Democracia não se faz com (ar)roubos

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Apresentar[1] informações sobre a situação por que passa o Brasil atualmente é ser repetitivo, pois graças à moderna tecnologia associada às redes de comunicação social, como o Facebook, e a aplicativos como o WhatsApp, a quase totalidade da população, dos mais jovens aos mais velhos, dos mais aos menos instruídos, dos mais pobres aos mais ricos, em suas mãos chegam informações de todos os lados, quase em tempo real, contendo notícias, nomes, datas, locais etc. Tornou-se episódio comum o agendamento de manifestações sociais por intermédio desses meios. Típico fenômeno contemporâneo a desafiar sociólogos e estudiosos em geral.

Mesmo em face desse pleonasmo informativo, não custa lembrar que, por exemplo, o Brasil ocupa atualmente a 76ª posição (Revista Exame, maio/2016), dentre os países mais corruptos do mundo, numa lista que vai do menos para o mais corrupto, dividindo essa posição com a Bósnia e Herzegovina, Burkina Faso, Índia, Tailândia, Tunísia e Zâmbia, atrás de países como Mongólia, Senegal, Namíbia, Ruanda e Butão.

Os custos da corrupção no Brasil (Estadão, setembro/2016, num texto da advogada e professora Ivete Maria Ribeiro) têm uma projeção feita pela FIESP para 2016 que corresponde a 2,3% do PIB, o que equivale a cerca de 100 bilhões de reais perdidos nos ralos de práticas espúrias de corruptos e corruptores.

Vários exemplos da situação catastrófica do Brasil poderiam ser dados para desenhar o quadro que lança o país como 75º no ranking da ONU referente ao IDH (BBC, dezembro/2015), que tem como pressupostos a esperança de vida ao nascer, a média de anos de estudo da população e a renda nacional bruta per capita.

Heráclito de Éfeso, no VI século a.C., tinha razão ao afirmar que “tudo flui”, tudo é movimento. O mundo está em movimento. O Brasil está em ebulição. A sensação que se tem é que os brasileiros sentem o Brasil na sua própria pele. Nunca se discutiu tanto sobre temas nacionais que vão desde a cúpula dos três poderes (Presidência da República, Senado e Câmara Federal e STF), passando por operações do Ministério Público e da Polícia Federal, comentários sobre juízes e decisões judiciais, acordos de delação e assim por diante.

Nunca se viu, a um só tempo, quase que num mesmo instante, o impeachment de uma Presidente, o afastamento e cassação de um Presidente da Câmara Federal, uma ordem de afastamento dirigida ao Presidente do Senado Federal, pedidos (no plural) de impeachment de Ministros do STF e do Procurador-Geral da República. Não se sabe ao certo por quem, mas as redes sociais são acionadas, assim como os aplicativos de smartphone, e a população está nas ruas reiteradas vezes, aos milhares e aos milhões, externando sua opinião.

A democracia fervilha. Nós vivenciamos um arroubo democrático frente aos roubos que escancaradamente são noticiados na palma da mão de cada brasileiro.

Esse termo “democracia” tão expressivo para os povos da atualidade, que nos remete a Atenas e seus debates em praça pública (Ágora), tomou com o tempo cada vez mais uma feição de Forma de Governo consubstanciada na fórmula “governo do povo, pelo povo e para o povo”. Essa clássica ideia vem sendo trabalhada por autores diversos no intuito de concebê-la de maneira mais adequada. Se, por exemplo, Agostinho Ramalho Neto (artigo, Os limites da atuação do juiz) fala em Democracia como convivência dialética das diferenças, Jürgen Habermas (Direito e democracia) sustenta uma ideia de democracia deliberativa em que meras fórmulas como a participação popular através do voto são insuficientes, e apela à participação da sociedade nos processos deliberativos a partir de um modelo que abarca um conjunto de pressupostos teórico-normativos.

Merece, contudo, séria reflexão a proposta de Nicola Abbagnano (Dicionário de Filosofia) para quem a Democracia ultrapassa a simples concepção de Forma de Governo para “indicar um modo de ser e de pensar”, o que significa dizer que o nosso modo de ser (e seres históricos) em tempos contemporâneos contém o elemento democrático que nos afeta em tudo.

É por isso que velhos temas são postos em cheque e discutidos incessantemente nos dias em que vivemos.

O sentimento individualista conduz, em um sentido negativo, a ver a pessoa e não a comunidade, o privado e não o público, que se materializa num modo ilegítimo de apropriação da coisa pública. É como se não fosse possível governar sem a pretensão ou a intenção de “se dar bem”. Um velho sentimento de elites carcomidas que pensam só em si sem refletir que os males sociais que geram a violência provocando roubos e assassinatos que batem em suas portas é resultado disso. E depois esses mesmos grupos vão às mídias para bradar que “bandido bom é bandido morto”. Mas, uma pergunta não quer calar, quem é o (grande) bandido nessa história? O arroubo da liberdade individual existente num ambiente democrático não pode conduzir ao roubo do coletivo e do bem comum.

Além disso, está aí um espírito messiânico que paira no ar. Não importa de onde venha, esse messianismo é sempre perigoso e deve ser combatido. Ninguém faz Democracia sozinho. Não se faz também em grupos seletos. Se assim for, descambaremos para um regime totalitário ou para uma oligarquia. Não podemos admitir o bacharelismo, um grupo de indivíduos que mal leu os códigos e pensa ser a voz pensante da nação brasileira; ou o coronelismo, que tem a tônica no mandonismo político-social sobre os menos favorecidos; ou falas como a do ex-Presidente Lula, amplamente divulgada pela imprensa, que teve a audácia de dizer que ele era “a única pessoa que poderia incendiar este país”. A democracia é feita por muitas mãos ou, melhor, por todas as mãos. O momento dramático em que vivemos não pode nos conduzir a arroubos messiânicos a ponto de querermos roubar o que há de mais essencial na Democracia, a margem irrestrita de participação de todos nos processos deliberativos nas mais diversas formas. A esses Messias ou Salvadores cabe a indagação de Agostinho Ramalho Neto– “quem  nos salvará da bondade dos bons?”

É por isso que as Instituições, incluindo a sociedade civil organizada, devem ser fortalecidas para que não surjam os famosos “heróis da Democracia”. Devemos ficar sempre atentos quando indivíduos se apresentam como tais. Como que das revistas em quadrinhos e dos filmes de ação, vez por outra, surgem no cenário nacional nomes que querem ser a voz do povo e promover a restauração frente ao caos. Esses heróis – vaidosos, midiáticos, atores do momento – devem ser vistos com preocupação. Não importa se políticos, juízes, membros do Ministério Público, ou quem quer que seja, numa Democracia os indivíduos passam, as Instituições permanecem. Os arroubos narcisistas não podem roubar a legitimidade e a permanência das Instituições.

E falando de Instituições, é bom registrar aqui que as Forças Armadas são fundamentais para a Segurança Nacional, mas não lhes compete governar o país. Qualquer tipo de golpe, não importa se civil ou militar, deve ser veementemente rechaçado. O Poder Executivo e o Poder Legislativo, nos três níveis da Federação brasileira, não podem ser extirpados como se fossem os males da sociedade. Juízes e membros do Ministério Público não podem querer governar o país, pois embora detenham a legitimidade constitucional, falta-lhes a unção das urnas. Os arroubos de combate à corrupção não podem conduzir ao roubo da legitimidade dos governantes, obtida nas urnas, cujo processo de escolha deve ser aprimorado (a alegada representação popular do parlamento é altamente questionável) e não extinguido.

Doutro lado, não se está a sustentar a divinização das vozes das ruas. O velho dito vox populi, vox Dei, é tão errôneo quanto ignorar a voz popular. Não se pode dizer, como particularmente li num desses grupos, que a choldra não tem nada a dizer, pois a voz das ruas não importa, uma vez que o Poder Judiciário é contramajoritário. Mas não custa lembrar as lições da história. As mesmas vozes que entoaram “hosanas, hosanas” ao Filho de Deus foram as que bradaram “crucifica-o, crucifica-o”. Tem razão Gustavo Zagrebelsky (A crucificação e a democracia), ex-Presidente da Corte Constitucional da Itália, que não raras vezes a decisão popular conduz à “ausência de procedimentos e de garantias em favor das potenciais vozes em desacordo”, e que, de maneira genérica, “todos os que santificam o povo o fazem para poder usá-lo”.

A ebulição da Democracia brasileira não significa que vivemos um “Estado de Exceção”. Ao contrário, quer sobretudo dizer que ela está mais viva do que nunca. Todos os seus pressupostos, inclusive os direitos e garantias fundamentais, devem ser preservados. O arroubo popular de combate à corrupção não autoriza declarações como a do Juiz Sérgio Moro de que vivemos situação extraordinária, que justificaria métodos extraordinários. O que isso significa? A fragilização de garantias constitucionais, num tipo de ressurreição de Vincenzo Manzini, lembrado pelo Min. Celso de Mello por ocasião do julgamento do HC nº 126.292? A admissão de provas ilícitas para fins lícitos, revivendo o pensamento de Maquiavel consubstanciado na frase de que “os fins justificam os meios”? Não queremos crer nisso.

É comum nesse tipo de contexto social, o Direito Penal ser apresentado como a panaceia para os males sociais. Discursos maximalistas pululam sustentando a criminalização de condutas, o aumento de penas, o recrudescimento da execução penal e a flexibilização de garantias processuais, tudo à moda de Günter Jakobs. Isso não passa de um discurso superficial e até mesmo ingênuo. Como, por exemplo, assegurar prerrogativas fazendo uso do Direito Penal? A eficácia do Direito Penal é extremamente duvidosa, inclusive para proteger bens jurídicos, pois atua no efeito e não na causa, é repressivo e não preventivo, além de escamotear discursos. O apóstolo São Paulo nos deixou a lição – “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino” (1 Co 13,11). É hora de enxergar o Direito Penal com olhos de adultos. Dentre tantos autores, basta aqui a fala de Eugenio Raúl Zaffaroni (Em busca das penas perdidas) – “A experiência latino-americana, demonstrando a incapacidade dos setores penais para resolver os conflitos gerados pela poluição, pelo white colar e crimes econômicos – crimes de poder – existe uma inoperância geral de nossos sistemas penais que, nos poucos casos em que atua, é instrumentalizado como meio de eliminação competitiva, deixando vulneráveis os menos poderosos”.

Diante das recentes divulgações dos quase 300 nomes de envolvidos com possíveis práticas de corrupção em acordo de delação premiada da empreiteira Odebrecht, o que se espera é que os envolvidos sejam investigados e, comprovada a prática ilícita e assegurado o devido processo legal, punidos independentemente dos partidos a que pertençam para que a aplicação do Direito Penal nesse caso emblemático no Brasil não seja vista apenas como eliminação de determinado grupo do poder para que outro grupo assuma e se perpetue.

A Magistratura brasileira, assim como o Ministério Público, deve conduzir seu ofício constitucional com afinco. Em meio a debates sobre quem é o mais especialista em “heterodoxias”, não pode deixar-se levar por arroubos midiáticos e seus membros tornarem-se falastrões, antecipando julgamento, agredindo colegas e externando preferências políticas. Tem razão o presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, João Ricardo da Costa, ao afirmar, em nota de agosto/2016 – “Sustentamos outro conceito de magistratura, que não antecipa julgamento de processo, que não adota orientação partidária, que respeita as instituições e, principalmente, que recebe somente remuneração oriunda do Estado, acrescida da única exceção legal da função do magistério” (Revista CartaCapital, novembro/2016).

E se assim deve ser, eventuais discordâncias de uma decisão judicial devem materializar-se em medidas processuais pertinentes, e não batendo a porta na cara de um Oficial de Justiça para não dar cumprimento à decisão e, depois, por conveniência, dizer, como fez recentemente o Presidente do Senado Federal Renan Calheiros, que decisão judicial não se discute, deve ser cumprida. O arroubo de poder não autoriza o roubo de uma das balizas da Democracia, que é o cumprimento das decisões judiciais. Doutra forma, os arroubos de insatisfações com a atuação da Magistratura e do Ministério Público não autorizam a aprovação de projetos ou de propostas de emenda constitucional que tenham como único objetivo encurralar seus membros. Esquecem-se os que assim agem de que hoje estão no poder, mas amanhã, quando estiverem fora, baterão às portas do Poder Judiciário e do Ministério Público à procura de membros altivos, que investidos de garantias, recebam-nos e adotem as providências que o caso requerer.

É necessário repetir, para não ser esquecida, a lição de Montesquieu (Do espírito das leis)de que “todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites”; e, para que isso não ocorra, é preciso que “o poder freie o poder”. São arroubos de poder que conduzem a práticas reprováveis como a mencionada; e, mais ainda, é no desejo de poder que reside o ovo da serpente de onde brota a corrupção. Leonardo Boff (Jornal do Brasil, maio/2016) faz um acréscimo a Montesquieu – “Filosoficamente pensando, qual é a raiz última da corrupção? Talvez o católico Lord Acton (1843-1902) que era historiador e pensador nos ajude. Diz ele: a corrupção reside fundamentalmente no poder. Sempre citada é sua frase: ‘o poder tem a tendência a se corromper e o absoluto poder corrompe absolutamente’. E acrescentava: ‘meu dogma é a geral maldade dos homens portadores de autoridade; são os que mais se corrompem’. A tradição filosófica e psicanalítica nos tem persuadido de que em todos os seres humanos há sede de poder e que o poder não se garante senão buscando ainda mais poder. E o poder se materializa no dinheiro. Quanto mais dinheiro, mais poder. Para consegui-lo não vale só o trabalho honesto, mas perversamente todas as formas que permitem multiplicar o dinheiro, quer dizer, assegurar mais e mais poder. A história mostra a ilusão desta pretensão. De repente pode-se perder tudo e ficar na miséria. Se não tivermos controlado nossa sede de poder e de acumulação, sentimo-nos perdidos.  O antídoto a essa sede de poder e de dinheiro é a honestidade, a transparência e a salvaguarda do valor sagrado da autodignidade. Por que não fazem isso, os corruptos se revelam desprezíveis e infelizes”.

É por conta desse desejo de poder que o historiador Boris Fausto (entrevista, BBCBrasil, dezembro/2016) constata que – “A desmoralização dos políticos é visível há muito tempo. E os políticos que estão no poder não fazem nada para restaurar a confiança. Ou fazem muito pouco. Volta e meia o Congresso surpreende a sociedade com decisões que vão no sentido oposto daquilo que a sociedade está pleiteando”.

Tanto os arroubos de poder quanto os roubos daí decorrentes são atentados à Democracia. Apesar disso, particularmente, penso que nem tudo é ruim. Vivemos um bom e um grande momento para a Democracia brasileira. A história dá lições e é hora de aprender com essa mestra de todos nós. Vislumbro, tal qual Hegel em sua Fenomenologia do Espírito um processo contínuo de autodescoberta do Espírito, de autodescoberta da Democracia. Se o Espírito ruma ao Absoluto, a Democracia ruma à Democracia. Estamos de acordo com Alexis de Tocqueville (A democracia na América) ao afirmar em tom épico e entusiástico de que lutar contra a Democracia é lutar contra Deus e, por isso, é impossível deter a marcha da Democracia.

Essa luta não se faz com indiferença ou com o silêncio à semelhança de Jesus que, inocente, permanece mudo diante de Pilatos. Gustavo Zagrebelsky (A crucificação e a democracia), ao discorrer sobre a multidão, Pilatos, o Sinédrio e o julgamento de Jesus, faz importante reflexão ao afirmar que o comportamento mais próximo da democracia é o de Jesus (…), “porque, em silêncio ‘até o fim’, ele convida ao diálogo e à reflexão; porque fica calado, aguardando ‘até o fim’. Um modelo perene. Infelizmente, não estamos tão seguros de ressuscitar após três dias e, portanto, não podemos dar-nos o luxo de aguardar em silêncio ‘até o fim’. Por isso, a democracia da possibilidade e da busca, a democracia crítica, deve mobilizar-se contra quem recusa o diálogo, nega a tolerância, busca somente o poder, crê ter sempre razão. A mansidão – como atitude do espírito aberto ao discurso comum, que não pretende impor-se, mas sim convencer e estar disposto a ser convencido – é com certeza a virtude cardeal da democracia crítica. Mas somente o filho de Deus pôde ser manso como o cordeiro mudo. Na política, a mansidão, para não parecer imbecilidade, deve ser uma virtude recíproca. Se assim não for, a certa altura, ‘antes do fim’, é preciso quebrar o silêncio e agir para não tolerar mais”.

Se os roubos não justificam os arroubos e vice-versa, não sabemos ao certo quais caminhos seguros, se é que existem, podemos percorrer para construir uma democracia sólida. Que dizer daquela que é considerada a maior democracia do mundo, a dos EUA, e a eleição do novo Presidente Donald Trump? Apesar disso, cabe aqui a observação viva de Liev Tolstói, que em um de seus contos de guerra, afirmou – “quando o ser humano sente em si a força de praticar um ato grandioso, nenhuma palavra é necessária, qualquer que seja ela” (A incursão). O único ato grandioso nesses tempos de roubos e de arroubos é que não é com extremismos, qualquer que seja sua fonte, que se faz Democracia!

Nota
[1] Palestra proferida no Encontro “De Olho no Combate à Corrupção” promovido pelo Ministério Público de Contas do Estado do Pará no dia 12 de dezembro de 2016 no Auditório do CEAF/MP/PA, Belém/PA.


Informações Sobre o Autor

José Edvaldo Pereira Sales


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