Ensino (de(o)) Direito!? A busca por novos referenciais para a pesquisa

“Pego o compêndio – inspiração sublime pra adormecer inquietações tamanhas violei à noite o domicílio – ó crime – onde dormia uma nação de aranhas.”
Castro Alves

Sumário: 1. Nosso castelo; 2. Uma forma de pensar; 3. Uma forma de pesquisar e de estender; 3. Críticas e críticas; 5. Novos caminhos?; 6. Não chegue perto, senão te processo! (…) ou dizendo: oi…; 7. O novo espaço cotidiano; 8. Bibliografia.

Resumo:        O Ensino jurídico brasileiro pouco avançou em termos de metodologia do ensino, mostrando enorme resistência ao diálogo com outros ramos do conhecimento como a Psicologia e a Pedagogia. A inovação do ensino jurídico, ao invés de ser tramada em grandes fórmulas e reformas legislativas, pode ser alcançada na observação e crítica do cotidiano, buscando o diálogo com o aluno.

Abstract: The Brazilian juridical Teaching little moved forward in terms of methodology of the teaching, showing enormous resistance to the dialogue with other branches of the knowledge as the Psychology and the Pedagogy. The innovation of the juridical teaching, instead of being schemed in great formulas and legislative reforms, it can be reached in the observation and critic of the daily, looking for the dialogue with the student   .

Palavras-Chave:    Ensino Jurídico – Metodologia do ensino superior – Direito Diálogo – Interdisciplinariedade.

1. Nosso Castelo

O curso de Bacharelado em Direito no Brasil exerceu durante anos uma forte ilusão no imaginário social. Ter como filho um ‘Doutor’, letrado e culto, influente e rico, capaz e bem sucedido, foi o ideal das famílias da oligarquia e sonho das classes médias. Além de profissional respeitado, o profissional jurídico foi uma espécie de encarregado pelo Estado e pelas questões públicas. Quando do período da colônia, os ‘futuros doutores’ mudavam-se para Coimbra efetivar seus estudos jurídicos. Mas com as mudanças políticas que acarretaram na independência do Brasil surgiram os primeiros cursos de ensino superior. O primeiro curso de graduação de nível superior criado no Brasil foi, precisamente, o curso de Direito. Com o intuito de satisfazer a demanda por uma burocracia estatal.

Assim, essa nova faculdade, antes formada para suprir demandas burocráticas, não auxiliou na formação de sujeitos da construção de uma nova nação pautada na justiça social. Em geral, os acadêmicos de Direito estavam preocupados com interesses pessoais, familiares e oligárquicos. Alguns historiadores, inclusive, “(…) sustentam que as academias de Direito foram responsáveis por uma prática de tal modo comprometida com os processos de exploração econômica e de dominação política que o bacharel não foi preparado para o exercício da função crítica” (ADORNO, p.159).

Sabe-se que ligações históricas causais não mais servem de justificativa para as situações presentes, mas, através das críticas que se encontram representadas por diversos autores da teoria crítica do Direito no Brasil da década de 80, pode-se observar que o ensino jurídico, responsável em grande parte por essa postura privatística, pouco se modificou durante os últimos séculos. O prof. José Eduardo FARIA acentua:

Trata-se, em suma, apenas de transmitir uma informação de caráter meramente instrumental – o conjunto dos dogmas do direito, que abrirá as portas de todas as câmaras do ‘kafkaniano’ castelo legal. Mas uma informação truncada e descontínua, uma vez que o ordenamento jurídico é apreendido somente em suas partes constitutivas, sem uma visão orgânica do conjunto e sem que a maioria dos alunos tenha uma concepção global do que ocorre. Com o passar do tempo, portanto, a ausência de raciocínio crítico e problematizante termina por cristalizar, congelar, burocratizar, enrijecer e esclerosar um conhecimento jurídico crescentemente setorializado em múltiplas áreas de especialização, impedindo por completo sua adaptação às novas situações sociais. (FARIA, p. 45).

Os professores de Direito, assim como “(…) os [demais] professores que lecionam nos cursos universitários, na maioria dos casos, não passaram por qualquer processo sistemático de formação pedagógica” (GIL, p. 15).

Alega-se como justificativa a esta situação, que o professor universitário, por lidar com adultos, não necessita tanto da formação didática quanto os professores do ensino médio e fundamental, que lidam principalmente com crianças e adolescentes. De acordo com este raciocínio, o mais importante para o desempenho do professor universitário é o domínio dos conhecimentos referentes à matéria que leciona, aliado, sempre que possível, à prática profissional. Seus alunos, por serem adultos e por terem interesses sobretudo profissionais, estariam suficientemente motivados para a aprendizagem e não apresentariam problemas de disciplina como em outros níveis de ensino. (GIL, p. 15.)

Além do mito do professor ‘por natureza’, mitos como o da transmissão do conhecimento, da transposição didática automática do profissional qualificado e das reformas legislativas como solução dos problemas educativos dificilmente são encarados com realismo pelos juristas. A explosão faculdades de Direito e o rigor arbitrário (e meramente repetitivo de textos legais) de testes profissionais como o da OAB deixam o cenário do ensino jurídico ainda mais caótico. Os ideais de um ensino crítico já foram delineados por professores como FARIA, LYRA FILHO e WARAT, todavia os meios para se alcançar um ensino crítico de Direito, que busque formar bacharéis cidadãos e participativos, ainda não foram pensados concretamente. Saber que a teoria e a prática não coincidem já não basta, é necessário traçar estratégias cotidianas para a superação do ensino dogmático.

2. Uma forma de pensar

O ensino jurídico sofre com inúmeros problemas, mas para ilustrar algumas questões relevantes interessa destacar pesquisa realizada pela professora Ilca VIANNA de São Bernardo do Campo. Segundo sua pesquisa, realizada a partir de questionários aplicados em alunos formados de 1986 a 1998, obtiveram-se resultados como: “Segundo a grande maioria dos alunos (98%) os docentes identificavam a formação com memorização de conhecimentos e a sua seleção para aplicação automática em diferentes processos como se fossem ‘formas maiores’ colocadas em ‘formas menores’. Eram partidários dos chamados objetivos comportamentais, que pressupõem respostas prontas, fechadas, pré-determinadas, sem nenhum trabalho de elaboração que possibilitasse alternativas criativas de resolução para problemas enfocados” (VIANNA, p. 109.). Esse dado demonstrou como os professores de Direito, mesmo quando criticam a visão restrita do positivismo jurídico, consideram que suas indagações detêm apenas uma resposta correta: a sua.

Outro dado apontou: “Segundo 92% dos entrevistados a maioria das aulas era expositiva, com preocupação de passar o maior número possível de informações e a partir de processo que garantisse o status, a situação privilegiadas da sabedoria dominadora do professor. Propostas que extrapolassem o simples estudo teórico de informações não eram estimuladas e, em várias situações, restringidas ou proibidas; 8% apontaram metodologias ligadas ao contexto da prática social e da área do Direito” (VIANNA, p. 109). Além de permanecerem na estratégia de ensino restrita da exposição (aulão cuspe e giz!) permaneciam inacessíveis aos alunos, como seres superiores.

Sobre a questão dos critérios de avaliação: “Segundo 85% dos alunos as avaliações realizadas ao longo do curso, eram centradas na memorização de conhecimentos e os alunos classificados conforme o número de questões respondidas com acerto ou erro em cada situação. A comparação entre os alunos, segundo 97% dos entrevistados era feita a partir de décimos e até centésimos. O aluno com média 8,7 era considerado mais apto que o que tirava 8,6. Conceituava-se em décimos o diferencial de qualidade do desempenho dos alunos” (VIANNA, p. 109). Não raro, questões estritamente subjetivas, como estilo de redação, são avaliadas em centésimos, demonstrando a arbitrariedade das avaliações aplicadas nas instituições de ensino superior de Direito.

Por fim, a falta de contato entre alunos e professores é freqüente: “Apenas 12% conversaram com professores sobre assuntos diferenciados. Os demais afirmam não terem tido oportunidades para discutir aspectos mais atualizados da vida em sociedade e mesmo do Direito em função do autoritarismo e da superioridade afirmada pelos docentes que dificultavam qualquer tipo de participação discente” (VIANNA, p. 110.).

A pesquisa da professora Ilca VIANNA, por deter caráter qualitativo, não pode ser generalizada a todos os cursos jurídicos do país, não podendo, portanto, servir de referencial nacional de avaliação. Todavia suas observações ilustram situações freqüentes dentro das faculdades de Direito do Brasil. Em Minas Gerais as críticas também se aproximam: “Para se perceber o quão dissociado está o conteúdo transmitido das necessidades sociais, basta analisar a prática pedagógica dos cursos de direito e sua estrutura curricular: baseia-se na transmissão de conceitos abstratos, genéricos, de conhecimento da estrutura do sistema de normas legais, seus institutos jurídicos, valorizando os aspectos técnicos e procedimentais, sem qualquer referência a sua função social, desprezando qualquer análise crítica” (RIBEIRO, p. 352). Mas afinal, o que aconteceu com o curso de Direito?

O prof. José Eduardo FARIA e o prof. Celso Fernandes CAMPILONGO, em seu estudo sobre a sociologia jurídica, apontam para uma forma de pensar o ensino jurídico:

A educação a nível universitário converteu-se, então, numa banal e descompromissada atividade de informações genéricas e/ou profissionalizantes – com os alunos sem saber ao certo o que fazer diante de um conhecimento transmitido de maneira desarticulada e pouco sistemática, sem rigor metodológico, sem reflexão crítica e sem estímulo às investigações originais. A ênfase à ‘rentabilidade’ educacional anulou por completo a função formativa da Universidade brasileira, mediante uma crescente marginalização das atividades criativas e críticas. Como decorrência, as estruturas universitárias se verticalizaram, em detrimento da autonomia acadêmica e da flexibilidade horizontal de projetos interdisciplinares, ao mesmo tempo em que os corpos docentes se dispersaram entre departamentos estanques e fechados em sua própria rotina burocrática (CAMPILONGO e FARIA, p. 11).

O curso de Direito que se contenta com a pretensa transmissão de conhecimento caracteriza a forma dogmática de ensino jurídico. Essa forma, durante anos foi a predominante, quiçá a única, presente nos cursos jurídicos. “O ensino jurídico que se satisfaça com a simples e ingênua transmissão da chamada cultura jurídica tradicional estará reforçando os ingredientes ideológicos do Direito, caracterizando, nessas circunstâncias, como um processo educacional dogmático” (CUNHA e WARAT, p. 12).

O ensino jurídico não só reproduz essas deficiências generalizadas no processo educacional, como ainda as agrava, visto que não só a metodologia didática usualmente empregada como também o conteúdo mesmo do conhecimento são apresentados dentro de uma perspectiva essencialmente dogmática, com se constituíssem autênticas verdades reveladas, diante das quais ao aluno não restaria outra opção senão a de aceitá-las do modo mais acrítico possível. (MARQUES NETO, 1982, p. 163-4).

Ora, esse ensino jurídico é baluarte de um modelo antidemocrático de sociedade. Formata juristas despreparados para as realidades sociais e se prende a um Direito único e absoluto. “Vale dizer: ensina-se um direito, mas não o direito. Tal ocultação é necessária para manter a relevância do contexto que se ensina, e acaba por acarretar uma dupla descontextualização: em razão do conhecimento que produz e em razão da forma como produz esse conhecimento” (CORTIANO JR., p. 202).

A crítica da nova Escola jurídica de Brasília, em seu expoente maior o professor Roberto LYRA FILHO e sua ácida ironia, classifica os professores dogmáticos de Direito:

Estes dividem-se em três grupos principais, os que servem a dominação por burrice e ignorância; os catredr’áulicos, que a ela servem por safadeza; e os nefelibatas, que acabam fazendo a mesma coisa, por viverem nas nuvens (LYRA FILHO, p. 23). (…), eu os chamo, quando professores, de catredr’áulicos. Nas catédras, são o tipo do áulico, isto é, do puxa-saco do Poder, sem o menor tezão (sic!) espiritual (LYRA FILHO, p. 18).

Além dos professores submeterem-se ao poder, conforme a crítica da escola dialética do Direito, existem outras críticas sobre a postura arrogante dos professores universitários. Por exemplo, nos cursos de Ciências exatas “(…) na universidade, o professor de matemática olha para seus alunos, no primeiro dia de aula e ‘pensa’: ‘60% já está reprovado!’ Isso porque ele os concebe, não apenas como folha de papel em branco na matemática que ele vai ensinar, mas considera-os, devido à sua concepção epistemológica, estruturalmente incapazes de assimilar tal saber (…) No seu imaginário, ele, e somente ele, pode produzir algum novo conhecimento no aluno” (BECKER, p. 17.). No campo jurídico, quando os professores atuam de maneira autoritária, o que é muito comum, a concepção de ensino não muda muito da maneira de pensar dos professores de ciências exatas. O aluno é tábula rasa. “Penso que o professor age assim porque acredita que o conhecimento pode ser transmitido para o aluno. Ele acredita no mito da transmissão do conhecimento – do conhecimento como forma ou estrutura; não só como conteúdo”. (BECKER, p. 16.)

Portanto, existem duas formas de opressão ao aluno: “Ele não é oprimido apenas quando o professor é autoritário e mandão, mas ele é oprimido também quando é submetido a um tipo de ensino que empobrece e que sufoca a sua capacidade de pensamento autônomo, de pensar com a própria cabeça e de se posicionar criticamente diante da realidade e do próprio conteúdo desse ensino” (MARQUES NETO, 1996, p. 30).

O ensino dogmático do Direito pode ser comparado com o que Paulo Freire chamou de ensino bancário, no qual os alunos são submetidos “(…) a narração [que] os transforma em ‘vasilhas’, em recipientes a serem ‘enchidos’ pelo educador. Quanto mais vá ‘enchendo’ os recipientes com seus ‘depósitos’, tanto melhor educador será” (FREIRE, 1987, p. 58). Essa concepção autoritária algumas vezes, por mais incrível que pareça, tenta encher a cabeça dos alunos de ‘Teoria Crítica’ do Direito. Ora, o conteúdo é importante, mas um conteúdo desligado da forma de ensino é inútil. O ensino democrático não é um fim, mas um processo.

Outras posições pedagógicas no ensino jurídico se conclamam técnicas e neutras. Essas concepções aliam-se ao status quo e fingem que o ensinar Direito é decorar códigos. Enfim, “(…) transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador” (FREIRE, 2000, p. 37).

Essas atitudes educativas revelam uma forma de pensar. A forma ‘verbalista’ de se ensinar. “É que toda esta manifestação oratória, quase sempre também sem profundidade, revela, antes de tudo, uma atitude mental. Revela ausência de permeabilidade, características da consciência crítica. E é precisamente a criticidade a nota fundamental da mentalidade democrática. Quanto mais crítico um grupo humano, tanto mais democrático, quanto mais organicamente ligado às condições de sua circunstância”. (FREIRE, 2001, p. 89). O Educador verbalista é o educador que ignora que o aluno pensa. Ser verbalista, entretanto, não pode ser confundido com o ensino de teoria.

Quase sempre, ao se criticar esse gosto da palavra oca, da verbosidade, em nossa educação, se diz dela que seu pecado é ser ‘teórica’. Identifica-se assim, absurdamente, teoria com verbalismo. De teoria, na verdade, precisamos nós. De teoria que implica numa inserção na realidade, num contato analítico com o existente, para comprová-lo, para vivê-lo e vivê-lo plenamente, praticamente. Neste sentido é que o teorizar é contemplar. Não no sentido distorcido que lhe damos, de oposição a realidade. De abstração. Nossa educação não é teórica porque lhe falta esse gosto da comprovação, da invenção, da pesquisa. Ela é verbosa. Palavresca. É ‘sonora’. É ‘assistencializadora’. Não comunica. Faz comunicados, coisas diferentes (FREIRE, 1969, p. 93).

O ensino jurídico foi desenvolvendo-se de forma a criar burocratas, pessoas que seguem leis e não se atentam ao homem. Desenhando-se assim um quadro desalentador do ensino jurídico:

A concepção que ainda persiste em larga escala é a de que o ensino é um simples processo de transmissão de conhecimentos, em que ao professor cabe apenas ensinar e ao aluno, apenas aprender. Com isso, reduz-se o papel do aluno ao de um mero espectador passivo, e conseqüentemente desinteressado, dos ensinamentos que lhe vão sendo gradativamente ministrados. Tal entendimento acerca da atividade de ensino, infelizmente ainda muito generalizado, traduz claramente toda uma concepção autoritária do processo educacional, cuja prática tem consistido sobretudo na imposição ao aluno de determinados conhecimentos que ele deve docilmente aceitar e assimilar, sem maiores participações no processo mesmo de elaboração desses conhecimentos e principalmente sem um questionamento mais profundo que ponha em xeque a validade dos ensinamentos que lhe são ministrados, o fundo ideológico subjacente a esses ensinamentos e o porquê de serem esses e não outros os conhecimentos transmitidos (MARQUES NETO, 1982, p. 163).

O ensino jurídico em sua atual forma está em crise por ser incapaz de formar o jurista, apenas informando questões que uma autodidata poderia fazê-lo. “Parece certo que o ensino tradicional, importado das escolas européias, esgotou todas suas possibilidades e também a capacidade criadora, limitando-se apenas a transmitir conhecimentos, fenômeno que os meios modernos de comunicação sabem fazê-lo de forma bem mais apurada e eficiente” (CUNHA e WARAT, p. 12).

3. Uma forma de pesquisar e de estender

O ensino jurídico ‘verbalista’, formado por uma concepção de mundo dogmática e uma epistemologia que considera o aluno como tábula rasa, não fugia da repetição de leis e doutrinas. “A formação jurídica, ademais – e talvez justamente por seu caráter meramente informativo, que afastava o bacharel da realidade social -, era uma educação à abstrata. Produção, pesquisa e extensão estavam fora das preocupações acadêmicas, cujo objetivo era, acima de tudo, compreender o direito positivo, sem interferir na sociedade” (CORTIANO JR., p.209). Pesquisa e extensão, portanto, não eram pensadas de forma indissociável ao ensino. Para essa concepção dogmática de ensino jurídico, é possível existir ensino sem pesquisa e extensão, contrariando inclusive a Constituição da República em seu artigo 207.

Para resolver tal questão instituiu-se duas obrigatoriedades aos cursos jurídicos. A primeira constituiu-se nas chamadas ‘horas complementares’. Seu objetivo era obrigar os alunos a realizarem atividades de extensão e de pesquisa dentro das faculdades de Direito. Já a segunda foi o trabalho de conclusão de curso, restrita a idéia de monografia (recorta e cola). Para cumpri-las, tanto a primeira quanto a segunda, os alunos e as instituições, ou por não saber exatamente o que significa pesquisa e extensão, ou por repetirem o que o ensino dogmático institui, criaram formas de burlar ou de falsear essas atividades.

As atividades complementares de extensão acabaram resumindo-se a duas modalidades. A primeira ligada a palestras para reciclagem dos alunos, em temas interessantes e novos, em grande parte realizadas por professores da própria instituição ou por juristas da localidade. A segunda em atividades de assistencialismo. Perdeu-se assim, o sentido maior da extensão, qual seja, o de dialogar com a sociedade. Dialoga-se apenas com parte da sociedade, os profissionais de Direito, mas a sociedade oprimida continua silenciada. Assim, “(…) sendo a extensão considerada uma atividade marginal, sem muita importância. Considerá-la atividade secundária é um equívoco lastimável, pois intrínseco ao seu conceito, está a noção do compromisso social que a universidade tem com a realidade circundante”. (RIBEIRO, p. 355.)

A extensão nos cursos jurídicos sempre se resumiu à assistência judicial. A assistência não é apenas judicial, mas jurídica, em sentido amplo, incluindo consultoria, assessoria, conciliação, mediação. Para o direito de família, é importante ressaltar que, no Estado de Alagoas, cerca de 90% das demandas de assistência jurídica gratuita são relacionadas às questões da família, o que levo o Tribunal de Justiça e o Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Alagoas a instalar no campus da universidade uma vara de família, para atender os necessitados de justiça. Todavia, além desse importante aspecto, a extensão significa intervir positivamente nas comunidades, interagindo e compartilhando da solução dos problemas, mediante o saber qualificado que foi produzido e transmitido nos cursos, enriquecendo-se com o saber popular com que se deparam. Significa, também, promover atividades de formação continuada e promoção de eventos que beneficiem a comunidade geral e jurídica, para conhecimento de seus direitos. No campo de direito de família, é impressionante o desconhecimento das pessoas acerca de seus direitos mais simples, talvez porque o ‘direito do papel’ (law in books) tenha avançado muito mais do que o ‘direito na realidade’ (law in action) (LÔBO, p. 318).

Por outro lado, a pesquisa resumiu-se a consulta de livros e cópias de citações. Repetir idéias e dogmas é a principal forma de pesquisa jurídica no Brasil. As monografias de conclusão de curso, em geral de péssima qualidade, demonstram que obrigar através de legislação o aluno à pesquisa não gera muitos efeitos. Nesse sentido, “(…) a pesquisa jurídica nas faculdades de Direito, na graduação (o que se poderia, inclusive, justificar pelo nível preliminar do aprendizado) e na pós-graduação é exclusivamente bibliográfica, como exclusivamente bibliográfica e legalista é a jurisprudência de nossos próprios tribunais” (CAMPILONGO e FARIA, p. 28). A pesquisa, portanto, não está formando o espírito crítico no aluno, porque “(…) a pesquisa nas faculdades de Direito está condicionada a reproduzir a ‘sabedoria’ codificada e a conviver ‘respeitosamente’ com as instituições que aplicam (e interpretam) o Direito positivo” (STRECK, p. 80).

Nesse sentido, uma das principais questões para a renovação do ensino jurídico é a renovação das metodologias de pesquisa e extensão jurídicas. “Pesquisa e extensão são ausências injustificáveis no processo do ensinar, ausências que fecham portas à realidade. A volta da escola à rua – a consolidação da união entre ensino, pesquisa e extensão – permite o confronto entre as teorias e o mundo, e permite arejar o discurso do ensino” (CORTIANO JR., p. 237-8).

4. Críticas e críticas

Observando essa realidade, em meados da década de 80, o professor FARIA descreveu de forma contundente a crise do ensino jurídico: “A educação a nível universitário converteu-se, então, numa banal e descompromissada atividade de informações genéricas e/ou profissionalizantes – como os alunos sem saber ao certo o que fazer diante de um conhecimento muitas vezes transmitido de maneira desarticulada e pouco sistemática, sem rigor metodológico, sem reflexão crítica e sem estímulo às investigações originais” (FARIA, p. 18). Essa crítica foi formulada em um primeiro momento, observando-se a questão do ensino num país que democratizava suas instituições.

Mesmo atualmente, essa proposta de crítica encontra motivação ao expor que “(…) o sentido comum teórico (habitus dogmaticus, que cerca e encobre o Direito) somente pode ser tornado visível a partir de um discurso que o des-oculte, que o des-cubra e que o denuncie!” (STRECK, p. 278-9). Todavia, é preciso superar essa concepção de crítica com objetivo de desconstruir o ensino jurídico tradicional. O momento histórico necessita de novas idéias para construção de um novo ensino jurídico. Isso porque o jurista cada vez mais se afasta da sociedade:

Há um grande descompasso entre o ensino do direito, o direito existente e a própria sociedade onde se produz este direito ensinado, ou não ensinado. Esse descompasso põe em dúvida os vários métodos de ensino, os conteúdos programáticos dos cursos de direito, as grades curriculares, a função das faculdades de direito e dos bacharéis que delas sairão. Põe em dúvida, enfim, todo o ensino jurídico no Brasil. Por isso as críticas à formação dos juristas que, baseada na valha aula-douta coimbrã, na pregação catedrática e no caráter livresco do ensino, acabou por revelar uma personalidade especial do bacharel, que foi comparado aos mandarins, pelo poder e pelos rituais que os cercavam (CORTIANO JR., p. 207-8).

Dois aspectos podem ser destacados nessa nova perspectiva de crítica. As reformas do ensino jurídico quase sempre se pautam na reforma curricular. É certo que “O currículo imprimiu uma ordem geométrica, reticular e disciplinar, tanto aos saberes quanto à distribuição desses saberes ao longo de um tempo” (VEIGA-NETO, p. 164). Mediante o currículo é possível observar a influência social sobre o curso de Direito, todavia existe outro currículo, o oculto, que ensina a disciplina, que cobra o legalismo, que rejeita a atitude crítica do aluno. “Vemos as escolas como um espelho da sociedade, especialmente o currículo oculto das escolas. A ‘sociedade’ precisa de trabalhadores dóceis; as escolas através de suas relações sociais e de seu currículo oculto, garantem de alguma forma a produção dessa docilidade” (APPLE, p. 83). Formando assim, um burocrata, um técnico jurídico com tons de Eichmann.

As reformas curriculares dos cursos jurídicos aumentam a carga horária das disciplinas propedêuticas e aumentam o instrumental de reflexão teórica do estudante. No entanto, não raro, mesmo nas disciplinas propedêuticas o método de ensino dogmático permanece. Nesse caso, ensina-se sociologia como dogma, história como dogma, filosofia como dogma. Por outro lado, “A riqueza do trabalho realizável através de uma reflexão interdisciplinar leva a concluir que a segregação dos conteúdos disciplinares, ainda vigente, é arbitrária e arcaica. Muitas vezes responde tão-somente aos recursos humanos disponíveis em cada Faculdade, isto é, a seleção das matérias e currículos é forjada em função dos temas que os professores existentes sabem ensinar” (CUNHA e WARAT, p.63-4). Por isso, “Não será com simples reformas curriculares, mas com a definição de um novo tipo de ensino em consonância com um novo tipo de ciência jurídica dialeticamente integrada à realidade social, que se poderão propor objetivos para um ensino do Direito engajado na construção de uma sociedade melhor e mais justa” (MARQUES NETO, p. 168).

Outra questão importante é a transposição didática:

A educação escolar não se limita a fazer uma seleção entre os saberes e os materiais culturais disponíveis num momento dado da sociedade. Ela deve também, a fim de os tornar efetivamente transmissíveis, efetivamente assimiláveis para as jovens gerações, se entregar a um imenso trabalho de reorganização, reestruturação, de ‘transposição didática’. É que a ciência do erudito não é diretamente comunicável ao aluno, tanto quanto a obra do escritor ou o pensamento do teórico. É preciso a intercessão de dispositivos mediadores, a paciência de aprendizagens metódicas e que não deixam nunca de dispensar as muletas do didatismo. ‘Toda prática de ensino de um objeto pressupõe a transformação prévia deste objeto em objeto de ensino’, observa Michel Verret. (FORQUIN, p. 32-3.)

Pela transposição didática pode-se vislumbrar a forma com que o conteúdo perpassa os níveis abstratos até chegar a compreensão do aluno. Os saberes acadêmicos precisam ser assimilados pelo professor, reinterpretados pelo professor para uma leitura que possibilite sua transmissão, precisam ser transmitidos pelo professor e por fim adquiridos pelos alunos. O caminho segue: saber acadêmico; saber reinterpretado pelo professor; comunicação do professor; e, por fim, captação do aluno. Saber como programar essa atividade em lições, matérias, etc. é uma tarefa árdua. Muitas vezes os saberes acadêmicos encontram-se imbricados uns nos outros, o que torna difícil sua separação. Na construção de situações didáticas pretende-se uma tradução pragmática dos saberes para atividades didáticas. Esse planejamento de atividades pressupõe o interesse dos alunos que em diversos casos precisam ser estimulados de diferentes formas. Os limites para o contato dos alunos com os saberes mostram-se como tarefa que não depende apenas do professor, mas de diversos outros elementos presentes no ato educativo como a disposição do aluno, os materiais disponíveis, as atividades que estão sendo organizadas na faculdade, entre outras. (Cf. PERRENOUD, p. 24 e Ss.) O que se ensina nem sempre é o que se apre(e)nde. Para tentar simplificar a questão, o professor de Direito agarra-se ao texto legal e sua memorização. Enfim, a transposição didática necessita de conhecimento pedagógico, estratégias de ensino e a consciência da impossibilidade de total efetividade da transmissão do conhecimento. Todavia, o professor de Direito, geralmente apenas um técnico especializado, ainda acredita ser possível uma transposição automática. Basta saber, transmitir o conhecimento é algo que se faz de qualquer forma. O professor sol irradia e resplandece conhecimento, essa é a maior ingenuidade do professor técnico de Direito.

Essas críticas podem ser balizadoras de uma nova proposta de ensino, entretanto não se bastam enquanto críticas. “Uma instituição consciente, contudo, não é aquela que se limita a elaborar críticas brilhantes, na pura reflexão, no discurso progressista. Criticar muito não é suficiente; tem que se fazer presente no mundo, transformando-o a partir da dialética prática/teórica. É pela transformação do mundo que se toma consciência dele” (RIBEIRO, p. 354). É preciso agir.

E a ação não se resume a métodos e técnicas. “O educador libertador tem que estar atento para o fato de que a transformação não é só uma questão de métodos e técnicas. Se a educação libertadora fosse somente uma questão de métodos, então o problema seria mudar algumas metodologias tradicionais por outras mais modernas. Mas não é esse o problema. A questão é o estabelecimento de uma relação diferente com o conhecimento e com a sociedade” (FREIRE e SHOR, p. 48).

Ora, sabe-se que existem alguns métodos e técnicas mais adequados do que outros. E esses, muitas vezes, não se iniciam com treinamentos ou especializações, mas com simples posturas de humildade. Freire já lembrava que o melhor método de ensino é o diálogo, diálogo que só acontece entre pessoas, seres humanos, seres incompletos, as quais precisam de humildade para ouvir o outro.

5. Novos caminhos?

A busca de novos caminhos para o ensino jurídico deve priorizar novas estratégias para superação do ensino dogmático. A primeira etapa, a análise e a crítica de seus problemas, já foi efetivada, se não sistematizada, pelo menos já denunciada. O problema atual, todavia, encontra-se na falta de alternativas práticas ao ensino dogmático. Isso ocorre devido à falta de objetivos concretos de mudança e pela falta de diálogo com o conhecimento pedagógico. Por isso, releva-se a discussão do objetivo do ensino jurídico. Esse objetivo pode, por exemplo, estar ligado a formação de uma ética pública cidadã, em que o profissional jurídico entenda-se responsável pela reconstrução de um país submerso de regimes autoritários e crises econômicas. O importante é que esses objetivos não sejam definidos de forma unilateral, antes em diálogo e provocação criativa.

Deve-se, então, privilegiar a indagação do porquê e para que se ensina o Direito, em detrimento das discussões técnicas relativas à excelência ou eficiência, maior ou menor, da aula expositiva comparada à aplicação, por exemplo, da dinâmica de grupos. É preciso perguntar, previamente, em que consiste saber Direito, para logo decidir como ensiná-lo (CUNHA e WARAT, p. 59). Professores e alunos precisam juntos discutir as razões que motivaram, na área jurídica, a produção de discursos substancialmente dogmáticos, ou de discursos metafísicos, como passo indispensável ao reencontro de um caminho que conduza os estudantes a uma formação e aprendizagem efetiva. As Faculdade de Direito devem deixar de ser centros de transmissão de informação para dedicarem-se, prioritariamente, à formação da personalidade do aluno, do advogado, do jurista, de sujeitos que saibam reagir frente aos estímulos do meio socioeconômico (CUNHA e WARAT, p. 60-1).

A reforma educacional proposta pela OAB, por exemplo, visa a restrição da abertura de cursos jurídicos, justificando-se na falta de qualidade desses. A restrição da abertura de cursos jurídicos não é uma solução coerente, apenas acarreta na reserva de mercado profissional. Não há efetiva melhoria do ensino, apenas restrição a ele. Uma reforma educacional em sentido radical visa a mudança cultural nas instituições de ensino (Cf. BENJAMIN, p. 47 e Ss.). As instituições privadas de ensino, criadas para suprir uma demanda de mercado, não pretendem formar um cidadão ou um profissional ciente de suas responsabilidades sociais. Essas pretendem apenas formar um técnico jurídico, todavia sem condições de assimilar a responsabilidade social de uma formação jurídica. Entretanto, extinguindo-se as instituições privadas criar-se-á outro problema: a restrição do acesso ao conhecimento jurídico. Antes, portanto, deve-se ponderar pela mudança cultural nos cursos jurídicos privados do que simplesmente fechá-los e, cinicamente, jogar a sujeira para debaixo do tapete.

Quando se afirma que a mudança é cultural, alude-se a idéia de que novos valores democráticos devem ser preferidos na construção e planejamento do ensino. Atividades de cunho investigativo devem ser priorizadas as atividades meramente expositivas. Aulas em que o professor apenas lê códigos e leis ou comenta doutrinas não desenvolvem no aluno o espírito participativo necessário numa sociedade a democratizar-se. Além disso, estratégias que busquem questionar problemas morais e éticos dos estudantes servem para problematizar situações pelas quais os alunos, quando profissionais, enfrentarão. Por fim, atividades de extensão universitária inovadora, que prestem assessoria jurídica a movimentos sociais e organizações da sociedade civil organizada, podem incentivar a atitude cidadã do aluno.

 A ‘abertura ao outro’ é o sentido profundo da democratização da universidade, uma democratização que vai muito além da democratização do acesso à universidade e da permanência nesta. Numa sociedade cuja quantidade e qualidade de vida assenta em configurações cada vez mais complexas de saberes, a legitimidade da universidade só será cumprida quando as atividades, hoje ditas de extensão, se aprofundarem tanto que desapareçam enquanto tais e passem a ser parte integrante das atividades de investigação e de ensino (SANTOS, p. 225).

6. Não chegue perto, senão te processo! (…) ou dizendo: oi…

A questão da interdisciplinaridade no ensino jurídico aparece como um dos pontos mais urgentes na reforma cultural. O professor de Direito, antes de buscar o diálogo com professores de outras áreas do conhecimento, preferem ser interdisciplinares lendo, sozinhos, obras de outras áreas do conhecimento. Essa atitude retira da interdisciplinaridade todo o seu sentido. O jurista lendo um livro de antropologia, antes de ponderar pela sua metodologia de pesquisa e conhecimento, cita frases como se o antropólogo fosse um jurisconsulto romano. Essa atitude revela uma certa ‘arrogância’ acadêmica, na qual o jurista concebe-se como intelectual superior. A origem dessa ‘arrogância’ talvez tenha suas raízes históricas, todavia não existe justificativa para mantê-la. Interdisciplinaridade exige diálogo entre pessoas que pensam de forma diferente, porém nunca de forma inferior. “Se alguém não é capaz de sentir-se e saber-se tão homem quanto os outros, é que lhe falta ainda muito caminhar, para chegar ao lugar de encontro com eles. Neste lugar de encontro, não há ignorantes absolutos, nem sábios absolutos: há homens que, em comunhão, buscam saber mais” (FREIRE, 1987, p. 81).

Nesse sentido, “(…) não mais se deve confiar o ensino jurídico aos limites estreitos e formalistas de uma estrutura curricular excessivamente dogmática, na qual a autoridade do professor representa a autoridade da lei e o tom da aula magistral permite ao aluno adaptar-se à linguagem da autoridade. Não se trata de desprezar o conhecimento jurídico especializado. Trata-se, isto sim, de conciliá-lo com um saber genético sobre a produção, a função e as condições de aplicação do direito positivo” (FARIA, p. 38). Pensar nas condições de formação do direito positivo significa pensar o direito a partir de outros olhares: histórico, sociológico, antropológico, filosófico, etc. “O ensino jurídico tem que buscar uma concepção totalizadora do direito, em que se encontrem suas diversas dimensões – dogmáticas, filosóficas, sociológicas e históricas. Não é possível reduzir o direito à técnica jurídica, apesar da necessidade do conhecimento minudente desta” (AZEVEDO, p. 64).

Para o ensino jurídico se desenvolver, talvez o primeiro passo seja o diálogo com os profissionais que estudam especificamente o ensino, os pedagogos. “O trabalho conjunto, integrado e interdisciplinar entre pedagogos e profissionais de Direito traria benefícios significativos para ambos e, com certeza uma qualidade maior para o Curso de Direito e também para o de Pedagogia considerando que seus profissionais e alunos teriam oportunidade ímpar para colocar em prática os ensinamentos trabalhados em salas de aula e outros ambientes especiais”. (VIANNA, p. 115.). Enfim, para renovar o ensino jurídico é necessário diálogo com outras áreas do conhecimento.

7. O novo espaço cotidiano

A referência a questão da reforma do ensino jurídico, a qual não pode ser efetivada a partir de mudanças meramente legislativas, traz um novo viés de pesquisa. Isso porque, “(…) há as formas mais sutis de resistência, em termos de atitudes negativas e de não cooperação e de ausência de ‘aceitação’ espontânea da autoridade” (APPLE, p. 94), resistências efetivadas pelos alunos contra o ensino dogmático e alienante. Para se pesquisar a questão do ensino jurídico e, a partir da pesquisa, estruturar novas alternativas ao ensino jurídico interessa partir das relações entre os sujeitos nesse universo escolar específico.

La norma educativa oficial no se incorpora a la escuela de acuerdo com su formulación explícita original. Es recebida y reinterpretada dentro de un orden institucional existente y desde diversas tradiciones pedagógicas en juego dentro de la escuela. No se trata simplesmente de que existan algunas prácticas que corresponden a las normas y otras que se desvían de ellas. Toda la experiencia escolar participa en esta dinámica entre las normas oficiales y la realidad cotidiana (ROCKWELL, p. 14). Es imposible inferir estos niveles de la experiencia escolar a partir de la documentación oficial. La reconstrucción de esa lógica requiere una análisis cualitativo de registros etnográficos de lo que sucede cotidianamente en las escuelas; su contenido no es evidente (ROCKWELL, p. 15).

Ora, para pensar o ensino jurídico de forma inovadora é preciso partir do cotidiano, das relações entre professores e alunos. Até mesmo porque, como já aludido, as normas educativas e burocráticas servem, na maior parte dos casos, apenas como exigência formal na qual os alunos apenas cumprem obrigações sem efetivar o que se pretende. Um exemplo dessa questão é a já aludida obrigatoriedade das horas complementares de extensão. A distorção de objetivos chegou a tal limite que surgem empresas especializadas em realizar eventos de extensão que fornecem horas aos alunos, algumas inclusive com palestras interativas em CD-ROM. Enfim, uma nova prática de comércio. Por isso, a vida cotidiana é mais rica em elementos inovadores ao ensino e, também, como objeto de pesquisa para a elaboração de alternativas para a mudança do ensino jurídico.

Geralmente quando se recorre a expressão ‘vida cotidiana’ associa-se essa a noção de rotina, dia-a-dia e banalidade. Todavia essa noção não é suficiente para uma análise teórica. Partindo-se da conceituação elaborada por Ágnes HELLER sobre o “cotidiano” pondera-se que esse significa: o tempo de vida de todo o homem em suas relações com o mundo imediato (Cf. HELLER, 1985, p.17 e Ss.). Certamente essa seja uma proposta conceitual restrita, mas serve de balizamento para a presente reflexão sobre o cotidiano. Cabe ressaltar que não é certo contrapor o fato histórico ao fato cotidiano, pois a História também é recheada de fatos cotidianos assim como os possíveis fatos históricos seriam inviáveis sem a substância do fato cotidiano (Cf. HELLER, 1998. p.19 e Ss.). Isso porque tudo que é apropriado pelo homem inicialmente é apropriado em seu cotidiano. A vida cotidiana serve para o homem como mediadora do mundo não-cotidiano (Cf. KOSIC, p. 59 e Ss.). A pesquisa, nesse sentido, abre novos rumos para pensar o ensino jurídico porque no cotidiano se encontra a janela necessária para se discutir questões não-cotidianas. Pelas atitudes do homem em relação ao seu mundo imediato é possível observar como as propostas gerais influem na sua vida prática.

O cotidiano também pode servir de elemento concretizador do próprio ensino. Nesse mesmo sentido, FREIRE insiste em iniciar o aprendizado pelo mundo cotidiano e imediato do aluno:

(…) minha insistência de começar a partir de sua descrição sobre suas experiências da vida diária baseia-se na possibilidade de se começara partir do concreto, do senso comum, para chegar a uma compreensão rigorosa da realidade. Não dicotomizo essas duas dimensões de mundo – vida diária do rigor, senso comum do senso filosófico, na expressão de Gramsci. Não compreendo conhecimento crítico ou científico que aparece do acaso, por um passe de mágica ou acidente, como se não precisasse se submeter ao teste da realidade. O rigor científico vem de um esforço para superar uma compreensão ingênua de mundo. a ciência sobrepõe o pensamento crítico àquilo que observamos na realidade, a partir do senso comum (FREIRE e SHOR, p. 131).

Partir-se do conhecimento do aluno, das relações do aluno com o mundo imediato. Essa perspectiva de aproximar o aluno do ensino, bem como a pesquisa da realidade, não significa que se deve permanecer apenas no cotidiano, no concreto, mas que esse seria o ponto inicial para alcançar-se o aluno e as relações dentro do universo escolar. “Se você estuda Ciências Sociais na universidade, segundo certa abordagem, aprende que a realidade é uma coisa, uma pesquisa, ou um modelo estatístico. Outra coisa, porém, é aprender sentindo a realidade como algo de concreto. Para aprender esse sentimento concreto, nada melhor do que ter trabalhadores como seus professores. Eles vivem a experiência das coisas que devemos estudar” (FREIRE e SHOR, p. 42). O cotidiano pode ser a argamassa necessária para um novo patamar de pesquisa e ensino jurídico.

8. Bibliografia
ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder, Rio de Janeiro; Paz e Terra, 1988.
APPLE, Michael W. Educação e Poder. (trad. Maria Cristina Monteiro) 2ª reimp. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.
AZEVEDO, Plauto Faraco de. Do Ensino Jurídico: conhecimento e produção criativa do direito. In: Direito e Democracia – Revista de Ciências Jurídicas Ulbra. Vol. 2, nº 1,  1º Semestre de 2001, Canoas: Editora Ulbra, 2000.
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FREIRE, Paulo. Educação como prática da Liberdade. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1969.
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FREIRE, Paulo & SHOR, Ira. Medo e Ousadia (O cotidiano do Professor). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
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HELLER, Ágnes. O Cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
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KOSIC, Karel. Dialética do Concreto. 3ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
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Informações Sobre o Autor

 

Ivan Furmann

 

Bacharel em Direito pela UFPR e Mestrando em Educação pela UFPR.
Curitiba-PR

 


 

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