Responsabilidade civil por dano existencial: uma análise sob a perspectiva da dignidade humana nas relações laborais

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Resumo: A presente pesquisa destinou-se a realizar um estudo em torno da responsabilidade civil por dano existencial, buscando averiguar os traços característicos dessa modalidade de dano, relacionado ao princípio da dignidade da pessoa humana. Para tanto, levou-se em consideração o atual perfil vivido pela sociedade contemporânea, marcado por novas demandas e complexidades. Não obstante, considerando que as alterações sociais da atualidade têm se verificado inclusive na estruturação das relações laborais, buscou-se desenvolver uma reflexão sobre a responsabilização civil decorrente de dano existencial no âmbito dessas relações.

Palavras-chave: responsabilidade civil. dano existencial. relações laborais.

Abstract: This research was designed to conduct a study about the liability for existential damage , trying to ascertain the characteristic features of this type of damage related to the principle of human dignity. Therefore , it took into account the current profile experienced by contemporary society , marked by new demands and complexities. Nevertheless, considering that today's social change has occurred, including the structuring of labor relations, we sought to develop a reflection on the civil liability arising from existential damage within those relationships.

Keywords: civil responsibility. existential damage. labor relations.

Sumário: Introdução. 1. O dano existencial e o princípio da dignidade da pessoa humana. 2. Responsabilidade civil por dano existencial na esfera laboral. Conclusão. Referências.

Introdução

A sociedade contemporânea e o aparecimento de novos direitos têm desencadeado o surgimento de questões cada vez mais complexas. Nesse mesmo passo, faz-se necessária a criação de novos institutos capazes de conceder respostas hábeis às demandas decorrentes desses insurgentes anseios.  

Nesse contexto, um instituto que vem ganhando cada vez mais atenção por parte dos doutrinadores e até mesmo da jurisprudência dos tribunais pátrios é o dano existencial, modalidade de reparação civil, cujas particularidades vêm sendo construídas justamente tendo em vista as novas espécies de dano que despontam na realidade prática.

A presente pesquisa visa, inicialmente, realizar uma breve análise sobre as especificidades do instituto do dano existencial, sobretudo relacionadas ao princípio da dignidade da pessoa humana, para, então, em um segundo momento, verificar a maneira como a reparação civil decorrente dessa modalidade de dano se dá no âmbito das relações laborais.

É fato notório que as constantes transformações nas técnicas de labor acabam refletindo na própria organização do trabalho, desencadeando também novos problemas sociais. Dentre estes, um que vem merecendo peculiar atenção é a questão da confusão sobre os limites entre a esfera profissional e a vida privada do trabalhador , o que vem lhes causando sérios danos aos seus direitos mais fundamentais.

A par disso é que a presente pesquisa destinará especial atenção à aplicabilidade da reparação por dano existencial na esfera das atuais relações trabalhistas, buscando verificar se o instituto pode servir como um mecanismo capaz de reparar os danos ocasionados aos trabalhadores que têm seus direitos fundamentais ligados à existência humana violados.

Para tanto, o trabalho foi dividido em dois capítulos, reservando-se o primeiro para tratar do aspectos gerais envolvendo o instituto do dano existencial, seus traços característicos, suas particularidades e elementos de configuração, por meio de uma análise atrelada ao princípio da dignidade da pessoa humana.  Já o segundo capítulo destinar-se-á ao enfrentamento da aplicação do instituto no âmbito das relações laborais.

1. O dano existencial e o princípio da dignidade da pessoa humana

A figura jurídica do dano existencial tem suas bases assentadas no direito italiano, de onde adveio. Conforme contextualiza Neto, no direito italiano, até alguns anos atrás, apenas eram reconhecidas as duas espécies tradicionais de dano indenizável cometido contra a pessoa: “a) o dano patrimonial, consistente em uma ação, dolosa ou culposa, que acarreta para a vítima um prejuízo econômico direto, pela diminuição do seu patrimônio, ou indireto, em razão da redução da capacidade de exercer atividades que lhe propiciam rendimentos (art. 2.043 do Código Civil italiano) e b) o dano moral, caracterizado por um ofensa à esfera psíquica da pessoa, sem repercussão patrimonial, causando-lhe tormento, angústia, medo, aflição, humilhação ou vergonha.” (ALMEIDA NETO, 2005)

No entanto, essas duas espécies foram se afigurando insuficientes para abarcar todas as situações de injustiça a que as pessoas se viam acometidas. Foi necessário, assim, a criação, por parte da Doutrina, de uma nova modalidade de dano.

Nesse sentido, no início da década de sessenta, surge o dano existencial, instituto que, nas palavras de Maximiliano Bock, a exemplo do dano moral puro e do dano estético, se constitui em um desdobramento dos danos extrapatrimoniais.(BOCK, 2015)

Essa modalidade diferenciada de dano veio a ser conhecida no Brasil a partir da década de setenta (SILVEIRA, 2015) e, conforme observa Flavianna Rampazzo: “a partir da década de 1970, começaram a ser emitidos mais pronunciamentos judiciais, determinando a necessidade de proteger a pessoa contra atos que, em maior ou menor grau, atingissem o terreno de sua atividade realizadora.” (SOARES, 2009)

Denota-se, portanto, que as bases que fundamentam o dano existencial remontam a quatro décadas atrás. De qualquer sorte, no atual contexto vivido pela sociedade contemporânea o instituto se molda perfeitamente à realidade atual como uma possível ferramenta de reparação de direitos não abarcados por outros institutos já há muito consagrados na doutrina jurídica.

Como bem observa Wesendock (2011), a responsabilidade civil em muito evoluiu, evidenciando que a tradicional divisão dos danos em material e moral insculpida no direito civil pátrio tem se mostrado insuficiente para dar conta das diversas modalidades de danos.

Diante da magnitude com que a Constituição da República Federativa do Brasil tutela os direitos fundamentais inerentes ao ser humano, dedicando peculiar atenção à dignidade da pessoa humana é natural que se constate uma imensa gama de possibilidades de reparação diante de prejuízos e injustiças que este ser venha a sofrer. Com isso, muitas vezes os mecanismos de reparação civil já há muito consagrados, não conseguem abarcar as particularidades de dadas situações.

No que tange ao dano existencial, conforme conta Neto, incialmente essa modalidade recebeu a designação de dano à vida de relações, que consistiria “na ofensa física ou psíquica a uma pessoa que a impede, total ou parcialmente, de desfrutar os prazeres propiciados por atividades recreativas, extra-laborativas as mais variadas, como praticar esportes, fazer turismo, pescar, frequentar cinema, teatro ou clubes etc…, interferindo decisivamente no seu estado de ânimo e, conseqüentemente, no seu relacionamento social e profissional, diminuindo suas chances de adaptação ou ascensão no trabalho, trazendo como conseqüência um reflexo patrimonial negativo.” (ALMEIDA NETO, 2005)

Tal designação leva em consideração que as pessoas, de um modo geral, são seres sociais, que têm uma vida social a zelar, que desfrutam dos prazeres de interação com outras pessoas, com outros núcleos sociais, ou seja, são pessoas em movimento, que têm uma ampla gama de atividades rotineiras, de modo que tudo isso resta prejudicado a partir do momento em que são vitimadas por atos suscetíveis de causar essa espécie de dano.

Nesse sentido, um acidente de trânsito ou um procedimento médico mau realizado que acarretassem problemas de locomoção, impossibilitando a vítima de praticar esportes, no caso de um atleta, por exemplo, poderia configurar um dano existencial, já que sua capacidade de obter rendimentos estaria prejudicada.

Segundo relata Neto, a partir da designação inicial, as discussões acerca do dano existencial foram se aprofundando, até chegar-se ao consenso de que o mesmo “constitui uma ampliação do conceito de dano à vida de relação, com o acréscimo de que para sua configuração não é necessário que o prejuízo tenha repercussão econômica para a vítima. Deu-se ênfase, destarte, ao princípio segundo o qual toda pessoa tem o direito de não ser molestada na sua existência, em suma, a viver com dignidade, o que inclui o direito de não ser coartada na prática das suas atividades recreativas, praticadas em busca de lazer, em busca da paz de espírito, mesmo que disso tudo não resulte um deficit na sua capacidade laborativa ou de produzir quaisquer rendimentos, como o exigia a exegese do dano à vida de relação.” (ALMEIDA NETO, 2005)

Assim, a partir de um amadurecimento doutrinário, as particularidades do dano existencial foram sendo lapidadas, consolidando-se o entendimento de que a configuração do mesmo pode se dar independentemente da ocorrência de redução da capacidade da vítima de obter rendimentos, o que, inclusive, o difere do dado patrimonial.

Não obstante, o dano existencial também se distancia dos danos biológico, ao passo que não pressupõe lesão física ou psíquica, bem como do dano moral, já que não se limita ao sofrimento ou angústia vivenciado pela vítima.

Apropriando-se do conceito exarado por Frota, o dano existencial “constitui espécie de dano imaterial ou não material que acarreta a vítima, de modo parcial ou total, a impossibilidade de executar, dar prosseguimento ou reconstruir o seu projeto de vida (na dimensão familiar, afetivo sexual, intelectual, artística, científica, desportiva, educacional ou profissional, dentre outras) e a dificuldade de retomar sua vida de relação (de âmbito público ou privado, sobretudo na seara da convivência familiar, profissional ou social).” (FROTA, 2010)

Depreende-se, dessa análise, que o dano existencial engloba uma série de privações a que o ser humano pode ser submetido, as quais afetam o seu convívio familiar e social. Partindo dessa premissa, são vastas as situações que podem desencadear um dano à existência da pessoa, como casos em que a mulher torna-se infértil, por conta de um procedimento imperito, ou da pessoa que contrai uma doença grave após submeter-se a exames de sangue, ou ainda do trabalhador que labora em condições análogas à de escravo, sendo obrigado a dedicar-se em tempo integral ao trabalho em condições desumanas, sendo privado de usufruir de uma vida pessoal.

Visando o ordenamento jurídico interno e a doutrina tradicional tem-se que é possível enquadrar o dano existencial no rol dos danos extrapatrimoniais. Sobre estes, esclarece Sérgio Severo que são os danos que não possuem expressão econômica, sendo, por isso, de complexa mensuração. (SEVERO, 1996)

No que tange às características peculiares do Dano Existencial, refere Fabiana Rampazzo (SOARES, 2009) que, além dos elementos inerentes a quaisquer espécies de dano, como o prejuízo, o ato ilícito, o nexo de causalidade, essa modalidade de dano compõe-se de dois elementos nucleares, quais sejam, o projeto de vida e a vida de relações.

Sobre o primeiro elemento, discorre Hidemberg que o projeto de vida diz respeito à “autorrealização integral do indivíduo, que direciona sua liberdade de escolha no sentido de proporcionar concretude, no contexto espaço-temporal em que se insere, às metas, objetivos e ideias que dão sentido à sua existência”. (FROTA, 2010)

Já no que tange à vida de relação, segundo explicam Alvarenga e Boucilhas Filho (2014), “o dano resta caracterizado, na sua essência, por ofensas físicas ou psíquicas que impeçam alguém de desfrutar total ou parcialmente dos prazeres propiciados pelas diversas formas de atividades recreativas e extralaborativas, tais quais a prática de esportes, o turismo, a pesca, o mergulho, o cinema, o teatro, as agremiações recreativas, entre tantas outras.”

Nota-se que a afetação do projeto de vida repercute em todo o planejamento, todas as ambições e objetivos que um dia o indivíduo traçou e que agora se vê impossibilitado de concretizar. Por outro lado, a vida de relação resta afetada quando a pessoa é privada de desfrutar normalmente de uma vida social, incluindo-se aqui as atividades de lazer, de convívio com a família, dentre tantas outras.

Sobre esse aspecto, acrescenta Hindemberg que “não há projeto de vida sem a vida de relação: as pessoas humanas, como seres-no-mundo-com-os-outros ou seres coexistenciais, precisam interagir umas com as outras, de modo que sejam concebidos, modelados, planejados, materializados, adaptados e readaptados os objetivos, as metas e as atividades que fornecem propósito às suas existências.” (FROTA, 2010)

Neste passo, os dois elementos para configuração do dano existencial encontram-se interligados, sendo um a extensão do outro.

Conforme atenta Almeida Neto (2005), “nos danos desse gênero, o ofendido se vê privado do direito fundamental, constitucionalmente assegurado, de, respeitando o direito alheio, livre dispor de seu tempo fazendo ou deixando de fazer o que bem entender. Em última análise, ele se vê despojado de seu direito à liberdade e à sua dignidade humana.”

Uma vez que o indivíduo sofra uma limitação involuntária no seu projeto de vida e na sua vida social isso acaba afetando a sua liberdade, a sua liberdade de escolhas, de ter a opção de seguir por um caminho ou outro, buscando aquilo que lhe proporcione uma vida digna.

Logo, partindo-se do entendimento defendido pelo ilustre doutrinador José Afonso da Silva (1990), segundo o qual, a dignidade da pessoa humana consiste em “um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”, tem-se que, em última análise, o dano existencial consiste em uma verdadeira afronta àquilo que se tem por uma vida digna, estando abarcados por essa concepção uma infinidade de direitos.

2. Responsabilidade civil por dano existencial na esfera laboral

As discussões que se seguiram em torno do reconhecimento do dano à vida de relação propiciaram significativo avanço no campo da responsabilidade civil no direito italiano e, inegavelmente desses estudos se originaram as linhas mestras do que hoje se conhece como dano existêncial. (ALMEIDA NETO, 2005)

Como já constatado a partir do estudo realizado até então, o dano existencial pode representar uma limitação involuntária no projeto de vida e na sua vida social de uma pessoa, que acaba tendo a sua liberdade afetada assim como uma série de outros direitos indispensáveis a uma vida digna.

Tal forma de limitação pode ser muito corriqueira nas relações de trabalho. Diante disso, tem-se discutido sobre a aplicação do instituto em análise no âmbito das relações de labor.

Com os novos contornos que as relações de trabalho vêm assumindo na contemporaneidade, graças ao surgimento desenfreado de novas tecnologias, os trabalhos manuais passaram a ser substituídos pelo trabalho intelectual, com a combinação da crescente utilização de equipamentos eletrônicos, os quais viabilizaram a imediatidade de resultados, consistindo em um eficiente mecanismo de controle por parte dos agentes econômicos.

Desde então, tem-se verificado a configuração de um novo perfil de relações de trabalho, com o surgimento de novas profissões, que concentram funções antes desempenhadas por tantas outras, as quais são inclusive levadas à extinção.

Dentre essas novas modalidades de labor destaca-se o teletrabalho, que, num primeiro momento, pode ser visto como benéfico tanto para o empregador, que não precisa mais se preocupar em estabelecer um ambiente de trabalho de acordo com as normas de segurança e higidez, assim como para o empregado, que pode desempenhar suas atividades no conforto da sua própria residência, além de ser poupado do estresse que pode se afigurar no deslocamento até o local de trabalho.

No âmbito dessas novas relações de trabalho, tem se instaurado uma preocupante realidade social, consistente na confusão sobre os limites entre a esfera profissional e a vida privada do trabalhador.  No caso do teletrabalho, as modernas ferramentas de labor têm permitido que os trabalhadores permaneçam à disposição do empregador em tempo integral, mesmo que distante dos limites físicos da empresa, o que acaba invadindo seus momentos de privacidade e lazer.

O que gera ainda maior preocupação é que esse cenário não se vislumbra apenas na modalidade do teletrabalho, mas em qualquer outra onde se exija do trabalhador jornadas exorbitantes, metas inalcançáveis, dentre tantas outras abusividades frequentemente praticadas sob o manto distorcido do poder diretivo do empregador.

Conforme ilustra Rebechi (2012), “com o aparecimento de ferramentas de tecnologias de comunicação e de informação, como os celulares com funções que dão acesso à internet ou os sistemas de teleconferência via computadores móveis com câmeras acopladas, muitos profissionais são exigidos a ficar “conectados” em tempo integral com o seu trabalho.”

Nesse passo, as novas tecnologias acabam sendo um facilitador do prolongamento da jornada de trabalho, permitindo que o empregador tenha o empregado sempre a sua disposição, ainda que fora dos limites da empresa.

Segundo alertam Franco, Druck e Silva (2014), “o que se constata no mundo real do trabalho é um distanciamento crescente entre práticas organizacionais e direitos sociais conquistados. É o paradoxo que encerra o trabalho contemporâneo: sua combinação com precarização social, com adoecimento dos indivíduos e destruição ambiental.”

Nesse contexto de contínua informatização e desenvolvimento, nem sempre a normatização consegue acompanhar o mesmo ritmo. Muitas vezes nem mesmo os profissionais que atuam na fiscalização dos ambientes de trabalho estão preparados para lidar com essas novas configurações.

Conforme observa Flaviana Rampazzo, “a probabilidade de ofensas aos interesses das pessoas , antes da “grande era do maquinismo” , era menor, pois não existia o manancial de danos que, em momento posterior, apresentou-se à sociedade, basicamente, em razão de sua contínua evolução: os bônus dos avanços tecnológicos representam o ônus de uma maior chance de incidentes e de maior gravidade e alcance das lesões. (SOARES, 2009)

Diante dessa realidade, surge a necessidade de criação de novos mecanismos de reparação que abarquem as complexas questões desencadeadas nesse cenário laboral  contemporâneo. É justamente com essa finalidade que se tem discutido hoje a aplicação da responsabilidade civil a título de dano existencial no âmbito das relações de trabalho.

Segundo Flaviana Rampazzo (2009), o dano existencial pode ser vislumbrado na esfera das relações de trabalho “quando se constata o trabalho em condição degradante ou análoga à de ‘escravo’, no qual o ‘empregador’ coage o ‘empregado’ a realizar tarefas em condições subumanas, no tocante ao horário, às condições de higiene, de alimentação e habitação, sem contraprestação pecuniária, ou criando artifícios para que a remuneração seja consumida – tal como ocorre com a “caderneta” em mercado de propriedade do próprio empregador ou de pessoa a ele relacionada.”

Nos termos do entendimento da Magistrada Márcia Novaes Guedes (2008), “o Dano Existencial pode decorrer de atos ilícitos que não prejudicam a saúde nem o patrimônio da vítima, mas a impedem de continuar a desenvolver uma atividade que lhe dava prazer e realização pessoal”.

Em verdade, o dano à existência do trabalhador representa, em íntima análise, uma violação aos seus direitos de personalidade. Sobre esse aspecto, esclarece Bruno Lewicki (2003) que “a personalidade, em todos os seus aspectos e desdobramentos, encontra sua garantia na cláusula geral de tutela da pessoa humana, cujo ponto de confluência é a dignidade da pessoa humana, por encontrar-se no ápice do ordenamento jurídico e funcionar como um valor reunificador da personalidade a ser tutelada.”

Conforme acrescenta Flaviana Rampazzo (2009), “o bem-estar e a qualidade de vida são a exteriorização de toda a potencialidade da personalidade da pessoa, representam a ação do ser humano, destinada a atingir a felicidade, a realização, a busca da razão de ser da existência”.

Analisando o dano existencial na seara da relação laboral e atentando para o elemento característico dessa espécie de dano, ponderam Alvarenga e Boucilhas Filho (2014) que “é fácil imaginar o dano causado à ‘vida de relação’ de determinado empregado em decorrência de condutas ilícitas regulares do empregador, como a constante utilização de mão de obra em sobrejornada, impedindo o empregado de desenvolver regularmente outras atividades em seu meio social. Não se pode, contudo, descuidar da hipótese de o dano à vida da relação poder ser causado por um único ato. Um bom exemplo seria o do empregador que compele determinado empregado a terminar determinada tarefa, que não era tão urgente ou que poderia ser concluída por outro colega, no dia, por exemplo, da solenidade de formatura ou de primeira eucaristia de um de seus filhos, impedindo-o de comparecer à cerimônia.

Em não raras ocasiões o trabalhador nem se apercebe que está sofrendo uma espécie de exploração, se dignando a desempenhar suas atividades profissionais e abdicando de sua vida privada de bom grado, tudo por receio de perder seu emprego. Tal realidade ilustra perfeitamente o pensamento de Baumann (1998), no sentido de que “as forças ávidas de tirar liberdade nem sempre precisam de coerção para alcançar seu fim”.

Nesse sentido é que se faz imprescindível a formação de um entendimento sólido a respeito do dano existencial, que possibilite uma compreensão consciente sobre as hipóteses de configuração de tal lesão à dignidade humana.

Em que pese os deslindes do instituto ainda estejam em fase de construção, conforme indica Neto, “os dispositivos constitucionais que acolhem o princípio da reparabilidade dos danos extrapatrimoniais (CF/88, arts. 1.º, III, e 5.º, V e X), são aptos a admitir a ressarcibilidade do dano existencial.”

Nesse sentido, ao elencar a dignidade da pessoa humana como um dos seus fundamentos, a Carta Magna, por si só, acaba refugando quaisquer atos que contra ela venham a atentar. Da mesma forma, autoriza a adoção de medidas que visem o seu resguardo e consequente reparação, o que resta assegurado pelo direito de resposta e de indenização pelos danos sofridos.

Não obstante, o dano existencial também pode ser reparado mediante a utilização dos mesmos mecanismos autorizadores da reparação por dano moral, constantes no Código Civil vigente. Assim, a par do que dispõe o artigo 12, uma vez que a pessoa venha a sofrer dano que repercuta na sua vida de realizações ou nos seus projetos é possível que se exija a cessação dessa lesão, assim como se reclame por perdas e danos.

Da mesma forma, são igualmente aplicáveis os artigos 186 e 927 daquele diploma legal, uma vez que a causação de um dano à existência de alguém configura-se um ato ilícito, sendo imprescindível a sua reparação.

Ademais, o dano existencial já vem sendo debatido nos Tribunais Trabalhistas. A título de exemplo cabe mencionar um julgado do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul, que, em acórdão relatado pelo Desembargador José Felipe Ledur, reconheceu o pagamento de indenização a título de Dano Existencial a trabalhadora que havia sido submetida à jornada excedente ao limite tolerado. Na oportunidade, o ilustre Desembargador assim se manifestou:

“Havendo a prestação habitual de trabalho em jornadas extras excedentes do limite legal relativo à quantidade de horas extras, resta configurado dano à existência, dada a violação de direitos fundamentais do trabalho que traduzem decisão jurídico objetiva de valor de nossa Constituição.” (BRASIL, 2015)

Analisando o caso supracitado, verifica-se que, embora toda a complexidade presente na compreensão da figura do dano existencial, o poder judiciário já vem sabendo responder de maneira satisfativa aos casos práticos que lhe são apresentados.

É cediço, contudo, que há de se dispender peculiar atenção e cuidado quando da apreciação de casos envolvendo pleitos nesse sentido. Essa lição é esclarecida pelo Ilustríssimo Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, João Oreste Dalazen, que, apreciando Recurso de Revista envolvendo o pleito de reparação a título de dano existencial, assim alertou: “ressalto, ainda, que nem sempre é a empresa que exige o trabalho extraordinário. Há trabalhadores compulsivos, ou seja, viciados em trabalho (workaholic), quer motivados pela alta competitividade, vaidade, ganância, necessidade de sobrevivência, quer motivados por alguma necessidade pessoal de provar algo a alguém ou a si mesmo. Um indivíduo assim, geralmente, não consegue se desligar do trabalho e muitas vezes, por iniciativa própria, deixa de lado filhos, pais, amigos e família.” (BRASIL, 2015)

Disso se depreende que não basta a constatação da jornada extraordinária, por exemplo, para configurar o dano existencial no âmbito laboral. Para tanto, é preciso que se façam presentes os elementos já analisados no decorrer do presente excurso, sobretudo, há de se analisar o efeito que a sobrejornada desencadeia na vida do trabalhador.

Conclusão

Por meio da presente pesquisa foi possível constatar a inegável realidade de que, diante do cenário em que a sociedade contemporânea vive, a tão aclamada segurança jurídica é colocada em xeque, concedendo lugar a uma onde de incertezas.

Diante desse contexto, institutos que há muito já estavam assentados no ordenamento jurídico já não conseguem responder de maneira satisfativa às demandas envolvendo os novos direitos que exsurgem na realidade prática.

Um desses institutos é o da responsabilidade civil, tema que vem passando por uma constante evolução para conseguir englobar as distintas modalidades de dano que vêm sendo levadas a pleito perante o poder judiciário.

Nesta seara, uma modalidade de dano que vem ganhando cada vez mais espaço de discussão e questionamento é o dano existencial, ao qual se dedicou peculiar atenção no presente trabalho.

Como foi possível constatar, o instituto em apresso corresponde a uma modalidade de dano extrapatrimonial, que atenta contra a intimidade psíquica do ser humano, possuindo traços e características próprias, sendo absolutamente independente dos demais danos então sedimentados no nosso ordenamento.

A partir da análise das peculiaridades que envolvem o instituto, passou-se à reflexão sobre a sua aplicabilidade às relações de trabalho, sobretudo diante das novas configurações que a relação laboral vem assumindo na contemporaneidade, onde todos os dias milhares de trabalhadores são privados de fruir de momentos de lazer.

Com efeito, o surgimento desenfreado dos novos mecanismos tecnológicos acabaram influenciando no perfil das relações laborais, trazendo avanços para as empresas, fazendo inclusive surgir novas modalidades de profissões, antes inimagináveis.

Contudo, ao lado de tantos avanços depara-se com um grande retrocesso. Vive-se hoje um verdadeiro processo de rompimento das relações sociais tradicionais.

As facilidades que as tecnologias propiciam para o desempenho das atividades laborais modernas fazem, em não raras vezes, com que o trabalhador fique conectado ao mundo do trabalho em tempo integral, abrindo mão dos seus projetos de vida, do convívio com a família, dos seus momentos de lazer.

Por meio da presente pesquisa foi possível se vislumbrar que a discussão sobre a aplicabilidade do instituto do dano existencial às relações de trabalho não deve ser vista como uma possibilidade, mas como uma certeza, sobretudo diante da incontestável premissa de que a normatização não consegue acompanhar a mesma velocidade das inovações tecnológicas, não conseguindo prever respostas exatas e satisfativas para as mais complexas questões que se insurgem a todo o momento.

Como se viu, o tema ainda é bastante recente, mas já vem sendo construído por parte da doutrina e da própria jurisprudência pátria, a partir dos dispositivos legais que já norteiam as outras modalidades de dano.

Ao tutelar com especificidade os projetos de vida e as relações dos indivíduos, o instituto do dano existencial representa um mecanismo fundamental para a reparação da dignidade humana de milhares de trabalhadores, que, muitas vezes nem se apercebem do tamanho da lesão que lhes vem sendo causada dia após dia.

Tem-se, com isso, que as demandas da sociedade contemporânea se apresentam com tamanha complexidade, em um ritmo descompassado com o ordenamento jurídico positivado, sendo fundamental a existência de mecanismos que consigam trazer algum tipo de resposta a essas pretensões, como o faz a responsabilidade civil por dano existencial, que, uma vez que venha ganhando espaço na jurisprudência dos tribunais brasileiros, tão logo servirá como ferramenta não apenas de reparação mas também de prevenção, no sentido de coibir violações e demandas continuadas.

Referências
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Informações Sobre o Autor

Michele Machado Segala

Advogada. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Franciscano – UNIFRA. Especialização em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito Professor Damásio de Jesus


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