Sobre a possibilidade da reformatio in melius

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É conhecida a polêmica sobre a possibilidade de adoção da chamada reformatio in melius. Assim, em recurso exclusivo da acusação, seria possível a reforma da situação do réu para melhor? Exemplificando: somente o Ministério Público apela da sentença condenatória para aumentar a pena imposta ao réu. Poderia o Tribunal negar provimento ao recurso e, além disso, absolver o réu? A primeira crítica que se formula diz respeito à utilização da expressão reformatio in melius, ou seja, uma reforma para melhorar a situação do réu. Não haveria, a rigor, uma reforma para melhor para o réu, já que ele, na verdade, deixou de recorrer, tendo se conformado com a decisão que, por isso, lhe é definitiva, sendo, pois, um estranho ao recurso. Haveria, isto sim, uma reformatio in pejus para a acusação, única a recorrer e que acabou vendo sua situação agravada. Claro: pretendendo a majoração da pena, viu ser negado seu recurso e, demais disso, absolvido o réu. Ocorreu, pois, uma reforma para pior na situação do recorrente.

De qualquer sorte, a questão é das mais tormentosas, merecendo posicionamentos distintos na doutrina e debates acalorados na jurisprudência.

Uma parte entende que, por força do princípio do tantum devolutum quantum appelatum, não pode o Tribunal melhorar a situação do réu em recurso exclusivo da acusação, pois estaria julgando ultra petita. Ademais, se o réu intimado da sentença não recorreu, o mesmo ocorrendo com seu defensor, a sentença, no que diz respeito a eles, assume ares de imutabilidade, não havendo motivo para que, apenas a acusação recorrendo, venha a ser melhorada a situação do condenado. Afinal, se o réu, único que sentirá na pele as conseqüências da condenação, não recorreu, pode-se concluir que ele se acha plenamente conformado com a decisão. Da mesma forma, se seu defensor, a despeito do conhecimento técnico que possui, também se manteve inerte, implica concluir pelo acerto da sentença.

É a posição de Demercian & Maluly, ao ensinarem que “parece-nos mais adequado o entendimento do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que o limite do efeito devolutivo deve obedecer o princípio tantum devolutum quantum appelatum, não podendo o recurso reverter contra quem o interpôs e obrigando o Tribunal a apreciar exclusivamente a matéria que foi objeto do pedido nele contido” (1). Para Vicente Greco Filho, “nosso entendimento é o de que o respeito aos limites objetivos do recurso é rigoroso. Se houver algo a corrigir em favor do acusado, que se utilize o habeas corpus de ofício” (2). No entender de Julio Fabbrini Mirabete, a única alternativa que resta ao condenado, caso vislumbre alguma injustiça no julgado e ante a impossibilidade do Tribunal repará-la, é a revisão criminal (3). Também Espínola Filho repudia a adoção da chamada reformatio in melius (4).

Outra corrente, porém, entende que não teria cabimento que o Tribunal, ao se deparar com uma evidente injustiça, não pudesse corrigi-la de ofício, mesmo sem recurso da defesa. Tourinho Filho, com a profundidade que lhe é peculiar e com ampla menção à doutrina estrangeira, salienta que “se o Ministério Público apela para agravar a pena, nada obsta possa o órgão ad quem agravá-la, mantê-la, diminuí-la ou, então, absolver o réu. Se este foi condenado pelo órgão de 1º grau por uma infração e absolvido por outra, num simultaneus processus, havendo apenas recurso do Ministério Público objetivando convolar a absolvição em condenação, nada impede possa o Tribunal, entendendo que a condenação foi iníqua, proferir decisão absolutória, malgrado a regra do tantum devolutum quantum appelatum ..explica-se tal particularidade. É que o Estado, por intermédio de seu órgão oficial acusatório, que é o Ministério Público, não teria, como não tem, nenhum interesse na manutenção de uma sentença iníqua” (5).

Acrescentaríamos: se o Tribunal pode conceder habeas corpus de ofício, providência que ninguém jamais contestou ante os termos peremptórios do § 2º, do art. 654, do CPP, “quando no curso do processo verificarem que alguém sofre ou está sofrendo na iminência de sofrer coação ilegal”, por qual razão estaria impedido de corrigir evidente injustiça? Ou a negação de um benefício, expressamente previsto em lei, ao réu condenado, não implicaria em coação ilegal?

Sugerir-se o caminho da revisão criminal, como única alternativa àquele que foi injustamente condenado, não parece o mais correto. A um, porque a revisão deve atender a pressupostos e requisitos próprios para seu conhecimento, impedindo ou, pelos menos dificultando, outrossim, a ampla produção da prova, nela vigorando, ainda, o in dubio pro societate, em prejuízo do condenado. A dois, em virtude de que a revisional exige o trânsito em julgado da sentença condenatória para, somente depois, ser ajuizada. Com isso, perde-se tempo e, pior, causa-se evidente constrangimento ilegal ao sentenciado que, embora merecedor de imediato benefício, se verá na contingência de recebê-lo somente depois, quando da propositura da revisão criminal. Demora que é inadmissível, mesmo que concedida a liminar na revisional. Aliás, parece não fazer sentido que o mesmo Tribunal esteja impedido de melhorar a situação do réu no julgamento da apelação, mas possa fazê-lo em seguida, no julgamento da revisão. E, a três, em razão de que a revisão, caso acolhida, poderá acarretar gravame ao Estado, obrigado, dependendo do caso concreto, a indenizar seu autor, na exata dicção do art. 630 do CPP.

Sob a ótica da teoria geral dos recursos, não admitir a melhora na situação do réu que não recorreu, parece mesmo a posição mais coerente. Vale lembrar, porém, a observação de Sady de Gusmão, ao salientar que “de fato, repugna ao tribunal, verificando estar o acusado sujeito a uma pena injusta, se sirva do argumento de lógica, em homenagem exclusiva à técnica e ao formalismo, para deixar perdurem tão funestas conseqüências” (6)

É mais, assim, uma questão de equidade que, de resto, não deve causar a estranheza que tanto impressiona aqueles que defendem a impossibilidade da reformatio in melius. Basta que se confira o disposto no art. 580 do CPP, que trata do chamado efeito extensivo dos recursos. Nele se vê, com todas as letras, a possibilidade de se estender o efeito de determinado recurso ao co-réu que não recorreu, desde que o motivo não seja de caráter pessoal. Imagine-se a situação na qual dois réus foram condenados por fumarem tabaco na via pública. Apenas um deles recorreu e o Tribunal, ante a evidente atipicidade da conduta, absolveu o apelante e também o co-réu inerte, estendendo-lhe o efeito do recurso. Não teria o menor cabimento, face ao absurdo da decisão, que o Tribunal mantivesse a condenação deste último.

Suponhamos, agora, que a condenação por fumar na via pública se volte contra apenas um réu, único que fora denunciado. O Ministério Público apelou para majorar a pena imposta, quedando-se inerte o réu (por ignorância) e seu defensor (por negligência). Teria cabimento impedir-se o Tribunal de absolver o réu? Por qual razão lógica, no exemplo acima, se pôde estender ao co-réu que não apelou a absolvição e, neste último exemplo, estaria inibido o Tribunal de, desde logo, absolver o sentenciado?

Haverá quem diga que, nesse caso, o Ministério Público seria prejudicado. De se ver, contudo, que o parquet não está comprometido apenas com a condenação, que deve perseguir a todo custo. Muito mais que isso, o Ministério Público encarna um espírito superior de justiça, a quem não interessa, por conseqüência, uma condenação que não retrate, com exatidão, tal perfil. Daí defendermos a posição no sentido de se admitir a reformatio in melius, a ser reservada, por óbvio, a casos de evidente equívoco do juízo a quo e sempre com a prudência que se aguarda de um Tribunal.

Na jurisprudência o tema também suscita polêmicas, com posicionamentos divergentes dos Tribunais superiores.

O STJ, após alguma hesitação, em seus julgados mais recentes se inclina, francamente, pela admissão da reformatio in melius (7). Confira-se, nesse aspecto:

“Em sede de recurso exclusivo da acusação, o Tribunal não está impedido de, ao constatar patente erro na condenação, corrigir a sentença, amenizando a situação do réu, dada a relevância que a Justiça deve conferir à liberdade humana. O que é vedado no sistema processual penal é a reformatio in pejus, como inscrito no art. 617, do CPP, sendo admissível a reformatio in melius, o que ocorre na hipótese em que o Tribunal, ao julgar recurso da acusação, diminui a pena prevista do réu” (REsp. 437.181/SP, Rel. Min. Vicente Leal, 6ª. T., j. 01.04.2003, DJ 28.4.2003, p. 269).

Ou ainda:

“Nada há que impeça a reformatio in mellius em face de recurso exclusivo do Ministério Público. Isto porque a impugnação do Ministério Público não guarda em seu bojo limitações ao poder do juízo ad quem. Tanto é que o mesmo Ministério Público que acusa pode, ante a fatos novos, pleitear a absolvição. Se o tribunal pode conceder habeas corpus ex officio, nada impede que, ante a recurso exclusivo da acusação, abrande-se a situação do acusado” (REsp. 168.557/RS, Rel. Min. Jorge Scartezzini, 5ª. T., j. 13.09.2000, DJ 18.12.2000, p. 224).

No STF, costuma-se dizer que é tranqüila a posição contrária à reformatio in pejus. E, de fato, é o que se constata do julgamento do ReCrim 108.479/SP, Rel. Min. Moreira Alves, 1ª T., DJU 05.02.1988, p. 1.383, de cuja ementa se extrai o seguinte ensinamento:

“É firme a jurisprudência do STF no sentido de que ofende o art. 574 do CPP a decisão que, na ausência de recurso do réu, se serve do da acusação, que visa a exasperar a pena, para minorá-la” (8).

De se ver, no entanto, que se trata de julgado já antigo. Mais recentemente calhou ao STF apreciar a questão, quando se entendeu pela impossibilidade da reformatio in melius, sendo relator o então Ministro Francisco Rezek (9). Com sua composição atual, no entanto, a matéria não foi ainda ventilada. Aguardam aqueles que militam no campo do processo penal a manifestação da mais alta Corte do país.

Referências Bibliográficas:

1 – DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de processo penal. 2ª. ed. São Paulo: Atlas, 2001, p. 502.
2 – GRECO FILHO, Vicente. Manual de processo penal, 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 361.
3 – MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, 17ª. ed. São Paulo: Atlas, 2005, p. 715.
4 – ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de processo penal brasileiro anotado, 5ª. ed. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976, v. 6, t. 2, p. 314.
5 – TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal, 25ª. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 4, p. 425.
6 – GUSMÃO, Sady de. Apud ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Op. cit.

Notas:

7 – embora se encontrem decisões não admitindo a reformatio in melius: RT 805/551, 748/579 e REsp. 72.745/SP, Rel. Min. Fernando Gonçalves, 6ª T., DJ 22.04.1997, p. 14.458.
8 -: também nesse sentido: RT 612/439.
9 – RTJ 112/471.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Ronaldo Batista Pinto

 

Promotor de Justiça no Estado de São Paulo. Mestre em Direito pela UNESP Universidade Estadual Paulista. Professor de Direito Processual Penal das Faculdades COC de Ribeirão Preto – SP.

 


 

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