Do cabimento do habeas corpus nas punições disciplinares militares

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Resumo: A República Federativa do Brasil, constituída num Estado Democrático de Direito, através da sua Constituição Federal de 1988, garantiu diversos direitos fundamentais aos cidadãos. Dentre eles, mais especificamente no inciso LXVIII, artigo 5º, disciplinou acerca do habeas corpus, definindo-o como garantia constitucional para assegurar o direito individual de ir e vir, que será concedido sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. A impetração de tal instrumento constitucional, quando ocorrer constrangimento ilegal, poderá ser feita por qualquer pessoa, o que possibilita e democratiza o acesso à Justiça, de forma indiscriminada, para assegurar o direito de locomoção. O § 2º do artigo 142, da Constituição Federal, veda expressamente o cabimento de habeas corpus em relação às punições disciplinares militares. O presente trabalho, utilizando o método dialético de interpretação e pesquisa descritiva da legislação e da jurisprudência, tem o intuito de analisar o disposto a referida vedação quando ao cabimento do habeas corpus nas punições disciplinares, bem como sobre a aceitação em alguns casos concretos, enfocando o que existe atualmente no ordenamento jurídico, demonstrando que algumas mudanças são necessárias para corrigir algumas mazelas, demonstrando, para tanto, que a Constituição Federal de 1988, enfatiza a aplicação dos princípios gerais de forma mais ampla, em especial no que diz à liberdade, não havendo razão para vedar habeas corpus nas punições disciplinares militares a pretexto da necessidade de manutenção da hierarquia e disciplina por serem princípios essenciais, básicos, das Corporações Militares, pois tais preceitos acabam ferindo os direitos e as garantias fundamentais previstos no art. 5º da CF, que devem ser asseguradas a todos os cidadãos (civis ou militares, brasileiros ou estrangeiros), sem qualquer distinção, na busca do fortalecimento do Estado de Direito.

Palavras-chave: Habeas corpus, Direito, Constituição Federal, Militar, Justiça Militar, Punição Disciplinar, Hierarquia, Disciplina, Direitos Fundamentais.

Abstract: The Federal Republic of Brasila, incorporate in a democratic state, through its Federal Constitution of 1988 guaranteed a number of fundamental rights to citizens. Among them, specifically in item LXVIII, Article 5, disciplined about habeas corpus, defining it as a constitutional guarantee for the individual right to come and go, to be granted whenever someone suffers or is in danger of suffering violence or coercion in their freedom of movement, for illegality or abuse of power. The filing of such a constitutional instrument when illegal constraint occurs, mau be made by anyone, which enables and democratizes acces to justice, indiscriminately, to ensure the right to mobility. The § 2 of article 142 of the Federal Constitution expressly prohibits the pertinence of habeas corpus in relation to military disciplinary punishments. This study, using the dialectic method of interpretation and descriptive pesquisa of legislation and case law is intended to analyze the provisions of the said fence when the pertinence of habeas corpus in the disciplinary punishments as well as the acceptance in somes specific cases focusing what currently exists in te legal system demonstrating that some changes are needed to correct some sore spots demonstrating therefore that the Federal Constitution of 1988 emphasizes the application of the general principles mor broadly especially in regard to frredom there is no reasin to seal habeas corpus in the military disciplinary punishments under the pretext of the need to maintain the hierarchy and discipline to be essential principles basic of military Corporations, as these precepts end up hurting the rights ande fundamental guarantees provided for in art. 5 of the Constitution, which should be provided to all citizens (civil or military, Brazilians or foreigners) whithout any discrimination in the pursuit of strengthening the de Direito State.

Keywords: Habeas corpus, law, the Constitution, Military, Military Justice, Disciplinary Punishment, Hierarchy, Discipline, Fundamental Rights.

Sumário: Introdução. 1. Peculiaridades relevantes do Habeas Corpus. 1.1. Etimologia de Habeas Corpus. 1.2. Aspectos históricos. 1.3. Conceito. 1.4. Natureza Jurídica. 1.5. Legitimados para impetração do Habeas Corpus. 1.6. Habeas Corpus Preventivo e Repressivo. 1.7. Pleito liminar em ação de habeas corpus. 1.8. Não cabimento do habeas corpus. 2. Do writ no âmbito da justiça militar. 2.1. Do procedimento do habeas corpus na esfera militar. 2.2. Previsão legal e hipóteses de cabimento. 2.3. Competência originária. 2.4. Prejuízo aos jurisdicionados. 2.5. Prisão decorrente de punição disciplinar e sua possível inconstitucionalidade. 2.6. Da doutrina e da jurisprudência. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

Inicialmente, é importante destacar que todo Estado de Direito prescinde a reverência às garantias fundamentais do cidadão, primordiais para o fortalecimento das instituições democráticas e o desenvolvimento social. Tanto é verdade que, a Assembléia Nacional Constituinte ao inaugurar e instituir um novo Estado Democrático de Direito, primou por assegurar o pleno exercício dos direitos sociais e individuais, mais especificamente a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça, como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, valores estes insculpidos no preâmbulo da Constituição Federal de 1988.

Considerando a temática abordada, a liberdade de ir e vir consiste em um direito fundamental e individual inerente a todo cidadão, que só pode ser mitigado em casos expressos, notadamente quando da prisão em flagrante ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, sendo vedado pelo ordenamento prisões para averiguações ou qualquer outra modalidade que não esteja devidamente prevista em lei, razão pela qual a segregação cautelar é medida de ultima ratio.

O instrumento constitucional do Habeas Corpus é cabível quando se tratar de prisão ilegal ou abusiva, cuja fundamentação seja precária ao ponto de justificar o cerceamento da liberdade de locomoção, previsto no art. 5º, LXVIII da CF/88, vejamos:

“Art. 5º, LXVIII: Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.”

Contudo, na esfera militar, o cabimento do habeas corpus é ainda mais restrito, encontrando vedação constitucional quanto às transgressões disciplinares, transcrito no § 2º do artigo 142 da Carta da República, o qual prevê que: “Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares”.

Imperioso frisar que, o referido parágrafo não reproduz fielmente a intenção do legislador, pois se assim o fosse, o Constituinte Originário teria destacado tal vedação no capítulo dos direitos e garantias fundamentais, motivo pelo qual, tal mitigação é deverás inconstitucional, pois viola direito básico do cidadão.

Em linhas gerais, o presente trabalho tem como objetivo principal esmiuçar o instrumento constitucional do habeas corpus, notadamente quanto ao seu cabimento ou não em casos de punições disciplinares, delimitando a competência para o seu julgamento e a sua aceitação pela jurisprudência em alguns casos concretos.

1. PECULIARIDADES RELEVANTES DO HABEAS CORPUS

1.1. Etimologia de Habeas Corpus

Luiz Pinto Ferreira[1], em seu livro Comentários a Constituição Brasileira, nos informa que a expressão Habeas Corpus provem do latim. Em sua acepção literal significa “tome o corpo”. Em sentido espiritual, significa que a pessoa presa pode ser apresentada ao juiz para ser julgada.

Júlio Fabbrini Mirabete[2] concebe em sua obra que o habeas corpus é uma proteção individual, um recurso jurídico indicado a preservar a liberdade física do indivíduo, a autonomia de ir, ficar e vir, possuindo a finalidade de evitar ou fazer cessar o cerceamento à liberdade de locomoção resultante de ilegalidade ou abuso de poder.

Dessa forma, o habeas corpus é um instituto que tem por propósito impor uma ordem de libertação, tendo em vista que o mesmo é indicado para tutelar a liberdade física do indivíduo.

1.2. Aspectos históricos

O habeas corpus foi criado no Brasil, como sendo uma proteção para preservar a liberdade de ir e vir do indivíduo. Desse modo, uma pessoa que está sofrendo ou se ache ameaçado de sofrer violência ou coação à liberdade de locomoção, por ilegalidade ou por abuso de poder pode se valer desse instrumento.

Importante frisar aqui o voto proferido pela Ministra Rosa Weber, no bojo do julgamento do HC 104.045/RJ, em 21/08/2015 que exemplifica a história desse remédio constitucional, in verbis:

“Sua origem perde-se no tempo. Na Inglaterra, o seu berço histórico, afirma-se que é mais antigo que a própria Magna Carta de 1215 (LEVY, Leonard W. Originsofthe Bill ofRights . New Haven and London: Yale University Press, p. 44). Originariamente, era utilizado pelos Tribunais para determinar a apresentação de alguém, um prisioneiro, à Corte, para literalmente “ter o corpo” em Juízo, e não constituía um instrumento destinado necessariamente à salvaguarda da liberdade. Ilustrativamente, em 1554, a Queen'sBench utilizou dois habeas corpus para trazer a julgamento diversas pessoas envolvidas em rebelião, sendo identificadas nos writs notas de que os rebeldes deveriam ser enforcados (HALLIDAY, Paul D. Habeas Corpus: FromEnglandtoEmpire . Cambridge: Harvard University. Press, 2010, p.29). Com o tempo, porém, as Cortes inglesas, especialmente a King'sBench , começaram a utilizar o habeas corpus para avaliar a causa da prisão, liberando o preso quando reputavam a medida ilegal ou abusiva. Foi o habeas corpus o veículo para a afirmação progressiva das liberdades públicas inglesas, uma vez utilizado como instrumento contra prisões decorrentes de perseguições religiosas e políticas. Entre o rico histórico de casos, destaco apenas dois para não ser cansativa. James Somerset obteve, por meio de habeas corpus impetrado em 1771, a libertação pela King'sBench da condição de escravo por haver sido deportado da Inglaterra pelo seu proprietário sem seu consentimento (HALLIDAY, Paul D. op.cit ., p. 174-175). No Buschel's Case, de 1670, o habeas corpus foi concedido pela CourtofCommon Pleas para libertar jurados presos por ordem do Juiz Presidente do Júri fundada na compreensão deste de que eles haviam proferido um veredicto contrário à prova dos autos. O Buschel's Case confunde-se com o próprio nascimento do princípio da soberania dos veredictos (HALLIDAY, Paul D. op.cit., p. 235-236, e LEVY, Leonard W. op.cit., p. 52- 53). Embora o habeas corpus constitua remédio criado pela commonlaw, o seu prestígio ensejou-lhe posterior consagração legislativa, especialmente, no âmbito inglês, com o Habeas Corpus Act , de 1679, e, no âmbito norte americano, com o artigo I, seção 9, da Constituição norte- americana de 1787, ainda antes da adoção das dez primeiras emendas de 1791. Interessante nesse breve relato é que, a despeito da importância históricado instituto, confundido com a própria essência da liberdade, não foi e não é o habeas corpus utilizado, no Direito anglo-saxão, senão diretamente contra uma prisão, decretada em processo criminal ou não (v.g. KAMISAR, Yale e outros. Modern Criminal Procedures: Cases, Comments, Questions. 10. ed. St. Paul: West Group, 2002, p. 1.585-628; TRECHSEL, Stefan. Human Rights in Criminal Proceedings . Oxford University Press, 2005, p. 462-495; GUIMARÃES, Isaac Sabbá. Habeas Corpus: críticas e perspectivas . 3. ed. Curitiba, Juruá, 2009, p. 165 -81). Jamais se cogitou de sua utilização como um substitutivo de recurso no processo penal. Também em Portugal, onde o habeas corpus foi adotado apenas no século XX (Decreto-lei nº 35.043, de 20.10.1945), constitui ação destinada apenas à impugnação de uma prisão. Como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça português, "a providência de habeas corpus destina-se tão só a controlar a legalidade da prisão no momento em que se decide, tendo como finalidade verificar a legalidade das prisões a que os cidadãos estão sujeitos, nela não se incluindo a verificação de qualquer ilegalidade que possa ter sido cometida no processo, seja criminal ou disciplinar, nem qualquer medida contra os responsáveis por tais ilegalidades" (Acórdão de 26.04.1989, processo 10/89, BMJ 386, p. 422 – apud GUIMARÃES, Isaac Sabbá. op.cit. , p.228-229).No Brasil, o habeas corpus tem igualmente rica história, contada em diversas obras, entre as quais a famosa de Pontes de Miranda (História e prática do habeas corpus, primeira edição de 1916). É certo que, no período colonial, não eram totalmente inexistentes remédios jurídicos para a proteção da liberdade, entre eles as assim denominadas "cartas de seguro" (por todos, STRAUS, Flávio Augusto Saraiva. A tutela da liberdade pessoal antes da instituição formal do habeas corpus no Brasil. In: PIOVESAN, Flávia e GARCIA, Maria (org.) Doutrinas essenciais: Direitos Humanos: Instrumentos e garantias de proteção. São Paulo: RT, 2011, v. 5, p. 799-51), mas somente com o habeas corpus a liberdade passou a ser assegurada por um remédio pronto, fácil eefetivo. Devido ao prestígio das instituições inglesas, o writ foi adotado, entre nós ainda no período imperial. O Código Criminal de 1830 a ele jáfazreferência nos arts. 183 a 188. Seu regramento,contudo, veio com o Código de Processo Criminal de 1832 ("art. 340. Todo o cidadão que entender, que ele ou outrem sofre uma prisão ou constrangimento ilegal, em sua liberdade, tem direito de pedir uma ordem de – Habeas-Corpus – em seufavor").

Ainda no Império ampliou-se o cabimento do habeas corpus, que passou a ser admitido, com a promulgação da Lei nº 2.033, de 1871, também contra a ameaça de prisão (“art. 18, §1º: Tem lugar o pedido e concessão da ordem de habeas-corpus ainda quando o impetrante não tenha chegado a sofrer o constrangimento corporal, mas se veja dele ameaçado”). Já na primeira Constituição Republicana, de 1891, o habeas corpus foi constitucionalizado. E o silêncio do art. 72, §22 quanto ao objetivo de tutela apenas da liberdade de locomoção propiciou o desenvolvimento da "Doutrina brasileira do habeas corpus", que levou o writ, na ausência de outras ações constitucionais, a ser utilizado para a salvaguarda de outras liberdades que não a de locomoção, caso, v.g., do Habeas Corpus 3.536, em que concedida ordem, em 05.6.1914, por este Supremo Tribunal Federal, para garantir o direito do então Senador Ruy Barbosa a publicar os seus discursos proferidos no Senado, pela imprensa, onde, como e quando lhe convier. A memorável construção – a maior criação jurisprudencial brasileira, nos dizeres da historiadora Leda Boechat Rodrigues (História do Supremo Tribunal Federal: 1910-1926: doutrina brasileira do habeas corpus . 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1991, vol. 3, p. 17)-, chegou, contudo, ao fim em 1926, com a reforma constitucional promovida pelo Presidente Artur Bernardes, que, mediante alteração do mencionado art. 72 da Constituição de 1891, limitou o emprego do habeas corpus à tutela da liberdade delocomoção. Desde então o habeas foi contemplado em todas as Constituições republicanas, de 1934, 1937, 1946, 1967, 1969 e 1988, para a tutela da liberdade de locomoção contra violência ou coação ilegal ou abusiva…”

Alexandre de Moraes explica ainda que, o habeas corpus foi originado no Direito Romano, através do qual qualquer cidadão podia reinvindicar o instituto do homem livre preso ilegalmente por meio de uma ação privilegiada que se chamava interdictum de libero homineexhibendo.

Sem fazer menção direta, ficou implícito na Constituição de 1824, sendo proferido no Código de Processo Criminal de 29/11/1832, no artigo 340, in integrum: “Todo cidadão que entender que ele ou outrem sofre prisão ou constrangimento ilegal em sua liberdade, tem o direito de pedir ordem de habeas corpus em favor”.

Foi elevado à ordem constitucional na Carta Magna de 1891,nos § 22, de seu artigo 72, que estabelecia: “Dar-se-á habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente perigo de sofrer violência ou coação, por ilegalidade, ou abuso depoder”.

E assim foi se firmando até os dias atuais, enterrando suas raízes, inclusive, na legislação infraconstitucional, como por exemplo, no art. 647 e seguintes do Código de Processo Penal, o qual orienta a matéria.

1.2. Conceito

Como explanado anteriormente, o habeas corpus é uma das garantias individuais ao direito de locomoção, consubstanciada em uma ordem dada pelo Juiz ou Tribunal ao coator, fazendo cessar a ameaça ou a coação à liberdade de locomoção em sentido amplo: o direito do indivíduo de ir, vir e ficar, o ius manedi, eundi e veniend, o ius manedi, ambulandi, eundi ultrocitroque.

 Em contrapartida, a violência ou coação ligada diretamente à ilegalidade ou ao abuso de poder, segundo Heráclito Antônio Mossim, “a violência exprime a vis corporalis, a violência física ou material, implicando na agressão física, no atentado material ou no emprego da força indispensável para que a pessoa não tenha liberdade corpórea, seja constrangida fisicamente”. Complementando, o autor ainda cita que “a coação implica na violência moral, na vis compulsiva, que pode ser decorrente da ameaça, do medo ou da intimação”.

1.3. Natureza jurídica

Não há na doutrina moderna um consenso quanto à natureza jurídica do habeas corpus. Além da previsão constitucional como ação autônoma, no Código de Processo Penal, o instrumento está previsto como recurso.

O doutrinador E. Magalhães Noronha, o qual defende se tratar de um recurso, sustenta que: “A nós nos parece que se lhe não pode negar totalmente o caráter de recurso, pois pode ser impetrado contra decisões do juiz, para que o juízo superior as reveja”.

Por outro lado, no entendimento de Rogério Lauria Tucci, “o habeas corpus é uma ação, pela qual se origina a instrução de um processo do mesmo nome, exteriorizado em procedimento sumaríssimo”. Tal posição é adotada por Júlio Fabbrini Mirabete e Pontes de Miranda.

Vários doutrinadores compactuam com esse entendimento. Para Paulo Rangel, o instituto não se caracteriza como recurso por três razões:

“O recurso implica decisão não transitada em julgado e o habeas corpus pode ser impetrado de sentença que já tenha transitado em julgado, como no caso de incompetência de juízo e extinção da punibilidade por prescrição da pretensão executória (art. 648, VI e VII, CPP); o recurso é interposto sempre de decisão judicial e o habeas corpus pode ser impetrado contra ato de autoridade administrativa e até contra ato de particular; o habeas corpus começa uma nova relação jurídica independente da que deu origem a sua instauração, ou mesmo sem que haja uma relação jurídica instaurada, enquanto o recurso é interposto dentro da mesma relação jurídica processual.”[3]

Compartilhando do mesmo pensamento, o ilustre Pontes de Miranda assevera que:

“Direito, pretensão, ação e remédio jurídico constitucionais, garantia constitucional, aí está o que se tornou o habeas corpus; a sua importância é tão grande, tão essencial ao direito absoluto, que ele acode, e tão elevado o critério de irrecusabilidade, com que a sabedoria de uma nação prática e liberal o fortaleceu, através de lutas históricas, que é, de tantos remédios processuais que se tornaram confundíveis com os direitos, o mais característico e louvável.”[4]

Embora não haja consenso dos doutrinadores, resta claro que os estudiosos em sua grande maioria, entendem que o habeas corpus é uma ação autônoma, cuja finalidade é garantir a qualquer cidadão o pleno exercício do direito constitucional de ir e vir.

1.4. Legitimados para impetração do habeas corpus

A impetração do presente remédio constitucional pode ser realizada por qualquer pessoa, nacional ou estrangeiro, independentemente de sua capacidade civil, profissional, de idade, sexo, estado mental. Não há, de certa forma, qualquer impedimento para sua impetração.

De maneira geral, o ajuizamento do habeas corpus pode ser feito em causa própria ou por terceiro, conforme disposição do artigo 554, do Código de Processo Penal, não necessitando para tanto, capacidade postulatória.

Mister se faz ressaltar que, o próprio promotor de justiça, na qualidade de órgão do Ministério Público, pode impetrar o habeas corpus, desde que não seja impetrado para prejudicar o paciente.

No que tange aos estrangeiros, de igual modo, não há qualquer impedimento para sua impetração, exigindo, porém, que o instrumento esteja redigido em português, sob pena de não conhecimento.

1.5. Habeas Corpus preventivo e repressivo

Como o próprio nome já diz, o preventivo pode ser impetrado quando alguém se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder. Por outro lado, o habeas corpus repressivo ou liberatório é impetrado quando alguém estiver sofrendo violência ou coação em sua liberdade de locomoção também por ilegalidade ou abuso de poder.

1.6. Pleito liminar em ação de habeas corpus

O remédio constitucional do habeas corpus tem procedimento sumaríssimo, por demandar máxima celeridade, pois voltado à tutela de um dos mais preciosos direitos individuais do cidadão, a liberdade de locomoção. Sendo assim, o pleito liminar é perfeitamente possível e viável, inserindo-se na própria natureza do instrumento.

Todavia, por se tratar de cognição superficial, a necessidade de caracterização do fumus boni iuris e do periculum in mora são imprescindíveis para a concessão da liminar, sob pena de indeferimento.

1.7. Não cabimento do Habeas Corpus

Em linhas gerais, o habeas corpus não cabe para se questionar pena pecuniária e se mostra inidôneo para anular sentença condenatória com trânsito em julgado. Pode ser usado, em casos estritamente excepcionais, para corrigir manifesto erro na fixação da pena em sentença condenatória.

Incabível também, em causas de competência originária do Supremo Tribunal Federal, quando impetrados contra decisão denegatória de liminar em ação de idêntica natureza ajuizada perante tribunal superior, antes de seu julgamento definitivo.

Todavia, a Súmula 691 do STF tem sido flexibilizada em hipóteses excepcionais quando: i) seja premente a necessidade de concessão do provimento cautelar para evitar flagrante constrangimento ilegal; ii) a negativa da decisão concessiva de medida liminar pelo tribunal superior importe na caracterização ou na manutenção de situação que seja manifestamente contrária a jurisprudência do STF. [5]

De igual modo, não se admite o habeas corpus em relação às punições disciplinares militares, conforme vedação expressa do § 2º do artigo 142 da Constituição Federal.

Com relação a esta vedação constitucional, Alexandre de Moraes entende que “essa previsão constitucional deve ser interpretada no sentido de que não haverá habeas corpus em relação ao mérito das punições”.

Com efeito, não há óbice de que o Judiciário verifique os pressupostos de legalidade do suposto constrangimento ilegal, quais sejam: hierarquia, poder disciplinar, ato ligado à função e pena suscetível de ser aplicada disciplinarmente. O Superior Tribunal de Justiça já se debruçou sobre o tema quando da análise do HC 211.002/SP:

“EMENTA: CONSTITUCIONAL. HABEAS CORPUS. PROCESSO DISCIPLINAR. MILITAR. TRANCAMENTO. INTERPRETAÇAO DO ART. 142,2º, DA CF. CABIMENTO DA AÇAO CONSTITUCIONAL SOMENTE PARA EXAME PELO PODER JUDICIÁRIO DA REGULARIDADE FORMAL DO PROCESSO. HIPÓTESE NAO CONFIGURADA NOS AUTOS. IMPOSSIBILIDADE DE REVISAO DO MÉRITO DA IMPOSIÇAO DA PUNIÇAO DISCIPLINAR MILITAR. PRECEDENTES DO STF E DO STJ. HABEAS CORPUS NAO CONHECIDO. 1. No caso dos autos, o presente habeas corpus foi impetrado contra acórdão que afastou o cabimento da ação constitucional com o objetivo de trancar processo administrativo disciplinar militar. 2. Efetivamente, não obstante o disposto no art. 142, § 2º, da Constituição Federal, os Tribunais Superiores admitem a impetração de habeas corpus para trancamento de processo administrativo disciplinar militar. Entretanto, as hipóteses de cabimento estão restritas à regularidade formal do procedimento administrativo disciplinar militar ou aos casos de manifesta teratologia. 3. Sobre o tema, os seguintes precedentes: STF – RHC 88.543/SP, 1ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ de 3.4.2007; STF – RE 338.840/RS, 2ª Turma, Rel Min. Ellen Gracie, DJ de 12.9.2003; STJ – RHC 27.897/PI, 1ª Turma, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, DJe de 8.10.2010; HC 129.466/RO, 5ª Turma, Rel. Min. Felix Fischer, DJe de 1º.2.2010; STJ – HC 80.852/RS, 5ª Turma, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, DJe de 28.4.2008. 4. Na hipótese examinada, a impetrante não alega qualquer vício formal no procedimento administrativo disciplinar, mas tão somente irresignação no tocante à legalidade da imposição da sanção disciplinar militar o que, por si só, afasta o cabimento de habeascorpus. Habeas Corpus não conhecido”

Diante dessa celeuma, o remédio constitucional do habeas corpus, encontra vedação expressa no § 2º do artigo 142 da Constituição Federal, porém, deverás conflitante com o direito fundamental à liberdade de locomoção, insculpido no bojo do artigo 5º, demonstrando flagrante antinomia e inconstitucionalidade.

2. DO WRIT NO ÂMBITO DA JUSTIÇA MILITAR

2.1. Do procedimento do habeas corpus na esfera militar

Inicialmente, é importante frisar que, tanto no Processo Penal Comum, como no Processo Penal Militar, o habeas corpus tem a mesma finalidade e pode ser usado sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, seja por ilegalidade ou abuso de poder. Porém, diante da hierarquia e disciplina, o artigo 466 do Código de Processo Penal Militar restringe sua aplicação, quais sejam:

“Art. 466. Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

Parágrafo único. Excetuam-se, todavia, os casos em que a ameaça ou a coação resultar:

a) de punição aplicada de acordo com os Regulamentos Disciplinares das Forças Armadas;

b) de punição aplicada aos oficiais e praças das Polícias e dos Corpos de Bombeiros, Militares, de acordo com os respectivos Regulamentos Disciplinares;

c) da prisão administrativa, nos termos da legislação em vigor, de funcionário civil responsável para com a Fazenda Nacional, perante a administração militar;

d) da aplicação de medidas que a Constituição do Brasil autoriza durante o estado de sítio;

e) nos casos especiais previstos em disposição de caráter constitucional.”

O artigo 467 do CPPM elenca as hipóteses de ilegalidade e abuso de poder, objeto do próximo tópico. No artigo 468, estão previstas as hipóteses de cabimento, mesmo após a existência de sentença penal condenatório. Já no artigo 469, dispõe sobre a competência originária para a concessão do habeas corpus. Por sua vez, o artigo 470 demonstra a abrangência da ação e o artigo 471 disciplina quais são os requisitos. Os artigos 472 e 473 dizem respeito ao procedimento pré julgamento. Dentre os artigos seguintes, o que merece maior relevo é o 480, o qual disciplina que aquele responsável ou detentor do preso ou quem quer que seja, procrastinar, embaraçar a expedição da ordem de habeas corpus, responderá pelo crime previsto no artigo 349 do Código Penal Militar.

2.2. Previsão legal e hipóteses de cabimento

O Código de Processo Penal Militar, como diploma infraconstitucional, ampara a impetração do habeas corpus, mais especificamente o artigo 466, que tem a seguinte redação:

“Art. 466. Todo aquele que sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal na sua liberdade de ir e vir, por ato de alguma autoridade militar, judiciária ou administrativa, ou de junta de alistamento e sorteio militar, poderá requerer ao Supremo Tribunal Militar uma ordem de habeas-corpus, por si ou por procurador.”

Jorge César de Assis explica as hipóteses de cabimento do writ perante a Justiça Militar:

a) “quando o cerceamento da liberdade for ordenado por quem não tinha competência para tal. Só pode determinar a prisão a autoridade judiciária dotada de competência determinada nos termos do art. 85 do diploma processual castrense e com base no art. 5º, inc. LXI, da ConstituiçãoFederal;

b) quando ordenado ou efetuado sem as formalidades legais. A lei processual penal militar estabelece formalidades essenciais a serem obedecidas nos arts. 221 (legalidade da prisão); 225 (expedição de mandado); 226 (tempo e lugar da captura); 237 (entrega de preso); 244 (sujeito a flagrante delito); 245 (lavratura do auto); e 247 (entrega de nota deculpa);

c) quando não houver justa causa para a coação ou constrangimento . Só existe justa causa para a prisão no caso de flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão disciplinar ou crime militar próprio (CF, art. 5º, LXI).

d)  Quando a liberdade de ir e vir for cerceada fora dos casos previstos em Lei, como por exemplo, o encarregado do IPM decretar a detenção cautelar (CPPM, art. 18) em caso de apuração de crime impropriamente militar, v.g., roubo ouhomicídio.

e) quando cessado o motivo que autoriza o cerceamento. Nos termos do art. 603 do Código de Processo Penal Militar, cumprida ou extinta a pena, o condenado será posto imediatamente em liberdade, mediante alvará do auditor salvo se por al não estiver preso.

f) quando alguém estiver preso por mais tempo do que determina a Lei. Supremo Tribunal Federal: sofre constrangimento ilegal e tem direito a HC, sem prejuízo do processo, o acusado preso, quando excedido, sem justificativa imperiosa, o prazo para o oferecimento da denúncia, intimação do processo, ou julgamento do recurso do Ministério Público: RTJs 43/659, 44/649, 47/261, 47/544, 49/174.

g) Quando alguém estiver processado por fato que não constitua crime em tese. Devemos lembrar que o art. 320, letra ‘a’, do Código de Processo Penal Militar, obriga a apresentação de denúncia sempre que houver prova do fato que, em tese, constitua crime. A incidência desta alínea leva a supor hipótese em que o Juiz-Auditor não exerceu a faculdade prevista no art. 78, letra ‘b’, quando poderia rejeitar a denúncia.

h) quando estiver extinta a punibilidade. A punibilidade se extingue nos termos do art. 123 do Código PenalMilitar.

i) quando o processo estiver evidentemente nulo. A nulidade pode decorrer de qualquer das causas elencadas no art. 500, do Código de ProcessoMilitar.”[6]

Essas são as hipóteses de cabimento do habeas corpus, disciplinadas ao teor do artigo 647 e seguintes.

2.2. COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA

No âmbito da Justiça Militar, a competência para conhecer do pedido de habeas corpus é extremamente restrita, ou seja, quando se tratar de autoridade militar federal, impetrar-se-á habeas corpus originariamente perante o Superior Tribunal Militar, visto que os Conselhos de Justiça, órgão colegiado inferior, não tem competência para seu julgamento.

Por outro lado, quando se tratar de militar da esfera estadual, o habeas corpus deverá ser intentado perante a Justiça Militar estadual.

2.3. PREJUÍZO AOS JURISDICIONADOS

Por se tratar de competência originária do Superior Tribunal Militar, quando algum membro das Forças Armadas de qualquer guarnição brasileira necessite de um habeas corpus, deve manejar o seu ajuizamento em Brasília, o que representa grave e evidente prejuízo aos jurisdicionados.

A razão da previsão originária do Superior Tribunal Militar para apreciar o habeas corpus, deveu-se ao regime político adotado à época, quando da edição do Código de Processo Penal Militar, em meados de 1969, quando a Justiça Militar julgava os delitos cometidos contra a afamada Lei de Segurança Nacional.

Como os militares julgavam os crimes políticos e não havia interesse dos legisladores que os Juízos singulares julgassem os habeas corpus impetrados pelos presos, os quais, em sua grande maioria ficavam a mercê do constrangimento ilegal, visto que, naquela época, era inviável o seu ajuizamento na Capital Federal.

A República Federativa do Brasil, constituída por um Estado Democrático de Direito, não pode se eximir de atualizar a legislação penal militar, notadamente no que se refere ao processo penal militar, para que, diante da necessidade, amplie a competência para julgamento das ações de habeas corpus, de modo à não prejudicar os jurisdicionados.

2.4. Prisão decorrente de punição discplinar e sua possível inconstitucionalidade

Como já devidamente estudado, o habeas corpus é um remédio constitucional que visa garantir a todo e qualquer cidadão, o direito de locomoção, encontrando apenas e tão somente, a vedação do § 2º do artigo 142, da Constituição da República, denotando aparente conflito de normas, quando se verifica o direito fundamental insculpido no inciso LXVIII, do artigo 5º, bem como com o princípio da isonomia, demonstrando possível inconstitucionalidade.

Isso porque, no direito disciplinar militar brasileiro, a maioria das transgressões disciplinares implicam em penas privativas de liberdade.

A título de exemplo, o Decreto Federal 4.346, de 26/08/2002, Regulamento Disciplinar do Exército (RDE), dentre outras, em seu artigo 24, elenca as penas disciplinares de impedimento disciplinar, detenção disciplinar e prisão disciplinar.

Importante destacar ainda que, no âmbito castrense, a polícia judiciária militar é exercida pelos comandantes das organizações militares, que possuem poder de polícia, possuindo atribuições de investigar crimes. Tais atribuições podem ser delegadas para os oficiais das forças armadas, para atuarem como encarregados de inquéritos policiais militares e presidindo, quando é o caso, auto de prisão em flagrante delito, quando escalados como “oficial de dia” da organização militar.

Nessa linha, vale frisar que nem todo oficial das forças armadas possuem competência técnica para conduzir ou até mesmo lavrar autos de prisão em flagrante, cuja atribuição, no processo penal comum, é do delegado de polícia, operador do direito altamente gabaritado.

Por tais razões, a possibilidade de se evidenciar vícios materiais e formais do inquérito policial militar é latente, verificando-se, assim, notória fragilidade do referido processo administrativo.

Nessa linha, a interpretação do § 2º do artigo 142 da Constituição Federal deve ser interpretado de forma sistemática, prevalecendo, portanto, sobre a interpretação literal do referido artigo, possibilitando, dessa forma, a garantia constitucional do habeas corpus para assegurar o direito de ir e vir.

O processo administrativo, civil ou militar, devem ser norteados pelos princípios constitucionais, e todas as garantias do Direito Penal devem se sobrepor às infrações administrativas, notadamente no que se refere aos princípios da legalidade, tipicidade, proibição da retroatividade, da analogia, do non bis in idem¸ da proporcionalidade, etc.

2.5. Da doutrina e da jurisprudência

Na doutrina há diversas correntes com entendimentos variados sobre a possibilidade do cabimento do habeas corpus nas punições disciplinares militares. Há aqueles que admitem a impetração do remédio constitucional, pois o direito a liberdade não deve ser visto de forma fragmentada e que esta vedação se refere apenas ao mérito do ato disciplinar, não estando o Judiciário impedido de efetuar o exame quanto à legalidade da punição aplicada.

Os doutrinadores que não aceitam a aplicação do writ alegam que os princípios da hierarquia e disciplina devem ser preservados, pois são inerentes às Organizações Militares e, portanto, não seria adequada a sua análise. Nesta linha, Gerson da Rosa Pereira sustenta o seguinte:

“O habeas corpus é writ concedido a todo aquele que sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder, regra jurídica constitucional que sofre exceção em relação as punições disciplinares militares […]. Excetuam-se, pois, da proteção pelo habeas corpus, todos os casos em que o constrangimento ou ameaça de constrangimento à liberdade de locomoção resultar de punição disciplinar.”[7]

Eliminar do conhecimento do Judiciário é provocar contra o Estado Democrático de Direto, já que “a defesa dos direitos fundamentais é da essência de sua função. Os tribunais detêm a prerrogativa de controlar os atos dos demais poderes, com o que definem o conteúdo dos direitos fundamentais proclamados pelo constituinte”[8]

O Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça firmaram entendimento no sentido de que no habeas corpus nas transgressões disciplinares militares, faz-se necessário o exame dos pressupostos de legalidade da transgressão. Aceitam a impetração do habeas corpus e argumentam que a vedação à sua admissibilidade se refere apenas ao mérito do ato disciplinar militar.

O Supremo Tribunal Federal assevera o seguinte:

“Não há que se falar em violação ao art. 142 § 2º, da CF, se a concessão de habeas corpus, impetrado contra punição disciplinar militar, volta-se tão somente para os pressupostos de sua legalidade, excluindo a apreciação de questões referentes ao mérito. Embora o disposto no art. 142 § 2º, da Constituição Federal de 1988, o entendimento jurisprudencial é pacífico no sentido do cabimento do habeas corpus quando o ato atacado revestir-se de ilegalidade ou constituir abuso de poder. O que a Constituição proíbe é que se julgue a pena disciplinar, […] mas o Poder Judiciário pode verificar se a contravenção disciplinar foi punida pela autoridade competente dentro dos limites legais” (Recurso Extraordinário338.840-1/RS).

O Superior Tribunal de Justiça dispôs a respeito da seguinte maneira:

“Ementa: CRIMINAL. RHC. PUNIÇÃO DISCIPLINAR MILITAR. LIBERDADE DE IR E VIR.INDÍCIOS DE CRIME MILITAR.INSTAURAÇÃO DE SINDICÂNCIA. OFENSA AODEVIDO PROCESSO LEGAL. INQUÉRITO POLICIAL MILITAR.VIA ADEQUADA. RECURSO PROVIDO. A jurisprudência desta Corte orienta-se no sentido de que, em se tratando de punição disciplinar por transgressão militar, só se pode admitir a análise da legalidade do ato, via habeas corpus, quando se encontrar em jogo a liberdade de ir e vir do cidadão, que é a hipótese dos autos. Verificada a presença de indícios de infração penal, a instauração de sindicância configura ofensa ao devido processo legal e, em consequência, está eivada de vício, pois a via adequada para tal apuração é o inquérito policial militar. Sobressai ilegalidade flagrante no procedimento atacado, no tocante à deficiência da defesa do paciente por ofensa ao devido processo legal. Deve ser cassado o acórdão recorrido para restabelecer a decisão do Julgador de 1º grau concessiva de habeas corpus ao recorrente. Recurso provido, nos termos do voto do Relator.”

Verifica-se, portanto, que a concessão de habeas corpus é plenamente possível nos casos de punições disciplinares militares, principalmente quanto aos aspectos formais de legalidade, mas também, quanto ao mérito do ato administrativo quando se comprovar manifesta ilegalidade ou abuso de poder no cerceamento da liberdade do militar, assegurando a este o pleno exercício de ir e vir.

CONCLUSÃO

Diante de todo o exposto, para que, de fato, possa efetivamente se manifestar um Estado Democrático de Direito, faz-se imperioso assegurar a todos, sem distinção, os direitos e garantias fundamentais insculpidos no bojo da Constituição Federal.

O habeas corpus está garantido pela Constituição Federal de 1988 no artigo 5º, LXVIII, sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.

As normas do Direito Processual Penal Comum e Militar estabelecem que o habeas corpus pode ser impetrado por qualquer pessoa em favor de outrem, democratizando o instituto e possibilitando a todos o acesso à Justiça.

Em primeiro momento, o fato do não cabimento do habeas corpus na primeira instância da Justiça Militar prejudica a previsão legal que democratiza o acesso à justiça, o que caracteriza um impedimento a essa garantia constitucional, já que impede o jurisdicionado de se dirigir ao juiz natural. Portanto, verifica-se que não há motivo para permanecer a competência somente na segunda instância, para apreciar os pedidos de habeas corpus, devendo em futuro próximo, ser reformado o Código de Processo Penal Militar, para incluir na primeira instância da Justiça Militar da União a competência para processar e julgar ações quanto ao remédio heróico, a fim de possibilitar o acesso dos jurisdicionados ao juízo de 1ª instância.

No segundo momento, percebe-se que o habeas corpus também encontra limitação no caso de punições disciplinares, previsto no artigo 142, § 2º, da CF, que, não sendo bem compreendido, pode impedir os militares de utilizar o habeas corpus, para defender sua liberdade de locomoção, quando ameaçada indevidamente.

Assim, em face do princípio da Unidade da Constituição e do Devido Processo Legal, a interpretação constitucional deve evitar a contradição entre suas normas, os Juízes e Tribunais consideram a relatividade da limitação prevista no § 2º do artigo 142, CF, para admitir a impetração do habeas corpus nas punições disciplinares militares, quando praticadas com abuso de autoridade, sem adentrar o mérito da aplicação do ato punitivo, quanto aos critérios de conveniência e oportunidade, adotados pela autoridade administrativa, para harmonizar a garantia constitucional da liberdade de locomoção, com os princípios constitucionais da hierarquia e disciplina, indispensáveis nas instituições militares.

Conclui-se então que há divergências doutrinárias e jurisprudenciais, porém, o posicionamento majoritário é que não cabe habeas corpus em relação ao mérito das punições disciplinares militares, mas é admitido o exame do writ quando eivado de vícios de ilegalidade ou abuso de poder, não havendo motivos para coibir o habeas corpus nas punições disciplinares militares com pretexto da necessidade de manutenção da hierarquia e disciplina.

A disciplina e a hierarquia devem ser preservadas por serem princípios essenciais, básicos, das Corporações Militares, mas os direitos e as garantias fundamentais previstos no art. 5º, da CF, são normas de aplicação imediata (art. 5º,

§ 1º, da CF), que devem ser asseguradas a todos os cidadãos (civis ou militares, brasileiros ou estrangeiros), sem qualquer distinção, na busca do fortalecimento do Estado de Direito.

 

Referências
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     . Estatuto dos Militares.Lei nº 6.880, de 09 de dezembro de1980.
     . Superior Tribunal Federal. Habeas Corpus n° 104.045. PrimeiraTurma,Rel.Ministra Rosa Weber. Brasília, DF, 28 de agosto de2012.
  . Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n°211.002(2011/0147291-7). Segunda Turma, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques. Brasília, DF, 1º de dezembro de2011.
     . Superior Tribunal Militar. Habeas Corpus n° 421320107000000RJ0000042-13.2010.7.00.0000.Rel. Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha. Brasília, DF, 13 de maio de2010.
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Notas:
[1] FERREIRA, Luiz Pinto. Comentários à constituição brasileira. São Paulo: Saraiva, 1990, p5.

[2] MIRABETE, Júlio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 2002, p. 1676.

[3] RANGEL, Paulo. Direito Processual Penal. Revista, ampliada e atualizada. 12. Ed. Rio de Janeiro, Lúmen Iuris: 2007, pag. 844.

[4] MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo I. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979, pag. 161.

[5] HC n. 84.014/MG, Min. MARCO AURÉLIO, 1ª Turma, unânime, DJ 25.6.2004; HC n. 85.185/SP, Min. CEZAR PELUSO, Pleno, por maioria, DJ 1º.9.2006; e HC n. 90.387, entre outros.

[6] ASSIS, Jorge César de. Direito Militar – Aspectos penais, processuais penais e adminitrativos. 2ª Ed, São Paulo: Juruá, 2009. P. 29-30.

[7] PEREIRA, Gerson da Rosa. O descabimento do habeas corpus…, p. 33.

[8] MENDES, Gilmar Ferreira. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 132.

Informações Sobre o Autor

Pablo Henrique de Abreu Ferreira

Advogado. Pós graduado em Direito Público pelo Instituto Processus. Pós graduado em Direito Penal Militar pelo Verbo Jurídico Educacional. Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Brasília


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