A expulsão do jornalista Larry Rohter

Ainda não está claro de quem foi a idéia estúpida de expulsar do Brasil o jornalista Larry Rohter, responsável por uma matéria divulgada pelo The New York Times, veículo de comunicação da imprensa norte-americana, cujo conteúdo despertou a ira do presidente da República, Lula da Silva, que se sentiu ofendido por ter tido sua imagem vinculada ao consumo de bebidas alcoólicas. E o Ministério da Justiça, em nota assinada pelo Ministro interino, Luiz Paulo Teles Ferreira Barreto, considerou inconveniente a presença de Larry no território nacional e determinou o cancelamento de seu visto temporário, “nos termos do artigo 26 da Lei nº 6.815”.

O conteúdo do texto censurado é irrelevante. Não porque sejam verdadeiras ou falsas suas afirmações, mas porque as liberdades de imprensa e de expressão são pilares fundamentais da democracia e existem meios próprios, civilizados, para qualquer pessoa enfrentar as verdades e mentiras que cotidianamente circulam pela mídia.

Declaração Universal ignorada

A expulsão de alguém, seja de que País for, será sempre uma violência, especialmente se não lhe forem assegurados os direitos mais elementares proclamados pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, assinada 1948, da qual o Brasil é um de seus signatários.

Essa Declaração, documento básico no Direito Internacional, partiu do pressuposto de que “o desprezo e o desrespeito pelos direitos do homem resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um mundo em que os homens gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do homem comum”.

Nela, “os Estados membros se comprometeram a promover, em cooperação com as Nações Unidas, o respeito universal aos direitos e liberdades fundamentais do homem e a observância desses direitos e liberdades”.

Proclama, então, que “todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei” (art. VII); “ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado” (art. IX); “todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa” (art. XI,1); “todo homem tem o direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar (XI,2); “todo homem tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras” (art. XIX).

Constituição Federal violada

O Presidente da República violou todos esses dispositivos e, naturalmente, os seus correspondentes na Constituição Federal de 1988, de cuja elaboração ele foi um dos responsáveis, como Constituinte, os quais afirmam que o Brasil tem como fundamento a cidadania (art. 1º.,II); que um dos objetivos fundamentais do Brasil é construir uma sociedade livre e justa  (art. 3º., I); que o País se rege, nas
relações internacionais, entre outros princípios, pelo da prevalência dos direitos humanos” (art. 4º., II); que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à liberdade e à igualdade (art.5º.), a liberdade de  manifestação do pensamento (inciso IV), de comunicação, independentemente de censura ou licença (IX); que não haverá juízo ou tribunal de exceção (XXXVI); que ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente (LIII); que ninguém será privado da liberdade sem o devido processo legal (LIV); que a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição (art. 220).

Inaugurando a censura internacional

Não importa, portanto, quem deu a estúpida idéia ao presidente Lula. O certo é que a decisão foi efetivada, reafirmando o autoritarismo e a truculência cultivados pelos que, em nome do Partido dos Trabalhadores, estão no comando do Governo brasileiro.

Pior, ainda, foi o comentário do presidente Lula afirmando que, se não tomasse essa medida, qualquer jornalista de outro país poderia dizer o mesmo, sem preocupação com punições. E mais: que o caso deveria servir de exemplo.

Ou seja, Lula quer inaugurar, no Brasil, a censura da imprensa internacional. O resto das violências cometidas com esse ato não é novidade no Brasil. É certo que ocorreram mais durante a última ditadura do que após a abertura democrática: abuso de poder, juízos de exceção, julgamentos sumários e condenações sem qualquer respeito aos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal. E foi o próprio presidente Lula quem esclareceu: foi uma punição para não estimular a repetição do “crime”.

Não é preciso entrar na questão do abuso referente ao uso do cargo para reagir a um ataque de natureza pessoal. Afinal, ingerir ou não bebidas alcoólicas não é privilégio nem é vedado aos presidentes ou qualquer outra autoridade da República. Usar o cargo, porém, para, uma retaliação pessoal, aí sim, é grave, muito grave para um presidente de República que se declare democrática.

Alardear seu gesto como exemplar é propalar um precedente lamentável e perigoso, que nem os ex-presidentes do Brasil sabidamente boêmios ou adeptos das bebidas alcoólicas cometeram. Contudo, no momento em que o presidente Lula quer fazer do seu gesto uma referência, pode encontrar ressonância em outros autoritários e disseminar uma verdadeira jornada internacional de censura à imprensa.

Ressaca perigosa

Se o presidente Bush, dos Estados Unidos, seguir esse exemplo, vai expulsar um considerável número de jornalistas correspondentes brasileiros que militam naquele País, responsáveis por conteúdos que, pelos critérios do presidente Lula, seriam ofensivos ao presidente norte-americano e a tantas outras autoridades que foram e continuam sendo o alvo de notícias e reportagens mais invasivas ou agressivas que a de Larry Rohter.

E Boris Yeltsin, da Rússia, que fazia a festa dos cartunistas da imprensa mundial? Do ex-presidente Bill Clynton, dos EUA, então, nem pensar.

O que o presidente Lula conseguiu, com o impulso da ressaca causada pela notícia, foi propalar seu despreparo para um cargo que exige equilíbrio e serenidade, sob pena de ser usado como instrumento daqueles que querem minar a democracia. Ou será que agora vai expulsar os correspondentes dos diversos jornais, revistas e canais de televisão do mundo que estão noticiando essa violência contra a liberdade de imprensa? Aliás, é o caso de perguntar o que farão, agora, esses jornalistas, diante dessa agressão: sentir-se-ão livres? Exercerão autocensura ? Era isso o que o Presidente queria, um artifício para calar a imprensa internacional?  E os jornalistas brasileiros, no Brasil, serão deportados ou o tratamento dado a Larry foi mesmo discriminatório, uma vez que Rohter sequer noticiou algum fato que já não tivesse sido veiculado no Brasil?

Retrocesso e afronta à Democracia

Creio que os governantes dos países democráticos não seguirão esse péssimo exemplo. Preocupa-me, porém, o que tal ato pode gerar dentro do Brasil, onde os remanescentes e saudosistas da ditadura, seus filhotes e afilhados, ávidos para retomarem com liberdade suas práticas autoritárias, já até manifestaram seus aplausos a essa ignomínia. Preocupa-me o que governadores, prefeitos e secretários de Estado (ou gerentes, figura hilária criada no Maranhão) poderão fazer para cercear, mais ainda, o trabalho livre da imprensa, já comprometido pelos vícios da rede de poder que tenta manipular ou manipula, de todas as formas, os principais e mais importantes veículos de comunicação no País.

O exemplo de Lula foi mais que um retrocesso. Foi uma sinalização para aqueles que querem acabar de vez com a democracia que está sendo construída com dificuldade, mercê da corrupção e da violência que se espalham como parte de um processo que ameaça levar o País a uma crise social de conseqüências imprevisíveis.

A censura a um jornalista é uma contribuição valiosa para esse precipício. A principal trincheira de luta e resistência democráticas é a imprensa livre. O exemplo que o Governo Lula está dando é uma afronta inclusive à História do País e à memória de tantos quantos lutaram pela redemocratização do Brasil, especialmente por buscar sustentação para sua perpetração exatamente numa lei produzida no estertores do Golpe de 64 e assinada por um general que até pediu para ser esquecido.

Lula tinha, para reagir sobriamente, a Constituição Federal, da qual ele é acusado de ser um dos autores, que lhe assegura “o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem“ (art. 5º., V).  Mas, entre o respeito ao direito, pela via da Constituição cidadã, e a prepotência, pelo caminho dos frutos da ditadura, preferiu arbítrio. Foi coerente, mas deu um péssimo exemplo ao mundo democrático.

Impõe-se registrar a lamentável inércia do Ministério Público Federal (art. 127 da Constituição Federal) e da Ordem dos Advogados do Brasil (art. 44,I, da Lei federal n. 8.906), que têm o dever constitucional e legal de defender a Constituição Federal e o Estado democrático de Direito, mas não tomaram, de imediato, as providências que o caso exigia,  assim como das instituições representativas dos profissionais da imprensa, que tinham o dever de defender o livre exercício profissional de Larry Rohter e não o fizeram prontamente.

Resta, agora, esperar as conseqüências desse desatino.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Carlos Sebastião Nina

 

Advogado e Mestre em Direito Político e Econômico (Mackenzie-SP), foi Conselheiro Federal da OAB, Promotor de Justiça, Juiz de Direito e Presidente da OAB no Maranhão. É autor do livro “A OAB e o Estado brasileiro”. Membro do Instituto dos Advogados do Brasil.

 


 

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