Análise crítica dos institutos da prisão e da liberdade provisória no processo penal brasileiro

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Sumário: 1. Introdução e Justificação da Análise; 2. Da Prisão; 3. Prisão em Flagrante; 4. Prisão Preventiva; 5. Prisão Temporária, Prisão por Pronúncia e Prisão e Decorrente de Sentença Condenatória Recorrível; 6. Da Liberdade Provisória; 7Considerações Finais; 8. Bibliografia.


1. Introdução e Justificação da Análise.


Não é raro encontrar-se na doutrina uma extremada preocupação em assegurar um pretenso império da lei penal como forma de alcance do bem comum através da proteção social. Note-se que tal império deve ser relativizado frente às garantias aos direitos fundamentais impostas pela Constituição Federal de 88, que constitui a máxima hierarquia da legislação brasileira. Este tema, inclusive, já parece superado quando considerado à luz da Constituição. A posição doutrinária dominante que busca legitimar o abuso de tais direitos está fundamentada em paradigmas equivocados, propostos acerca da necessidade de controle da liberdade humana como forma de proteção à ordem, pecando precisamente na confusão entre a liberdade amparada pela Carta Magna e a socialmente funesta liberdade ilimitada. Como exemplo, analisemos a proposição de Tourinho Filho[1]:


Sendo a liberdade um dos direitos fundamentais do homem, natural deva a Constituição preserva-la. Quando da estruturação da Magna Carta, em que se faz a composição do Poder Público, procura-se delimitar o que podem e o que não podem fazer os órgãos que o exercem, e ao mesmo tempo, estabelecer barreiras intransponíveis para a tutela e resguardo dos chamados direitos fundamentais do homem, impedindo que o mau uso do Poder Público possa causar-lhes qualquer lesão. […] Por outro lado, o ordenamento jurídico proíbe determinadas condutas, cominando, como sanção, a privação da liberdade. […] Assim, na defesa da ordem, que o Estado deve preservar, natural tenha o Poder Público o dever de impor limitações mais ou menos intensas à liberdade individual, conquanto o faça dentro dos limites do tolerável.


[…]Sabe-se que a liberdade não é o direito de alguém fazer o que bem quiser e entender, mas sim o de fazer o que a lei não proíbe. Sem os freios da lei, a liberdade desenfreada conduziria ao tumulto, à anarquia, ao caos, enfim. Daí permitir-se, na Magna Carta, a restrição à liberdade, dês que tal restrição se faça com comedimento, dentro nos limites do indispensável, do necessário, e assim mesmo, cercada de reais garantias para que se evitem extralimitações do poder público.


Ora, parece óbvia a fragilidade da presente construção, posto ao que nos parece, amparar-se em uma premissa infundada. Pretendeu o autor justificar as limitações impostas pelo Estado à liberdade do indivíduo meramente com a alegação de que, caso contrário, estaríamos a mercê da “anarquia” advinda de uma pretensa “liberdade desenfreada”, o que evidencia a sutileza da pretensão do autor em relativizar a garantia, citada por ele, da atuação estatal limitada no campo das liberdades individuais. Com efeito, sob o pretexto de proteger-se a sociedade dos efeitos nefastos desta “liberdade desenfreada” ele fragiliza as garantias impostas ao poder público pretendendo deslocá-las do campo processual, onde devem residir, para o campo da discricionariedade do intervencionismo estatal na busca da proteção social. Tal entendimento é o hodiernamente dominante na doutrina e legitima abusos de toda ordem aos direitos fundamentais como costumeiramente observamos na praxe policial e jurisdicional.


O ponto nevrálgico da assertiva proposta pelo autor reside pontualmente na “liberdade” de que ele trata, ora quando se refere à liberdade tutelada pela Carta Magna, ora quando aponta para a liberdade de “fazer o que bem quiser”. Por óbvio, não se trata da mesma liberdade e, portanto, os prováveis efeitos nefastos de uma não poderiam, em nenhuma hipótese, servir para justificar a relativização da outra. Com efeito, o objeto da tutela consagrada no art 5º, LIV é a liberdade de ir e vir – diretamente cerceada pela clausura –, de fazer tudo o que não for defeso por lei, com a garantia de não ser sujeitado ao cárcere sem que seja por imposição de pena estatal, precedida de um processo justo, onde todos os direitos fundamentais sejam assegurados que, em última análise, resulta da liberdade de consciência, de sermos quem somos e continuarmos dessa forma, liberdade esta a que o Estado não pode ter acesso sob argumento algum visto não estar pactuada no contrato tácito que convencionalmente rege a associação que o consubstancia. Sem embargo, o espírito que moveu o legislador constituinte decerto foi o de impedir que este Estado pudesse tolher de seus cidadãos aqueles direitos que ele próprio protege e legitima e que precisamente constituem a justificativa básica de sua existência. Afinal, pode-se dizer que a liberdade, assim entendida, é o principal direito do homem frente ao Estado – atrás apenas do direito à vida – posto que, sem este, todos os outros são erradicados ou, ao menos, deveras prejudicados. Frise-se que o gozo indiscriminado da liberdade aqui tratada não possui potencial ofensivo algum, ao contrário, contém intrínseco a resistência contra a massificação da moral estatal, cuja garantia evidencia o caractere libertador do indivíduo frente ao Estado que denota o respeito à diversidade, peculiaridade fundamental do Estado Democrático de Direito. Concluindo, não há injustiça maior que infligir a um inocente, e todos somos, até sentença judicial definitiva em contrário, um mal, diversas vezes, maior que aquele próprio o qual se pretende punir, ou seja, o prejuízo jurídico ocasionado pelo Estado em sua potestade punitiva acaba por ser maior que aquele determinado pela conduta lesiva que motivou sua atuação. Admitir um risco desta magnitude sob o abstrato e frágil pretexto de proteção social consiste claramente em uma excrescência, afinal, a sociedade é formada por todos nós e como poderemos nos considerar protegidos se aquele ente responsável por nossa proteção pretende torná-la efetiva transcendendo sua atuação legítima  e transgredindo nossos direitos, delimitados tacitamente no ato de constituição daquele? Parece-nos ser este um risco ainda maior, pois a quem poderemos recorrer para garantir estes direitos se estes forem atacados por quem foi criado para garanti-los?


Por outro lado, aquela liberdade temida por Tourinho Filho integra aquela parcela dos nossos direitos naturais da qual todos nós, tacitamente, já abrimos mão quando nos sujeitamos ao convívio social estatalmente organizado, por assim dizer. Certamente que o gozo de tal liberdade dentro da presente ambiência acarretaria a desestruturação da sociedade como a concebemos modernamente e nos levaria a algo como o “estado de natureza” proposto pelos filósofos contratualistas do período pré-iluminista, onde os indivíduos auto-tutelariam seus direitos, acabando por prevalecer as razões dos mais fortes. Ocorre que toda a força contida no Estado emana da comunhão de todas as parcelas individuais destes pretensos direitos naturais e é aí que encontra sua legitimação.  Ou como na lição do Professor Marcelo Oliveira de Moura[2]:


A noção de esfera de direitos reservada, a qual não é negociado no pacto, decorrente da doutrina contratualista de John Locke, dá ao Estado um caráter limitado, sendo que na esfera penal provoca uma restrição profunda no seu campo de incidência, fundando um típico modelo minimalista de intervenção, assim como alterando a noção da pena – agora sem fins morais – e provocando a emergência de um modelo processual de matriz acusatória, rechaçando-se todas as práticas processuais totalitárias do processo medieval-absolutista.


Assim, percebe-se o estabelecimento de balizas bem definidas no que tange a atuação legítima do Estado via penal no sistema de idéias que emerge da crítica ao modelo do ancién regime. O núcleo de direitos não pactuados no rompimento com o “estado de natureza” define o racional e o arbitrário no que respeita ao exercício do jus puniendi estatal.


Portanto, não é nesta liberdade em que atua o Estado quando pretende impor o império da legislação penal, pois esta já não se encontra de posse do indivíduo, mas sim de sua própria. Sem embargo, a liberdade remanescente ao individuo consubstancia-se em seus direitos fundamentais (somados àqueles resultantes do próprio Estado) e é forçoso aceitar que somente a garantia de tutela desta parcela pode justificar a cessão da outra. É por isso que a restrição dos direitos fundamentais imposta pelo Estado só se justifica quando comprovado por meios legais o atendimento ao real interesse social e o único meio legalmente previsto hoje para tanto é o processo penal apoiado em todas as premissas garantistas.


2. Da Prisão.


A única garantia real que pode legitimar a imposição de qualquer medida de natureza penal contra um indivíduo é o processo penal que culminará, se for caso, com a pena. Certamente, mesmo fora deste contexto pode-se conceber a prisão, porém em casos absolutamente excepcionais onde o magistrado interpretará de forma restrita o código de processo penal à luz da Constituição Federal. Entretanto, evidentemente não seria ela baseada na construção de Tourinho Filho, para quem o estado age no controle da “liberdade desenfreada”. Infelizmente, grande parte da doutrina acerca do assunto coaduna a mesma linha de raciocínio retrógrada e equivocada. Sob o pretexto do interesse coletivo e do bem comum o senso dominante defende a transgressão de direitos individuais, esquecendo-se talvez, que somos nós, individualmente, que formamos a coletividade, ou como nas palavras de Norberto Bobbio[3]:


É preciso desconfiar de quem defende uma concepção antiindividualista da sociedade. Através do antiindividualismo, passaram mais ou menos todas as doutrinas reacionárias. (…) Ao contrário, não existe nenhuma Constituição democrática, a começar pela Constituição republicana da Itália, que não pressuponha a existência de indivíduos singulares que têm direitos enquanto tais. E como seria possível dizer que eles são “invioláveis” se não houvesse o pressuposto de que, axiologicamente, o indivíduo é superior à sociedade de que faz parte?


Estranhamente, aquela mesma doutrina defende a previsão de determinadas prerrogativas para classes ou pessoas específicas, esquecendo, nestes casos, do bem comum e preocupando-se com o indivíduo. A prisão especial prevista no art. 295 do Código de Processo Penal pátrio é um exemplo típico. Este instituto prevê o recolhimento a locais diferenciados e em separado dos presos comuns das pessoas elencadas no rol do artigo em questão, no caso destas estarem sujeitas a prisão. A doutrina dominante apóia-se na justifica da majestade destas pessoas que as tornariam mais esclarecidas quanto à reprobabilidade de seus atos e as confeririam uma pretensa maior sensibilidade ao cárcere, tornando-as merecedoras de uma atenção especial. Segundo o instituto da presunção de inocência consolidada pelo art. 5º LVII da Constituição Federal todos somos inocentes até sentença judicial definitiva. Tal inocência, por óbvio é absoluta, ou seja, seria absurdo falar-se em uma gradação de inocência (mais ou menos inocente). Portanto, sendo todos igualmente inocentes, qual a justificativa dessa verdadeira regalia concedida a determinadas pessoas? Ou ainda, à luz do princípio da isonomia, segundo o qual todos somos iguais perante a lei, o que legitima tomá-las por mais sensíveis ao cárcere ou dignas de atenção especial? Claramente trata-se de indício da cultura de estigmatização das classes sociais mais baixas como “clientes preferenciais” da justiça penal, onde estes são tratados como culpados em potencial enquanto outros realmente gozam de presunção de inocência. Trata-se de clara inobservância do princípio da isonomia e afronta inequívoca ao princípio da presunção de inocência a que todos fazemos jus, indiscriminadamente. Excluem-se, por óbvio, desta crítica os policiais, juízes, e qualquer funcionário da administração da justiça criminal para quem configuraria verdadeiro risco de vida a cela comum em razão do perigo quanto a atos de represália dos demais presos.


Para melhor entendimento do estudo a que nos proporemos a seguir, cumpre dedicar breves linhas à delimitação do conceito jurídico de prisão. Aqui, faz-se satisfatório o entendimento de prisão como sendo a supressão da liberdade individual de ir e vir advinda da atuação estatal. A doutrina admite duas espécies integrantes deste conceito, a saber: a prisão-pena e a prisão sem pena. A primeira não será alvo de reflexões visto que consiste no cerceamento de liberdade conseqüente da condenação judicial definitiva, do trânsito em julgado da decisão judicial que acarreta na sua irrecorribilidade. Trata-se, portanto, da legítima sanção penal estatal quando esta impuser tal conseqüência, não cabendo mais discussão acerca da legitimidade e legalidade de sua aplicação já que estas estão latentes no devido processo que a precedeu. A segunda, como já dissemos, chamada de prisão sem pena, é exatamente aquela de que nos ocuparemos em nosso estudo, consistindo basicamente na prisão desvinculada de condenação judicial definitiva e também conhecida como prisão cautelar no sentido amplo (nos referiremos sempre à prisão cautelar nesse sentido). Em que pese estar consagrada em diversas leis brasileiras nos ateremos apenas às suas previsões contidas no Código de Processo Penal Brasileiro posto que este é o alvo principal da reflexão crítica a que se propõe o presente trabalho. Pretende-se evidenciar a necessidade de uma abordagem constitucional dos dispositivos previstos no CPPB e não erigir um tratado acerca do tema, portanto o foco fixar-se-á muito mais no paralelo constitucional do que na pormenorização dos tipos de prisão cautelar contidos no Código. Estes serão brevemente apresentados e de imediato levados a sabatina frente às garantias fundamentais previstas na Constituição Brasileira.


Entretanto, a prisão desvinculada da pena, entendida como aquela levada a cabo ainda antes do trânsito em julgado no respectivo processo penal, não constitui de todo uma excrescência, pois tem sua valia, atendendo a determinados fins. Nesse sentido explica o ilustre professor Aury Lopes Jr[4]:


A prisão cautelar tem como fundamento principal o periculum libertatis, visto como a situação de perigo para o normal desenvolvimento do processo causado pela situação de liberdade do autor do delito. A prisão cautelar, quando corretamente utilizada, contribui para a efetividade do processo e o fortalecimento da confiança da sociedade nos mecanismos formais de controle da criminalidade.


Ou seja, a prisão cautelar consiste em medida cautelar de caráter pessoal a ser imposta tanto na fase pré-processual, como em alguns casos, no curso do processo e só se justifica se aplicada de forma a garantir a efetividade do processo penal que, porventura, possa estar ameaçado pela liberdade do indiciado/réu. Trata-se de meio para afastar o periculum libertatis, existente quando a prisão se impuser como único meio à configuração da existência do crime e de sua autoria ou quando o autor do delito utiliza-se da prerrogativa de estar em liberdade de forma ardilosa, claramente obrando em desfavor do processo, modificando provas ou coagindo testemunhas.


Dito isso, passaremos a conceituação das espécies de prisão cautelar consagradas no CPPB.


3. Prisão em Flagrante.


Está prevista no Capítulo II do Título IX do CPPB, regulada nos arts. 301 a 310. Consiste na prisão ocorrida no momento da consecução do delito em virtude deste não possuir o caráter furtivo, tendo sido visto no instante de sua prática. Desde já salientamos que apesar o flagrante não abriga qualquer caráter punitivo em sua prisão posto que não é pena. Sem embargo, acertadamente, entende-se a prisão em flagrante também como uma forma de prisão cautelar posto que o flagrante não constitui, tampouco dá margem, a qualquer juízo de pré-culpabilidade e, portanto, não deve afetar a presunção de inocência, o que nos força a crer que a prisão nestes casos consiste tão só em forma de acautelar o normal transcurso do inquérito. Com efeito, no moderno entendimento acerca deste instituto, afastou-se a noção de que o flagrante viria a consistir na certeza visual do crime posto que não pode configurar nem certeza visual já que as demais provas colhidas podem perfeitamente refutar a autoria inicialmente atribuída configurando esta em equívoco e nem, tampouco, a efetiva existência de crime visto que não se pode-se afastar a possibilidade de provar-se a inexistência de ilicitude no ato, já que as excludentes da ilicitude estão consagradas em nosso Código Penal, o que evidencia o caráter cautelar desta medida.


Este acautelamento se dá, a nosso ver, por meio da utilização do momento oportuno para produção da prova de materialidade do delito e da determinação de sua autoria como forma de garantir a efetividade do processo penal que poderia ser prejudicada no caso de não produzirem-se tais provas no momento adequado. Além desta cautela, a doutrina dominante entende que haja na prisão em flagrante uma prevenção à ordem pública ou à aplicação da lei penal. Entendemos ser descabido e perigoso esse postulado, pois abre margem a que se transcenda à cautela e se legitime o abuso, devendo repousar apenas no interesse do processo a sua justificativa. Sobre este ponto falaremos com maior cuidado no comentário acerca da prisão preventiva. Por hora basta dizer que o ato da prisão no momento do flagrante e a lavratura de seu auto já cumprem satisfatoriamente o único objetivo a que ela se propõe – produção de prova – e, portanto, não há nada que justifique a manutenção do indiciado no cárcere. O CPPB condiciona concessão da liberdade provisória ao preso a não existência das circunstâncias que autorizam a prisão preventiva. Após nossas considerações acerca da prisão preventiva – onde refutaremos as demais circunstâncias justificadoras de sua decretação, restando, ao final, apenas a conveniência da instrução criminal e o asseguramento da aplicação da lei penal como únicas legitimadoras de tal medida – ficará claro que não existe meio de vincular uma à outra, posto que, no caso do flagrante, a lavratura de seu auto é a própria prevenção, a conveniência em si, sendo a manutenção da prisão absolutamente absurda. À luz de uma rígida interpretação das garantias impostas pela Carta Magna, pode-se conceber a decretação da prisão preventiva mesmo em situações em que houve o flagrante, porém, apenas após a soltura do indiciado e se este fizer jus a esta por outros motivos.


As previsões legais que prevêem a denegação da liberdade provisória ao indicado por determinados tipos de crimes são estúpidas e funestas, configurando claro atentado ao princípio da presunção de inocência. Com efeito, significa atribuir ao indiciado um juízo de pré-culpabilidade, posto que do contrário, o que justificaria sua permanência no cárcere? Todos somos inocentes até o transito em julgado de sentença judicial penal e essa garantia independe do crime de que somos acusados. Trata-se de medida voltada à satisfação da opinião pública abalada pela repugnância da conduta a expensas do nosso maior bem a que todos temos a manutenção assegurada: a liberdade. Não se pode mais admitir que os pré-julgamentos comuns em nossa sociedade midiática influenciem de maneira tão incisiva a produção legislativa. Nesta esteira cabe ao judiciário assumir seu papel de garantidor das garantias individuais e fazer valer as tutelas consagradas na Constituição contra os abusos contidos na legislação ordinária que, em última análise, consistem em hipócritas tentativas de seus formuladores em disfarçar a preocupação com os anseios populares quando, ao mesmo tempo, contribuem para relegar uma imensa maioria a mais absoluta miséria e ignorância em virtude de seu descaso e corrupção.


4. Prisão preventiva.


Esta espécie de prisão costuma ser chamada também de prisão preventiva stricto sensu para denotar o sentido estrito em que é utilizada sua nomenclatura. Sem embargo, todas as modalidades de prisões cautelares são, em última análise, também preventivas, em sentido amplo, visto seu caráter de prevenção a percalço que impeça o alcance de determinado fim. Assim podemos entender também a prisão em flagrante como uma prisão preventiva. Para evitar mal-entendidos, convencionou-se utilizar, neste estudo, a expressão “prisão cautelar” sempre com conotação ampla e apenas “prisão preventiva” quando tratar-se do sentido estrito, referindo-se àquela regrada pelos arts. 311 a 316 do CPPB.


Como toda prisão que venha a ser levada a cabo antes da efetiva condenação, consiste em medida odiosa e que encontra razoabilidade apenas dentro de estritos motivos e somente em casos excepcionais. Em que pese ser medida que faz jus muito mais a críticas do que a aplausos, torna-se necessária em casos específicos onde a liberdade do pretenso autor do delito represente claro prejuízo ao processo, mesmo que este ainda não tenha sido iniciado, posto que é admitida tal prevenção também durante o inquérito policial.


O Código de Processo Penal pátrio dispõe como fundamentos necessários à decretação da cautela pelo judiciário a “prova da existência do crime” e o “indício suficiente de autoria”. Desse modo só se pode conceber a adoção dessa medida nos casos em que houver certeza da existência do crime, ou seja, quando não houver duvidas quanto a consecução da conduta, de sua efetiva tipificação e de sua ilicitude, e quando houver suficientes indícios que revelem a sua autoria. Neste ponto cabe destacar que apesar do CPPB utilizar a expressão “indício” que poderia levar a um equivocado entendimento que seria suficiente um juízo de possibilidade – quando as razões favoráveis ou contrárias à hipótese são equivalentes – para utilização da medida, quando a coaduna com a expressão “suficiente” deixa clara a intenção de exigir no mínimo a verificação da probabilidade – predomínio das razões favoráveis sobre as contrárias – de sua autoria.  


Não obstante, a simples verificação dos pressupostos não é suficiente à adoção da medida cautelar em tela – entendimento pacífico, porém, que não se observa diversas vezes na atuação do judiciário pátrio – sendo necessária também a observância de pelo menos uma de suas circunstâncias, ou seja, a decretação da prisão preventiva deve, obrigatoriamente, estar fundamentada na observância de todos seus pressupostos, da forma exposta no parágrafo anterior, e conjugada a prova inequívoca da existência de alguma das circunstâncias elencadas pelo Código, a saber: garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal.


Em que pese estarem previstas no Código estas quatro circunstâncias, devemos cotejá-las com os fundamentos que justificam a aplicação de medidas cautelares pessoais respaldados pelos direitos consagrados em nossa Constituição para verificarmos qual ou quais delas detém realmente legitimidade, ou melhor, legalidade constitucional. Parece evidente que a primeira circunstância aludida pelo CPPB, a garantia da ordem pública, é inegavelmente extraprocessual e muito mais afetas à satisfação popular do que à cautela processual além de tratar-se de conceito excessivamente vago e aplicável em qualquer situação. Trata-se de clara relativização da presunção de inocência em prol do atendimento ao clamor público pela justiça frente à conduta delituosa. Mas que justiça pode haver em infligir a um inocente uma verdadeira pena para saciar o furor punitivo da sociedade? Certamente nenhuma. Portanto, não pode o judiciário querer sobrepor-se à Carta Magna e decretar a prisão preventiva baseada nesta circunstância. Da mesma forma, tem caráter também extraprocessual a segunda circunstancia arrolada, a garantia da ordem econômica, pois não acresce prevenção alguma ao processo, consistindo em meio extravagante e descabida de controle da ordem econômica que deveria ser preservada de maneira mais eficiente, não sendo esta a maneira ideal de coibir abusos contra esta. Trata-se de dispositivo patentemente repressivo e infundado, devendo ser considerada autoritária a prisão preventiva fundada nesta circunstância.


Por sua vez, o asseguramento da aplicação da lei penal envolve necessariamente a previsão de uma possível fuga do acusado. Por óbvio não estaria amparada pela Constituição uma prisão fundada em mero receio de fuga, pois então todos, indiscriminadamente, estariam a mercê desta medida visto que não há nada mais intuitivo que o ato de um inocente escapar frente à iminência de um injusto. Surge então a questão: quais fundamentos podem realmente justificar um juízo desta natureza? Parece ser esta uma certeza impossível de ser verificada e grande parte da garantia de aplicação dos direitos fundamentais pelo judiciário reside exatamente na verificabilidade das razões argüidas pelo juiz em suas decisões. O que pode haver são indícios de uma intenção de foragir-se. Mas não são suficientes para justificar o cárcere de um inocente posto que este tem o direito de planejar qualquer ilícito. A certeza só estaria amparada pela tentativa cabal e inquestionável de esconder-se fora do alcance jurisdicional e aí então caberia a prisão. Ressalte-se que admitimos esta hipótese no presente trabalho apenas por acreditarmos que a consciência geral ainda está demasiadamente impregnada pelo ideal repressivo de atuação penal para conceber esta, também, como uma prisão estúpida.  No entanto, esperamos que com o tempo o senso comum possa conceber formas mais democráticas e menos autoritárias de controle do acusado para garantir a afetividade do processo, hodiernamente cumpre aceitá-la como um mal ainda necessário.


Conclui-se, portanto, com as considerações acerca daquela que parece ser a circunstância por excelência na justificação da prisão preventiva. Com o efeito a conveniência da instrução penal é o mais legítimo motivo na decretação desta medida cautelar, pois tende exatamente a garantir a efetividade do processo penal e afastar aquele perigo da liberdade, existente quando o autor do delito utiliza-se da prerrogativa de estar solto para obrar em desfavor do processo e prejudicar a instrução do juiz acerca do fato. Ressalte-se que se considerados todos os argumentos aqui expostos quanto a prisão preventiva, é forçoso aceitar uma patente relativização das hipótese legais dos incisos II e III do art. 313 que claramente prejudicam o acusado e devem ser interpretados a luz da Carta Magna.  


5. Prisão Temporária, Prisão por Pronúncia e Prisão e Decorrente de Sentença Condenatória Recorrível.


A prisão temporária não está consagrada pelo Código de Processo Penal Brasileiro estando prevista pela Lei nº 7.960/89 e por este motivo não nos ateremos a ela posto que o escopo do trabalho é a análise do referido código. Porém, como a doutrina em sua imensa maioria dedica atenção a esta modalidade de prisão tida como cautelar, cumpre um breve comentário. Na realidade, a medida em questão não possui caractere algum de cautelaridade. Seus fundamentos são absolutamente repressivos e inconstitucionais, visto que não contemplam nem o perigo em libertar e nem o indício de prática do delito estando fundados na conveniência do aparelho jurisdicional e de sua polícia administrativa e, portanto, eivados de discricionariedade. Curioso ter ocorrido sua legalização na nossa moderna fase democrática enquanto durante anos de regime autoritário, apesar de ser prática comum, nunca se conseguiu positivar e não passa de mais uma ferramenta de estigmatização de classes e encenação política. A medida em tela talvez represente o mais fulminante e inaceitável ataque ao princípio constitucional da presunção de inocência e se contou com o arrimo do legislador ordinário o mesmo prestígio não pode gozar do judiciário.


O mesmo princípio também perece nas duas outras medidas epigrafadas. A prisão por pronuncia é aquela prevista no art. 408 do CPPB decorrente de uma sentença de pronúncia que poderá, ou não, ser impetrada contra o réu com o objetivo de submetê-lo ao julgamento do júri popular nos casos de crimes dolosos contra a vida. Já a decorrente de sentença condenatória recorrível é a prisão prevista pelos arts. 393 e 594 do mesmo código que determina a prisão do réu no caso de proferida sentença judicial condenatória, ainda que dela caiba recurso e, na prática, consiste claramente numa execução antecipada da pena. Considerando que nos dois casos o réu ainda não foi definitivamente condenado e, portanto, sob a égide da presunção de sua inocência, fica claro que o juiz não pode querer sobrepor-se à Constituição sob o pretexto de aplicação de lei inferior.


6. Da Liberdade Provisória.


Como já dissemos anteriormente, o objetivo do presente trabalho não é erigir um tratado acerca dos institutos por ele abordados, mas sim, iniciar uma reflexão crítica admitindo a evolução do pensamento jurídico nas últimas décadas. Esta evolução criou novos dogmas jurídicos ao passo que fulminou outros, tornando necessária a releitura de diversos dispositivos legais para adaptação a nova realidade. É claro que este é um processo lento, posto que é a sociedade que muda o direito e não o contrário, mas ainda mais lento ele se torna em países com um déficit cultural elevado, que acaba tornando algumas parcelas da sociedade mais resistentes às mudanças, mesmo quando os males remediados pela transformação são os que as afligem mais diretamente.


A liberdade provisória é um exemplo destes institutos que parecem fadados a desaparecer, pois estão calcados em paradigmas superados. Seu próprio nome representa uma afronta às modernas concepções acerca do processo penal, posto que se todos nós gozamos da prerrogativa de sermos considerados inocentes durante todo o processo, ou mesmo antes dele, e como tais com pleno direito à liberdade, qual será o fundamento de chamar-se “provisória” aquela liberdade que o juiz garante ao indiciado/réu? A doutrina esmera-se na tentativa de justificar a nomenclatura como sendo oriunda do fato de tal instituto ser sucedâneo da prisão provisória e por isto ter-lhe herdado o nome, ou em função de ser ela uma liberdade limitada, diferente da que a precede e que a sucederá, portanto provisória.


Ocorre que mesmo uma reflexão rasa fulmina estas justificativas e revela que a terminologia utilizada reflete a consciência do legislador à época da elaboração do ainda vigente código. Com efeito, o CPPB data de um período ditatorial, quando o mundo conhecia a faceta mais perversa do positivismo penal levada a cabo por regimes autoritários em todo o ocidente, com destaque para Alemanha e Itália. Não houve sequer pudor do legislador em admitir esta influência em sua Exposição de Motivos. Ora, é patente a característica antidemocrática e intolerante de tais regimes. As garantias individuais eram deveras preteridas frente a um pretenso interesse social utilizado para legitimar abusos inomináveis. Nessa linha fica fácil presumir que a liberdade tratada pelos arts. 321 e seguintes do código é encarada como uma concessão judicial, uma verdadeira liberalidade estatal com aquele que na realidade deveria estar preso posto que cometeu um delito, mas que por certas peculiaridades “livra-se solto”. Mas perdurará tão somente enquanto o Estado acreditar na conveniência de sua liberdade. Por isso tê-la como provisória.


Trata-se de abominável inversão de valores na medida em que considera o indivíduo potencialmente culpado e, portanto carente da benesse do Estado em permitir que se livre para responder à acusação. Pode parecer estranho formular tão dura crítica a um instituto que versa sobre a liberdade, porém, não é a liberdade o alvo da crítica e sim a forma como ela é tratada que acaba por legitimar o entendimento de que cabe ao estado escolher quem a desfrutará. O entendimento mais condizente com os ideais liberais e democráticos é o de assumir a liberdade como caso absolutamente geral, cabendo ao Estado definir – como já fez e estudamos acima – apenas as situações em que se faz necessária a sua privação. A fiança, que em alguns casos é exigida, também merece críticas. Por que um inocente deve despojar-se seus bens materiais para ter acesso a um direito previsto na Constituição? Este parece ser realmente o cerne de todo o problema: precisamos internalizar em nosso âmago a presunção de inocência e aceitar que inocente é aquele que nada fez, que de nada tem culpa e que este juízo deve ser absoluto, sem margem para dúvidas, pois a medida que se duvida da inocência se acredita na culpa e então caem por terra todas as garantias processuais conferidas a todos nós, consistindo em precedente perigoso e que afeta a todos, indiscriminadamente. Acreditamos que o princípio constitucional da presunção da inocência cotejado com as hipóteses processuais que determinam as espécies de prisão sejam suficientes para o controle do problema. O Estado deve preocupar-se em restringir as previsões de privação e não de gozo da liberdade.


7. Considerações finais


Com efeito, cumpre ao Estado potencializar sua ação na área social com o implemento de políticas públicas que incrementem a distribuição de renda, a educação e a saúde, conferindo dignidade a seus cidadãos. É irracional esperar que um povo marginalizado credite no Estado a sua confiança, a ponto de sentir-se na obrigação de respeitar as suas leis. Tais normas são, em última análise, as amarras convencionais que nos impedem de gozar livremente de uma pretensa liberdade ilimitada, consistindo claramente no ônus a se suportar no alcance do bem comum, porém tal bem só é comum a alguns poucos, não atingindo uma considerável parcela da população brasileira que acaba por ficar apenas com o ônus e se vê atraída, então, a romper com tais convenções, culminando por alimentar a criminalidade. Esta massa só teve contato com a face opressora do aparelho estatal. É preciso que ele mostre também sua face libertadora, garantidora de direitos, para então poder cobrar legitimamente os deveres recíprocos. Neste ponto tem o judiciário um importante papel devendo nortear sua atuação a tornar efetivas as garantias há muito normatizadas, pois por mais virtuosa que sejam as leis, serão inúteis se quem for responsável por observá-las não for igualmente virtuoso.


 


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Notas

[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. V. 3, 27 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 403.

[2] No Sítio: www.ucpel.tche.br/direito/revista/vol4/15.doc

[3] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Nova ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 115-116.

[4] LOPES Jr., Aury. Sistemas de Investigação Preliminar no Processo Penal. 01 ed. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2001, p.47.


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Ricardo Poll Costa


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