Da possibilidade de ser o réu mantido algemado durante o plenário do júri

Tem sido objeto de debate a manutenção do réu, durante a audiência, devidamente algemado, conforme abordado na primeira das ementas acima transcritas. Bem como sua permanência, na mesma condição, durante o julgamento pelo Júri, situação que foi tratada na segunda das ementas colacionadas.

Analisaremos, mais especificamente, a segunda situação, ou seja, da legalidade ou não de ser o réu, no julgamento em plenário, mantido algemado.

Questão que se coloca é a conveniência da manutenção do réu algemado no primeiro instante em que é apresentado ao juiz, na hipótese tratada no art. 449 do CPP, bem como enquanto perdurar o julgamento. O tema tem merecido entendimentos antagônicos na doutrina. O eminente professor da USP e Procurador de Justiça aposentado, Antônio Magalhães Gomes Filho, posiciona-se frontalmente contrário à utilização de algemas durante o julgamento. Para ele “esse tipo de tratamento imposto ao acusado, além de aviltar os direitos humanos mais elementares, compromete a igualdade das partes que caracteriza o processo acusatório e é condição primeira do fair hearing nos países civilizados e afirmado pelos textos internacionais, sem o qual não será possível atingir-se uma decisão correta e imparcial”. Diz-se, ainda, que a utilização das algemas seria capaz de acarretar uma má apresentação do acusado diante de seus julgadores que, leigos, poderiam se impressionar com a cena e, desde logo, emitirem um juízo de valor desfavorável ao réu. Assim, ficaria a critério do juiz, como manifestação do poder de polícia que lhe é inerente (art. 497), decidir sobre a conveniência ou não de se manter o réu algemado. Esse entendimento é bem refutado na obra de Marrey, Franco e Stoco, para quem, à exceção do interrogatório, a manutenção do réu algemado não importa em qualquer espécie de constrangimento.

Na jurisprudência prevalece o entendimento que autoriza o uso de algemas em plenário. Nesse sentido, RT 744/645, 675/371, 694/318. No STF, RHC 65.465-SP – j. em 5.9.78, Rel. Min. Cordeiro Guerra. No TJSP, confiram-se RT 694/318, 601/320, 675/371. Em posicionamento minoritário, tem-se RT 643/285, 785/692. Merece destaque ainda, nessa linha, artigo publicado na Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, 16/11, da lavra de Luis Guilherme Vieira.

De se ver, inicialmente, que a matéria não está prevista em lei. O art. 199 da Lei de Execuções Penais (Lei nº 7.210/84), anterior à Constituição em vigor, com efeito, deixou para um decreto federal a disciplina a respeito do uso de algemas, que, até agora, sem embargo da relevância do tema, não foi editado (cf., Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, “Emprego de algemas – Notas em prol de sua regulamentação, RT 592/275).

Dizer-se que a manutenção do réu algemado é cena capaz de influir no espírito do julgador leigo, não parece totalmente correto. Há situações, aliás, que se verifica exatamente o contrário, ou seja, uma certa compaixão do jurado com a figura do réu que, cabisbaixo e por vezes choroso, ingressa em plenário imobilizado pelas algemas. De qualquer sorte, a se privilegiar esse entendimento, não poderia o acusado ocupar o chamado banco dos réus, porque os jurados seriam sugestionados com esse posicionamento. Ademais, nem de réu ou acusado deveria ser chamado, sob pena de se violar o princípio da presunção de inocência. Tampouco a utilização do uniforme cedido pelo estabelecimento prisional seria admitido, ante a má impressão que o traje causaria ao conselho de sentença. E mesmo a presença de policiais ao seu lado, por si só, já ensejaria a antecipação de um veredicto condenatório, sem contar no inadmissível vexame acarretado ao réu com tão incômoda presença. Parece óbvio o equívoco de tais entendimentos, a merecer uma análise desapaixonada e mais consentânea com o atual estágio de violência que assola o país.

Pois bem. A afirmativa de que textos internacionais inibiriam sua utilização não é totalmente correta. De sorte que o art. 33 das Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas (ONU), impede o uso de “algemas, correntes, grilhões, e camisas-de-força”, como sanção ou meio de coerção, admitindo, no entanto, sua utilização “como medida de precaução contra fuga”, embora devendo ser retirados quando na presença da autoridade judicial. Ora, quando o réu se submete a julgamento pelo Júri, ela não se encontra, apenas, na presença do Magistrado, mas em contato com o acusador (por quem, decerto, não nutre grande simpatia), com seu defensor, com os serventuários da Justiça, com os jurados e, não raras vezes, com um público numeroso que ocupa o auditório. Assim, a precaução que deve ser adotada pelo juiz é muito maior do que aquela observada, por exemplo, quando o réu é levado à sua presença para interrogatório em uma sala de audiências, acompanhado de dois ou três policiais que se revelam suficientes para garantir a segurança das poucas pessoas que se encontram no local.

Cabe, portanto, que se fixe um critério o mais objetivo possível, que fuja da discricionariedade total que se propõe seja deferida ao juiz, para decidir a respeito da utilização das algemas, atitude que, por vezes, acarreta enorme tumulto já no início da sessão de julgamento. Entendo que, durante o interrogatório, devam ser retiradas as algemas do réu. Claro: mantê-lo com as mãos imobilizadas inibiria seu direito de defesa, na medida que impedido de expor, com a clareza que por vezes os gestos propiciam, a forma como se deram os fatos. Assim, por exemplo, o réu que alegue ter agido em legítima defesa, em vista de um ataque com utilização de faca que lhe desferia a vítima, por certo necessitará das mãos livres para explicar seu ato defensivo e o posterior revide. Preso, restaria impedido de, com maior precisão e riqueza de detalhes, ofertar sua versão defensiva. Já durante a realização do plenário, com o calor dos debates, o cansaço atingindo a todos, parece mais conveniente que se estabeleça a seguinte regra. Se o réu responde solto ao processo, não há razão, por óbvio, de que seja algemado durante o julgamento. Ao revés, se está preso, deve ser mantido em ferros no plenário.

Vale dizer que o réu solto se acha nessa condição porque não reuniu os pressupostos ensejadores da decretação de sua prisão preventiva. Se preso em flagrante, foi posteriormente beneficiado com a liberdade provisória. Tampouco se mostrou necessária essa cautela quando proferida a sentença de pronúncia. A despeito do crime cometido, não demonstrou, pelo menos até então, periculosidade que imponha a necessidade do uso de algemas durante o plenário. O mesmo não se pode dizer do réu preso. Nessa condição é porque, quase sempre, ostenta maus antecedentes. Quando não, é em virtude do cometimento de um crime hediondo. Ou então porque se trata de réu que, por seu comportamento, mereceu ter decretada a prisão preventiva ou mantida a prisão em flagrante. Ora, se é assim, parece evidente que deva o réu permanecer algemado durante os debates. Invocar-se aqui o princípio da presunção de inocência parece inoportuno. Afinal, em se tratando de julgamento pelo Júri, o réu já passou pelo filtro da sentença de pronúncia, capaz de identificar, no mínimo, indícios de autoria e materialidade do delito. Se jamais se investiu contra a presença do réu algemado em audiências presididas pelo juiz singular (STJ – HC nº 25.856-PR – j. em 17.6.03, Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 25.8.03, p. 336), onde a segurança pode ser mantida com muito mais facilidade, dado ao número pequeno de pessoas na sala, ao seu tamanho exíguo, etc., porque se reclamar dessa cautela em se tratando de um julgamento pelo Júri, onde a preocupação com a incolumidade das pessoas (jurados, populares e demais presentes), deva ser infinitamente superior ? Mais: se o Magistrado tem o poder até de ordenar a retirada do acusado do plenário (art. 497, VI), não se vê motivo razoável que o impeça de manter o réu algemado durante os trabalhos. Em suma, apartando-se de um critério de extremo subjetivismo, parece razoável que o juiz, na qualidade de presidente dos trabalhos, se oriente pela regra que propusemos: se o réu responde o processo em liberdade, deve ser mantido solto durante o plenário, a menos que situações supervenientes autorizem a adoção de medida mais drástica; ao contrário, se preso ao longo do processo, assim deve ser mantido, devidamente algemado, durante a sessão do Júri.

Acórdãos do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema:

“Não há que se falar em constrangimento ilegal em decorrência da manutenção das algemas do paciente durante o seu interrogatório, pois, nos termos da Lei Processual Penal, ‘ao juiz incumbirá prover à regularidade do processo e manter a ordem no curso dos respectivos atos, podendo, para tal fim, requisitar força pública’. Se o Magistrado reputou necessária a manutenção das algemas para melhor regularidade do ato, não há nulidade no interrogatório do réu” (HC 25856-PB – 5a. T., Relator Min. Gilson Dipp, j. 17.6.2003, DJ 25.8. 2003, p. 336).

“Enquanto não regulamentado por lei o uso de algemas, o emprego deste meio de contenção, em nada incompatível com o princípio da inocência, deve ficar ao prudente arbítrio do juiz-presidente do Júri, a quem compete a polícia das sessões” (RHC 6922-RJ – 6a. T., Relator Min. Vicente Leal, j. 10.11.1997, DJ 09.12.1997, p. 64.777).

Fontes bibliográficas:

* GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Sobre o uso de algemas no julgamento pelo júri. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, SP, número de lançamento, p. 115, dez. 1992.
* MARREY, Adriano. et al. 6a. ed. Teoria e prática do júri. São Paulo: RT, 1997, p. 277.
* PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, Emprego de algemas – Notas em prol de sua regulamentação, Revista RT, São Paulo, SP, v. 592, p.275.
* VIEIRA, Luis Guilherme. Algema: uso e abuso. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre, RS, ano 2, p. 11-6, out.-nov. 2002.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Ronaldo Batista Pinto

 

Promotor de Justiça no Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela UNESP Universidade Estadual Paulista. Professor de Direito Processual Penal das Faculdades COC de Ribeirão Preto – SP.

 


 

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