Da coisa julgada penal coletiva


Em verdadeiro estado de sono profundo, vige o Parágrafo 4º, do Art. 103, do formidável Código de Defesa do Consumidor – CDC, compondo aquilo que se convencionou chamar de microssitema de tutela coletiva.


Os Parágrafos 3º e 4º do dispositivo acima citado guardam a seguinte redação:


“§3° Os efeitos da coisa julgada de que cuida o art. 16, combinado com o art. 13 da Lei n° 7.347, de 24 de julho de 1985, não prejudicarão as ações de indenização por danos pessoalmente sofridos, propostas individualmente ou na forma prevista neste código, mas, se procedente o pedido, beneficiarão as vítimas e seus sucessores, que poderão proceder à liquidação e à execução, nos termos dos arts. 96 a 99.


§4º Aplica-se o disposto no parágrafo anterior à sentença penal condenatória”.


Se nas ações penais aonde o sujeito passivo mediato do delito é a pessoa humana individualmente considerada e determinada, como, p. ex., num delito de roubo ou estupro, pertinente é a tradicional ação civil ex delicto ou a execução individual do título executivo judicial a ser formado (sentença penal condenatória), manejadas pelo ofendido ou seu sucessor, solução bastante producente deve ser buscada quando a vítima mediata de um crime for também a coletividade, espraiando-se os danos sobre diversos ofendidos, como se dá, p. ex., nos crimes contra a economia e as relações de consumo.


Assim, os efeitos da coisa julgada penal, uma vez acolhido o pleito da Acusação, com a condenação criminal do responsável pela ofensa, beneficiará todas as vítimas e seus sucessores, que deverão proceder à liquidação e à execução, do mesmo modo como costumeiramente já se faz na execução das ações coletivas de defesa de interesses individuais homogêneos.


Agora, com essa prestativa e célere sistemática de tutela coletiva implementada pelo CDC e Lei da Ação Civil Pública a tradicional visão individualista de que a parte legítima para a execução cível dos danos causados por um delito seria aquela vítima epigrafada no processo penal, etiquetada com destaques e ouvida neste feito nesta mesmíssima qualidade, cai por terra. Resta superada, definitivamente, aquela tese de que parte legítima ativa para a execução cível dos danos seria aquele que fez o Boletim de Ocorrência ou provocou a atuação do Ministério Público, que foi convocado para depor no processo como “a vítima”.


Por essa sistemática criada pelo CDC e LACP, fincada no Parágrafo 4º, do Art. 103 do primeiro Diploma, todo aquele que se sentir lesado por uma infração penal, mesmo que não rotulada no feito criminal como “a vítima”, poderá, sim, pedir no juízo cível a reparação dos danos causados pelo macro-ofensor condenado em sentença penal trânsita em julgado. Não sendo mais admitido ao Julgador do cível recusar a liquidação e execução dos danos com base em uma suposta e clara descoincidência entre os personagens dos processos em cotejo. O Parágrafo 4º, do Art. 103, do CDC, provocou verdadeira ruptura com a tradicional e ultrapassada doutrina individualista dos efeitos subjetivos da coisa julgada penal na seara da responsabilidade civil.


Deverá o Magistrado, destarte, fazer esmiuçada investigação sobre se os efeitos da sentença penal condenatória recaem ou não sobre aqueles que pleiteiam a execução cível dos danos causados pelo macro-crime. E, para tanto, na petição de liquidação, deverá o ofendido interessado ou seu sucessor demonstrar clara e satisfatoriamente que sofreram individual e pessoalmente danos em razão do delito.


A guisa de exemplo, no delito de vender, ter em depósito para vender ou expor à venda ou, de qualquer forma, entregar matéria-prima ou mercadoria, em condições impróprias ao consumo, tipificado no Art. 7º, Inciso IX, da Lei 8.137/90, malgrado esse tipo penal, meramente formal, não exigir para a sua consumação que seja atingida a esfera individual de determinado consumidor, sendo suficiente para a sua consumação a mera exposição à venda (crime contra as relações de consumo), todo aquele, de alguma forma, se sentir prejudicado pelo delito (vítima mediata), será parte legitima ativa para promover a liquidação dos danos patrimoniais ou extra-patrimoniais sofridos, seja pela ingestão do alimento impróprio, seja pelo fundado abalo psíquico ocasionado pela mera exposição. É o que propõe o Parágrafo 4º, do Art. 103, do CDC. Fenômeno denominado na doutrina de transporte in utilibus da coisa julgada penal coletiva para a esfera coletiva e individual.


Outrossim, nada impedirá que Ministério Público e Defensoria Pública, e demais legitimados, ingressem com a liquidação e execução coletiva ex delicto para a composição dos danos sofridos, pelo macro-crime, por uma gama mais do que indeterminada de pessoas, como sói acontecer naqueles delitos cometidos contra as entidades autárquicas da Administração indireta e contra o meio ambiente, aonde o sujeito atingido pela infração penal seria o Estado e todos os cidadãos indistintamente considerados, sem se circunscrever os prejuízos à esfera individual de determinada pessoa. Revertendo-se, aí, o produto da execução a um fundo destinado à reconstituição dos bens públicos lesados.



Informações Sobre o Autor

Carlos Eduardo Rios do Amaral

Defensor Público do Estado do Espírito Santo


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