aluna especial do Mestrado em Desenvolvimento Social da Universidade Estadual de Montes Claros; aluna regular do curso de Doutorado em Direito Penal da Universidad de Buenos Aires


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