A abusividade da cobrança de depósito prévio para internamento hospitalar


Atualmente é “práxis” a cobrança por parte dos hospitais da rede privada de um depósito, o chamado “cheque-caução”, para que os pacientes, em situação de urgência e emergência, possam vir a ser internados e/ou atendidos, até que o setor financeiro do dito estabelecimento de saúde venha a verificar a situação do doente, mesmo já sendo usuário e beneficiário de Plano de Saúde, o que representa verdadeiro absurdo jurídico eivado de inconstitucionalidade e ilegalidade, senão vejamos.


A inconstitucionalidade de tal prática reside na afronta direta ao disposto nos artigos 196 e 197 da Constituição da República Federativa do Brasil, in verbis:


Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.


Art.197. São de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.”


Depreende-se da análise dos supracitados dispositivos constitucionais que também as Redes Privadas de Atendimento Médico-Hospitalar têm a obrigação de respeitar o direito do consumidor à saúde, não lhe causando empecilhos não previstos em lei, mas pelo contrário, fazendo-se observar seu fiel cumprimento.


Tem-se que levar em consideração que aqui se está a tratar com o principal bem jurídico protegido pela Carta Magna, o direito à vida, expressamente transcrito no artigo 5º, “caput” da Constituição Federal, como o primeiro dentre vários direitos fundamentais.


Outro não é o entendimento da jurisprudência pátria conforme se verifica no sítio do Supremo Tribunal Federal (www.stf.jus..br), na Seção intitulada “A Constituição e o Supremo”, que colaciona as seguintes jurisprudências ligadas ao assunto:


“O direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República (art. 196). Traduz bem jurídico constitucionalmente tutelado, por cuja integridade deve velar, de maneira responsável, o Poder Público, a quem incumbe formular — e implementar — políticas sociais e econômicas idôneas que visem a garantir, aos cidadãos, inclusive àqueles portadores do vírus HIV, o acesso universal e igualitário à assistência farmacêutica e médico-hospitalar. O direito à saúde — além de qualificar-se como direito fundamental que assiste a todas as pessoas — representa conseqüência constitucional indissociável do direito à vida. O Poder Público, qualquer que seja a esfera institucional de sua atuação no plano da organização federativa brasileira, não pode mostrar-se indiferente ao problema da saúde da população, sob pena de incidir, ainda que por censurável omissão, em grave comportamento inconstitucional. A interpretação da norma programática não pode transformá-la em promessa constitucional inconseqüente. O caráter programático da regra inscrita no art. 196 da Carta Política — que tem por destinatários todos os entes políticos que compõem, no plano institucional, a organização federativa do Estado brasileiro — não pode converter-se em promessa constitucional inconseqüente, sob pena de o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade, substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a própria Lei Fundamental do Estado.


(…) O reconhecimento judicial da validade jurídica de programas de distribuição gratuita de medicamentos a pessoas carentes, inclusive àquelas portadoras do vírus HIV/AIDS, dá efetividade a preceitos fundamentais da Constituição da República (arts. 5º, caput


, e 196) e representa, na concreção do seu alcance, um gesto reverente e solidário de apreço à vida e à saúde das pessoas, especialmente daquelas que nada têm e nada possuem, a não ser a consciência de sua própria humanidade e de sua essencial dignidade. Precedentes do STF.” (RE 271.286-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-9-00, DJ de 24-11-00). No mesmo sentido: RE 393.175-AgR

, Rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 12-12-06, DJ de 2-2-07.”

“Acórdão recorrido que permitiu a internação hospitalar na modalidade ‘diferença de classe’, em razão das condições pessoais do doente, que necessitava de quarto privativo. Pagamento por ele da diferença de custo dos serviços. Resolução n. 283/91 do extinto INAMPS. O <art. 196> da Constituição Federal estabelece como dever do Estado a prestação de assistência à saúde e garante o acesso universal e igualitário do cidadão aos serviços e ações para sua promoção, proteção e recuperação. O direito à saúde, como está assegurado na Carta, não deve sofrer embaraços impostos por autoridades administrativas, no sentido de reduzi-lo ou de dificultar o acesso a ele. O acórdão recorrido, ao afastar a limitação da citada Resolução n. 283/91 do INAMPS, que veda a complementariedade a qualquer título, atentou para o objetivo maior do próprio Estado, ou seja, o de assistência à saúde.” (RE 226.835, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgamento em 14-12-99, DJ de 10-3-00). No mesmo sentido: RE 207.970, Rel. Min. Moreira Alves, julgamento em 22-8-00, DJ de 15-9-00.”


Não se quer aqui sobremaneira defender que o atendimento nos hospitais da rede privada seja feito indiscriminadamente devendo o hospital arcar com o ônus caso o paciente não tenha como pagar o atendimento e a internação hospitalar, até porque para esses casos existem os hospitais públicos.


Todavia o que se tem percebido são abusos praticados contra pacientes que, em alguns casos, por toda uma vida, poucas vezes precisaram de atendimento de urgência e emergência, muitos deles idosos, que dada sua condição, pagam prestações altíssimas aos famigerados e insaciáveis Planos de Saúde e quando realmente vêm a precisar do atendimento efetivo, muitas vezes em situações de extrema gravidade, encontram obstáculos burocráticos, dada a relação “capenga” e de desconfiança existente entre a Rede de Hospitais Privados e a de Planos de Saúde, o que, diga-se de passagem, nada tem o consumidor, adimplente com as prestações de seu Plano de Saúde, a ver com isso, uma vez que quer apenas ver respeitado o seu direito sagrado de ser atendido.


Tal problema surge do receio dos hospitais privados em não verem repassados os custos, que tiveram com o paciente, pelo Plano de Saúde respectivo. Assim, na prática, para que o consumidor venha a ser efetivamente atendido, mesmo em situações de urgência e emergência, terá que desembolsar um “cheque-caução” que antes de garantir uma despesa sua, na verdade está a garantir o repasse que deveria ser feito pelo fornecedor do Plano de Saúde que com ele contratou.


Assim não se vê outra saída ao consumidor lesado, a não ser pagar a quantia como atendimento particular e depois se ver ressarcido pelo Plano de Saúde, sabe-se quando; desembolsar depósito (“cheque-caução”) para liberar seu atendimento; ou, não querendo se sujeitar a veemente abusividade, procurar o Judiciário (e isso quando tratar-se de caso em que haja tempo hábil para o paciente), como se tem verificado através da enxurrada de Ações de Obrigação de Fazer com pedido liminar e Alvarás Judiciais, visando compelir os hospitais privados e os respectivos Planos de Saúde a cumprir aquilo que é de direito ao consumidor.  


A Lei nº 9.656, de 03 de junho de 1998, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, traz ainda os seguintes dispositivos legais, ligados à presente discussão:


“Art. 1o  Submetem-se às disposições desta Lei as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos de assistência à saúde, sem prejuízo do cumprimento da legislação específica que rege a sua atividade, adotando-se, para fins de aplicação das normas aqui estabelecidas, as seguintes definições: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)


I – Plano Privado de Assistência à Saúde: prestação continuada de serviços ou cobertura de custos assistenciais a preço pré ou pós estabelecido, por prazo indeterminado, com a finalidade de garantir, sem limite financeiro, a assistência à saúde, pela faculdade de acesso e atendimento por profissionais ou serviços de saúde, livremente escolhidos, integrantes ou não de rede credenciada, contratada ou referenciada, visando a assistência médica, hospitalar e odontológica, a ser paga integral ou parcialmente às expensas da operadora contratada, mediante reembolso ou pagamento direto ao prestador, por conta e ordem do consumidor; (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)(…)


§ 1o  Está subordinada às normas e à fiscalização da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS qualquer modalidade de produto, serviço e contrato que apresente, além da garantia de cobertura financeira de riscos de assistência médica, hospitalar e odontológica, outras características que o diferencie de atividade exclusivamente financeira, tais como: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)


a) custeio de despesas; (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)


b) oferecimento de rede credenciada ou referenciada; (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)


c) reembolso de despesas; (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)


d) mecanismos de regulação; (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)


e) qualquer restrição contratual, técnica ou operacional para a cobertura de procedimentos solicitados por prestador escolhido pelo consumidor; e (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)


f) vinculação de cobertura financeira à aplicação de conceitos ou critérios médico-assistenciais. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)”


 “Art. 18.  A aceitação, por parte de qualquer prestador de serviço ou profissional de saúde, da condição de contratado, credenciado ou cooperado de uma operadora de produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, implicará as seguintes obrigações e direitos: (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)


I – o consumidor de determinada operadora, em nenhuma hipótese e sob nenhum pretexto ou alegação, pode ser discriminado ou atendido de forma distinta daquela dispensada aos clientes vinculados a outra operadora ou plano;


II – a marcação de consultas, exames e quaisquer outros procedimentos deve ser feita de forma a atender às necessidades dos consumidores, privilegiando os casos de emergência ou urgência, assim como as pessoas com mais de sessenta e cinco anos de idade, as gestantes, lactantes, lactentes e crianças até cinco anos;


spacerIII – a manutenção de relacionamento de contratação, credenciamento ou referenciamento com número ilimitado de operadoras, sendo expressamente vedado às operadoras, independente de sua natureza jurídica constitutiva, impor contratos de exclusividade ou de restrição à atividade profissional. (Redação dada pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)


spacerParágrafo único.  A partir de 3 de dezembro de 1999, os prestadores de serviço ou profissionais de saúde não poderão manter contrato, credenciamento ou referenciamento com operadoras que não tiverem registros para funcionamento e comercialização conforme previsto nesta Lei, sob pena de responsabilidade por atividade irregular. (Incluído pela Medida Provisória nº 2.177-44, de 2001)”


O que se verifica da análise do art.1º, §1º da supracitada Lei é que a Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS pode e deve normatizar e fiscalizar essas modalidades de relações jurídicas, tendo a mesma então Poder de Polícia inclusive para fazer cumprir seus regramentos.


Ocorre que desde 24 de julho de 2003 está em vigor a Resolução Normativa – RN nº 44 da ANS, cujo teor, por sua importância e relevância merece ser integralmente transcrito, até mesmo porque em que pese não ser extenso traz enorme conteúdo legislativo, dada a abrangência de seus dispositivos:


“RESOLUÇÃO NORMATIVA-RN Nº 44, DE 24 DE JULHO DE 2003


Dispõe sobre a proibição da exigência de caução por parte dos Prestadores de serviços contratados, credenciados, cooperados ou referenciados das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde.


A Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, no uso das atribuições que lhe confere o inciso VII do art. 4º da Lei n.º 9.961, de 28 de janeiro de 2000, considerando as contribuições da Consulta Pública nº 11, de 12 de junho de 2003, em reunião realizada em 23 de julho de 2003, adotou a seguinte Resolução Normativa e eu, Diretor-Presidente, determino a sua publicação.


Art. 1º Fica vedada, em qualquer situação, a exigência, por parte dos prestadores de serviços contratados, credenciados, cooperados ou referenciados das Operadoras de Planos de Assistência à Saúde e Seguradoras Especializadas em Saúde, de caução, depósito de qualquer natureza, nota promissória ou quaisquer outros títulos de crédito, no ato ou anteriormente à prestação do serviço.


Art. 2º Fica instituída Comissão Especial Permanente para fins de recepção, instrução e encaminhamento das denúncias sobre a prática de que trata o artigo anterior.


§ 1º As denúncias instruídas pela Comissão Especial Permanente serão remetidas ao Ministério Público Federal para apuração, sem prejuízo das demais providências previstas nesta Resolução.


§ 2º Os processos encaminhados ao Ministério Público Federal serão disponibilizados para orientação dos consumidores no site da ANS, www.ans.gov.br.


Art. 3º A ANS informará à operadora do usuário reclamante quanto às denúncias relativas a prestador de sua rede, bem como a todas as demais operadoras que se utilizem do referido prestador, para as providências necessárias.


Art. 4º Esta Resolução Normativa entra em vigor na data de sua publicação.


JANUARIO MONTONE


Diretor-Presidente”


Pela Resolução, fica vedada, em qualquer situação, a cobrança do já tão mencionado depósito, de forma a vincular a prestação do serviço ao consumidor à essa exigência, tendo sido criada uma Comissão Especial Permanente para instruir as denúncias recebidas e encaminhá-las ao Ministério Público Federal para apuração, sem prejuízo de que a ANS faça cumprir tais dispositivos por ela emanados (art.1º, §1º, Lei nº 9656/98 c/c art. 2º, §1º, parte final, da Resolução Normativa nº 44/003 da ANS).


O Município do Rio de Janeiro – RJ, em consonância com o entendimento aqui explanado, já chegou inclusive a editar Lei específica para o caso, em vigor desde 09 de janeiro de 2002, in verbis:


“LEI Nº 3359 DE 7 DE JANEIRO DE 2002


Proíbe depósito no caso que menciona.


Autor: Vereador Paulo Mello


O PREFEITO DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, faço saber que a Câmara Municipal decreta e eu sanciono a seguinte Lei:


Art. 1.º Fica proibida a exigência de depósito de qualquer natureza, para possibilitar internamento de doentes em situação de urgência e emergência, em hospitais da rede privada.


Art. 2.º Comprovada a exigência de depósito, o hospital será obrigado a devolver em dobro o valor depositado ao responsável pelo internamento.


Art. 3.º Ficam os hospitais da rede privada obrigados a fixarem em local visível e dar publicidade da presente Lei.


Art. 4.º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.


CESAR MAIA”.


Existe ainda em tramitação no Congresso Nacional o Projeto de Lei do Senado nº 95 de 2001 (PLS 95 2001) que altera o art. 18 da Lei nº 9656/98 para proibir expressamente, agora em sede de lei federal, a exigência de caução por parte dos prestadores de serviços contratados e credenciados às redes de planos e seguros privados de assistência a saúde, cujo acompanhamento pode se dar através do sítio do Senado Federal.


O que causa maior preocupação e estranheza é que, em que pese existir legislação tratando do assunto, poucos têm conhecimento da mesma, e o que é pior, as instituições privadas diretamente afetadas pela mesma se fazem de desentendidas e continuam a praticar a cobrança abusiva e indevida.


Não serão tão somente as normas que irão solucionar a questão, pois casos muitos existem de normas muito bem elaboradas e em vigor, mas sem, contudo, gozarem de efetividade jurídica, o que as tornam por vezes inócuas vez que não atendem aos fins precípuos para os quais foram criadas.


Cabe à sociedade consumidora exercer seu papel e se manter vigilante e atenta a seus direitos e exigir o cumprimento da norma quer administrativamente quer judicialmente, pois só assim conseguiremos obter o respeito que merecemos nessa modalidade de relação consumerista tão afeita a abusos e desmandos contra os usuários hipossuficientes desses serviços.


Informações Sobre o Autor

Thales Pontes Batista

Advogado, Especialista em Direito do Consumidor, Especialista em Direito Imobiliário, Registral e Notarial, Membro da Comissão de Defesa do Consumidor – OAB/CE


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