A jurisdição no processo de falência


Introdução


Quando o Estado, na sua moderna feição, retirou do indivíduo a possibilidade de solver por conta própria seus litígios, precisou se aparelhar para que os conflitos sociais não ficassem sem solução. Passou, então, a assumir tal tarefa evitando que houvesse a tutela privada dos interesses postos em disputa pelas partes.


O desenvolvimento dessa atividade de forma privativa serviu aos interesses do Estado, fazendo-o progredir, como destaca Ovídio Baptista da Silva alegando que “o crescimento avassalador do Estado moderno está intimamente ligado ao monopólio da produção e aplicação do direito, portanto à criação do direito, seja em nível legislativo, seja em nível jurisdicional”1


Primeiramente concentrando tal poder na mão do soberano, único titular da possibilidade de dirimir conflitos e satisfazer os direitos lesados, depois, a complexidade da tarefa gerou a necessidade de delegá-la a indivíduos de confiança do monarca com atuação em parcelas do território da nação,  por último passou-se a atribuir a um órgão estatal específico, composto por um conjunto de juízes, e especializado na administração da justiça, surgindo, então, o Poder Judiciário. Seja como for, institui-se o monopólio da atuação jurisdicional, privando-se qualquer outra esfera que não a estatal de administrar a administração dos direitos violados.


Interessante postura é trazida por Michel Miaille para quem não há um monopólio estatal pleno da função jurisdicional, apenas uma prevalência da atividade por parte do ente judiciário, uma vez que, os particulares podem submeter seus litígios a  árbitros privados, desvinculado do aparelho público, mas reconhece que “a centralização administrativa, em virtude da progressiva construção do moderno Estado capitalista, trouxe consigo a submissão de todas estas ‘justiças’ autônomas à justiça do Estado. De certo modo, esta hegemonia (grifamos) – que é um fenômeno objectivo ligado ao surgimento do Estado nacional moderno – não é desinteressante: evita que se deixe constituírem-se feudalidades internas, movidas unicamente por interesses corporativos. Mas ela opera essencialmente como racionalização, não necessariamente como progresso.”2


Visando conter possíveis arbítrios e acreditando na suficiência da legislação limitou-se o poder do juiz apenas ao reconhecimento da norma geral a ser aplicada ao caso concreto trazido pelos litigantes, sendo o magistrado somente a “boca da lei”, ente pelo qual o direito positivado se manifestava.


Sendo assim, a atividade básica exercida pelo Poder Judiciário, relativamente independente dos demais poderes estatais, era a de meramente reconhecer o direito aplicável ao caso concreto proposto, escolhido dentro de uma legislação perfeita e completa, desprovida de lacunas. Essa atribuição passou a denominar-se de jurisdição – dizer o direito.


Atualmente o exercício da jurisdição, reconhecido como um dos sustentáculos do modelo democrático de Estado, ganha imenso relevo conforme leciona Teori Albino Zavascki  “o compromisso de prestar tutela jurisdicional – constitui um dever estatal, que deve ser cumprido de modo eficaz, sob pena de se consagrar a falência dos padrões de convívio social e do próprio Estado de Direito.”3


Sem dúvida, trata-se não somente de um dever mas, “ como expressão (política) do poder estatal, a jurisdição resolve-se na capacidade de decidir imperativamente e impor decisões.”4, o que denota a coercibilidade da função jurisdicional.


     A ausência da tutela jurisdicional por parte do Estado, tendente a resolver a patologia social caracterizada pelo descumprimento do direito e , por conseqüência,  ensejadora do conflito, estabeleceria o caos na sociedade. Entretanto, é preciso determinar o alcance e os limites da função jurisdicional.


1. A Atividade Jurisdiconal


Com o intuito de explicar a natureza jurídica do ato jurisdicional, identificar seus elementos e propiciar uma conceituação relativamente segura de jurisdição, diversas teorias têm surgido dentre as quais podemos dar maior destaque:


a)   Teoria de Chiovenda


Para o insigne processualista italiano somente o Estado tem possibilidade de exercer o poder de aplicar a vontade abstrata da lei ao caso concreto, através do atributo da jurisdição. Essa atuação estatal é outorgada aos magistrados, detentores, por delegação da jurisdição. A base dessa teoria se encontra no entendimento de que a característica principal da função jurisdicional será sempre o exercício da uma atividade de substituição, em que o Estado atua na administração da justiça para afastar a tutela privada.


O reconhecimento do caráter substitutivo que algumas vezes ocorre no exercício da jurisdição é mérito inegável da teoria de Chiovenda, entretanto, segundo Galeno de Lacerda5, deixa de explicar como poderia se dar a substituição quando o conflito versasse sobre direito indisponíveis e nas situações referentes a decisões dentro do processo que não sejam atinentes às partes, tais como àquelas tocantes a competência e suspeição do juiz.


b)  Teoria de Allorio


A jurisdição para concepção desenvolvida por Allorio teria como traço característico e fundamental a vocação do ato jurisdicional para produzir coisa julgada material. Somente seriam jurisdicionais os atos que contivessem aptidão para produzir decisão imutável, ou seja para dizer o direito sem poderem mais ser atacados. O que definiria a jurisdição, então, seria a coisa julgada obtida em processo declaratório reconhecendo o direito postulado. Esse resultado segundo Eduardo Couture6, adepto dessa teoria, não apareceria no ato administrativo,  nem tão pouco no ato legislativo, em virtude de serem mutáveis.


As maiores restrições à teoria de Allorio se localizam no fato de que tomando a coisa julgada como definidora da atuação jurisdicional estaríamos excluindo outras formas de processo diferentes do processo declaratório, realizador da decisão inalterável. Não seriam abrangidos pela atividade jurisdicional os processos executivos, àqueles que integram a jurisdição voluntária ou os processos cautelares..


Além disso, como demonstra Ovídio Baptista da Silva: “A ser verdadeira a doutrina que identifica jurisdição com coisa julgada, pressupondo, como afirma COUTURE, que a finalidade da jurisdição é a resolução de controvérsias sob a forma de sentença, a decisão pela qual o juiz decretasse a extinção do processo por falta ou insuficiência de algum  pressuposto processual, não seria jurisdicional.”.7


c)   Teoria de Carnelutti


Segundo destaca João Paulo Lucena o entendimento de Carnelutti é de “que a jurisdição tem por fim a justa composição da lide, qualificada por uma pretensão resistida, por meio de sentença declarativa.”8


Dessa forma, só haveria atividade jurisdicional quando esta fosse tendente a resolver um conflito de interesses, onde uma das partes privadamente não conseguisse submeter a vontade do oponente a sua pretensão. Sem lide, portanto, não se poderia reconhecer a ocorrência da jurisdição.


Para fundamentar a insuficiência da teoria de Carnelutti argumenta-se que existem situações em que acontece a administração da tutela jurisdicional mesmo não havendo resistência à pretensão  ou independentemente dessa – geralmente quando se trata de normas cogentes – como mostra Tesheiner: ”tome-se o exemplo da ação anulatória de casamento. A anulação, requerida por um dos cônjuges, somente pode ser decretada por sentença judicial”, será inafastável  a apreciação do magistrado competente, e continua” nada importando que o outro concorde (submissão à pretensão) ou não (resistência à pretensão)”9 . Igual situação se dá no processo penal quando o réu  aquiesce com a pretensão do Ministério Público, mesmo assim, é preciso a sentença condenatória, não afastando-se a atuação judiciária.


A melhor conceituação nos parece ser a trazida por Frocham para quem “la jurisdicción es el poder estatal, emergente de la soberanía o de sus desmembraciones políticas autónomas, de decidir los conflitos de interés que someten a decisión de sus órganos las personas físicas o jurídicas que integran la comunidad, inclusive la administración del proprio Estado, como partes, a los cuales el orden jurídico transfiere el deber de resolverlos conforme a la ley, como así la ejecución de la sentencia y las demás decisiones del proceso contencioso y del voluntario, inclusive las del proceso penal..”10


Mesmo assim, o autor argentino deixa de trazer a integralidade os elementos da concepção moderna da tutela jurisdicional, porque verificamos que existem restrições às mais célebres teorias sobre a jurisdição, nenhuma delas foi capaz de elencar todos os atributos que parecem indispensáveis para caracterizar a feição atual da jurisdição ou falharam em generalizar situações que aparecem apenas em algumas expressões da tutela prestada pelo Judiciário.


Esses elementos indefectíveis para a caracterização da atividade jurisdicional são: a) a índole pública monopolista no exercício do poder-dever; b) a existência geralmente da substitutividade do Estado realizando atividade que deveria ser feita por particular; c) não atuação ex officio, devendo a tutela ser provocada pelo interessado; d) indelegabilidade, pois deve ser efetuada pelo legalmente investido, não podendo ser repassada a outrem, o que arranharia o princípio do juiz natural; e) instrumentalidade, porque deve perseguir a consecução de uma determinada finalidade, a pacificação social através da entrega da “tutela jurisdicional diferenciada, ou seja, a exata correspondência entre o tipo de tutela e as diferentes situações da vida… assim, para cada tipo de situação de direito material deve existir uma tutela jurisdicional adequada, isto é, diferenciada pelo procedimento”11; f) a imparcialidade, principal característica da jurisdição moderna, fazendo com que o magistrado seja indiferente e eqüidistante frente aos interesses trazidos pelas partes.


Amoldada a tutela jurisdicional aos elementos supra relacionados, podemos inserir na jurisdição não somente a função cognitiva, mas também a executiva, bem como a denominada jurisdição voluntária, que para os processualistas mais antigos estavam contidas na função administrativa do Estado.


A lição de Teori Zavascki mostra-se extremamente correta quando assegura que: “com efeito, a ‘apreciação’ das lesões ou ameaças a direitos, prometida na Constituição, compõe-se de um conjunto de atividades que pode ser dividido em duas classes bem distintas. Há atividades que consistem na submissão do direito afirmado a um exame destinado a certificar (ou não) sua existência; e há atividades desenvolvidas no sentido de tornar efetivo o direito certificado ou pressumidamente existente. No primeiro caso, há juízo no sentido estrito, e, portanto, sentença. No segundo, há ação, atividade, providências práticas de modificação da realidade, de modo a ajustá-la ao direito reconhecido. A prestação decorrente do primeiro conjunto de atividades jurisdicionais se denomina tutela de conhecimento, ou de cognição; e à outra, tutela de execução ou executiva.”12 .


Ensina Araken de Assis que “tem o ato executivo de peculiar, distinguindo-o destarte, dos demais atos do processo e dos que do juiz promanam, a virtualidade de provocar alterações no mundo natural. Objetiva a execução, através de atos deste jaez, adequar o mundo físico ao projeto sentencial, empregando a força do Estado.”13


Inegável a natureza jurisdicional da execução que deve ser estendida a todas as modalidades de execução, sejam derivadas da relação de direito obrigacional, que podem ter o reconhecimento judicial  ou da sua presunção extrajudicial (títulos executivos extrajudiciais), sejam as que prescindem de processo de conhecimento anterior em função de sua executividade natural (ações executivas reais). Ademais, nas execuções obrigacionais a tutela jurisdicional se dará tanto quando a execução for singular, como quando o processo executivo for concursal.


Tecidas tais considerações atinentes à jurisdição, deixemos as questões desenvolvidas no aguardo do deslinde de outra importante análise: a determinação da natureza jurídica da falência, imprescindível para a continuidade de nosso trabalho. 


2.Natureza Jurídica da Falência


O debate sobre a natureza jurídica do instituto da Falência no âmbito da doutrina não tem sido pacífico, diversas sendo as concepções a respeito da matéria, existindo três teses fundamentais que podem ser resumidas nas seguintes teorias: .         


a)   Teoria administrativista


Desencadeada por D’Avack, essa tese apregoa o caráter administrativo do instituto falencial, sustentando que sua realização sempre se dará por interesse público na exclusão da empresa em dificuldade do universo negocial, visando a preservação do conjunto empresarial e da credibilidade do sistema econômico.


O magistrado realizaria atos de índole administrativa tendentes à liquidação da empresa em estado de insolvência irreversível, nessa missão contaria com o auxílio do síndico. Portanto, não estaríamos diante de exercício de tutela jurisdicional quando da ocorrência da Falência.


Essas argumentações encontram dificuldades de serem reconhecidas no sistema falencial brasileiro; a) em nosso país a Falência somente pode ser processada perante o Judiciário, existindo estado de falência apenas quando decretado por decisão judicial passível de recurso para o segundo grau de jurisdição; b) sendo o instituto de caráter administrativo, poderia ser iniciada ex officio o que está vedado, na medida em que se exige a provocação do interessado para que se instaure o procedimento; c) deve-se destacar que a liquidação falencial não visa exclusivamente satisfazer o interesse público, havendo tutela aos interesses tanto dos credores, quanto do próprio devedor comerciante que teve seu estado de insolvência decretado, assegurado pelo efetivo contraditório. Deve-se, porém, pensá-lo dentro da perspectiva apregoada por Nelson Nery Junior que sustenta que “o contraditório também se manifesta no processo de execução, embora de forma menos abrangente do que nos processos de conhecimento e cautelar, pelas próprias peculiaridades do processo executivo.”14


O mestre paranaense Rubens Requião busca solução conciliatória ao adotar a tese de Bonelli para quem: “necessário, portanto, concluir que o processo (grifamos) falimentar é um processo especial e complexo, que compreende em si atos e estados atinentes com as mais variadas formas do processo geral, mas não se deixa absorver no seu conjunto a nenhum deles. È um processo sui generis, regulado por uma lei própria, na qual o juiz desempenha conjuntamente uma atividade administrativa e judicial e mais intensamente administrativa que judicial, voluntária e contenciosa”.15


Além das restrições levantadas anteriormente a respeito do aspecto administrativo realçado, que parece não ser o de maior relevância no processo falimentar, encontra-se um vício na origem da concepção apresentada, mesmo que admitida a singularidade do procedimento que abarca institutos de  diferentes matrizes jurídicas.


Sendo a falência uma execução coletiva, nascida em função do direito obrigacional, irrefutável seu caráter processual, pois originária da actio romana desenvolvida perante o magistrado, com intervenção das partes e tendente a afastar a tutela privada dos interesses, nunca podendo ser confundida com a atividade de índole administrativa desenvolvida pelo pretor romano, através dos interditos, visando proteger e assegurar o respeito do interesse de ordem pública, esse sim, tutelado administrativamente.


b)  Teoria substancialista


Para essa concepção a cerca da Falência, as regras falimentares são de direito material, por conseqüência, o fato de existir processo falimentar serviria somente para instrumentalizar a realização das normas de direito substantivo, assumindo uma feição meramente de acessório.


A crítica a tal teoria passa pela inegável predominância do aspecto processual no direito falimentar atual, com a aceitação de que, apesar da complexidade das normas falimentares, que perpassam inúmeros ramos da ciência jurídica, cuida-se de uma execução coletiva realizada através de um juízo universal de bens e credores do falido, sendo competente àquele onde se encontrar o principal estabelecimento da empresa em estado de insolvência.


No mesmo sentido se insere a argumentação de Sampaio Lacerda, citando os ensinamentos de Vivante, quando falando sobre a atividade estatal desenvolvida na falência admite “não pertencer ela às leis substantivas, porque não se propõe determinar quais sejam os direitos, e sim às leis processuais, em virtude de que a sua finalidade essencial é a de fazer conhecer direitos já existentes à abertura da falência a fim de satisfazer por meio de dividendos.”16


c) teoria processualista


A compreensão mais moderna do instituto aponta para o reconhecimento de natureza processual, estabelecido que trata-se de execução coletiva que recai sobre devedor comerciante.


Waldemar Ferreira compartilha da tese expondo: “A falência, em última análise, é execução processual coletiva, realizada em Juízo, dirigida e superintendida pelo Juiz. Ajuntam-se nela os credores, fortuita, mas obrigatoriamente, cada qual defendendo o seu direito individual, embora deliberando coletivamente, subordinados a regras especiais, mercê da comunhão de interesses. Obriga-os a lei a respeitar, durante todo o curso do  processo, o princípio da igualdade, suspensas as ações individuais, sujeitos todos a dividendos ou rateio.”17


Essa, igualmente, é a postura de Wilson Campos Batalha que afirma que “o processo falimentar tem natureza predominantemente executória” e acresce que ”a uma execução sumária com objetivo declaratório (declaração da falência e fixação do período suspeito), segue-se um momento constitutivo (o status de falido, a organização da massa), o momento declaratório do reconhecimento dos créditos com força executória e o momento final da execução coletiva.“18


Cuida-se, pois, a falência de processo de execução coletiva e, dessa maneira, sujeita à jurisdição em sua concepção moderna, tanto mais que, se amolda aos elementos caracterizadores da atividade jurisdicional anteriormente elencados.


4.Jurisdição na Falência


A comprovação de que a falência é objeto da jurisdição está ancorada no fato de que as atividades desenvolvidas em seu processamento são as pertinentes a execução coletiva do devedor comerciante insolvente, assim sendo, são fruto de uma atuação do poder-dever estatal monopolista, pois não há falência fora do âmbito judicial, visando a proteção do interesse público, bem como do interesse dos credores em verem satisfeitos seus créditos; o Estado chama para si a incumbência de efetuar a satisfação dos interesses, afastando a tutela privada, agindo de forma substitutiva; a atuação estatal somente se dá com a provocação do interessado no processo falencial (credor ou o próprio devedor), através do exercício do direito de ação; a tutela prestada não pode ser delegada, mesmo se houvesse acordo entre o devedor comerciante falido e seus credores; o processo falimentar tem por objetivo satisfazer, no todo ou em parte, as obrigações assumidas pelo falido, evitando a desarmonia social; deve existir a incidência do contraditório mesmo que atenuado, justificado por Dinamarco “porque o exercício acabado da jurisdição projetará efeitos sobre a esfera jurídica de pelo menos duas pessoas, é natural que a ambas seja dada oportunidade de influir participando”19 sobretudo, opera-se a falência perante o detentor da poder-dever de prestar a jurisdição, sem que esse haja com parcialidade ou de maneira tendenciosa, sendo traço característico da falência a paridade entre os credores e o respeito ao devedor comerciante, garantidos pela eqüidistância do magistrado, que pratica, auxiliado pelo síndico, atos de administração patrimonial, mas sempre com o intuito de promover a satisfação dos interesses tutelados pelo direito falimentar. Indiscutível, então, o ajuste do processo falimentar à fórmula definidora da atividade jurisdicional de nossos dias.


Com notória maestria é Pontes de Miranda quem conclui que com a instauração da falência “ o que se iniciou foi relação jurídica processual bilateral, em que o Estado está entre os credores e o devedor e vai tirar do patrimônio desse aquilo com que possa satisfazer, total ou parcialmente, os credores. Essa é a prestação jurisdicional, que ele, Estado, deve aos credores e ao devedor…” (grifamos) e mais, refere que ”é inegável o que há de função administrativa na atividade do juiz da falência, porém não se hão de menosprezar, menos ainda eliminar, a judiciariedade dos procedimentos e a sua natureza idêntica à das outras execuções forçadas.”20


Uma última questão deve ser enfrentada no estudo da jurisdição no processo falimentar, àquela relativa ao seu posicionamento feito por alguns doutrinadores, dentre os quais destacam-se Carnelutti, Oetker, Fazzalari, Denti e outros,  entre os procedimentos de jurisdição voluntária, principalmente porque, tutelando primordialmente interesses públicos de liquidação da empresa insolvente para conseguir uma pacificação social e revestimento de credibilidade aos negócios jurídicos comerciais, não identificam a existência de partes ou de choque de interesses que pudessem deslocá-la para o espectro da jurisdição contenciosa. Ressalte-se, outrossim, que a atual teleologia atinente à falência consagra como princípio maior desse processo a preservação da empresa, e não seu aniquilamento, tendo sempre presente seu papel social.


Em brilhante explanação é Edson Prata, referindo-se à argumentação de Denti, quem dirime a questão ao lembrar que “apesar da riqueza da argumentação que a doutrina estrangeira teceu a respeito da voluntariedade do procedimento, difícil compreender que o processo de quebra se inclua na jurisdição voluntária, apenas porque o interesse público à eliminação, no mundo comercial, dos antagonismos economicamente arruinados, e por isso ineptos a prosseguirem em suas atividades…acreditamos mesmo seja o processo falimentar dos mais ricos em incidentes essencialmente contenciosos, onde o juiz exerce suas funções na mais ampla plenitude de seu poder discricionário e jurisdicional… assim, seja qual for a transcendência que tenham as peculiaridades do processo falimentar, não é possível enquadrá-lo entre os procedimentos voluntários.”21  


Conclusões


1.O Estado moderno assumiu o desempenho da tutela jurisdicional para coibir o uso da tutela privada dos direitos, objetivando a pacificação  e harmonia do meio social;


2.Caracterizam a jurisdição o monopólio estatal da administração da justiça; a substitutividade, o aparelho estatal procura realizar a justiça, afastando  a tutela  privada; a  necessidade  de  provocação  da    tutela jurisdicional pelo interessado, feita pelo exercício do direito de ação, vedada  a  atuação  ex  officio;   a  impossibilidade    de   delegação da jurisdição que tem de ser prestada pelo órgão competente; a instrumentalidade da jurisdição, buscando a concessão de tutela útil e adequada; a imparcialidade, sendo obrigação do magistrado a eqüidistância em relação às partes e ao objeto do processo; o contraditório, entendido como a oferta de iguais condições de manifestação das partes durante a prestação jurisdicional;


3.A jurisdição é desenvolvida tanto para o reconhecimento e determinação do direito (cognição), quanto para a efetiva realização do direito já reconhecido ou presumido (execução);


4.A falência, mesmo que composta por inúmeros institutos das mais diferentes matrizes, tem natureza jurídica predominantemente processual, pois, trata-se de execução concursal;


5.O processo falimentar trabalha com interesses antagônicos, acomodando-se, portanto, dentro da jurisdição contenciosa.                 


Notas:


1. Ovídio Baptista da Silva. Curso de Processo Civil. Vol. 1. 3ª ed. Porto Alegre. Sérgio Antônio Fabris   Editor. 1996, pág. 15. O autor vai mais além ao afirmar, na mesma obra, que: “A verdadeira e autêntica jurisdição apenas surgiu a partir do momento em que o Estado assumiu uma posição de maior independência , desvinculando-se dos valores estritamente religiosos e passando a exercer um poder mais acentuado de controle social.”  


2. Michel Miaille. Introdução Crítica ao Direito. Trad. Ana Prata.  2ª ed. Lisboa. Editorial Estampa. 1994, pág. 230.    Para este autor o sistema jurisdicional possui outras índoles, enfatizando que “É possível abordá-lo não apenas como aparelho repressivo do Estado, o que ele inegavelmente é, confessadamente, mas também como aparelho ideológico”, entretanto, não desenvolve mais profundamente o tema.  


3. Teori Albino Zavascki . Antecipação da Tutela. São Paulo. Saraiva. 1997, pág. 6.


4. Cândido Rangel Dinamarco. Execução Civil. 3ª ed. São Paulo. Malheiros Editores. 1993, pág. 179.


5. Galeno Lacerda. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. VIII. Tomo II. 5ª ed. Rio de Janeiro. Forense. 1993, pág. 23.


6. Eduardo Juan Couture. Fundamentos de Direito Processual Civil. São Paulo. Saraiva. 1946.


7. Ovídio Baptista da Silva. Ob. Cit., pág.23.


8. João Paulo Lucena. Natureza Jurídica da Jurisdição Voluntária. Porto Alegre. Livraria do Advogado Editora. 1996, pág. 38.


9. José Maria Rosa Tesheiner. Elementos para uma Teoria Geral do Processo. São Paulo. Editora Saraiva. 1993, pág. 68.


10. Manuel Ibañez Frocham. La Jurisdicción. Buenos Aires. Editorial Astrea. 1972, pág. 47.


11. José Roberto dos Santos Bedaque. Direito e Processo: Influência do Direito Material sobre o Processo. São Paulo. Malheiros Editores. 1995, pág. 33.


12. Teoria Albino Zavascki, Ob. Cit., pág. 7.


13. Araken de Assis. Manual do Processo de Execução. 2ª ed. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 1995, pág. 


14. Nelson Nery Junior. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 2ª ed. São Paulo. Revista dos Tribunais. 1995, pág. 130.


15. Rubens Requião. Curso de Direito Falimentar. 1º vol. 15ª ed. São Paulo. Saraiva. 1993, pág. 28.


16. Sampaio de Lacerda. Manual de Direito Falimentar. 12ª ed. Rio de Janeiro. Biblioteca Jurídica Freitas Bastos. 1985, pág. 23.


17.  Waldemar Ferreira. Tratado de Direito Comercial.  Vol. XIV. São Paulo.  Saraiva. 1965, pág. 110.


18. Wilson de Souza Campos Batalha. Falências e Concordatas. 2ª ed. São Paulo. Editora LTr. 1996, págs. 16 e 17.


19. Cândido Rangel Dinamarco. A Instrumentalidade do Processo. 3ª ed. São Paulo. Malheiros Editores. 1993, pág. 78.


20. Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado. Tomo XXVIII. Rio de Janeiro. Editora Borsoi. 1971, pág. 6.


21. Edson Prata. Jurisdição Voluntária. São Paulo. Livraria e Editora Universitária de Direito. 1979, págs. 245 e 246.  


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Informações Sobre o Autor

Fábio da Silva Porto

Professor de Direito Comercial e Administrativo na FURG/RS Advogado da União no Rio Grande/RS


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