O direito ao contraditório e ampla defesa na fase inquisitória do processo penal

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Resumo: O inquérito policial vem sendo tratado, comumente, como mera peça informativa, quando em verdade não é. A esmagadora maioria das ações penais promovidas pelo Ministério Público tem por base inquéritos policiais, presididos ou por Delegados de Polícia de carreira, ou por autoridade de Polícia Judiciária Militar, no caso específico de crimes militares, ou mesmo pelo próprio Ministério Público, no exercício dos poderes implícitos. Assim, a inclusão da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa, como direito de vistas dos autos e dos documentos por advogado do indiciado, após o indiciamento, não prejudica o resultado proveitoso das investigações, muito ao contrário, garante maior legitimidade às suas conclusões.


Palavras chave: Polícia Judiciária, Inquérito policial, Contraditório, Ampla Defesa e Acusação (Estado).


Sumário: 1. Introdução; 2. Do inquérito policial; 3. Do contraditório e da ampla defesa; 4. Considerações finais; 5. Referências bibliográficas.


1. INTRODUÇÃO.


É de longa data a existência das instituições policiais. A própria sociedade e o Estado necessitam da existência de uma força policial para garantir o respeito à ordem e ao Estado Democrático de Direito.


Trata-se na espécie, de uma força legitimada pelo próprio povo, com fim de sustentar a própria coerência da estrutura estatal e das relações sociais. Nesse sentido, Weber (citado por BOBBIO, 2000, p. 165), afirma “que a força física legítima é o fio condutor de ação do sistema político, aquilo que lhe confere a sua particular qualidade e importância e a sua coerência como sistema”. Dessa argumentação, extrai-se que apenas as autoridades políticas possuem o direito de utilizar a coerção e de exigir obediência com base nela, e que:


“não há grupo social organizado que tenha até agora podido consentir na desmonopolização do poder coativo, evento que significaria nada menos que o fim do Estado, e que, enquanto tal, constituiria um verdadeiro salto qualitativo para fora da história, no reino sem tempo de utopia” (BOBBIO, 2000, p. 166).


Assim, pode-se afirmar que o poder que o Estado detém para intervenção e controle social, de forma monopolizada, e que advém da soberania popular, é um poder legitimado pelo povo com fim de sustentar a própria coerência da estrutura estatal. E numa ordem democrática de direito, o órgão do Estado que exerce a força física necessária à manutenção do poder legitimado pela soberania popular, não poderia ser outro senão a Polícia.


Dentre as inúmeras formas de atuação com o fim constitucional de preservação da ordem pública (art. 144, CF/88), encontra-se a atividade investigativa de polícia judiciária, principalmente com o mister de conduzir e realizar o Inquérito Policial.


O inquérito policial, com tal denominação, surgiu na legislação pátria pela Lei n. 2.033 de 20 de setembro de 1871, regulamentada pelo Decreto-lei n. 4.824, de 28 de novembro de 1871. O texto legal definia no artigo 42, que: “O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento dos fatos criminosos, de suas circunstâncias e de seus autores e cúmplices, devendo ser reduzido a instrumento escrito” (NUCCI, 2009, p. 70).


Vale ressaltar, que o arquétipo construído em torno do inquérito, como das demais ações policiais, é de incumbir a instituição policial de funções que desde sua origem foram voltadas para restrições de direitos, no estado absolutista, para garantir a vontade do poder soberano, no democrático de direito, com fim último de manutenção da ordem pública e conservação dos interesses públicos e coletivos, aqui se inserindo a persecução do direito de punir do Estado.


Assim sendo, talvez seja por tal motivo, que hoje, passados muitos anos de existência das forças policiais e da Polícia Judiciária, ainda é estranho falar-se em garantias constitucionais dos investigados na fase do inquérito policial, especialmente contraditório, ampla defesa e presunção de inocência. (ZACCARIOTTO, 1999).


Por tanto, sempre é atual e merecedor a discussão e produção literária a respeito da incidência de tais princípios constitucionais na instrução processual como um todo, seja na fase inquisitorial, seja na fase processual, visando unicamente tornar nosso sistema penal adjetivo cada vez mais acusatório e menos inquisitório, para assim, implementar-se com maior intensidade os direitos fundamentais e um processo penal mais justo.


2. DO INQUERITO POLICIAL.


A investigação policial, classificada em linha gerais como procedimento preparatório da ação penal, que deverá ser presidido por Autoridade Policial competente, seja Delegado de Polícia de carreira, conforme preceitua o artigo 144, § 4º da CF/88, tem por finalidade reunir elementos probatórios mínimos acerca de uma infração penal (materialidade e autoria delitiva) que possam justificar a propositura da ação penal competente. (TOURINHO FILHO, 2009).


Em face de tal desiderato, o inquérito policial deve obrigatoriamente respeitar as liberdades e garantias fundamentais como expressões da dignidade da pessoa humana na busca de uma instrução processual justa, mesmo na fase inquisitorial em que se apresenta, vez a exigência do Estado Democrático de Direito de uma leitura constitucional do direito processual penal. (BALDAN, 2006)


Como conseqüência dessa interpretação e do artigo 5o, inciso LV, da CF, o qual dispõe que: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ele inerentes”, é necessário o reconhecimento da paridade de armas entre acusação e defesa, equilibrando a balança da justiça na busca de uma responsabilização penal justa.


Nesse sentido, são dignas de referência, as palavras do tão citado garantista LUIGI FERRAJOLI (2002, p. 39): “para que a disputa se desenvolva lealmente e com paridade de armas, é necessária, por outro lado, a perfeita igualdade entre as partes”, bem como “que a defesa seja dotada das mesmas capacidades e dos mesmos poderes da acusação”.


O inquérito policial, como “meio de extirpar, logo de início, dúvidas frágeis, mentiras ardilosamente construídas para prejudicar alguém, evitando-se julgamentos indevidos de publicidade enganosa” (NUCCI. 2009, p. 71), está inserido, em nosso sistema processual penal como uma de suas fases, a inquisitória, compondo, ainda nas palavras de NUCCI, um sistema misto de características “inquisitórias garantistas” e acusatória por imposição constitucional.


Ademais, partindo do princípio que o inquérito, por mais que se afirme os teóricos do direito, ser de natureza inquisitiva e não estar apto a corroborar no juízo de convencimento do julgador, tomando como norte jurisprudência de alguns tribunais, não se pode olvidar que por vezes, as provas e indícios documentados em inquérito, servem de subsídio na análise e juízo de formação da culpa na apuração de conduta delitiva, senão vejamos alguns desses julgados:


“Quando a lei fala em indícios de autoria, não faz menção ao momento em que foram os mesmos obtidos, se sob o crivo do contraditório ou antes deste, no inquérito policial. Não há qualquer impedimento em se pronunciar alguém com base em indícios obtidos em inquérito policial, até porque, poderá ele, em plenário, produzir provas em seu favor, sendo, assim respeitado o princípio da ampla defesa.” (TJSP, RES 168.898-3, São Paulo, 4ª Câmara, Rel. Sinésio de Souza, 09.10.1995).


“A prova policial só é de ser arredada se totalmente desamparada por elementos judicializados, ou se contrariada ou desmentida por estes. Se assim não for, serve para embasar, junto com os demais seguimentos probatórios, juízo condenatório.” (TJRS, Apelação nº 698.562.170-Santa Maria, 7ª Câmara, Rel. Luís Carlos Ávila de Carvalho Leite, 10.06.1999).


 E, considerando tais hipóteses de utilização do corpo probatório produzido em inquérito para julgamento em 1º ou 2º graus, é que não se pode negar, em sentido lato, que se trata de procedimento a ser conduzido com garantia do contraditório e ampla defesa, mesmo que de forma mitigada, ou restrita às provas já documentadas, assim como vem entendendo o STF, como forma de evitar uma instrução processual arbitrária e desequilibrada com risco de prejuízo à defesa do acusado.


Malgrado ser comum o operador do direito se referir ao inquérito policial como mera peça informativa, em verdade, está diante de um instrumento de produção de provas que contribui de forma importantíssima para o juízo de delibação do titular da ação penal, Ministério Público – destinatário dos autos do inquérito, bem como para o prévio convencimento e interpretação do magistrado acerca de como se deram os fatos e suas circunstâncias.


Nesse mesmo sentido, são as lições de MARTA SAAD (apud FREITAS, 2009), ao tratar da relevância desse instrumento processual, os elementos constantes do inquérito policial “não se cuidam de elementos destinados, apenas, a noticiar, ou informar, mas de elementos fadados a convencer. Informação difere do conhecimento sobre algo, ou alguém”.


Marta Saad, ainda assevera em conclusão que:


“O inquérito policial traz elementos que não apenas informam, mas de fato instruem, convencem, tais como as declarações de vítimas, os depoimentos das testemunhas, as declarações dos acusados, a acareação, o reconhecimento, o conteúdo de determinados documentos juntados aos autos, as perícias em geral (exames, vistorias e avaliações), a identificação dactiloscópica, o estudo da vida pregressa, a reconstituição do crime. Assim, não é senão em conseqüência do inquérito que se conserva alguém preso em flagrante: que a prisão preventiva será decretada, em qualquer fase dele, mediante representação da autoridade policial, quando houver prova da existência de crime e indícios suficientes da autoria, e como garantia da ordem pública, conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal; que à autoridade cumpre averiguar a vida pregressa do indiciado, resultando dessa providência, como é sabido, sensíveis repercussões na graduação da pena”. (2004, p. 35)


3. DO CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA.


No que diz respeito à possibilidade de aplicação dos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, durante o indiciamento em inquérito policial, é de fácil percepção que a doutrina pátria não tem criado discussões controvertidas, contudo, a realidade prática de se reconhecer tal direito ao indiciado em procedimento investigativo, dando acesso aos advogados às peças já documentadas, como direito de consulta dos autos e atendimento de pedidos de produção de provas, ainda é de pouca expressividade.


O problema reside mais, na realidade, na própria admissão do direito ao contraditório pelos profissionais que laboram na área investigativa. E nesta discussão, existem aqueles contra e a favor da aplicação do contraditório ainda na fase de investigação policial. (FREITAS, 2009).


Nas palavras de Marta Saad, que também escreve sobre o assunto:


“Para alguns operadores jurídicos que lidam diariamente com a investigação criminal, a admissão do contraditório nesse procedimento significaria uma burocratização exacerbada da investigação criminal, pois o investigado faria jus às garantias do acusado em processo criminal. Entendemos de maneira diversa. É perfeitamente possível a aplicação do contraditório, de forma mitigada, na fase inquisitorial, como adiante se verá.” (2004, p. 26).


É de conhecimento geral e pacificado pela doutrina pátria, que o destinatário principal do procedimento inquisitivo é o Ministério Público, titular da ação penal competente para o caso de apuração de infração penal, e que, nesta qualidade, é conferido ao membro do parquet, a prerrogativa de requisitar a instauração do inquérito policial, bem como acompanhá-lo ou mesmo conduzi-lo, como vem entendendo o STF, com base na teoria dos poderes implícitos, in verbis:


“Ponderou-se que a outorga de poderes explícitos, ao Ministério Público (CF, art. 129, I, VI, VII, VIII e IX), supõe que se reconheça, ainda que por implicitude, aos membros dessa instituição, a titularidade de meios destinados a viabilizar a adoção de medidas vocacionadas a conferir real efetividade às suas atribuições, permitindo, assim, que se confira efetividade aos fins constitucionalmente reconhecidos ao Ministério Público (teoria dos poderes implícitos). Não fora assim, e desde que adotada, na espécie, uma indevida perspectiva reducionista, esvaziar-se-iam, por completo, as atribuições constitucionais expressamente concedidas ao Ministério Público em sede de persecução penal, tanto em sua fase judicial quanto em seu momento pré-processual. Afastou-se, de outro lado, qualquer alegação de que o reconhecimento do poder investigatório do Ministério Público poderia frustrar, comprometer ou afetar a garantia do contraditório estabelecida em favor da pessoa investigada. Nesse sentido, salientou-se que, mesmo quando conduzida, unilateralmente, pelo Ministério Público, a investigação penal não legitimaria qualquer condenação criminal, se os elementos de convicção nela produzidos — porém não reproduzidos em juízo, sob a garantia do contraditório — fossem os únicos dados probatórios existentes contra a pessoa investigada, o que afastaria a objeção de que a investigação penal, quando realizada pelo Ministério Público, poderia comprometer o exercício do direito de defesa. Advertiu-se, por fim, que à semelhança do que se registra no inquérito policial, o procedimento investigatório instaurado pelo Ministério Público deverá conter todas as peças, termos de declarações ou depoimentos e laudos periciais que tenham sido coligidos e realizados no curso da investigação, não podendo o membro do parquet sonegar, selecionar ou deixar de juntar, aos autos, qualquer desses elementos de informação, cujo conteúdo, por se referir ao objeto da apuração penal, deve ser tornado acessível à pessoa sob investigação.” (Informativo Nº 564. HC 89837/DF, rel. Min. Celso de Mello, 20.10.2009. (grifos nosso).


Acertou o nosso Supremo Tribunal ao entender que o Ministério Público pode sim conduzir como executar procedimentos de investigação, pois seria contraditório aos poderes e prerrogativas conferidas pela Constituição Federal a negação. Mas, o que requintou de qualidade ímpar o julgamento do habeas corpus em referência, fora a garantia ao contraditório à pessoa sujeita à investigação, efetivando as garantias fundamentais da pessoa humana e equilibrando a relação processual penal.


Em verdade, careceria de justiça, se o acesso ao inquérito policial fosse restringido tão somente ao membro de acusação, vez que nesta fase há produção probatória que não voltará a ser construída na fase de instrução processual, como é o caso de provas periciais ou antecipadas, quando apenas são submetidas ao contraditório diferido durante a judicialização dos autos do inquérito policial.


Feito esse intróito, podemos conceituar o contraditório como a garantia de bilateralidade nos atos e termos do processo, com a possibilidade de contrariedade, ou seja, permitindo a implementação de esforço das partes na formação do livre convencimento do julgador.


De acordo com Fernando da Costa Tourinho Filho, tendo em conta o princípio do contraditório:


“a defesa não pode sofrer restrições, mesmo porque o princípio supõe completa igualdade entre acusação e defesa. Uma e outra estão situadas no mesmo plano, em igualdade de condições, e, acima delas, o Órgão Jurisdicional, como órgão superpartes, para, afinal, depois de ouvir as alegações das partes, depois de apreciar as provas, dar a cada um o que é seu.” (2009, p. 22).


Enquanto a garantia do contraditório é direcionado à regulação da relação processual, o direito à ampla defesa é princípio constitucional voltado ao indivíduo. O princípio da ampla defesa significa dizer que ao acusado “é reconhecido o direito de se valer de amplos e extensos métodos para se defender da imputação feita pela acusação”. (NUCCI, 2008, p. 40).


Tal princípio encontra-se fundamentado no artigo 5º, inciso LV, da CF/88, no intuito de proteger o acusado em processo judicial ou administrativo contra a persecução arbitrária do Estado, que na relação processual sempre se apresenta com mais força e estrutura. Estas garantias conferidas pela Constituição ao indivíduo visam justamente compensar sua hipossuficiência na relação processual com o Estado acusador, buscando o equilíbrio. (LENZA, 2009).


Nessa linha de pensamento, pode-se afirmar que o direito ao contraditório e ampla defesa, ainda na fase inquisitorial, não conspira contra o êxito das investigações, ao contrário, assegura maior legitimidade aos resultados do inquérito, e é exemplo de efetivação dos direitos fundamentais.


Assim, a adoção dos princípios constitucionais em comento, mesmo que de forma mitigada, vez que se trata de um procedimento de características de origem inquisitiva e diversa do próprio processo judicial, em que o contraditório e ampla defesa alcançam maior plenitude, confere ao inquérito policial, natureza não de peça meramente informativa, como costumam pregar os operadores do direito, mas procedimento probatório de grande valor para instrução processual e construção dos juízos de culpabilidade e punibilidade do julgador, o qual na judicialização das provas já produzidas em inquérito, tenta se aproximar o máximo possível das verdades acerca dos fatos sob julgamento.


De outro lado, não se pode olvidar da importância que assume a Autoridade Policial no encargo de presidir a fase investigativa busque preservar, no âmbito de suas atribuições, a garantia do devido processo legal, e dos princípios do contraditório e ampla defesa, potencializando o uso da disposição garantista contida no Art. 14, do Código de Processo Penal: “o ofendido, ou seu responsável legal, e o indiciado poderão requerer qualquer diligência, que será realizada, ou não, a juízo da autoridade”. O que fará com que nos autos do inquérito policial seja possível a colação de elementos de prova de interesse da defesa do indivíduo sujeito à investigação criminal. (TÁVORA, 2009).


Em contraposição ao art. 16, do Código de Processo Penal, o qual prescreve: “o Ministério Público não poderá requerer a devolução do inquérito à autoridade policial, senão para novas diligências, imprescindíveis ao oferecimento da denúncia”, que confere ao membro do parquet o poder de requisitar, como sinônimo de ordem, reconhecido pela doutrina majoritária, é necessário o fortalecimento do art. 14, com fim de equilibrar a relação processual entre a acusação e a defesa.


A autoridade policial possui, portanto, no desenvolvimento de suas funções de Polícia Judiciária, o inequívoco compromisso democrático e ético de que em toda atividade investigativa que realize, com indiciamento de pessoas definidas e já intimadas da existência e andamento do inquérito, garanta, por respeito às garantias dos direitos fundamentais asseguradas na Constituição Federal, a faculdade do indiciado participar na construção das provas pré-processuais. Pois, o procedimento de inquérito tem um fim maior que é subsidiar a instrução de um processo e uma persecução penal justas.


Como ressalva, é digno de referência, que o próprio Supremo Tribunal Federal entende que não configura cerceamento de defesa em inquérito policial quando a Autoridade Policial avalia inconvenientes o conhecimento prévio da diligência pelo indiciado ou seu defensor, vez a possibilidade de prejuízos ao procedimento investigatório e ao fim maior do interesse público, justiça social. O que se configura, aparentemente uma mitigação necessárias das garantias constitucionais aqui discutidas em face da natureza pré-processual do inquérito, o que não é o mesmo que negar toda a discussão acima aduzida.


Tal hipótese se enquadra perfeitamente nos casos de interceptações telefônicas, autorizada pela própria Constituição no seu art. 5º, em conformidade com a disciplina legal atinente.


Ora, não seria razoável que o indiciado tivesse conhecimento desse tipo de diligência antes ou no decorrer da produção probatória, perderia toda a razão de ser do instrumento legal de investigação aperfeiçoado para o combate de organizações criminosas e crimes do colarinho branco, em que a investigação se mostra mais difícil. (GOMES, 2004).


Nesse sentido, é digno de transcrição o entendimento do ilustre  Ministro Sepúlveda Pertence, ao relatar o habeas corpus nº 82.354:


“EMENTA: I. Habeas corpus: cabimento: cerceamento de defesa no inquérito policial. 1. O cerceamento da atuação permitida à defesa do indiciado no inquérito policial poderá refletir-se em prejuízo de sua defesa no processo e, em tese, redundar em condenação a pena privativa de liberdade ou na mensuração desta: a circunstância é bastante para admitir-se o habeas corpus a fim de fazer respeitar as prerrogativas da defesa e, indiretamente, obviar prejuízo que, do cerceamento delas, possa advir indevidamente à liberdade de locomoção do paciente. 2. Não importa que, neste caso, a impetração se dirija contra decisões que denegaram mandado de segurança requerido, com a mesma pretensão, não em favor do paciente, mas dos seus advogados constituídos: o mesmo constrangimento ao exercício da defesa pode substantivar violação à prerrogativa profissional do advogado – como tal, questionável mediante mandado de segurança – e ameaça, posto que mediata, à liberdade do indiciado – por isso legitimado a figurar como paciente no habeas corpus voltado a fazer cessar a restrição à atividade dos seus defensores. II. Inquérito policial: inoponibilidade ao advogado do indiciado do direito de vista dos autos do inquérito policial. 1. Inaplicabilidade da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo, porque não destinado a decidir litígio algum, ainda que na esfera administrativa; existência, não obstante, de direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio. 2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado – interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo Estatuto da Advocacia (L. 8906/94, art. 7º, XIV), da qual – ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas – não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo: a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade. 3. A oponibilidade ao defensor constituído esvaziaria uma garantia constitucional do indiciado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, e pelo menos lhe faculta, quando solto, a assistência técnica do advogado, que este não lhe poderá prestar se lhe é sonegado o acesso aos autos do inquérito sobre o objeto do qual haja o investigado de prestar declarações. 4. O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução de diligências em curso (cf. L. 9296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências); dispõe, em conseqüência a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório. 5. Habeas corpus deferido para que aos advogados constituídos pelo paciente se faculte a consulta aos autos do inquérito policial, antes da data designada para a sua inquirição.” (STF, HC 82354/PR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, 1ª Turma, J. em 10/08/2004, Pub. 24.09.2004).


Enfim, vale lembrar que o inquérito policial, além de ser meio preparatório para a propositura da ação penal, também é instrumento hábil a concluir sobre a existência ou não de crime ou de apurar os indícios de autoria que justificam o início do processo penal, podendo através dele o Ministério Público competente ou a própria Defesa provocarem judicialmente a absolvição sumária do acusado.


É necessário ter em conta que a investigação realizada na fase pré-processual tem o fim útil de evitar a instauração de uma ação penal injusta, com violação dos critérios da proporcionalidade (adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estricto) e da razoabilidade. (FEITOSA, 2008).


Nessa linha de pensamento, os requerimentos de produção de provas por parte da defesa, nos termos do art. 14, do Código de Processo Penal, uma vez legítimos, em nada prejudica o inquérito policial, sendo que a sua aceitação ou rejeição devem ser feitas de forma motivada nos autos, a teor do quanto exigido pelo art. 93, inciso IX, da CF/88, principalmente, por se tratar de restrição de direitos do acusado.


Para encerramento deste ponto e passar às considerações finais acerca do tema, merecem transcrição as palavras de José Pedro Zaccariotto, Delegado de Polícia Civil no Estado de São Paulo, que se posiciona da seguinte forma:


“O fundamento constitucional da obrigação de motivar está implícito tanto no artigo 1º, inciso II, da CF/88, que indica a cidadania como fundamento da República, quanto no parágrafo único desse preceptivo, segundo o qual todo poder emana do povo, como ainda no artigo 5º, XXXV, que assegura o direito à apreciação judicial nos casos de ameaça ou lesão de direito. É que o princípio da motivação é reclamado, quer como afirmação do direito político dos cidadãos ao esclarecimento do porquê das ações de quem gere negócios que lhes dizem respeito, por serem titulares últimos do poder, quer como direito individual a não se sujeitarem a decisões arbitrárias, pois só têm que se conformar às que foram ajustadas às leis.” (1999)


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS.


A evolução e alcance da efetivação dos princípios do contraditório e ampla defesa já a partir da fase de inquérito, num sistema processual penal que ainda conserva características inquisitórias, como exemplo, a possibilidade de determinação ex oficio de diligências e medidas cautelares de restrição de liberdade pelo próprio juiz, que possui por ordem constitucional dever de imparcialidade no julgamento e condução processual, às vezes se mostra difícil na realidade prática, mesmo com o apoio de entendimento dos tribunais superiores, pois ainda está incutido no meio policial fortes tendências inquisitivas, fruto da formação e história das instituições policiais no país.


Assim, a tarefa de buscar a verdade real ou processual, de forma proporcional e justa, desde a fase de inquérito é dever que se impõe aos profissionais que militam na atividade de polícia judiciária, os quais precisam amadurecer a sensibilidade e o respeito aos princípios garantistas explícitos ou implícitos na ordem constitucional vigente, em específico, os do contraditório e ampla defesa.


O fato é que, conseguindo a Polícia Judiciária apresentar ao órgão jurisdicional competente um inquérito policial conduzido sob a égide das garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, mesmo que relativizados em alguns casos, nas hipóteses argumentas no bojo do presente trabalho, haverá benefício não apenas às partes que compõem o processo, mas à própria sociedade na busca de uma condenação penal justa.


Por fim, o que não pode ocorrer é uma involução no combate à criminalidade organizada com adoção de medidas arbitrárias como justificativa de alcançar a responsabilização penal a qualquer custo, apenas para efeito de resposta à sociedade. Não é isso que a sociedade democrática de direito almeja. Não se pode voltar ao tempo em que o processo criminal era inteiramente inquisitório. O povo moderno exige maior respeito às suas garantias constitucionais, e para acompanhar a evolução social, as instituições policiais necessitam também crescer e acompanhar esta evolução social, se adequando às exigências e garantias inerentes aos direitos do homem, positivadas constitucionalmente como direitos fundamentais.


 


Referencias bibliográficas.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Geral. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF, 1988.

BALDAN, Edson Luis; AZEVEDO, André Boiani e. A preservação do devido processo legal pela investigação defensiva (ou do direito de defender-se provando). Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1013, 10 abr. 2006. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8220. Acesso em: 12.dez. 2009.

BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia: uma defesa das regras do jogo. Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.

FEITOZA, Denilson. Direito processual penal: teoria, crítica e práxis. 5. ed. rev., ampl., e atual. Niterói: Impetus, 2008.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: RT, 2002.

FREITAS, Marcelo Eduardo. O direito do indiciado a uma investigação defensiva e contraditória no inquérito policial. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1947, 30 out. 2008. Disponível em: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11907. Acesso em: 12.dez. 2009.

GOMES, Luiz Flávio. CERVINI, Raul. Crime Organizado. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1997.

TÁVORA, Nestor. Curso de Direito Processual Penal. 3ª Ed. Salvador: Jus Podiun, 2009.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal Comentado. 8ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13ª ed, São Paulo: Saraiva, 2009.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 11ª Ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2009.

SAAD, Marta. O direito de defesa no inquérito policial, São Paulo: ERT, 2004.

ZACCARIOTTO, José Pedro. A Portaria DGP18/98 e a Polícia Judiciária Democrática. Revista dos Tribunais, ano 88, novembro de 1999 – Vol. 769.


Informações Sobre o Autor

Fernando Afonso Cardoso Borges

Oficial da Polícia Militar da Bahia, Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), e com Especialização em Ciências Criminais pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA).


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