Apagão

Vivemos na era da luz ou da
eletricidade herdada do Século XX, a civilização cibernética. Nada se faz sem
ela, desde as mínimas coisas, no lar, até as mais sofisticadas, passando pelo
computador, lazer, hospitais, indústria, segurança etc. Tudo que se possa
imaginar. Nada escapa. Basta que falte por algumas horas e o caos se instala,
imediatamente, com as conseqüências previsíveis e imprevisíveis. E,
paradoxalmente, passamos a viver sem ela, quase na penúria e escuridão. Faz-me
lembrar a II Grande Guerra, quando todos deviam ficar no escuro, por tanto
tempo, que nem me recordo quanto. As janelas permaneciam permanentemente
fechadas, com cortinas pesadas ou cobertores escuros, permitia-se
que se acendessem velas, não as lâmpadas gastadoras. Ainda não havia as
miraculosas branquinhas, que, dizem, são supinamente econômicas. Pelo menos,
iluminam mais e melhor. Aí de quem desobedecesse às ordens do chefão!

Não há dúvida de que houve incúria e
omissão criminosa. Este, porém, não é o momento de procurar o culpado.
Legislação há adequada, para a responsabilização direta, na ocasião própria,
com punições severas. Este dia virá.

Por ora, convém examinar esse problema,
de suma importância, para todo o País, à luz (sem trocadilho) da cruel
realidade.

O racionamento é perfeitamente possível
e até necessário, como ocorreu, no passado, desde que precedida de um
planejamento rigoroso e racional. Fere, contudo, a garantia constitucional da
igualdade entre todos, sem qualquer distinção, o corte de energia individual e
aleatoriamente, como medida punitiva perversa, ainda mais se a conta estiver em
dia. É ilegal, mesmo que o usuário esteja atrasado, consoante decisões
pacíficas dos Tribunais. Daí porque é até melhor ficar devendo!

Não se há de cogitar da sobretarifa, porque se trata de imposto disfarçado não
autorizado, nem de multa confiscatória, porque vedada
pela Constituição e fustigada pela única instituição presente, em todos os
instantes: o juiz natural.

Medida provisória não tem o condão de
revogar ou suspender lei que regulamenta um direito fundamental, que é a defesa
do consumidor, ou instituir penalidades, como, aliás, decidiu, recentemente, o
Supremo Tribunal Federal, ao descartar matéria penal, por medida provisória.
Nem mesmo emenda constitucional pode suprimir as garantias  fundamentais
ou vedar o recurso ao Judiciário. As cláusulas pétreas são intocáveis, pelo
menos enquanto estivermos sob a proteção da Constituição. Só mesmo uma nova
Carta, oriunda do Poder Constituinte poderá fazê-lo e, com certeza, não o fará.

Com uma só penada, a tal medida
provisória (2148, de 22 de maio de 2001) fulminou ou, inequivocamente, tentou
esmagar a Lei Maior, que rege todos os brasileiros e estrangeiros residentes no
País, notadamente, os artigos 1º, 5º, incisos XXXII, XXXV, 150, § 5º, 170,
inciso V, 37, §§ 3º e 6º, 175, parágrafo único, inciso II.

Estes dispositivos simplesmente
disciplinam os princípios e normas fundamentais, entre os quais, o da dignidade
da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o da
isonomia de todos perante a lei, sem qualquer distinção, o direito à vida
digna, à liberdade, à segurança, as formas de participação dos usuários na
administração pública direta e indireta,  a defesa dos consumidores, as
medidas que estes devem saber acerca dos impostos sobre mercadorias e serviços,
os direitos dos usuários, a responsabilização das pessoas de direito público e
as de direito privado prestadoras de serviços públicos pelos danos que causarem, a da moralidade pública… e
quantos mais se imaginar possa.

É claro que existem outros tantos
decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição ou dos
tratados internacionais de que nosso País participe.

Este Documento Maior expressa ainda uma
regra de ouro, da maior importância, ao comandar que as normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, isto é, não dependem
de qualquer lei, para sua execução.

Destarte, ainda que, apenas para
argumentar, o Código do Consumidor não mais estivesse em vigor, por força da
ordem expressa na citada medida provisória, não quer dizer que os súditos
fiquem desguarnecidos da proteção constitucional. O Estado deve garantir às
pessoas a  segurança e o mínimo de condições de sobrevivência e não se
pode furtar de cumprir as leis vigentes.

Vamos, porém, à
uma análise,  menos dolorosa e monótona, da situação.

O lado mal da coisa é, sem dúvida,
terrificante. Haverá mais neurotizados, com a
calculadora na mão, amedrontados, contabilizando quanta energia gastou ou se
receberá, em sua santa casa, os guardiãs da nova fé, prontos para cortar sua
luz ou degolar o moderno herege.

Haverá certamente mais desemprego, a
violência recrudescerá, o trabalho dos que dependem
diretamente da energia elétrica se tornará inviável, a dona de casa ficará
extremamente irritada, com os alimentos deteriorados e a proibição de usar o
ferro elétrico, a máquina de lavar roupa, o microondas, secar os cabelos em
casa ou nos salões de beleza, assistir à televisão, ouvir o rádio, e daí já se
sabe o resultado… Esposa zangada é pior que o inferno de Dante. Não mexam com
a santíssima senhora do lar. É verdade que as cidades ficarão piores. Os
bandidos e ladrões poderão beneficiar-se da escuridão que lhes propiciará
melhores condições de trabalho (já não exercem o seu ofício às claras?), mas os
namorados agradecerão essa benesse aos governantes e, principalmente, aos que
se omitiram no sagrado dever de estarem alertas.

E o lado bom da coisa? Naturalmente,
existe.

Os banhos ficarão mais raros ou serão
coisas do passado, e, então, os perfumes substituirão a gostosa água quente que
descia pelo corpo das pessoas, antes felizes! Mas, se época houve que isto acontecia, nada mal o retorno! Ou aterrorizador retrocesso?
Afinal, fragrância ou cheiro importado da velha e longínqua França não faltará.
E o Governo, sensível a este estado de coisas, talvez baixe os impostos ou
ainda isente de tributos os frascos de colônia e outros que tais. Como se vê, nem tudo está perdido.

As famílias voltarão a reunir-se, para
o jantar, iluminado apenas por românticas velas ou luzes de gerador, menos
aconchegantes; as pessoas conversarão mais entre si, porque a velha televisão
ou o videocassete estarão aposentados. Foram bons enquanto duraram, mas
não se terá que aturar os chatos e nauseantes programas ou filmes de última
categoria. A leitura de bons livros voltará, sem dúvida.

Que bom, os poetas e escritores não
terão mais de que se queixar.  Se estes voltam a escrever e produzir suas
obras, na velha máquina manual de escrever ou manuscrevendo-as (o computador ou
a fascinante máquina do tempo ficará em desuso), os agora inúmeros leitores
deleitar-se-ão, servindo-se dos lampiões. E por que não da luminescência da
lua,  a velha e encantadora senhora dos céus? Não é romântico e ilustrativo?

Salve, pois, o APAGÃO.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Leon Frejda Szklarowsky

 

escritor, poeta, jornalista, advogado, subprocurador-geral da Fazenda Nacional aposentado, especialista em Direito do Estado e metodologia do ensino superior, conselheiro e presidente da Comissão de Arbitragem da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Distrito Federal, juiz arbitral da American Arbitration Association, Nova York, USA, juiz arbitral e presidente do Conselho de Ética e Gestão do Centro de Excelência de Mediação e Arbitragem do Brasil, vice-presidente do Instituto Jurídico Consulex, acadêmico do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal (diretor-tesoureiro), da Academia de Letras e Música do Brasil, da Academia Maçônica de Letras do Distrito Federal, da Academia de Letras do Distrito Federal, da Associação Nacional dos Escritores, da Academia Brasileira de Direito Tributário e membro dos Institutos dos Advogados Brasileiros, de São Paulo e do Distrito Federal, Entre suas obras, destacam-se: LITERÁRIAS: Hebreus – História de um povo, Orquestra das cigarras, ensaios, contos, poesias e crônicas. Crônicas e poesias premiadas. JURÍDICAS: Responsabilidade Tributária, Execução Fiscal, Medidas Provisórias (esgotadas), Medidas Provisórias – Instrumento de Governabilidade. Ensaios sobre Crimes de Racismo, Contratos Administrativos, arbitragem, religião. Condecorações e medalhas de várias instituições oficiais e privadas.

 


 

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